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CONFERÊNCIAS E MESAS

REDONDAS
A MEMÓRIA ÁRABE DA NOBREZA MOÇÁRABE
PORTUCALENSE (SÉCULOS X - XIII)

António Rei, Ph.D.


IEM / FCSH – UNL
Bolseiro FCT

RESUMO: A antiga nobreza Portuguesa viveu dominada e governou o norte de


Portugal, a região situada entre os rios Douro e Minho, durante os séculos X e XIII.
Essa nobreza foi constituída por Cinco Linhagens: os senhores de Sousa, os Senhores da
Maia, os Senhores do Baião, os Senhores de Bragança e os Senhores da Riba Douro.
Nós os chamamos de "portucalenses", porque eram uma nobreza guerreira, cuja origem
remonta bem antes do surgimento do Reino de Portugal; e também os designamos de
"moçárabes" porque eles eram uma espécie de "senhores da fronteira", em situação
intermediária entre o norte cristão e o sul islâmico. Mas não foram apenas os
condicionalismos geográficos e culturais, que os foram transformando em elementos de
simbiose cultural; foi, especialmente, a afirmação, de que eles deixaram memória
escrita, de que eles eram uma prova da simbiose, genética ou biológica, entre cristãos e
árabes.

Palavras-chave: Linhagens, Senhores, Fronteira, Cristãos, Árabes

ABSTRACT: The ancient Portuguese nobility lived, dominated and ruled the north of
Portugal, the region between the Douro and Minho rivers, from the Xth to XIIIth
centuries. That nobility consisted of Five Lineages: the Lords de Sousa, the Lords of
Maia, the Lords of Baião, the Lords of Bragança and the Lords of Riba Douro.
We call them "portucalenses", because they were a warrior nobility, whose origin dates
back well before the emergence of the Kingdom of Portugal; and also designated them

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


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as "mozarabic" because they were a kind of “lords of the frontier”, in an intermediate
situation between the Christian north and the Islamic south. But it was not only the
geographical and cultural constraints that were transforming them in elements of
cultural symbiosis; it was especially the claim from what they left writing memory, that
themselves were a proof of genetic or biological symbiosis between Christians and
Arabs.

Keywords: Lineages, Lords, Frontier, Christians, Arabs

1. Introdução
A Nobreza Portucalense Moçárabe foi aquela que dominou no Norte de
Portugal, na região entre os rios Douro e Minho, desde o século X até ao século XIII.
Chamamo-lhe de “portucalense” por se tratar de uma nobreza guerreira cuja
origem é bastante anterior à do surgimento do Reino de Portugal; e também a
designamos de “moçárabe” porque ela foi marcada, indelevelmente, pela situação
intermédia, entre o norte cristão e o sul islâmico.
E, como veremos adiante, não foram apenas os condicionalismos geográfico e
cultural que os foi tornando elementos de simbiose cultural. Foi também, e
principalmente, e disso deixaram relação, a simbiose genética ou biológica.
Aquela nobreza foi constituída por Cinco Linhagens, ou ao menos foi dessas que
nos consta memória: os Senhores de Sousa, os da Maia, os de Baião, os de Bragança e
os de Riba Douro1.
Mas foi a partir da linhagem dos Senhores da Maia que a ascendência árabe
chegou a todas aquelas outras famílias de senhores portucalenses.
Tudo isto nos chegou através do mais antigo Livro de Linhagens de toda a
Europa, e matriz da genealogia senhorial de toda a Hispânia. Referimo-nos
concretamente ao Livro Velho de Linhagens.

1 Sobre estas linhagens portucalenses, v. J. Mattoso, Ricos-Homens, Infanções e Cavaleiros. Lisboa:


Guimarães & Cª. Editores, 1982; Idem, Identificação de um País. Ensaio sobre as origens de Portugal.
1096-1325. 2..ed. 2 vols. Estampa, 1985, em especial o vol. I, passim; Idem, A Nobreza Medieval
Portuguesa. A Família e o Poder. 4. ed. revista. Estampa, 1994. Mais recentemente, e centrados em
apenas uma das linhagens, Odília Gameiro publicou A Construção das Memórias Nobiliárquicas
Medievais. O passado da linhagem dos senhores de Sousa. Lisboa: Sociedade Histórica da
Independência de Portugal, 2000, que trata os Sousa ou Sousões; e em 2004, José Carlos Soares Machado
publicou um estudo de fôlego sobre Os Bragançãos. História Genealógica de uma Linhagem Medieval
(séculos XI a XIII). Lisboa: Ass. Portug. de Genealogia, 2004. Ainda de forma geral sobre todas estas
linhagens, v. José Augusto de Sottomayor Pizarro, Linhagens medievais portuguesas. Genealogias e
estratégias (1297-1325). Porto: Universidade Moderna, 1999, passim.

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1.1. O Livro Velho de Linhagens
Para quem não está familiarizado com estes textos, o que é o Livro Velho de
Linhagens (LVL)2? O LVL é o mais antigo nobiliário português3. O nosso contacto com
as Linhagens lá tratadas levou-nos a constatar que em alguns dos antropónimos, e
também em alguns dos conteúdos textuais, existem sinais que apontam para uma certo
grau de “arabização” da realidade social dos primórdios das Linhagens tratadas naquela
obra4.

1.1.1. O LVL e a sua contextualização politico-social


O Livro Velho de Linhagens (LVL) apareceu quando, para a antiga nobreza de
raiz portucalense, se tornou sensível uma crise social, com reflexos directos na sua
economia e no seu estatuto.
O LVL é, antes de tudo, um manifesto de revolta, onde os membros daquela
velha nobreza fizeram, simbolicamente, a defesa da sua condição, claramente em
perigo, e das suas Linhagens, as quais estavam ficando seriamente ameaçadas com a
perda de riqueza, poder e protagonismo. O “Livro Velho” […] Afirma-se como texto de
combate ideológico, como manifesto da sociedade senhorial”5.
Aquela obra é o último sinal, o testemunho derradeiro de um tempo, de uma
cultura de traços senhoriais, feudais e rurais, no momento em que a mesma está sendo
definitivamente substituída por uma nova cultura régia, cortesã e urbana.

2 Livros Velhos de Linhagens [Livro Velho e Livro do Deão]. ed. crítica de J. Piel e J. Mattoso
(Portugaliae Monumenta Historica. Nova serie, I). Lisboa: Academia das Ciências, 1980 (1. ed.: Os
Livros de Linhagens. ed. Alexandre Herculano. Portugaliae Monumenta Historica. Scriptores, I,
Academia das Ciências de Lisboa, 1861); J. Mattoso, “Livros de Linhagens”. in Dicionário da
Literatura Medieval Galega e Portuguesa. Lisboa: Ed. Caminho, 1993, pp. 419-421.
3 E dentro da tipologia de genealogia-prosopografia é um dos primeiros da Europa, onde os nobiliários
eram, bastas vezes, esquálidas árvores genealógicas, elencando as gerações de senhores de um domínio,
sem mais informações acerca deles, e ignorando ramos colaterais, a não ser que a linha primogénita se
extinguisse por varonia e o domínio em causa passasse ao irmão seguinte ou à descendência desse irmão.
4 José Mattoso oscilou na direção da moçarabização dos Infanções, mas assentou a sua dúvida em relação
a essa possível realidade, no facto de o domínio político-militar islâmico a norte do Douro ter sido muito
breve (V. Idem, Ricos-Homens, Infanções e Cavaleiros. Lisboa: Guimarães & Cª. Editores. 1982, p.
39). Sabe-se, no entanto, que, desde sempre, os fluxos culturais e comerciais ultrapassam, sempre, as
fronteiras políticas. Estas não podem conter aqueles. As marcas do sul islâmico entraram fortemente no
norte cristão. Não esqueçamos o pormenor que se encontra no episódio da Lenda da Gaia, de o rei
Ramiro ao se dirigir à serva moura que encontrou junto ao poço, o ter feito “pela aravia”. Pode ser uma
mitificação, mas também pode ser uma realidade: os senhores cristãos do norte, os monarcas
inclusivamente, saberiam árabe o suficiente para se comunicarem oralmente, e de forma satisfatória, com
os do sul.
5 Luís KRUS. A Concepção Nobiliárquica do Espaço Ibérico (1280-1380). Lisboa: FCG / JNICT,
1994, p. 70, n. 60.

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1.1.2. a sua origem
É hoje um dado adquirido de que o Livro Velho de Linhagens foi redigido no
Mosteiro de Stº. Tirso, tendo sido composto entre cerca de 1285 e 1290, a mando de
Martim Gil de Riba de Vizela, senhor que assumiu a herança simbólica e linhagística
dos Senhores da Maia, que lhe vinha por sua mãe, a primogénita do último dos
Senhores daquela linhagem6. O Mosteiro de Stº. Tirso, fundado por um antepassado
materno daquele Martim Gil de Riba de Vizela, estava, desde a sua própria origem,
intimamente ligado à memória daquela linhagem, pois nele fora constituído, desde a sua
fundação, o panteão familiar dos Senhores da Maia7.

1.1.3. os seus conteúdos


O “Livro Velho” não é conhecido na sua forma integral, ou porque não chegou a
ser completado; ou porque perdeu algumas das suas partes constitutivas. Sendo
afirmado no respectivo ‘Prólogo’ que a obra em causa trataria cinco linhagens, apenas
subsistiram duas dessas cinco, e uma das quais, incompleta.
Um dos principais, ou mesmo, o então principal representante da primitiva
nobreza portucalense no Reino de Portugal, aquele Martim Gil de Riba de Vizela,
mandou pôr, por escrito, as memórias da sua linhagem. Mas não só as da “sua” linha
ascendente de antepassados, mas também as memórias das outras quatro Linhagens com
as quais os da Maia se tinham acabado por aparentar, através do casamento de mulheres
da sua linhagem nas outras famílias.

6 Sobre Martim Gil (I) de Riba de Vizela, v. Leontina Ventura. A Nobreza de Corte de Afonso III. II
vols. Coimbra: FLUC. Dissertação de Doutoramento, 1992, policop.; J. Mattoso, “Livros de Linhagens”.
in Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa. Lisboa: Ed. Caminho, 1993, pp. 419-421;
A. Rei, “Os Riba de Vizela, Senhores de Terena (1259-1312)”, Callipole 9 (2001), Câmara Municipal de
Vila Viçosa, pp. 13-22, para aquele senhor, especialmente pp. 17-19.
7 A. Rei, “Os Riba de Vizela, Senhores de Terena (1259-1312)”, passim.

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Espaços onde dominavam as Cinco Linhagens de Infanções
Portanto, no momento da composição da colectânea genealógica, já todas
aquelas linhagens estavam seguramente aparentadas, nalguns casos várias vezes, e todas
acabavam por ter os mais longínquos Senhores da Maia também como seus
antepassados. Veremos adiante a importância desta ascendência comum.

Quando a ascendência da Maia entrou nas outras Quatro Linhagens

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2 - Novas leituras do LVL
2.1. O LVL – linguagem histórica e linguagem simbólica
O LVL afirma a antiguidade e o prestígio das linhagens senhoriais autóctones, as
famílias dos Infanções de entre Douro e Minho, por comparação com a Casa Real
portuguesa, muito mais recente, atendendo principalmente à respetiva varonia
borguinhona.
Mais: aquele Livro foi, ele mesmo, o produto explícito dessa manifestação de
prestígio, e dessa afirmação de precedência e, portanto, de implícita autoridade e
legitimidade a que se arrogavam aqueles senhores portucalenses e que lhes daria um
direito inquestionável à posse dos seus domínios e direitos, relativamente ao que
entendiam serem interferências não justificadas nem justificáveis, por parte dos
monarcas do Reino português. Eles eram, segundo faziam constar, e disso exaravam
registo, os descendentes daqueles que tinham andado a “filhar o reino de Portugal”,
muito antes, várias gerações antes, de Henrique de Borgonha ter demandado aquelas
paragens.
A Casa Real tinha a sua origem no casamento, ocorrido em finais do século XI,
de D. Henrique de Borgonha com D. Teresa, filha de D. Afonso VI de Leão e Castela, o
Conquistador de Toledo, o Imperador. Enquanto aquelas Cinco Linhagens remontavam
a antigos presores ou senhores de fronteira, que desde o século IX tinham sabido
sobreviver e manter as suas casas, em artifícios de diplomacia e de estratégia,
colocando-se sempre algures, procurando sobreviver, escapar-se, autonomizar-se, dos
poderes cristão asturiano-leonês, a norte; e do islão cordovês, a sul.
Parecem privilegiar, como os demais moçárabes, uma coexistência entre cristãos
e muçulmanos peninsulares, apesar de nem sempre totalmente pacífica 8. De qualquer
forma, uma atitude bem diferente da que tinham os cristãos que vinham d’além-
Pirenéus para com os hispânicos em geral, quer estes fossem muçulmanos, quer fossem
cristãos moçárabes. Recordemos, por mero exemplo, a conquista de Lisboa e a chacina
da população, independentemente do credo professado.

8 O facto da submissão à Igreja de Roma e à «clunização» do cristianismo portucalense se dever também


à proximidade que se dera entre as Casas de Leão e Castela, por um lado, e da Borgonha, por outro, e o
facto de tal processo não ter sido nada pacífico, bem pelo contrário, poderá ter estado presente na mente
de Martim Gil de Riba de Vizela, herdeiro dos Senhores da Maia, por linha feminina, quando ordenou
que se compusesse o Livro Velho de Linhagens, onde exaltava as origens dos seus antepassados e dos
outros senhores naturais, sobre a do monarca de Portugal, directo descendente daquele Henrique.

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Não esqueçamos que, nos finais do século X, os senhores cristãos daquelas
paragens, os chefes das linhagens de Infanções, com seus colaterais e súbditos, também
acompanharam Muhammad ibn Abî ‘Âmir, o famoso hâjib que se autointitulou de Al-
Mansûr, na campanha militar que foi até Compostela, e também no regresso, até
Lamego, onde foram agraciados pelo mesmo poderoso ministro de Córdova, e de onde
cada um regressou, com os seus, para as suas terras9. Até o local de separação nos
indica que eles eram daquela região, e que aquele ponto era quase um ponto
equidistante dos seus domínios: Maias, Sousões e Baiões a noroeste; Gascos ou
Ribadouro a oeste; e Braganções a nordeste.

3. - A ascendência árabe dos Infanções


A coexistência que se gerou e, de alguma forma, consubstanciou a massa
humana peninsular entre os inícios do século VIII e os finais do século XI, durante cerca
de meio milénio, não advinha de uma tolerância e respeito pelo outro, valores e
conceitos algo abstratos para o homem medieval. Aquele espírito teve origem na
miscigenação que, durante todo aquele longo período, se produziu entre todos os grupos
humanos, embora mais fortemente entre muçulmanos e cristãos, com os judeus mais
periféricos ao fenómeno. E aquela realidade teve lugar no sul islâmico, mas também no
norte cristão, e não apenas envolvendo governantes e acordos políticos, mas cruzando a
sociedade no seu todo, do monarca ao servo.
Convém, neste contexto, recordar que, por exemplo, ao nível da própria
monarquia asturiana, e ainda no século VIII, os casos dos próprios reis Silo e
Mauregato, que governaram, respetivamente entre 773 e 783, e entre 783 e 788, e que já
foram filhos de cristãos e de muçulmanas10.

9 Al-Mansûr quando regressou da sua expedição a Compostela, ao despedir-se, em Lamego, dos condes
moçárabes do actual norte português, de entre Minho e Mondego(as cabeças das casas de Infanções
naquele momento), e que o tinham acompanhado naquela mesma expedição, ofereceu-lhes os chamados
“mantos de honra” com que os soberanos de Córdova costumavam presentear alguns dos seus mais
importantes convidados ou principais súbditos. Eram feitos com os filamentos do chamado “abû
qalamûn”, os quais lhes davam particularidades únicas, de beleza e sumptuosidade (sobre este material,
sua identificação e origem, A. REI, “Santarém e o Vale do Tejo, na geografia árabe”. Arqueologia
Medieval, nº 9, Mértola / Porto, CAM / Afrontamento, pp. 61-75,especialmente as pp. 72-74. Mais
antigo, não tão específico, mas ainda sobre este material, v. J. VALLVÉ, “La Industria en al-Andalus”,
Al-Qantara I (1980), pp. 209-241, p.228).
10 Luiz de Mello Vaz de São Payo. A Herança Genética de D. Afonso Henriques. Porto: Centro de
Estudos de História da Família da Universidade Moderna, 2002, p. 235, § 317.

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A invocação, por parte dos descendentes dos primitivos Senhores da Maia, de
uma ascendência árabe, mais exatamente, remontando à aristocracia árabe, é o
argumento de base do LVL. Quando o LVL é composto todos os membros das Cinco
Famílias de Infanções, como já vimos atrás, descendem dos primeiros da Maia, embora
seja o representante da linhagem, Martim Gil de Riba de Vizela, que se fez cargo da
empresa de pôr, por escrito, aquela memória genealógica, argumento, senão já de poder
efetivo, ao menos de seguro prestígio em frente da recente Casa Real.

3.1. – A Lenda da Gaia, enquanto texto


O texto em que aparece o relato sobre a origem do primeiro dos da Maia, é
designado como Lenda da Gaia (ou ainda, embora menos, como Lenda do Rei Dom
Ramiro). Sendo entendido como tratando-se de um texto “lendário” ou “épico-
lendário”11, tem sido geralmente emparelhado com outros relatos com origem na
nobreza peninsular, como o que fala da origem dos Haros, que ascenderiam à ninfa
Dama de Pé-de Cabra; ou como o que, falando dos Marinhos, os faz remontar à sereia
Dona Marinha.
Estes últimos casos, apesar de terem um substrato histórico minimamente
comprovável, têm passagens e personagens que não são apenas lendários, são
claramente eivados de características fabulosas, o que de facto não acontece com a
Lenda da Gaia, pois esta, além de não ter personagens fabulosos, contém informações
que são passíveis de uma contextualização e confirmação cronológica, o que lhe vai
dando maior realidade historiográfica e cada vez menos contornos lendários. No que
concerne ao “rei Ramiro” que surge no relato, tem-se procurado precisar se o monarca
que aparece no relato se trata, efectivamente, do monarca Ramiro II das Astúrias, ou se
se trataria de um homónimo daquele 12.

11 A primeira acessão surge em José Mattoso (in “A família da Maia no século XIII”. Nobreza Medieval
Portuguesa. A Família e o Poder. Lisboa: Estampa, 1994, pp. 331-342, p. 331), e a segunda acessão em
Luís Krus (in “O Discurso sobre o passado na legitimação do senhorialismo português dos finais do
século XIII”. Passado, Memória e Poder na Sociedade Medieval Portuguesa. Estudos. Redondo:
Patrimonia, 1994, pp. 197-207, p. 202).
12 Luiz de Mello Vaz de São Payo afirma que o “Rei Ramiro” progenitor dos da Maia (que apenas mais
tarde o LL do Conde D. Pedro chama de “Ramiro II”), não seria o monarca que figurou na História com
aquele nome, mas antes um seu tio homónimo, filho de Afonso III, o Grande, que em 925, após a morte
de seu irmão Fruela II, se proclamou Rei, sem sucesso, pois acabou sendo reconhecido seu sobrinho
Afonso IV, filho de Ordonho II (v. Luiz de Mello Vaz de São Payo, “Ramiro II, sobrinho da Condessa
Mumadona e Ramiro II progenitor da linhagem Maia”, in Genealogia & Heráldica, nºs. 5/6 (2001),
Porto, Univ. Moderna, pp. 230-245).

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3.1.1. - Novos dados sobre “o rei Ramiro”
Sobre este ponto, queremos trazer aqui novas informações que nos ajudam a
situar o infante Ramiro, antes de ser rei e depois de o ser13, na região onde decorre a
trama relatada na Lenda da Gaia.
Uma notícia provém de uma fonte árabe, o Muqtabis de IbnHayyân14, portanto
insuspeita, e ainda para mais corroborada pela cristã Crónica de Sampiro.
Diz-nos a fonte árabe Muqtabis, que entre 925 e 931: “Ramiro filho de Ordonho
[…] detinha a região entre o oeste da Galiza e os limites de Coimbra”15;e na Crónica de
Sampiro (em versão silense), encontramos: (“Era DCCCCLXIII [963 (– 38 = 925)].
Mortuofroyla […] Ramirus in partes Visei”)16. Portanto a fonte cristã, aquando da morte
de Fruela II em 925, situa Ramiro, o futuro rei, “nas partes de Viseu”, ou seja na região
de Lafões. Atendo-nos à fonte árabe, coloca-o num espaço entre o curso do Douro e os
limites a sul da região de Coimbra, no mínimo até ao Mondego. Ambas as fontes
coincidem, assim, com a presença do infante Ramiro na região, atestada pelo menos
entre 925 e 933.17 Parece, pois, confirmado que se trataria efetivamente de Ramiro,
futuro Ramiro II e não de outro homónimo, mesmo que parente próximo daquele.

13 O Liber Testamentorum de Lorvão refere o rei Ramiro naquele cenóbio na Era de 971 (ano de 933), ou
seja menos de dois anos depois de se ter tornado rei (v. António Losa, “Moçárabes em território português
nos séculos X e XI: contribuição para o estudo da antroponímia no «Liber Testamentorum» de Lorvão”,
in Islão e Arabismo na Península Ibérica. Actas do XI Congresso da UEAI, Universidade de Évora,
1986, pp. 273-289 + 3 ilustrações, ilustração I).
14 Fonte historiográfica composta no século XI d. C. / V h. pelo historiador IbnHayyân, o qual dispôs
para o seu trabalho de muita documentação oficial autógrafa, pelo facto de ser filho de um secretário
pessoal do famoso hâjib al-Mansûr (m. 1002 d.C. / 393 h.). O tomo V da obra em causa, que abarca o
período entre 912 e 942, foi editado por Pedro Chalmeta (Madrid, Instituto Hispano-Árabe de Cultura,
1979), e traduzido para castelhano por Maria Jesús Viguera e Federico Corriente (Textos Medievales, 64,
Saragoça, 1981).
15Muqtabis V, ed., p. 345 (ár.); trad., p. 259.
16 Este excerto da Crónica de Sampiro surge na tradução castelhana do Muqtabis V (v. supra n.19), p.
156, n. 6. Queremos referir ainda que, curiosa e significativamente, a antiga heráldica municipal de Gaia e
de Viseu fizeram eco da memória que liga ambas as localidades ao episódio do rei Ramiro e durante o
qual terá nascido o epónimo dos da Maia (v. Armando de Mattos. A Lenda do rei Ramiro e as armas de
Viseu e Gaia. Ass. Cultural Amigos de Gaia. Porto, 2001 (ed. fac-sim. da de 1933).
17 A questão, não importante do ponto de vista genealógico, que subsiste, será se o seu filho, epónimo
dos da Maia, Cid Alboazar Lovesendo Ramires, terá nascido quando o próprio Ramiro ainda era infante,
entre 925 e 931, ou já depois de rei, após 931.

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4. Análise de novos dados linguísticos de origem árabe

4.1. “Alboazar”

Vamos analisar a questão relativa à denominação do filho do Rei Ramiro e de


Artiga.
No LVL quando diz que o rei Ramiro pôs nome ao filho, chama-o de
“Alboazar”. Se a este termo juntarmos “Cid” (que ausente no LVL, aparece no entanto
em LL), teremos a expressão “Cid Alboazar”. Agora vejamos a seguinte passagem, na
parte final do relato, que é muito esclarecedora, por sinal, a vários níveis: “o padre […]
lhe punha este nome porque seria padre e senhor de muito boa fidalguia” (o sublinhado
é nosso). Mais do que antropónimo do filho, trata-se, na realidade, da tradução
completa, em português, da expressão:

‫اﺑﻮاﻷﻋﺻﺎﺮﺴﯿﺪ‬
SayyidAbû l-A’ṣâr
“Alboazar” sendo a transcrição da expressão árabe supra Abû l-A’ṣâr18, que é
traduzível por “pai, epónimo ou origem das linhagens”, ou seja, concorda plenamente
com a explicação medieval anterior: “padre […] de muito boa fidalguia”. Se se lhe
juntar o “Cid”19 (presente no relato similar constante no Livro de Linhagens [LL] do
Conde D. Pedro), e que significa “Senhor”, teremos a reconstituição completa da
expressão árabe que aparece atribuída à fala do rei Ramiro.
O termo “Alboazar”, que transcreve a sinónima expressão árabe, terá tido uma
função de título, de identificação dos primórdios da linhagem, pois surge integrado na
onomástica das primeiras gerações dos da Maia. O filho do monarca asturiano, que
aparece apenas designado por um conjunto de titulaturas, poder-se-ia chamar
Lovesendo Ramires, ser filho de Ramiro e pai de Alboazar Lovesendes. Este último,
poderia ter nascido por volta de 950, e teria cerca de 28 anos quando da fundação do
mosteiro de Stº Tirso, em 978. E assim poderá ser resolvida a questão: porque razão

18 “Abû l-‘Asâr” é literalmente “Pai dos tempos [: o chefe carismático]”; mas também tem a leitura, que
cremos, neste contexto, muito mais significativa, de, “Pai das linhagens”, ou seja epónimo, tronco de
linhagem, progenitor). Cf. Federico Corriente. Dicionário Árabe-Español. 2.ed., Madrid: Instituto
Hispano-Árabe de Cultura, 1986, p. 514.
19 “Cid”, forma dialectal magrebi para “Sayyid” (Senhor, no sentido de Dominus. Em propriedade
designa o descendente do Profeta que vem pelo neto Al-Hussayn; o que vem pelo neto Al-Hassan é
chamado de “Sharîf”: “Nobre”).

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Aboazar é Lovesendes e não é Ramires (apesar do relato do LL pretender colmatar essa
falha)?
A verdade é que não conhecemos, de facto, para o filho de Ramiro, um nome
pessoal, nem um possível patronímico para além da titulatura de SayyidAbû l-A’ṣâr.

4.2. “Artiga”

Vejamos agora a onomástica da mãe de Cid Alboazar Lovesendo Ramires.


Surge o nome com as variantes Artiga e Ortiga20.
Para Artiga não encontrámos nenhum nome árabe de semelhante fonética, e cujo
significado se adequasse ao contexto de cariz genealógico em causa. Assim, aventamos

que o nome seria, efetivamente «‘Arîqa» ‫ﻋﺮﯿﻗﺔ‬e ao qual, por lapso de copista, nalgum
‫ﯿ‬ ‫ﺘ‬
momento, a yâ ( )foi escrita como tâ( ), tendo os pontos diacríticos inferiores passado a

superiores21, e dando origem à palavra ‫‘«ﻋﺮﺘﻗﺔ‬Artiqa».


Um outro fenómeno fonético corrente na linguagem comum árabe, mesmo na
atualidade, é a pronúncia da gutural “q” como “g”, facto que também se constata nesta
palavra, originando finalmente a forma “Artiga” que surge no texto linhagístico.

Retornando à original «‘Arîqa» ‫ﻋﺮﯿﻗﺔ‬, este termo significa « “a que vem de


nobreza e linhagem” e / ou “a que tem nobreza e linhagem” », o que encaixa
perfeitamente no contexto genealógico em presença, e acarretará, naturalmente, ambos
os significados.
O LVL não tem qualquer passagem que traduza o termo ‘Arîqa, mas no LL
encontramos “dona Artiga que era d’alto linhagem”, o que mais uma vez vem
confirmar, que o termo árabe é próprio e se encontra bem traduzido.
«‘Arîqa», não sendo, em aparência, um título, não é, no entanto, de descartar que
este nome possa ter algo de honorífico, uma vez que a essa senhora devem os da Maia,

20 Esta última variante em “O” em vez de “A”, será mais um sinal de tafkhîm, fenómeno fonético
prevalecente na fonética do árabe falado no Gharb al-Andalus, enquanto no demais da Península
dominava a imâla. Sobre estas questões relativas á fonética do árabe e à sua evolução fonética, v.
Federico Corriente. A Gammatical Sketch of the Spanish Arabic Dialect Bundle. Madrid: IHAC,
1977, as pp. 25 e 29, e especialmente as notas 10 e 15.
21 Lapso extremamente comum nos manuscritos árabes, com toda a problemática grafológica e
linguística que naturalmente acarreta.

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originalmente, a sua nobilitas árabe: ela vinha de nobres (descendia de califas e do
próprio Profeta), ela tinha nobreza e transmitiu-a à descendência. É um nome, no
mínimo, matricial, no sentido etimológico (de mater) completo desta palavra.

4.3. Cultura árabe no Mosteiro de Stº Tirso


O autor da versão original do LVL, por tudo o que ficou dito atrás, teria acesso à
língua árabe. Ou porque ele mesmo a conhecia, ou porque alguém próximo lhe
facultaria as informações necessárias. Se esta versão original não tiver sido traduzida do
árabe antes da sua utilização como fonte do LVL, então o redactor deste, ou a equipa que
o integrava teria algum elemento com o necessário conhecimento do idioma árabe.
Pois quem redigiu aquela expressão “SayyidAbû l-A’ṣâr” seria, não apenas um
bom conhecedor do idioma árabe, mas conheceria mesmo a nomenclatura genealógica
árabe, pois a expressão utilizada, revela, toda ela, erudição e conhecimentos daquela
natureza. E da mesma forma quem traduziu a expressão em causa, pois ela encontra-se
bem traduzida.
Será que o próprio autor seria ele mesmo um letrado com origens moçárabes,
que tomara votos naquele Mosteiro?22 Ou haveria, mais tarde, quando da composição
do LVL, em Stº Tirso, algum árabe letrado, escravo ou convertido, que auxiliasse o
redactor do LVL? Não esqueçamos que por essa mesma época em que estava a ser
composto o LVL, se estava traduzindo, também em meio senhorial, o chamado Livro de
Rasis, com recurso a muçulmanos letrados que integravam as equipas de tradutores23.

22 Não é incomum a presença da herança cultural árabe nos meios monásticos portugueses, pois no verso
de alguns documentos que tinham perdido o seu valor probatório, aparecem exercícios de caligrafia árabe
e cópia de pequenas frases no mesmo idioma, como, por exemplo, num documento de meados do século
XIII, proveniente do Mosteiro de Alcobaça e hoje na Torre do Tombo, (v. ANTT. Alcobaça M6, doc.21).
23 Sobre esta tradução do chamado Livro de Rasis de árabe para português, v. António Rei. O Louvor da
Hispânia na Cultura Letrada Peninsular Medieval. Das suas origens discursivas ao Apartado
Geográfico da Crónica de 1344. Tese de Doutoramento em História Cultural e das mentalidades
Medievais, FCSH-UNL, 2007, policop.; IDEM. Memória de Espaços e Espaços de Memória. De Al-Râzî
a D. Pedro de Barcelos. Lisboa: Colibri, 2008, especialmente pp. 69-85; IDEM, O Redactor do Livro de
Rasis. in VI Jornadas Luso-Espanholas de História Medieval, em Batalha, Alcobaça, Porto de Mós, 6,
7 e 8 de Novembro 2008; IDEM, A tradução do Livro de Rasis e a memória da Casa Senhorial dos
Aboim-Portel, in Cahiers d’Études Hispaniques Médiévales, nº 33 (2010), Lyon, ENS Éditions, pp.
155-172.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


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5. A nobilitas árabe
Desta forma, com a composição deste Livro de Linhagens, os da Maia, e por
intermédio deles todas as outras linhagens referidas, descendiam de um filho de uma
nobre árabe, com parentescos emirais e califais. Era, portanto, a ascendência árabe que
tornava os da Maia “os mais nobres em todas as Hespanhas”. Eles, e todos os que deles
descendiam passavam, em consequência daquela origem, a aceder a essa condição de
elite, de nobilitas, que lhe vinha do sangue árabe, e que eles consideravam por cima de
tudo o que viesse por mercê de um rei cristão, fosse ele asturiano, leonês ou português.
A sua nobreza vinha-lhes no sangue, e não dependia, em nada, daquilo que qualquer
monarca cristão lhes pudesse dar ou tirar.
E se existiram moçárabes, que o foram por apenas integrarem a simbiose cultural
hispânica, será que não se poderão considerar moçárabes aqueles que além de viverem
numa realidade social e cultural mesclada, foram ainda, eles mesmos, também a
expressão biológica dessa realidade civilizacional? Não esqueçamos, também, que
vários califas de Córdova, como ‘Abd al-Rahmân III e Al-Hakam II, foram filhos de
mulheres cristãs do norte peninsular.
Por intermédio do LVL aquela ascendência árabe permaneceu, e permanece, na
nossa memória; mas na descendência daquelas Cinco Linhagens estão hoje a população
portuguesa, o todo da população hispânica, e delas passou a todos os países,
americanos, africanos, asiáticos e oceânicos que tiveram contactos históricos e
civilizacionais com os povos ibéricos. Ou seja, está também no nosso DNA ou ADN.

Proposta Genealógica
Queremos terminar este estudo com uma Proposta Genealógica assente,
basicamente, em três fontes, uma árabe, a Jamhara, tratado genealógico hispano-árabe
da autoria de IbnHazm 24 (grande erudito hispano-árabe dos séculos X-XI d.C.); o Liber
Testamentorum de Lorvão25 e o Livro Velho de Linhagens.26

24 Apud Elías Terés, Linajes Arabes en al-Andalus (primera parte). Al-Andalus. t. 22, fasc.1 (1957) p.
55-111; Idem, Linajes Arabes en al-Andalus (conclusión). Al-Andalus. t. 22, fasc.2 (1957) pp. 337-376;
Idem, Dos familias marwaníes de al-Andalus. Al-Andalus. t. 35, fasc.1 (1970) pp. 93-117.
25 Apud António Losa. Moçárabes em território português nos sécs. X e XI: contribuição para o estudo da
antroponímia no "Liber Testamentorum" de Lorvão. Actas do XI Congresso UEAI – Islão e Arabismo
na Península Ibérica. Univ. Évora, 1986, pp. 273-289.
26 Apud Alexandre Herculano. Portugaliae Monumenta Historica. ed. Academia Real das Sciencias,
Lisboa, 1860.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


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Tivemos ainda em atenção o nosso trabalho “Descendência hispânica do Profeta
do Islão – exploração de algumas linhas primárias”, publicado recentemente27.
A partir da fonte árabe pretendemos seguir o percurso de ramos Omíadas
colaterais ao ramo emiral/califal de Córdova, desde o Médio Oriente até à península
Ibérica, pois não parece genealogicamente viável entroncar ‘Arîqa / Artiga naquele
último. Com o Liber Testamentorum procurámos situar, na onomástica, no tempo e no
espaço, alguns membros de um daqueles ramos omíadas, que apresentassem viabilidade
de entroncamento com a mãe de Lovesendo Ramires. O Livro Velho de Linhagens
completou, necessariamente, o quadro.

ASCENDÊNCIA ÁRABE DOS SENHORES DA


MAIA
Marwân al-Umawî - 1º Califa do 2º ramo Omíada +Ruqayyabint ‘Umar,
bisneta do Profeta, pais de
‘Umar ‘Abd al-MalikIbrâhîmIshâqal-WalîdIshâq Muhammad
Ishâq ‘AbdAllah
Ishâq
|--------------------------------------------------------------------------------|
Umayya(vizir e governador de Santarém, 937)Sa’d (AbûSa’dûn)
|----------------------------------
--------------------------------------------|
‘Arîqa (Artiga) +Ramiro IISa’dûn
 |----------------------------------------------|
Lovesendo Ramires SayyîdAbûl’A’sârSa’dSulaymân
 |-----------------|------------------|
Senhores da Maia KhalafKhâlis ‘AbdAllah

Fontes: Jamhara, de Ibn Hazm; Livro Velho de Linhagens; e Liber Testamentorum, do


Mosteiro de Lorvão- (NOTA: a grafia dos títulos das fontes é idêntica à dos nomes que
delas foram obtidos para compor esta proposta genealógica).

27 António Rei, Descendência hispânica do Profeta do Islão – exploração de algumas linhas primárias., in
Armas e Troféus. IX série, 2011-2012, Instituto Português de Heráldica, Lisboa, pp. 31-59.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


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A EKPHRASIS NO CLARIMUNDO DE JOÃO DE BARROS:
DUAS CENAS DE PICTÓRICO HEROÍSMO

Flávio Antônio Fernandes Reis


Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

Peço a licença para iniciar minha intervenção com algumas palavras sobre meu
percurso no estudo da narrativa cavaleiresca de João de Barros. Há alguns anos tenho
me dedicado ao estudo dessa matéria. O caminho até ela não se deu por um encontro
elevado de epifania de investigador, pelo contrário, é desses breves acidentes que
definem um percurso ou uma paixão por toda vida. No mestrado dediquei-me ao estudo
das traduções latinas realizadas por Duarte de Resende, analisei o texto latino e o
correspondente em língua vulgar e detive-me principalmente aos valores de uso das
traduções ciceronianas nas cortes portuguesa, mais no que diz respeito aos proveitos
morais e em certa medida no que diz respeito à elocução da língua vulgar nas matérias
dos tratados ciceronianos. Com isso, acompanhei os esforços de leitura dos antigos
latinos desde o século XV, o célebre Livro dos Ofícios de D. Pedro de Coimbra, a
atividade letrada de Vasco Fernandes de Lucena a serviço do infante de Coimbra e de
D. Afonso V, os aconselhamentos de D. Duarte no Leal Conselheiro sobre o uso de
palavras não latinadas nas vulgarizações etc. Pois bem, para não os enfadar com meu
ainda entusiasmado interesse pelo assunto, vou mais rápido ao encontro acidental.
Nessa busca de compreender os valores de uso, preocupou-me também saber um pouco
mais sobre a geração dos fidalgos latinados da corte de D. João II, D. Manuel e de D.
João III, frequentada e educada por Humanistas como Cataldo Sículo e de onde saíram
letrados como Damião de Góis, André de Resende, Sá de Miranda, Jerônimo Osório,
Diogo de Teive, Bernadim Ribeiro, Antônio Ferreira, Jorge de Montemor, Diogo
Bernardes, Pero de Andrade Caminha e tantos e tantos outros que, a quem interessar
possa, sugiro buscar a fartamente documentada e eruditíssima obra de José Sebastião da
Silva Dias, intitulada A política Cultural da Corte de D. João III, em dois consideráveis
tomos. Enfim, nesse afã, dei-me com a dedicatória que João de Barros oferece a Duarte
de Resende da Rópica Pnefma, pequeno tesouro alegórico moral do século XVI
português, também da lavra de nosso autor. Nessa dedicatória, há vários aspectos acerca
dos fazeres letrados e dos interesses livrescos que nos chamam atenção: João de Barros
cobra a Resende que lhe devolva seus exemplares dos tratados morais de Cícero,

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19
livrinhos que lhe seriam consolação das suas tormentas. Mais, o nosso historiador,
moralista, gramático, etc. escusa-se de ter faltado a um pedido de Duarte de Resende,
qual seja, algum auxílio na empreitada de traduzir tratados morais de Cícero para o
português. Barros, na sua justificativa, dá-nos a conhecer que Resende lhe teria pedido
auxílio para verter os tratados ciceronianos ao vulgar, aproveitando ter por perto
Germão de Galharde que os publicaria, ao que lhe diz:

A obra eu lhe confesso ser boa, pois é ocupação de louvor vosso, mas milhor
é pera Germão que pera mim: porque a ele dais-lhe proveito em ofício e a
mim pedis-me o vosso natural, cousa pera eu muito recear e a ela não vos
obedecer, dado que digais quão bem vos pareceo o meu Clarimundo quando
foi ter convosco em Moluco.” (Dedicatória da Ropica Pnefma, João de
Barros ao senhor Duarte de Resende)

Essa passagem falou-me primeiramente do Clarimundo, indo a tanta distância


com o letrado Resende, instigou-me conhecê-la e desfiz em tempo meu estado de
ignorância acerca de umas das obras das mais fascinantes do século XVI português.
Com isso, começou minha relação com esse livro e dada suas dimensões, questões e
complexidades, sem data para se esgotarem.
***
O desconhecimento da obra de João de Barros é lamentável, a ignorância de
gerações e gerações de homens e obras notáveis decorre, sobretudo, pelo pouco caso
que os programas de nossos cursos de letras dão à literatura portuguesa, principalmente
aquela mais afastada de uma centena de anos, o que aumenta o distanciamento de
nossos alunos de um universo que injustamente nem imaginam existir, negando-lhes um
repertório que os autores mais autorizados modernos e contemporâneos não
desconhecem. Em outro caso extremo, quando há disciplinas que atendem ao repertório
dos séculos XIII ao XVIII, a falta de especialistas levam os responsáveis à reprodução
de lugares-comuns e estereótipos do passado comuns em manuais de divulgação, muitas
vezes tidos por bibliografia principal. Devo dizer que não foram duas ou três vezes que
ouvi de colegas de literatura portuguesa o espanto ao saberem que me dedicava a
estudar João de Barros (talvez matéria mais comum dos nossos colegas historiadores) e
ainda maior espanto ao saberem por mim que estudava-lhe uma narrativa de cavalaria:
tenho que ouvir também que nem imaginavam haver uma narrativa de cavalaria de que
Barros fosse autor e Clarimundo é um importante desconhecido. O espanto é espantoso

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


20
porque, embora ninguém seja obrigado a morrer de amores por novelas de cavaleiros,
nem mesmo por matérias de batalha e aventura, à guisa de brio do espírito, é de bom
alvitre conhecer obras fundamentais da nossa língua e o Clarimundo insere-se nesse
epíteto por duas razões capitais: a primeira, por sua primazia como narrativa
cavaleiresca em língua portuguesa comprovadamente composta em terras lusas e
primeiramente impressa no reino. Se a narrativa de quase mil páginas desestimula o
leitor comum ou o professor de literatura portuguesa dedicado a outros assuntos,
estimula-o saber que a narrativa de Barros inaugura na língua portuguesa quinhentista
um gênero ibérico com matéria do reino e, claro, para quem a estuda, revela-se obra
com atravessamentos complexos de referências letradas e efeitos de discurso. O
Clarimundo instaura uma representação simbólica da Casa Real portuguesa
preconizando mitos fundadores, políticas teológicas, poderes universais, modelos régios
e uma representação da história portuguesa pela primeira vez cantada em oitavas que
menos de um século depois Camões formularia de modo decisivo.
Em segundo lugar, se o marco literário ou o interesse de historiador da literatura
é algo despiciendo, atentemos ao que diz um dos mais notáveis colaboradores das letras
e da filosofia e da cultura portuguesa no século XX, o ensaísta Eduardo Lourenço que,
no célebre ensaio Mitologia da Saudade, publicado em Portugal, no Brasil e na França,
dedica um capítulo à narrativa de Barros intitulado “Clarimundo: simbologia imperial e
saudade” e dele dá o seguinte parecer inicial:

Se há um livro admiravelmente escrito, nesses começos do século XVI (...), é


bem esta a primeira obra daquele que se tornará o modelo da nossa grande
prosa nobre, clara, grave e ao mesmo tempo corrente, do século de
Quinhentos. Com ele, a Idade Média da nossa língua, ainda tão sensível em
Gil Vicente, termina, e entramos na planície suave, aberta, da assimilação
fecunda dos grandes autores clássicos que servirá de modelo escrito, mas
também de modelo de pensar, a nossa melhor prosa do século XVI (Eduardo
Lourenço. Mitologia da Saudade, p. 36)

***
Feito este proêmio, passo a tratar daquilo a que pretendo mostrar-lhes mais
detidamente. O verbo mostrar é propositalmente utilizado aqui e é sobremaneira
eloquente nesse nosso encontro dedicado à imagem nas cavalarias medievais, já que
meu intento é falar de demonstração, de figuração, de ekphrasis, traduzida pelos latinos
como descriptio, utilizada como procedimento retórico, com fim na enargeia, termo da

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


21
preceituação retórica antiga que significa exatamente “colocar diante dos olhos”,
lembrando o que nos ensina o padre Antonio Viera que aquilo entra pelos olhos nos
convence melhor do que aquilo que vai pelos ouvidos. Trato aqui de dois episódios da
narrativa de João de Barros, nos quais a ekphrasis composta opera discursivamente para
a produção de efeitos, tal como soe acontecer com o uso desse artificio textual: digo
logo do efeito para depois ater-me ao artificio: coloca diante do olhos para ensinar
preceito moral; coloca diante dos olhos para compor caráter. Antes das cenas, passo a
algumas considerações acerca da ekphrasis na preceptiva dos retores e depois aos
episódios e aos quadros.
***
A ekphrasis associa-se a técnicas de amplificação de tópicas narrativas nos
diversos gêneros retóricos, como nos mostra João Adolfo Hansen, em “Categorias
epidíticas da ekphrasis” publicado na RevistaUSP1. Segundo os Progymnasmata de
Hermógenes (Exercícios preparatórios), a ekphrasis, traduzida como “descrição”
consiste em “um enunciado que apresenta em detalhe, como dizem os teóricos, que tem
a evidência (enargeia) e que coloca sob os olhos o que ele mostra.” 2 Michel Patillon, no
estudo introdutório da edição francesa da preceptiva de Hermógenes, cita um estudo de
Zanger, intitulado “Enargeia in the ancient Criticism of Poetry”, no qual realiza-se uma
precisa síntese dos fins a que se propõe a enargeia: “A evidência do estilo é sua
capacidade de oferecer uma representação viva do objeto que se propõe, a colocá-lo
diante dos olhos do auditório. Isso obtém-se essencialmente pela acumulação de
detalhes e o emprego de imagens.”3 Além disso, com Hermógenes aprendemos que os
objetos a serem descritos pertencem a uma lista bem ampla: “as descrições são feitas de
personagens, de ações, de circunstâncias, de lugares, de tempos, etc. Por exemplo,
Libanos, orador do século IV, descreve combates em terra, uma pintura na sala do
conselho, festas, a embriaguez, a primavera, um porto, um jardim, uma caça, uma
batalha naval, um leão abocanhando um cervo, Hera, Hércules, a destruição de Troia,
Polixena assassinada por Neoptólemo, Prometeu, Medeia, a Quimera, Palas, Ajax, a
Fortuna, etc., um panegírico, a beleza. Outro exemplo, Aftônio, o célebre preceptista da

1
HANSEN, João Adolfo. Categorias epidíticas da ekphrasis. RevistaUSP, n. 71, 2006, pp. 85-105.
2
HERMOGÈNE. L’art Rhetorique. Traduction française intégrale, introduction et notes par Michel
Patillon. Lussaud, L’age d’homme, 1997, p. 148.
3 Cf. Idem, nota 1 da pág. 49.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


22
segunda sofística, preceitua, para a descrição de pessoa - dita prosopografia - que
comece pelo alto, na cabeça e siga em direção ao pés. Para os fatos, começa a descrição
pelo que precedeu em direção ao ocorrido. Como nos lembra João Adolfo Hansen, a
ekphrasis relaciona-se diretamente com passagens iniciais da poética e da retórica
aristotélica, quando ambas defendem que tanto historiadores quanto poetas devem
compor com verossimilhança, isto é, aristotelicamente verossímil é aquilo que se toma
por verdadeiro pela maioria ou pelos mais sábios. Nesse sentido, o verossímil define-se
como uma relação entre discursos e a verificação de coerência entre um e outro como
condição de aceitação. Os quadros descritos incluem-se também nessa relação
discursiva e, portanto, necessariamente convém que sejam verossímeis. Uma das
autoridades antigas mais célebres de ekphrasis é Filóstrato de Lemos e seus Eikones
(Descricões), descrição de cenas, quadros, pinturas que existem discursivamente e que
se colocam diante dos olhos pela habilidade letrada de Filóstrato. Para menores
delongas, na Rhetorica ad Herennium, uma das mais acessadas na história dos
discursos, a Descriptio é tratada na parte sobre os ornamentos de sentença e, deixando
de lado os exemplos que didaticamente apresenta, destaco duas acepções então
divulgadas: “a descrição contém uma exposição perspícua, clara e grave das
consequências das ações (coisas)”4: quae rerum consequentium continet perspicuam et
dilucidam cum gravitate expositionem; e os efeitos da descrição, segundo a preceptiva
são: “Com esse gênero de ornamento, pode-se suscitar indignação ou misericórdia
quando todas as consequências reunidas se exprimem brevemente num discurso
perspícuo.” (Hoce genere exornationis uel indignatio uel misericordia potest
commoueri, cum res consequentes comprehensae universae perspicua breviter
exprimuntur oratione). Chamo atenção para um detalhe apenas, colocando-o diante dos
nossos olhos: um termo que aparece ao início e ao fim das considerações sobre a
descriptio, termo latino de ekprasis, é o adjetivo “perspicuus, a, um”, em vernáculo com
sentido de claro, límpido, evidente, manifesto.
Na diegese da narrativa, a ekphrasis instaura uma pausa das ações para a
contemplação de uma figura. Cessam os movimentos das ações para o repouso do olhar
que mira as formas, as pedras, os metais, as cores, as dimensões, os gestos, as linhas, os
contornos, etc. que aparentemente instauram outra natureza discursiva, no entanto, o

4 A tradução inglesa da Loeb Classical Library traduz: “Vivid Description is the name for the figure
which contains a clear, lucid and impressive exposition of the consequences of an act”. (p. 357).

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


23
aparente corte do fluxo narrativo desfaz-se ao notar-se a conexão entre as partes. Isto é,
a descrição está em função da narração, funcionando-lhe como artifício que compõe
caracteres e efetuam paixões. Muito haveria ainda para ser dito acerca da ekfrasis e do
seu efeito principal de enargeia, sobretudo acerca de seu aspecto retórico mais imediato,
o fato de persuadir pela força da amplificação que produz, mas para o que se pretende
aqui já é o suficiente. Para mais, sugiro obras como as Descrições de Filóstrato, o artigo
“Categorias epidíticas da ekphrasis” citado; o capítulo da Arte Retórica de Hermógenes
sobre as “Descrições” e destaco a célebre obra de Antoine Du Verdier, intitulada La
prosopographie ou description des personnes insignes, enrichie de plusieurs effigies, e
reduite en quatre livres, publicada em 1583. Apenas para ilustrar, trago a primeira
quadra do soneto de F. De Belleforest presente nos textos introdutórios da obra de
Verdier e passamos em seguida ao nosso João de Barros:
Ny paintre, ny tailler, soit au tableau ou cuiure,
Ne scait si dextrement ou paintre ou buriner
Ce que l’homme a de bon, ce qu’il peut desseigner,
Que tu fais (mõ Verdier) par les traicts de ton livre.
Le ciseau ou couleurs ne le ferons pas vivre,
Le burin ne scauroit d’un point l’eterniser:
Car la couleur perit, et à peine l’ouvrier,
Tant soit-il excelente, de l’oubly le delivre.
Mais du Verdier traçant au burin immortel
Les hommes excellens, et dressent (eternel)
Aux bons et aux scavant sa Prosopographie:
Comme son art surmõte et e paintre et graveur,
Aussi sa main presente et ame et grand vigueur
Aux scavans, leur donnant et nom, et sens et vie. (Prosopographie de F. Du
Verdier)

Episódio da Floresta Encantada

(...) e chegando ao mais baixo e escuro lugar daquele vale, viu um coruchéu, que seria da
altura de trinta braças coberto de pedra negra, e leonado com extremos de pardo, e sustinha-se sobre
quatro colunas de metal de quinze braças, e da grossura necessária para tamanho peso, as quais eram
lavradas ao buril de histórias antigas; e debaixo desse coruchéu estava uma sepultura à maneira de essa
(cenotáfio), que tinha cinquenta degraus de pedra negra, e nos cantos da quadra estavam estas quatro
alimárias feitas de metal que a sustinham sobre si: um leão, um tigre, um touro e um grifo, feitos tão
artificiosamente e com tal espírito e agudeza nos olhos, e em todas as outras feições, que enganavam a
vista para os temer, e não para folgar de os olhar. E cada alimária destas tinha entre as mãos um círio
negro, que ardia sem se consumir, tão altos que chegavam à maior altura daquela essa. Nos outros
cantos da quadra que o derradeiro degrau fazia, estava em cada um uma imagem de gigante armado
com todas as suas armas, somente a cabeça descoberta, porque no rosto mostrava maior ferocidade,

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


24
que nas armas que lho podiam cobrir, e tinham suas bisarmas nas mãos para defender a subida. No
estrado de todo acima estava uma imagem de mulher feita de prata assentada em uma cadeira real, e na
cabeça tinha uma coroa de ouro a modo de imperatriz mostrando grande acatamento, e nas mãos um
cofre de barro que tinha os fechos de ouro, e na conta estava a chave dele. (1953: vol. II, 202-203)

Essa ekprasis é a introdução para uma das cenas mais marcantes de tantas que o
Clarimundo contém: depois de enfrentar as estátuas de pedra, que por maravilha
animadas, tentam impedir-lhe a entrada no túmulo, Clarimundo toma a chave e abre a
arca de barro: nela encontra-se a cabeça de um rei feita de ouro, “com uma coroa de
pedraria de grande preço). Para espanto e maravilha, como o próprio narrador ressalta, a
cabeça começa a falar e o seu discurso justifica toda a amplificação que o texto compõe
em torno de si. A narrativa, na fala da cabeça, suspende seu curso e dá ao rei a primeira
voz, em discurso direto, apresentando os lamentos de um monarca de vida atormentada
pelas injustiças feitas no exercício do poder:

Todas as noites, tanto que me recolhia em minha câmara dos negócios do dia,
vinha alma de meu pai, que era passado deste mundo, e com umas vergas de
ferro me açoutava tão cruelmente, que me parecia não poder chegar a pela
manhã, segundo me deixava atormentado; porém tanto que se partia de mim
ficava livre daquela dor. (1953: vol. II, 206)

As palavras do antigo rei acusavam o filho das injustiças, desmandos,


assassinatos, usurpações cometidas em razão de deixar ao herdeiro riquezas e poder. O
descanso do pai se daria com os fracassos do filho, perdas de herança maldita de um
reinado tirânico. Na diegese da narrativa, Clarimundo estava predestinado a encontrar
aquela sepultura e ouvir da infeliz cabeça os vaticínios sobre as glórias da prole de
digníssimos reis. Aquela cabeça encantada, a partir do encontro com Clarimundo,
dispõe-se à prática, isto é, à conversação com cavaleiros que lhe sejam merecedores em
bondade das armas, para os quais revelará as coisas futuras. Na composição de efeitos
éticos da narrativa de João de Barros, o episódio tem dois principais efeitos: a
amplificação da descendência do cavaleiro húngaro e, portanto, insere-se como mais
uma figura do discurso epidítico da Casa Real portuguesa de que se reveste a narrativa
de Barros. E mais, o reforço dos conselhos de parenética régia centrais na narrativa, ao
enaltecer os dissabores de monarcas viciosos: o suplício post mortem do agente e o
tormento em vida do herdeiro, penalizado pela derrota fatal. A ekphrasis do túmulo da
Floresta encantada, tornado “Arca da sabedoria” após Clarimundo, põe à frente dos

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


25
olhos a grandeza de um monumentum no sentido latino de “aquilo que se deve lembrar”
decorosa com o tesouro que guarda: a sabedoria de um rei que ensina justiça e vaticina a
eleição dos reis de Portugal. Passemos à câmara do palácio da rainha Lindanor:

Palácio de Lindanor
E com este prazer que todos mostravam, levaram-no a uma câmara tão artificiosamente lavrada,
que tempo desfaleceria para contar as suas cousas, porque em uma das quatro paredes estavam todas as
verduras, ribeiras, florestas e outras saudades, que os alegres campos na força de sua graciosa idade têm, e
entre aqueles arvoredos havia montarias, nos vales caças de damas tão naturais, e de tal parecer, que
assim venciam o coração, como enganavam os olhos. Na outra parede defronte estava a História de Troia,
e todas as particularidades dela, com aquela morte de Gregos e Troianos tão viva na pintura, que era
piedade ver uns e outros; e que mor mágoa dava era ver o alvoroço alegre com que os Troianos metiam
na cidade aquela grande máquina e sua destruição; porque os meninos, e todo o outro povo, com suas
capelas de flores na cabeça, levavam aquela graça no rosto que o prazer dá quando o coração sente. A
outra parede tinha a grandíssima frota que Xerxes trouxe quando entrou em Grécia. E o mais maravilhoso
daquela pintura era o romper das águas que as naus faziam, e a ferocidade esperta com que a rainha
Artemisa cometeu os inimigos.
Na outra defronte desta estavam todos os namorados, que neste mundo deixaram de si memória,
padecendo os males que em vida sofreram. E certo nessa parte não havia coração tão duro, que os olhos
não abrandasse com lágrimas, vendo a menina Tisbe tomar por remédio de seu mal a espada de seu
amante Piramo, e o sangue dele correr tão natural pelas ervas, que se não podia ter quem ali chegava, que
não olhasse com o dedo se não era verdadeiro. Em outra parte estava o enganado Narciso contando as
suas mágoas à imagem de sua formosura, lançando de bruços naquela triste fonte causa de seus primeiros
amores, e quando lhe as lágrimas caíam, que turvavam as águas, deleitação dos seus olhos, não havia
olhos que enxutos o pudessem ver. E ver em outra parte o remar de braços que Leandro fazia,
desfalecando-lhe as forças para chegar ao lume, que era de seus olhos, desejáveis de lhe emprestar as
vossas por não acabar um perigo duas vidas.
Outras mil piedades se viam de muitos amantes nesta pintura para se poder sentir, e chorar, e não
escrever. (1953: vol. II, 306-307)

A composição dos painéis da câmara do palácio de Lindanor demonstra o uso


primoroso com que João de Barros compõe a sua narrativa, atestando qualidades como
fluência descritiva, elegância rítmica na exposição das cenas, conduzindo o leitor a uma
contemplação que põe diante dos olhos os caracteres e as ações conhecidas dos feitos
antigos, persuadindo, por meio de expressões de amplificação, ao afeto e à comoção.
Dramatizam-se artifícios retóricos de persuasão patética, aquela que afeta os sentidos e
os afetos mais imediatamente, isto é, face às imagens, aos gestos e movimentos que

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


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estão em contemplação, o espectador é instigado a compreender os ensinamentos
preconizados nas ações e nos caracteres resguardados pela memória impressa de
discursos antigos por meio de afetos mimetizados nas pinturas.
Este episódio, diferente daquele na Floresta Encantada, sem batalha, sem
enfrentamento, também imbui-se de eficácia ética, preconizando em cenas exemplares
da história antiga - magistra vitae - e de amores infelizes e trágicos, com os efeitos de
deleite que a ekphrasis pressupõe, as agruras das paixões desenfreadas. A encenação da
sala do palácio da rainha Lindanor expõe cenas da épica homérica, de historiadores
latinos, das Epistola Heroidum e das Metamorfoses de Ovídio. Trata-se do episódio em
que a rainha Lindanor, ameaçada por um rei inimigo que a queria desposar com o fim
de lhe usurpar o poder, pede a Clarimundo que aceite casar-se consigo para livrar da
ameaça iminente por sua proteção. A anfitriã, à maneira de Dido e Eneias, apaixona-se
pelo cavaleiro que tenta consolá-la e contornar a situação castamente. Face à insistência
de Lindanor e temendo ocasião de perdição, o cavaleiro foge secretamente do palácio
para o desgosto e tristeza mortal da rainha. A passagem não poderia ser uma imitação
melhor do canto quarto da Eneida e a erudição latina de suas fontes reforça-se na
descrição do palácio de Lindanor, com cenas homéricas, virgilianas, ovidianas que
preparam Clarimundo e nós leitores ao universo dos amores antigos, modelos éticos de
paixões intemperadas e fracassos da alma.
A câmara do palácio de Lindanor reveste de pinturas das “fabulas antigas”, no
texto os deuses do olimpo, nas paredes cenas de batalhas e os amores, deleitando os
olhares de Clarimundo e de seus escudeiros, e ainda aos olhares dos leitores, dos
quinhentistas a nós, porque passagens de fina erudição, de excelência composição
vernacular, de lirismo discreto na candura com a qual o narrativa compreende os
amantes infelizes, com a piedade compartilhada entre os expectadores dessas pinturas
discursivas. Tudo isso nos obriga a concordar com o panegírico de Eduardo Lourenço à
prosa de João de Barros, que nos exemplos das ekphrasis apresentadas aqui, asseguram-
lhe a pena da pintura eloquente.

Pirenópolis – Goiás – Brasil


13 a 15 de julho de 2015

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


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NARRATIVAS DE BATALHAS: DAS CRÓNICAS AO
TEATRO POPULAR POR ENTRE LIVROS DE CAVALARIAS

Margarida Santos Alpalhão


IELT, FCSH-Universidade Nova de Lisboa

«Il ne s’agit plus d’étudier simplement le vocabulaire des images ou de les classer en champs
notionnels, il s’agit aussi de rendre compte d’une syntaxe de l’imaginaire.»
Philippe Walter (1998: 52)

Sabemos todos que é conhecida e várias vezes mencionada a ligação de Carlos


Magno e dos seus Doze Pares às Cavalhadas1. O que vos proponho aqui é verificar
como a imagem do mítico Imperador e dos seus Pares perdura, até aos nossos dias, em
vários textos de diferentes épocas, contribuindo, através de derivações e recriações, para
a sintaxe do Imaginário cultural ocidental, e sul-americano, que permanece nos nossos
dias sob a forma de batalhas fictícias ou desfiles encenados. Dito de outro modo: porque
falamos em 2015 de lutas entre mouros e cristãos, servindo-nos de nomes e figuras de
uma batalha ocorrida em 778? E porque perduram estas imagens, veiculadas de formas
variadas por diferentes meios, ao longo de treze séculos?
Estou convicta de que, para compreender esta permanência, não nos basta seguir
a história de vários textos e imagens ou a história de cada versão de alguns deles.
Necessitaremos ir mais longe no tempo e mais fundo na análise, isto é, será necessário
perscrutar as raízes culturais europeias, designadamente as indo-europeias. Precisamos
servir-nos, simultaneamente, de uma metodologia própria dos estudos sobre Imaginário.
Abordar vários testemunhos, de diferentes géneros, de épocas diversas, para, a partir do
texto e da imagem, tornar visível o que os liga e separa e como as imagens, verbais ou
icónicas, se organizam na construção do Imaginário europeu ocidental e sul-americano é
a minha proposta.

1. três textos e uma imagem


Numa perspetiva literária, o primeiro testemunho sobre Carlos Magno e a mítica
batalha de Roncesvales é a Vita Karoli imperatoris de Eginhard (redigido sob Louis Le
Pieux, cerca de 826). O texto ali dedicado à batalha é um breve capítulo, o nono: este

1 A título de exemplo vejam-se Cascudo (1977 e 1984), Ourique e Jachement (1997), Meyer (1995),
Pereira (1984), Silva (2001) e Hidalgo (1988), designadamente para diferentes países e regiões.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


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não nomeia o local, nem refere os muçulmanos, nem menciona os Doze Pares – limita-
se a referir, além de vários– «conpluribus» –, Eginhard, «préposé à la table royale»,
Anselme «comte du palais» e Roland «préfet de la marche de Bretagne» (EGINHARD
2014: 22-23). A obra revela, no entanto, um conjunto de informações fundamentais
sobre Carlos Magno: as suas origens, o seu aspeto físico, o seu interesse pelas línguas e
pela cultura letrada, a sua família, as batalhas e as ações caritativas e de apoio à Igreja.
O segundo texto é a Historia Karoli Magni et Rotholandi, do pseudo Turpim, de
que se conhece mais de uma centena de testemunhos. Não obstante, a tradição designa
também a Historia… como Crónica do Pseudo Turpim. Um destes testemunhos é o
conhecido Codex Calixtinus, do século XII, onde a Historia corresponde ao livro IV.
Apesar de os testemunhos serem tardios, o autor afirma ser uma testemunha ocular das
batalhas de Carlos Magno. Não se estranha, hoje, que o facto literário permita a mistura
de tempos e de figuras, como de resto afirma Jean Subrenat (2011: 85). Texto
instaurador da peregrinação a Santiago de Compostela, que afirma como segunda sede
apostólica depois de Roma e antes de Éfeso, encontramos nesta Historia… a associação
dos cavaleiros de Carlos Magno aos Doze Apóstolos de Cristo, bem com a comparação
da traição de Ganelon à de Judas [Iscariotes]. A proteção do apóstolo Tiago a Carlos
Magno é recorrente ao longo do texto.
O terceiro texto surge perto do ano de 1100: a Chanson de Roland, de Turoldo.
A versão conservada no manuscrito de Oxford é o testemunho mais antigo da obra.
Tanto esta versão, escrita em verso branco, como uma versão rimada (de meados do
século XII) conheceram franco sucesso, e não apenas em França. É daquela primeira
versão que surgirão os Doze Pares, uma vez que aí são nomeados.
De modo diverso, como se depreende, os textos relatam o regresso de Carlos
Magno e das suas tropas a França, após a conquista aos mouros de várias cidades
peninsulares (durante 7 ou 14 anos, respetivamente segundo a Chanson de Roland ou a
Historia…). Na passagem dos Pirenéus, as tropas acompanhadas por Roland e Olivier
são alvo de uma emboscada onde, apesar de se bater denodadamente, o exército
carolíngio perece, nomeadamente os dois afamados cavaleiros Roland e Olivier (Roldão
e Oliveiros). A emboscada fora preparada com o acordo e a ajuda de Ganelon (Galalão),
aquando de uma embaixada a Marsile (Marsílio), rei de Saragoça.

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Para a nossa análise, consideramos aqui a Vita… e a Historia… como os dois
primeiros textos essencialmente por duas razões: ambos foram escritos em latim e
ambos apresentam prefácios que colocam os autores como testemunhas oculares dos
factos narrados. E se, no primeiro caso, a História parece corroborar o facto enunciado,
relativamente ao segundo texto, a situação é diversa. Eginhard afirma no prefácio:

«je ne pouvais rien écrire qui fut plus vrai que ces événements au cœur
desquels je me suis personnellement trouvé, dont j’ai une connaissance
assurée pour les avoirs vus se dérouler, comme on dit, sous mes propres
yeux» (EGINHARD, 2014: 91).

E no prólogo da sua Historia…, Turpim regista:

«je n’hésite pas à affirmer comme étant hors de doute les détails de ses hauts
faits admirables et ses triomphes dignes d’éloge sur les Sarrasins d’Espagne
et de Galice, que j’ai vus de mes propres yeux pendant les quatorze ans au
cours desquels j’ai parcouru l’Espagne et la Galice avec lui et ses armées»
(GICQUEL, 2003: 525).

Ainda que os factos históricos nem sempre confirmem o enunciado das obras,
quanto à presença dos narradores, escrevê-los na primeira pessoa imprime desde logo
uma autoridade acrescida ao texto. O primeiro texto refere ainda os seus antepassados,
as esposas e os filhos (EGINHARD, 2014: 40-9); em ambos se menciona a sua proteção
e apoio à Igreja (EGINHARD, 2014: 60-3), (GICQUEL, 2003: 535).
Importa também registar desde já algumas imagens decorrentes destas obras.
Dos dois primeiros textos emergem duas imagens de Carlos Magno não completamente
sobreponíveis: uma, descrita por Eginhard, que apresenta um Carlos Magno corpulento
e robusto, de cara feliz e sorridente 2, de 7 pés de altura, dedicado à caça, à equitação, à
natação, ao estudo e às línguas (EGINHARD, 2014: 52-3, 58-9), e trajando
habitualmente à maneira franca (EGINHARD, 2014: 54-5); outra, apresentada por
Turpim, revela um Imperador corpulento e robusto, mas de tez rosada e cara sisuda3, de
cabelo castanho 4, com barba de palmo, de 8 pés de altura (GICQUEL, 2003: 561), tendo
feito representar as Sete Artes Liberais no seu palácio (GICQUEL, 2003: 580-2). Destas
duas figuras complementares, a que vai perdurar na iconografia é a imagem de Turpim:
são bastante raras as iluminuras que mostram Carlos Magno sem barba. Tanto nas

2 «facielaeta et hilari» (EGINHARD 2014: 50).


3 «facierubeus» e «visuefferus» (CASTETS 1880: 39).
4 «capillisbrunus» (CASTETS 1880: 39).

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iluminuras medievais como em outras representações, vemos estátuas e pinturas de um
imperador barbudo. Os vitrais da catedral de Chartres são disso exemplo paradigmático,
como afirma Jean Subrenat (2011: 72). A exceção mais marcante é um denário, moeda
cunhada por volta de 812-814, onde a efígie surge imberbe.
Os Doze Pares de França surgiram a partir das duas últimas obras mencionadas:
a Historia Karoli Magni et Rotholandi e a Chanson de Roland. A primeira nomeia 33
guerreiros, dos quais apenas 6 coincidem com os 12 da Chanson…, como se pode ver
no quadro abaixo.
Historia Karoli Magni et Rotholandi Chanson de Roland
(chapitre XI, p. 543-4) (v.792-802, p. 124-5)
Turpin, archevêque de Lambert, souverain de Roland
Reims Bourges
Roland, comte du Mans et Constantin, préfet de Rome Olivier
de Blaye
Olivier, comte de Genève Renaud d’Aubespin Gérin
Estout, comte de Langres Gautier de Termes Gérier
Arastagne, roi des Bretons Guielin Othon
Engelier, duc de la ville Garin, duc de Lorraine Bérenger
d’Aquitaine
Gaifier, roi de Bordeaux Begon Astor
Gerin Albert de Bourgogne Anséis
Gelin Béraud de Nobles Gérard de Roussillon
Salomon, le compagon Guinard Gaifier
d’Estout
Baudouin, le frère de Estourmi l’archevêque
Roland
Gondebaud, roi de Frise Thierry Gautier [de l’Hum]
Hoël, comte de la ville de Ivoire Ganelon *
Nantes
Sanson, duc de Bourgogne Berenger
Arnaud de Beaulande Athon
Naime, duc de Bavière Ganelon *
Ogier, roi de Danemark

A associação entre os Doze pares e os Apóstolos de Cristo surge na Historia…:

«Comme notre Seigneur Jésus-Christ a fait la conquête du monde avec ses


douze apôtres et ses disciples, ainsi Charles, roi des Français et empereur des
Romains, a fait avec ces combattants la conquête de l’Espagne pour
l’honneur du nom de Dieu.» (GICQUEL, 2003: 544).

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


31
Aliada a esta associação entre os cavaleiros de Carlos Magno e os doze
apóstolos, uma outra é feita entre a ação de Ganelon e a traição de Judas, também na
obra de Turpim. De resto um dos Doze Pares da Chanson de Roland apenas é nomeado
pela sua função de arcebispo, «arcevesque» (CHANSON, 1993: v. 799). Este arcebispo
é identificado como sendo Turpim, por André de Mandac (1993: 147-8).
O sucesso destas obras, designadamente a da Historia Karoli Magni et
Rotholandi, ligada a Santiago de Compostela (Galiza, Espanha), a ação de Carlos
Magno, o contexto histórico das cruzadas nos séculos XI-XII, a canonização do
imperador em 1165 facilitaram e promoveram a construção daquela imagem e
contribuíram para desenvolver a identidade de um povo, da Europa ocidental e da
religião católica. Nessa Europa, Carlos Magno tornou-se uma figura heroica, mitificada,
cuja imagem se inscreveu como figura tutelar no Imaginário cultural, tanto erudito
como popular, atualizando a figura crística, já não num contexto judaico-cristão frente
ao romano, mas num contexto católico face ao maometano.
A Historia Karoli Magni et Rotholandi, integrada no conjunto de textos
fundadores da importância de São Tiago e de Compostela, ficará indissociavelmente
ligada à promoção daquele lugar de culto. A ligação entre o Imperador Carlos Magno e
a Igreja materializa-se também pelo verbo (a palavra) e pela imagem.
A Chanson de Roland, texto considerado, por alguns estudiosos, fundador da
cultura e da literatura francesas (DUFOURNET, 1993: 10), corroborando a sua função
no Imaginário cultural do ocidente europeu, serviu de pretexto e facilitou o
desenvolvimento de um significativo conjunto de textos considerados hoje canções de
gesta. Algumas destas gestas, recuperam personagens e motivos encontrados nestes dois
textos matriciais. Estas gestas veiculam não raro influências Indo-europeias,
transmitindo designadamente a ideologia das três funções, conforme registadas por
Georges Dumézil (1995).
Em certa medida, a partir destes textos inicia-se uma miscigenação e uma
apropriação de temas de modelos anteriores através de um processo de empréstimo e
reescritas. O cavaleiro substitui o herói – o herói dos antigos mitos indo-europeus e dos
romances antigos – como refere Alain Michel (1987: 14). E este cavaleiro medieval
acabará por integrar e representar tanto a faceta de herói guerreiro intrépido como a
feição do cavaleiro amador perfeito da Matéria de Bretanha.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


32
A imagem de Carlos Magno e dos seus Doze Pares surge portanto, a partir do
século XII, como uma reconfiguração da figura de Cristo e dos seus Doze Apóstolos.

2. a permanência da imagem
A Historia Karoli Magni et Rotholandi parece ser dos raros textos dedicados a
Carlos Magno. A Chanson de Roland é o canto de Rolando.
A imagem do Imperador e estes textos vão dar forma, de modo mais ou menos
direto, a vários outros textos ao longo dos séculos seguintes, até aos nossos dias. Ainda
durante a Idade Média podemos encontrar várias obras decorrentes das personagens, dos
motivos e dos temas veiculados pelos textos mencionados, verdadeiramente fundadores.
Estas obras carolíngias dão origem, em França, a um conjunto de canções de gesta em
torno dos cavaleiros do Imperador a que hoje a crítica se refere como ciclo do Rei ou
Carolíngio. E as literaturas da Europa ocidental vão também conservar, reconfigurando-
os, alguns motivos e várias personagens surgidos naqueles textos.
Além da recorrência da onomástica ao longo dos séculos, e recordemos que o
nome é uma «memória mítica» como diz Philippe Walter (1998: 54), a batalha entre
cristãos e sarracenos ganhará outros contornos literários logo a partir da Idade Média.
No âmbito da Literatura Portuguesa, Márcio Muniz (2014: 169) já registou o
isomorfismo simbólico das palavras mouro, turco e maometano a pretexto do teatro
vicentino, simbolismo ao qual podemos juntar o do sarraceno.
Mas ainda no século XII, surge uma outra obra fundamental para a nossa
perspetiva: Fierabras (ou Conquêtes de Charlemagne, como também é conhecida),
escrita por volta de 1190. Nela se conta a conquista de Espanha, três anos antes de
Roncesvales (778), país onde Carlos Magno deve recuperar as relíquias que Balan
(Balão) confiscou a São Pedro de Roma. Este texto coloca frente a frente o cavaleiro
homónimo, Fierabras, rei de Alexandria e senhor da Babilónia, e Olivier, companheiro
de Roland, acabando a batalha entre ambos por levar à conversão do adversário. A irmã
de Fierabras, Floripas, converte-se também e casa com um cavaleiro cristão, Gui de
Bourgogne.
Floovant, outra canção de gesta, anónima, também de finais do século XII, alia
duas gestas distintas (a de Clovis e a de Carlos Magno), e retoma o tema do casamento
do cavaleiro herói com uma sarracena, tal como o seu companheiro Richier.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


33
As gestas carolíngias (as do Rei e as dos seus vassalos5), a par dos romances
arturianos, dão forma a conjuntos de ciclos de textos medievais. E muitos atravessam
fronteiras, chegando à Europa do Norte. A tradução (entenda-se tradução no sentido
medieval do termo) ou a apropriação e reescrita dos textos, sendo completamente outra
a noção de autor, é uma prática na época. Os ecos destas temáticas ou as referências a
estes textos na Península Ibéricasão documentáveis ainda na Idade Média.
No caso Português, os Livros de Linhagens, sem referirem expressamente aquela
gesta francesa, mencionam que – numa refrega entre Dom Rodrigo Froiaz e os mouros
– «poseromnos em par dos doze pares» (PMH, 1861: 283). E Mário Martins (1983:
357-64) refere outros exemplos, a saber: as Crónicas breves e memórias avulsas de
Santa Cruz de Coimbra, o Livro das Kalendas da Sé de Coimbra; a Crónica Geral de
Espanha de 1344. Teófilo Braga (1905: 30-32), além dos Portugaliae Monumenta
Histórica, menciona outros e adianta várias equivalências lexicais: Ganelon e Galalão,
Balant e Balão, Roland e Roldão ou Eginhart e Gerinaldo, entre outros. Várias
personagens desta obra perduram tanto na literatura como no léxico portugueses.
Com o advento da imprensa, algumas canções de gesta foram impressas desde
cedo, como aconteceu com Fierabras (Genève, 1478), o que atesta o seu sucesso.
Traduzido para castelhano em 1528, sob o nome Historia de Carlomagno y de los Doce
Pares de Francia, a obra só sairia do prelo em português em 1732, sob o título Historia
do imperador Carlos Magno e dos doze pares de Francia6. Dada a importância do
castelhano em Portugal, de quinhentos a setecentos, como documenta Ana Isabel
Buescu (2004), e sobremaneira no século XVI, não parece de estranhar que só após a
Restauração da Independência se imprima tradução portuguesa da obra. Tanto mais que,
em 1613, uma edição do Carlo Magno castelhano é impressa em Lisboa (Martins, 1982:
387). Mário Martins enuncia claramente, de resto, a filiação da obra no Fierabras
francês (MARTINS, 1982: 377-99).
A tradução da Historia do imperador Carlos Magno… para português não deixa,
no entanto, de ser um sucesso editorial:

5 Divide-as Firmin Didot no seu Essai de Classification Méthodique et Synoptique des Romans de
Chevalerie. Paris: A. Firmin Didot, 1870, mas Claude Faurieljá as mencionara como «romans
carlovingiens» em 1832. É a classificação de Fauriel que Pascual de Gayangos (1857: XII-XXI)
considera.
6 Traduzida do castelhano por Hironymo Moreyra de Carvalho, publicada em Coimbra, na Officina de
Joseph Antunez da Sylva, Impressor da Universidade (Dividido em Quatro Livros). Em 1737, em Lisboa,
Na Officina de Mauricio Vicente de Almeyda, a obra é impressa com primeira e segunda partes.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


34
1. a primeira edição data de 1732: Historia do Imperador Carlos Magno e
dos Doze Pares de Francia. Traduzido de Castelhano em Portuguez com mais
elegancia para a nossa lingua. Por Hieronymo Moreira de Carvalho. Dividido
em Quatro Livros, Coimbra, na Officina de Joseph Antunez da Sylva,
Impressor da Universidade.
No mesmo século, surgem ainda duas outras edições em Lisboa:
1737, na Officina de Mauricio Vicente de Almeyda, e
1799-1880, na Officina de Simão Thaddeo Ferreira.
a) Desta obra, no século XIX, encontramos mais seis edições em Lisboa:
1831, 1851, 1858 e 1863, na Tip Rollandiana,
1875, por Mattos Moreira,
ec. 1880, na Typ. Rolland&Semioud.

2 José Alberto Rodrigues publica, logo em 1742, uma versão curta,


diferente, com três edições no século XVIII: a Historia do Emperador Carlos
Magno, E dos Doze Paares De França. Contem a grande batalha, que teve
com Mallaco Rey De Fés, e outra, também de 1742, denominada Historia
Nova do Emperador Carlos Magno e dos Doze Páres De França, ambas na
oficina de Pedro Ferreira. A terceira edição, de 1759, com este último título,
é impressa por Antonio Vicente da Silva. As trêsimpressas em Lisboa.
a) No século XIX, desta versão, encontramos seis edições em Lisboa e
no Porto:
1813 (Lisboa: Imprensa Regia), Historia Novado Emperador…,
1846 (Lisboa, Typ. Mathias José Marques da Silva), Historia do Emperador

1851 (Porto: Typ. Sebastião José Ferreira), Historia Novado Emperador…,
1858 (Porto: Typ. Sebastião José Ferreira), Historia do Emperador…,
1877 (Lisboa, Antiga Casa Marques Cego), Historia do Emperador…,
1885 (Porto: Liv. Portugueza), Verdadeira Historia do imperador Carlos
Magno…,

O século XX verá ainda duas edições da primeira versão desta obra, a última das
quais em 1940. De resto a versão curta, em folheto, atesta o sucesso da tradução de
Jerónimo Moreira de Carvalho, na medida em que:

«Cada folha, folhinha, folheto ou livrinho de cordel permite, em última


instância, descobrir a vivência popular (no seu sentido mais amplo) e o
discurso que transporta essa outra visão ou teoria social do mundo»
(NOGUEIRA, 2912: 218).

A Matéria de França, como a apelida Teófilo Braga (1905: 40), não era
desconhecida na Idade Média portuguesa como vimos, mas será posteriormente que o
registo escrito das façanhas do Imperador e dos seus Pares será mais notório na
Literatura Portuguesa, ainda quando de modo indireto.
Em Palmeirim de Inglaterra, de Francisco de Moraes, obra de 1543 ou 44,
também cristãos e turcos batalham. A família textual assumida pela narrativa é múltipla:
o ciclo castelhano dos Palmeirins e a Matéria de Bretanha. As referências a Palmerín de

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


35
Oliva e a Primaléon, bem como a Amadís de Gaula e às Sergas de Esplandián
encontram-se na obra. A personagem de Rosiram de la Brunda inscreve-se diretamente
na genealogia de Tristão e Isolda7.
Em brevíssimo resumo: Palmeirim e o irmão Floriano são raptados à nascença
enquanto o pai, D. Duardos, se encontra prisioneiro pelo gigante Dramusiando e pela
sábia Eutropa, sua tia. Já armados cavaleiros pelos avós, libertam D. Duardos e os
cavaleiros que, na sua demanda, haviam ficado também prisioneiros. Depois de
múltiplas aventuras ocorridas entre a «belicosa Lusitânia» e Constantinopla, algumas
com o turco Albaizar, e depois de casados os cavaleiros, os turcos ameaçam a corte
grega, «a mais nobre do mundo» (MORAES, 2009: 1072): todos se juntam a Palmeirim
de Oliva, imperador grego, e a Primaleão, seu filho, para defender a cidade de
Constantinopla da ameaça e do cerco turcos.
Num dos episódios da obra8, antes da tomada de Constantinopla, o Sultão da
Pérsia, autorizado por Albaizar, capitão turco, propõe a Palmeirim uma batalha
recreativa, através de um embaixador:
«— Alto e poderoso Principe, o Soldam de Persia meu senhor com licença e
consentimento d’Albaizar seu capitam e de todo o exercito dos turcos diz,
que porque algum tanto se acha descontente do que na justa de vosso neto
Floriano lh’aconteceo, pera seu contentamento folgaria tornar-se a ver co’ele,
e ha de ser desta maneira, que Vossa Alteza consinta que doze cavaleiros de
vossa casa, dos quais mais confiança tiver e ele antr’eles com seguridade du͂a
banda e outra possam justar e haver batalha com outros doze turcos de que
ele sera capitam. Isto se faça defronte das janelas da Emperatriz porque suas
damas vejam o preço de cada uns, e nelas estê deixar ir a batalha avante ou
nam, posto que bem sabem que nisto cometem mao partido pera si. E se
acabada a batalha ficarem tais que possam /256a/ vir a serão, pede por merce
a Vossa Alteza que o queira ter e lhe dar licença que venham a ele, e a
senhora Emperatriz o consinta, porque a fama da fermosura de sua casa faz
este desejo a quem nunca a vio.» (MORAES, 2009: 1073-4)

Aceite a proposta pelo Imperador Palmeirim, vemos o Cavaleiro do Salvaje,


outro nome de Floriano, escolher para companheiros de batalha (MORAES, 2009:
1075-6):

Cristãos Turcos
Palmeirim d’Inglaterra seu irmão, .Soldam de Persia
o príncipe Florendos, .el rei de Etolia
Graciano, .Arjelao, principe d’Arfasia

7 Moraes, Francisco de (2009: 227).


8 Idem, capítulos CLXII e CLXIII, p. 1071-1081.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


36
Beroldo, .coatro principes herdeiros de reinos
Floramam rei de Cerdenha, poderosos
Blandidom, .outros cavaleiros de gram preço
Platir,
Pompides,
el rei Estrelante d’Ungria,
dom Rosuel,
Franciam filho d’el rei Polendos,
Dom Rosiram de la Brunda

Conhecemos os Doze Pares de Floriano, em Palmeirim de Inglaterra, mas não


são nomeados os doze turcos na sua totalidade. Esta ausência de nomeação introduz
desde logo um desequilíbrio, uma fraqueza do rival, prenúncio do desenlace do
confronto. Não acontece assim na Chanson de Roland 9e não acontecerá assim nas duas
batalhas que determinarão a destruição de Constantinopla em Palmeirim de Inglaterra.
O que se segue ao momento recreativo que este episódio introduz na narrativa
(além de uma batalha entre os gigantes Dramusiando e Framustante) é no entanto de
outra ordem: os capítulos 165 a 169 dão conta de duas batalhas, da morte do Imperador
Palmeirim de Oliva e de um conjunto de outras desventuras (MORAES, 2009: 1088-
1140). Nos três últimos capítulos do texto, Daliarte toma várias providências: recolhe os
mortos, designadamente o Imperador, aconselha os habitantes da cidade e trata das
obséquias. O sacrifício do Imperador, de vários dos seus cavaleiros e da cidade de
Constantinopla encerram simbolismos e significados variados, quase sempre isomorfos
do sacrifício que encontramos na Chanson de Roland ou Historia Karoli Magni et
Rotholandi. O contexto histórico-literário e religioso do momento deve ser um fator a
considerar nas variações verificadas.
Aquele episódio da batalha dos Doze por Doze permite estabelecer uma relação
com os também lendários Doze Pares de Inglaterra, os quais bem podem ter raiz
semelhante, ainda que em contexto histórico e cultural diverso. Na realidade, parecem
aqui amalgamar-se elementos de duas tradições ao associar-se o motivo da batalha entre
cristãos e turcos, recuperando a Matéria de França, ao motivo da defesa da honra das

9 Ali, em perfeita simetria face aos cristãos surgem: o sobrinho de Marsílio é o primeiro, seguindo-se-lhe
Falsaron, irmão de Marsílio, o rei Corsablis, Malprimis de Brigant, um emir de Balaguer, um almançor de
Moriane, Turgis de Tortelose, Escremis de Valterne, Esturgant e Estremarit, Margarit de Sevilha e
Chernuble de Munigre (DUFOUNET 1993: 130-141).

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


37
damas pelos cavaleiros, motivo oriundo da Matéria de Bretanha. Os dois elementos
entrecruzam-se nestas páginas de Moraes.
Não há coincidência de nomes entre os Pares de França e estes cavaleiros, de
origem literária, mas o tópico não deixa de lembrar o episódio da gesta francesa. A
desfeita dos Pares pode encontrar-se na feroz batalha que destruirá Constantinopla e que
se segue na obra de Moraes. A natureza literária deste confronto não parece alhear-se
totalmente de alguns factos históricos: a queda do império Romano do Oriente e o facto
de, no momento da produção da obra, a década de quarenta do século XVI, se
encontrarem dois impérios em confronto: o Sacro Império Romano-germânico, tutelado
por Carlos V (de 1519 a 1558), e o Império Otomano, dirigido por Solimão, o
Magnífico (de 1520 a 1566).
Na Literatura portuguesa encontramos ainda outros ecos e outras representações
do Imperador e dos seus Pares.
O Romanceiro Geral Português, de Teófilo Braga (1982), apresenta um
conjunto significativo de textos em que se encontram menções diretas e ecos vários da
matéria carolíngia: Carlos Magno, D. Gaifeiros, Reginaldo (ou Gerinaldo, Geraldo,
Gerinardo), Flores e Ventos (Floovant), etc. são apenas alguns dos personagens que ali
aparecem e que se ligam àquela tradição textual.
De entre várias versões teatrais populares, a obra Os Doze Pares de França ou a
Floripes de Palme (MACIEL, 1932) é apenas um dos testemunhos da permanência da
matéria no território português. A semelhança e proximidade com o Auto de Floripes
esconde-se sob designações tão variadas como Auto de Santo António, Auto da Turquia
ou Auto dos Turcos, Baile dos Turcos, Comédia dos Doze Pares de França, Auto dos
Sete Infantes de Lara, Dança dos Bugios e Mourisqueiros ou Combate de Mouros e
Cristãos. A localização, de norte a sul do país, inclui os concelhos de Barcelos,
Bragança, Covilhã, Olhão, Paços de Ferreira, Ponte de Lima, Valongo, Viana do
Castelo e Vimioso (RAPOSO, 1998:194).
Curioso neste conjunto, por divergir das versões nomeadas, é o desfile das
cavalhadas da Ribeira Seca e Ribeira Grande (S. Miguel, Açores). Ali não se encontra
uma luta entre cristãos e mouros, mas um desfile de cristãos, anunciado por alampas,
alâmpadas ou lampas, (GAUDÊNCIO, 2006: 60-61) que, seguindo um Rei de longas
barbas, se dirigem ao divino Espírito Santo, no dia de São Pedro (29 de junho). Estas

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


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cavalhadas foram inclusive objeto de emissão de um selo postal em 1981 (KULLBERG,
2007).
Estas encenações passaram a outras terras, provavelmente por mão dos
povoadores das terras conquistadas aquando das Descobertas, ou depois. De entre vários
exemplos, refira-se o caso do Tchiloli ou a Tragédia do Marquês de Mântua e do
Imperador Carlos Magno, em São Tomé (PEREIRA, 2011; VALVERDE, 1998), bem
como das cavalhadas brasileiras, segundo José Rivair Macedo (2008), das quais as de
Pirenópolis são sobejamente conhecidas (SILVA, 2001).

3. para uma sintaxe do imaginário carolíngio


Mais que um inventário de imagens, verbais ou icónicas (importadas, adaptadas
e recriadas), do motivo do mítico Imperador Carlos Magno e dos seus Doze Pares,
importa procurar compreender se a sua recorrência contribui para a construção de
significados, e se sim, como o fazem. E, de modo ainda provisório, adianto algumas
reflexões sobre o modo e o significado que me parecem emergir deste conjunto de
textos de épocas tão diversas e de manifestações culturais variadas.
A propósito da Chanson de Roland, Helder Godinho (1989) demonstrou como o
espaço da personagem régia dependia da eliminação dos seus duplos e de como esse
espaço da personagem é indissociável do seu espaço identitário. Nos três textos
fundadores, a Vita Karoli imperatoris, a Chanson de Rolland e a Historia Karoli Magni
et Rotholandi encontramos o mesmo motivo do sacrifício do duplo. E se no primeiro
texto não se encontra o castigo do traidor, o texto não deixa de referir que:

«Sur le moment, il était impossible de venger ce forfait parce que l’ennemi,


son embuscade perpétrée, se dispersa de telle manière que l’on avait aucune
information sur l’endroit où l’on aurait bien pu le rechercher.» (EGINHARD,
2014: 23).

A situação parece, no entanto, do ponto de vista do Imaginário, corrigida nas


duas outras obras, onde o traidor é castigado. Não é de resto inócuo que o
pseudoTurpim associe esta traição à de Judas.
O que acontece, no entanto, na portuguesa Historia de Carlos Magno e dos Doze
Pares de França, na sequência do Fierabras francês parece ser algo diferente. Neste
caso, a recorrência da vitória sobre o infiel, a sua conversão e integração religiosa,

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39
social, e, a determinado nível, identitária, concorrem para o mesmo objetivo e
contribuem para a manutenção da Grande Ordem. Mas o processo e o percurso são de
outra natureza.
Enquanto os primeiros textos se apresentam como supostos relatos de
testemunhos dos factos, acentuando o seu aspeto fundacional, a confabulação acentuou-
se sobremaneira tanto naquelas narrativas carolíngias francesas e portuguesas, como em
Palmeirim de Inglaterra, onde a possível estranheza do episódio dos doze por Doze, um
momento recreativo entre rivais antes de uma grande batalha – a da destruição de
Constantinopla; a morte do Imperador, momento sacrificial–, ainda mantém alguns
traços dos textos fundadores. Encontramos o mesmo binómio espaço da
personagem/espaço identitário que antes. Aqui, cidade e personagem revelam-se as duas
faces do mesmo tópico: a destruição de uma (cidade) implica a destruição de outro
(imperador).
O que parece ter sido retido pela memória coletiva na literatura de tradição oral e
no teatro popular, incluindo neste os textos escrito e cénico das cavalhadas, parece-me
radicar num outro processo diverso, ainda que o objetivo seja idêntico. Conservada a
matriz da luta entre cristãos e mouros, a batalha encontra-se, ali, ritualizada e a
violência contida porque sacralizada (GIRARD, 2006). Isto também na versão açoriana,
onde permanece apenas o rito sacro da homenagem ao divino sob a forma de cavalgada
que se dirige à igreja, em «filas ordenadas» (GAUDÊNCIO, 2006: 59). E no percurso
entre os continentes separados pelo Atlântico, o turco ou o sarraceno textual integrou
simbolicamente o rival local que o índio, ou outro indígena, poderia representar.
Não restam dúvidas sobre a permanência daquelas imagens nas várias obras. E o
facto de o nome ser um dos elementos desta permanência, corrobora o fundo mítico
associado aos diferentes textos, porque «o que associamos ao nome, é uma família de
descrições» (KRIPKE, 1982: 19) [tradução minha].
Parece-me também que a variabilidade dos motivos e as diversas configurações
e reconfigurações encontradas contribuem sobremaneira para o que podemos chamar de
Imaginário textual, no qual a variante – diferentes versões, segundo Bernard Cerquiglini
(1983)– introduz um sentido outro que importa ter em conta na compreensão do ato
narrativo enquanto manifestação estruturante do Humano e da Grande Ordem. Não se
trata, portanto, de percorrer um conjunto de imagens que se mimetizam

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diacronicamente. Procura-se, a partir da imagem que os motivos e os nomes veiculam,
salientar o significado de cada variação e compreender a sintaxe que estas relações
produzem no âmbito do Imaginário. Considero, por isso, que o Imaginário textual
encontra nas narrativas verbais, icónicas e cénicas aqui identificadas uma
exemplificação plena.

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XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


43
COMUNICAÇÕES
A IMAGEM DA DAMA: O ELOGIO À SENHOR NAS CANTIGAS
DE AMOR DE DOM DINIS

Ana Luiza Mendes


UFPR/NEMED
Doutoranda

RESUMO: Dom Dinis, além de rei também foi o trovador português do qual
preservaram-se o maior número de composições que se dividem entre as denominadas
cantigas de amor, amigo e escárnio e maldizer. No que diz respeito ao primeiro gênero
podemos destacar algumas temáticas abordadas pelo rei-trovador, dentre as quais
encontra-se o elogio à senhor, a qual pode ser relacionada com o enaltecer da dama
presente na literatura medieval através do ideal do amor cortês, por meio do qual o
homem se transforma no vassalo amoroso da dama. Tal concepção amorosa foi
transmitida pelos trovadores provençais considerados mestres na arte de trovar que
contribuíram para a disseminação de um ideal amoroso do qual utiliza-se Dom Dinis
que mostra, assim, ter conhecimento de uma tradição poética além da ibérica. Nesse
sentido, para a compreensão da imagem da dama nas cantigas de amor de Dom Dinis se
faz necessária a análise do próprio contexto peninsular que permitiu a existência de
trocas culturais que influenciaram a própria formação do rei, a sua obra e a sua
personificação como trovador e vassalo amoroso das damas portuguesas.

Palavras-chaves: Amor cortês, elogio à senhor, Dom Dinis

ABSTRACT: Dom Dinis, beyond king was also the Portuguese troubadour which were
preserved the largest number of compositions which are divided between the so-called
songs of love, friend and scorn and cursing. With regard to the first kind we highlight
some themes addressed by the king-troubadour, among which is the praise to the Lord,

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which can be related to the uplift of this lady in medieval literature through the ideal of
courtly love, for through which man becomes the loving lady's vassal. This loving
design was transmitted by Provencal troubadours considered masters in the art of trovar
that contributed to the spread of a romantic ideal which is used by Dinis showing thus
that he had knowledge of a poetic tradition beyond the Iberian region. In this sense, for
understanding the lady's image in the songs of love by Dom Dinis it is necessary to
analyze the peninsular context itself that allowed the existence of cultural exchanges
that have influenced the formation of the king, his work and his personification as
troubadour and loving vassal of the Portuguese ladies.

Keywords: Courtly love, praise to the senhor, Dom Dinis

Para nada serve cantar


se o canto não parte do fundo do coração
e, para que o canto venha do fundo do coração,
é necessário que aí dentro exista um verdadeiro amor.
E é por isso que minha poesia é perfeita,
pois para o gozo pleno do amor emprego
a boca, os olhos, o coração e a inteligência.
(SPINA, 1991: 133)

Este é um trecho de uma composição do trovador provençal Bernard de


Ventadour (c.1150-c.1200) que revela a relação existente entre o cantar e o amar. Para o
poeta, por excelência, do amor cortês (SPINA, 1991: 56), a prática trovadoresca é
legítima enquanto deixa transparecer a real situação do trovador que também é amante.
E é justamente por realmente amar que Ventadour diz que sua poesia é perfeita, pois ela
reflete o estado de sua alma.
De fato, é sabido que Ventadour amou. Uma dileta de seu coração foi Aliénor
d’Aquitaine (1124-1204), neta do primeiro trovador conhecido, Guilherme IX (1071-
1126), esposa de Luís VII de França (1120-1180) e, posteriormente, de Henrique II da
Inglaterra (1133-1189). Figura controversa. Do tipo de pessoa que se ama ou se odeia.
“Ela é a mais conhecida, a mais amada ou a mais detestada das rainhas medievais” (LE
GOFF, 2013: 179). Ventadour a amava. E, por isso, a cantava em suas composições.
Interessante analisar a relação existente entre o amor e os versos. Estes
conjugam-se dentro de uma norma estilística que surge no sul da França, na língua d’oc,
que codifica o que chamamos de amor cortês. É um gênero literário que se fundamenta
na retórica do amor-paixão, no sofrer por amor, isto porque a dama a qual se destina a
cantiga é inacessível. Inacessível porque é casada. E, geralmente, com o senhor. O

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senhor para o qual o trovador deve fidelidade, que nas canções se dirige à dama. O
trovador coloca-se como seu vassalo amoroso.
Percebe-se aqui uma confluência entre a realidade social vivenciada no período
em que as criações do amor cortês surgem. Há que se considerar que as criações
literárias usufruem de elementos do contexto social, cultural e político do qual
emergem, ainda que contenham certo grau de idealização. No caso do amor cortês a
idealização relaciona-se à imagem da mulher que é colocada num patamar superior no
discurso literário que se desenvolve num período que ocorre uma transformação na
concepção da figura feminina. É no século XII que se tem a propulsão do culto a Maria,
símbolo de mulher a ser seguido. Ela também simboliza a esperança na remissão dos
pecados femininos.
Como se vê, a concepção sobre a figura feminina é controversa, mesmo no
período em que alguns estudiosos visualizam uma transformação de comportamentos e
percepções sobre eles. A mulher ainda é considerada estéril se não gera filhos varões.
Foi o caso de Aliénor. Ela gerou duas filhas para Luís VII. Estéril. Rechaçada.
Renegada. Sim, pois, ainda que a mulher tenha ganhado mais espaço na sociedade
medieval a manutenção da hereditariedade ainda era mais importante. Além disso, “a
santidade da união conjugal se mede, com efeito, pela glória dos homens que são fruto
dela” (DUBY, 1989: 45). Com Henrique II, Aliénor teve três filhas e seis filhos. Filhos
que foram reis, como Ricardo Coração de Leão (1157-1199).
O casamento era um negócio. Social, político, econômico. Aliénor
provavelmente, assim como tantas outras mulheres, não se casou por amor. O amor era
o oposto do casamento. O amor estava na literatura que cria “elementos de um ritual que
codifica uma maneira nova de imaginar, fora do quadro conjugal, as relações afetivas
entre os dois sexos, e talvez as de viver” (DUBY, 2001: 115).
Talvez Ventadour realmente tenha amado como sugere sua cantiga. Talvez essa
mesma cantiga tenha sido dirigida a Aliénor. Não sabemos. O nome da amada não é
revelado. Regra do amor cortês que exige mesura e discrição. O amor cortês não ensina
apenas a amar, também ensina regras de cortesia, regras de comportamento, de
civilidade que distinguia o homem cortês do vulgar. Ou melhor, a forma como amar
está inserida nas regras de civilidade que distinguirão os nobres dos demais seres,

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através de um ideal estético e ético expresso num estilo de vida, num código de conduta
que expressa um modo de amar especificamente cortês.
Sobre a sinceridade do amor que afirma sentir também não podemos ter absoluta
certeza. Por conta da incerteza, a sinceridade do sentimento dos provençais já foi
questionada:

Proençaes soen mui bem trobar


e dizem eles que é com amor;
mais os que trobam no tempo da frol
e non em outro, sei eu bem que nom
am tam gram coita no seu coraçom
qual m’eu por mha senhor vejo levar.

Pero que trobam e saem loar


sas senhores o mais e o melhor
que eles podem, sõo sabedor
que os que trobamquand’ a frol sazom
a e, nom ante, se Deus mi perdom,
nom am tal coita qual eu ei sem parar.

Ca os que trobam e que s’alegrar


vame-no tempo que tem a color
afrolcomsigu’e tanto que se for
aquel tempo, logu’ em trobarrazom
nomam, nem vivem em qual perdiçom
oj’ eu vivo, que pois m’ a de matar.
(LANG, 2010: 228)

Nesta cantiga, Dom Dinis (1261-1325), reconhece a qualidade do trovar dos


provençais, porém, questiona se esse trovar provém de um sentimento sincero. Diante
disso podemos deduzir que o rei-trovador considera que o trovar se relaciona
intimamente com a sinceridade amorosa que intenta transmitir. Segundo o rei português,
os provençais amam somente no tempo da frol, ou seja, na primavera, o que significa
dizer que não amam verdadeiramente, pois o amor não tem estação, não é determinado
por ela.
Ora, Ventadour também é da mesma opinião. Na cantiga com que iniciamos
identificamos inclusive o reconhecimento da perfeição da sua composição pelo fato de
que ela foi inspirada por um sentimento verdadeiro. Como, então, podemos entender
esse questionamento de Dom Dinis? Primeiramente, devemos reconhecer o fato de que
Ventadour e Dinis são de séculos diferentes. Portanto, Dinis generaliza. Posiciona-se na
frente de todos os provençais. Questiona a arte trovadoresca provençal. Arte que lhe era
conhecida. Dinis foi educado para ser rei e para ser trovador, por isso conhecia as

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técnicas do trovadorismo provençal. Um dos elementos que identificava os trovadores
era justamente a educação artística. Esta educação lhes conferia o nome trovadores, daí
se explica o orgulho dessa denominação (SPINA, 1991: 75) e a afirmação perante aos
jograis e segréis1, seres diferentes do ponto de vista social e artístico.
Dinis, desse modo, construía sua retórica poética a partir do conhecimento do
“concorrente”. Estava familiarizado com as temáticas provençais em que a primavera e
a natureza florescente testemunhavam o amor cantado pelos trovadores do sul da
França.

O mais fecundo dos trovadores galego-portugueses procura pôr em evidência


a versatilidade dos poetas da França meridional, estabelecendo um paralelo
entre a arte de ocasião desses poetas e a poesia que parte realmente do
sofrimento amoroso que o poeta afirma possuir. Sofrimento que não depende
da vontade, mas que permanece em todo o tempo. (SPINA, 1991: 310).

Para Dinis, a testemunha do sentimento amoroso é a sinceridade. Sinceridade


que também é apregoada por Ventadour. Retóricas. O trovadorismo, além de revelar um
jogo de amor também transborda de uma oratória específica, pois é preciso convencer o
público que aquele amor é verdadeiro.
Dinis, portanto, está inserido nesse meio trovadoresco. Tem a educação, a
técnica, a retórica e a consciência de pertencimento a esse movimento. Também tem
consciência de que esse movimento é distinto. Tem consciência que há o trovadorismo
provençal e que há o trovadorismo ibérico. Sua retórica investe no trovadorismo que,
em certos aspectos, se distancia daquele de Ventadour. A começar pela língua utilizada.
Diferente da Provença e das cortes italianas, que continuaram utilizando a língua d’oc, a
língua poética de Portugal e Castela, é o galego-português.
O uso do galego-português pode ser compreendido também pelo viés político. O
trovadorismo galego-português encontra seu auge em Portugal no reinado de Dom Dinis
que, dando continuidade à prática de seu pai, Afonso III (1210-1279), promove ações
que visam a centralização política e a autonomia do reino português. Dinis obtém
sucesso no seu empreendimento, ainda que tenha que enfrentar alguns

1 Esse termo foi utilizado para designar, no século XIII, o jogral que além de executar também compunha
as cantigas, porém, não foi nesta acepção que o termo foi empregado pelos investigadores do assunto.
Além desses personagens do movimento trovadoresco também existiam as soldadeiras, dançarinas ou
cantoras que acompanhavam os jograis. Sobre esse assunto vide: LANCIANI, Giulia; TAVANI,
Giuseppe. Dicionário da literatura medieval galega e portuguesa. Lisboa: Caminho, 1993.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


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descontentamentos internos por parte da nobreza, personificada na figura de seu irmão e
de seu filho. No campo externo é reconhecida sua autoridade política, uma vez que é
convocado a mediar conflitos entre Castela e Aragão. Também pode ser considerado um
eminente político quando, nos primórdios do seu reinado, mesmo sem muita
maleabilidade, resolve o conflito com a Igreja, herança do reinado de seu pai. Os
conflitos entre a coroa e a Igreja continuaram durante o seu reinado, mas não havia a
necessidade de recorrer a uma instituição externa para resolvê-los. Com Dinis, portanto,
o reino português faz as pazes com Roma, sai do interdito e adentra à comunidade cristã
novamente. Porém, ainda que fazendo parte da comunidade cristã era preciso se
diferenciar e a utilização da língua galego-portuguesa e do próprio português na
chancelaria mostravam que o reino português não era só mais um reino cristão. Era um
reino cristão, mas com uma identidade própria. Daí pode-se compreender o uso do
português em documentos oficiais, assim como a criação da universidade,

num período crucial da política régia de centralização do poder e do controle


do poder senhorial, laico como eclesiástico. É por isso natural que D. Dinis
promovesse uma instituição que lhe poderia fornecer indivíduos com
formação jurídica, mas fora dos círculos formativos habitualmente
controlados pelas instituições eclesiásticas. (PIZARRO, 2008: 179).

Percebe-se, portanto, que as ações de Dom Dinis, tanto no campo político quanto
no cultural unem-se em torno de um mesmo objetivo: a afirmação de uma identidade de
um reino que se percebe integrante de uma “comunidade”, seja ela cristã ou
trovadoresca, mas também se reconhece como distinto buscando, inclusive, se afirmar a
partir da diferença, como podemos observar na retórica poética de Dom Dinis. Na
cantiga anteriormente mencionada podemos identificar, como afirma Graça Videira
Lopes,

a defesa de uma diferença entre esses proençaes que soem mui bem trobar e o
eu que aqui canta – diferença cujo enunciado a adversativa “mas”, no
princípio do terceiro verso, introduz – o que, como também tem sido desde
sempre notado, não deixa de constituir uma interessante declaração de
autonomia da arte galego-portuguesa face aos modelos provençais admirados
(mesmo no que toca à cantiga de amor, como é o caso). Distinguindo entre
um eles e um nós, de que o trovador, mesmo se a título pessoal, se faz porta-
voz, D. Dinis parece postular claramente essa diferença. (LOPES, 2009: 3).

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


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Isto posto, podemos afirmar que Dom Dinis se reconhecia como integrante do
movimento trovadoresco de origem provençal, mas também se posicionava como capaz
de não se restringir a ele. Dessa forma, ele concebia as diferenças entre uma forma
poética e outra. E considerava a sua como melhor. Uma retórica poética que também se
faz política no contexto de sua ação centralizadora e de autonomia perante aos demais
reinos.
De fato, podemos identificar os elementos que aproximam a lírica galego-
portuguesa da provençal, assim como os que as separam. Neste último aspecto podemos
apontar uma transformação de gênero ocorrida na Península Ibérica. Essa transformação
diz respeito às cantigas de amigo que nos revelam uma voz feminina cantando o amor, a
alegria, a saudade ou a coita causados pela presença ou ausência do seu amigo. É neste
gênero, segundo Serrão, que Dinis se impôs como um dos maiores líricos da Idade
Média portuguesa. (SERRÃO, 1978: 239). A origem deste gênero ainda causa
questionamentos. É possível que sua gênese esteja relacionada com a presença árabe na
Península Ibérica que não foi exclusivamente motivo de luta. Interessante pensar que o
árabe já foi a “língua erudita e literária do Sul da Península, enquanto o Norte e os
cristãos conservaram o latim como língua escrita; porém a língua falada, ou romance,
devia facilitar as relações quotidianas e o comércio entre uns e outros”. (RUCQUOI,
1995:68).
Diante disso podemos reconhecer a intensa interrelação entre cristãos e
muçulmanos que possibilitou um rico trânsito cultural. Em termos poéticos, a cultura
andaluza foi responsável pela criação das jarchas, produzidas entre os séculos XI e XIII
em romance que se finalizam em breves estrofes, denominadas muwassaha. Tais
composições nos remetem ao universo feminino, sobretudo através da figura da mãe, o
que nos permite relacioná-las com as cantigas de amigo galego-portuguesas. Entretanto,
também é possível supor que a cultura árabe tenha tido contato com a cultura provençal.
Diante disso, torna-se difícil determinar com segurança a origem da influência dessas
variadas culturas. Perante a extrema mobilidade existente no período medieval é
possível afirmar que as variadas culturas e suas expressões entraram em contato com
outras. Assim, pode-se falar em uma contínua interação entre elas que culminou em
variadas formas de expressão dos sentimentos que também seria influenciada pelo
contexto social específico. “As origens do movimento lírico, que se define na Galiza e

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


50
no norte de Portugal e tem Santiago de Compostela como seu centro produtor e de
irradiação, explicam-se pela influência simultânea destes jardins poéticos espalhados
pela Europa” (SPINA, 2006: 13), que proporcionou na Península Ibérica, segundo José
D’Assunção Barros, a formação de um tipo específico de rei, que sabe lidar com a
alteridade e com a diversidade. (BARROS, 2014: 38).
E, podemos dizer, que sabe se utilizar dessa diversidade como constituinte de
sua própria inspiração poética, como podemos observar nas cantigas de amor. Como já
mencionado, estas composições transmitem as regras do amor cortês: a submissão à
amada através da vassalagem amorosa; a promessa de honrar e servir a amada; desprezo
pelos intrigantes; o elogio à dama; a prática da mesura e a utilização do senhal, um
pseudônimo para não divulgar o nome da dama, isto porque, como vimos, era casada.
Estes preceitos também podem ser identificados nas cantigas de amor de Dom
Dinis, afinal ele é um conhecedor das normas do amor cortês. A cantiga em que ironiza
a poesia provençal também serve para indicar que ele tem consciência deste modo de
fazer poético. Assim, podemos identificar 12 cantigas de amor em que ele faz referência
à vassalagem amorosa e 25 em que faz elogio à dama. O elogio à dama é o segundo
tema profano mais recorrente nas suas cantigas de amor, perdendo apenas para o tema
da coita2 que aparece 38 vezes.
No tocante ao elogio à dama, que no contexto ibérico será a senhor, uma vez que
não havia o signo feminino desta palavra, ela será, assim como as diretrizes do amor
cortês, a mais fremosa de todas as mulheres. E é justamente por esse motivo que o
trovador lhe rende o seu amor e declara a sua coita por não ter esse amor correspondido.
A senhor também será amada por ter mesura, ou seja, delicadeza, cortesia. Tal
característica é cobrada, no amor cortês, ao amante. Ele deve tratar a dama com mesura.
Instigante pensar que em uma de suas cantigas, Dom Dinis reconhece o mesmo em sua
senhor:

Pois mha ventura tal é ja


que sodes tam poderosa
de mim, mha senhor fremosa,
por mesura que em vós a,
e por bem que vos estará,
pois de vós nom ei nenhum bem,
de vós amar nom vos pes em,
senhor. (LANG, 2010:235)

2 Dor, sofrimento.

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51
A mesura é, pois, um tema extremamente importante na construção da poética
cortês. Em outra cantiga, Dom Dinis brinca com este elemento, como se estivesse
atormentado por ter que cumprir a mesura e querer quebrá-la:

Vós mi defendestes, senhor,


que nunca vos dissesse rem
de quanto mal mi por vós vem;
mais fazede-me sabedor,
por Deus, senhor, a quem direi
quam muito mal eu ja levei
por vós, se nom a vós, senhor.
(LANG, 2011: 130)

Nesta cantiga, Dom Dinis confessa sofrer pela sua senhor e pergunta a quem
poderá contar sofre esse sofrimento. Segundo as regras da mesura ele não deve contar a
ninguém, pois ninguém deve saber a quem devota o seu amor. Assim, ele canta o seu
pesar na cantiga, para a sua amada. Dinis joga com os lugares-comuns do amor cortês,
afirmando que não há como se ter mesura sem um indício de desmesura (NOBRE,
2001: 56). É nessa perspectiva que também podemos analisar outra cantiga:

Preguntar-vos quero por Deus,


Senhor fremosa, que vos fez
mesurada e de bom prez,
que pecados foram os meus
que nunca tevestes por bem
de nunca mi fazerdes bem.

Pero sempre vos soub’ amar


dês aquel dia que vos vi,
e assi o quis Deus guisar
que nunca tevestes por bem
de nunca mi fazerdes bem.

Des que vos vi, sempr’o maior


bem que vos podia querer,
vos quiji a todo meu poder;
e pero quis nostro senhor
que nunca tevestes por bem
de nunca mi fazerdes bem.

Mais, senhor, a vida com bem


se cobraria bem por bem.
(LANG, 2011: 229)

À senhor, mesurada e de bom prez, ou seja, de boas qualidades e, portanto,


digna de ser amada, Dinis pede por um bem. Ele reclama que nunca, desde o momento

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52
em que viu sua senhor, momento a partir do qual passa a amá-la, ela quis lhe fazer o
bem. Este bem é uma recompensa pelo seu amor. A recompensa poderia ser um
presente, poderia ser um olhar, uma correspondência ao amor do trovador. Ou algo
mais. Sim, pois o amor cortês pregava certa continência, não a castidade. O amor cortês,
com todos os seus artifícios, dialoga com um sensualismo que pulsa sob a cobertura do
amor idealizado. (BARROS, 2007: 89)
A senhor de Dom Dinis é, assim como a dama dos provençais, idealizada, sem
correspondência na realidade. Talvez uma cantiga possa dizer o contrário:

Pois que vos Deus fez, mha senhor,


fazer do bem sempr’ o melhor,
e vós em fez tam sabedor,
unha verdade vos direi,
se mi valha nostro senhor:
erades bõa pera rei.

E pois sabedes entender


sempr’ o melhor e escolher,
verdade vos quero dizer,
senhor, que servh’ e servirei:
pois vos Deus atal foi fazer,
erades bõa pera rei.

E pois vos Deus nunca fez par


de bom sem nem de bem falar,
nem fará ja, a meu cuidar,
mha senhor, por quanto bem ei,
se o Deus quizesse guisar,
erades bõa pera rei.
(LANG, 2011: 204-205)

A senhor aqui cantada, assim como a das demais cantigas, não se compara a
nenhuma outra no mundo. Deus a fez sem par, tanto no julgamento quanto no falar.
Porém, nesta cantiga acrescenta-se mais uma característica extremamente interessante.
A senhor é tão perfeita que erades bõa pera rei. Ou seja, ela era perfeita para um rei.
Que senhor seria perfeita para o rei Dom Dinis? Sim, rei. Nesta cantiga não é somente a
voz do trovador que aparece. Dom Dinis não tira a coroa ao trovar. E, se a dama do
amor cortês é superior ao trovador, quem seria a dama superior ao trovador que é
superior a todos?
Para alguns estudiosos esta cantiga foi inspirada em Isabel de Aragão (1270-
1336), esposa de Dom Dinis, rainha culta e santa. Pode-se dizer que Isabel foi escolhida
a dedo. Um enlace com a filha do rei de Aragão traria inúmeras vantagens políticas. Ela,
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53
de fato, tinha muitos pretendentes, e o escolhido foi Dom Dinis, também um excelente
partido. Dessa forma, o casamento de Dinis e Isabel foi um bom negócio. Como deveria
ser um casamento no período medieval. Isabel era culta e uma rainha extremamente
ativa, auxiliando o reinado de Dom Dinis com suas habilidades diplomáticas com
Aragão e com seu próprio filho que se insurge contra o pai e com suas atividades de
caridade e assistência. É possível afirmar, então, que Isabel foi uma excelente rainha.
Além disso, cumpriu seu papel de mulher: deu um herdeiro a Dom Dinis, o futuro
Afonso IV, além de uma filha, Constança, que seria rainha de Castela.
Então, diante disso, poderíamos afirmar que a cantiga foi destinada a Isabel.
Podemos dizer que é possível. Isabel, de fato, era boa para rei. Era boa para ser rainha,
como o foi. Porém não há como comprovar. Além do mais, devemos lembrar que Dom
Dinis tinha amantes, ou barregãs para nos atermos ao termo da época. Os nomes de
algumas delas eram conhecidos e constam no Livro de Linhagens do conde Pedro de
Barcelos, um dos filhos bastardos do rei. Inclusive, um destes bastardos teria sido o
motivo pelo qual Afonso, o filho legítimo, se insurge contra o pai, por conta do poder
que o irmão, Afonso Sanches, estaria recebendo no comando do reino. Uma luta gerada
por ciúme. Mas um ciúme político. Afonso não fez nada mais que assegurar o seu trono.
Diante disso, fica a questão: quem era boa para rei? As regras do amor cortês
impedem Dinis de dizer. Ele nunca diria, pois ele é um trovador, de fato. E não o é
simplesmente por ter sido o mais profícuo trovador português, com 137 composições,
mas também pela sua qualidade e por promover “uma condensação, recapitulação e
síntese da tradição poética em que se formou e, ao mesmo tempo, uma espécie de
confronto criativo com os textos que ‘cita’ ou aos quais ‘alude’” (PIZARRO, 2008:
321).
Assim, ao fazer o elogio à senhor Dom Dinis faz um elogio ao trovadorismo
galego-português, a si e ao seu reino. Tanto ele quanto os provençais irão afirmar a
perfeição do seu fazer poético e cada qual quer que o seu seja o mais sincero. Através
do elogio à senhor que se mantém nos moldes do amor cortês e da pretensa vontade de
querer trovar como os provençais, como sugere a cantiga Quer’eu em maneyra de
proençal, o rei-trovador, na verdade faz um elogio ao seu reino. Utilizando-se da
emulação, que é um tipo de imitação, mas que se pretende diferente porque sua meta é
superar os provençais. E, para tanto, atualiza a recepção de forma consciente

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


54
(GUIMARÃES, 2014: 58), ou seja, imitando ou se utilizando das técnicas provençais de
trovar ele estabelece o público em uma tradição poética que passa, então, a ser
compartilhada e transformada numa expressão de identidade.

REFERÊNCIAS
BARROS, José D’Assunção. A poesia como arma de combate: um estado sobre a
reapropriação de esentidos em uma cantiga medieval ibérica (século XIII). Revista
Letras, Curitiba, n. 90, jul/dez, 2014, p. 35-53,. Disponível em:
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GUIMARÃES, Marcella Lopes. Voltas pelo cancioneiro profano: questões sobre a
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2012.
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PIZARRO, José Augusto de Sotto Mayor. D. Dinis. Lisboa: Temas e debates, 2008.
ROUGENONT, Denis. História do amor no ocidente. São Paulo: Ediouro, 2003.
RUCQUOI, Adeline. História medieval da península ibérica. Lisboa: Editorial
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SERRÃO, José Veríssimo. História de Portugal, volume I. Estado, Pátria e Nação
(1080-1415). Lisboa: Editorial Verbo, 1978.
SPINA, Segismundo. A era medieval. Rio de Janeiro: Difel, 2006.
________________. A lírica trovadoresca. São Paulo: Edusp, 1991.
TAVANI, Giuseppe. Trovadores e jograis. Introdução à poesia medieval galego-
portuguesa. Alfragide: Caminho, 2002.

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A DEFINIÇÃO DE UM BOM CAVALEIRO ENUNCIADA
PELO PRIOR FRANCÊS, HONORÉ BOVET, EM SUA OBRA
L’ARBRE DES BATAILLES (1389)
Carmem Lúcia Druciak
UFPR-NEMED
Mestre em Letras – Doutoranda em História
CAPES

RESUMO: L’Arbre des batailles é um tratado de direito de guerra dedicado ao rei


francês Charles VI (1380-1422), em que seu autor, o prior Honoré Bovet, nascido na
Provença, licenciado em Direito e especializado em decretos, discorre sobre a guerra,
durante os conflitos da Guerra dos Cem Anos, como fenômeno salutar à sociedade,
desde que obedeça ao conceito de “guerra justa”. Ao usar a figura da árvore, Bovet
estabelece certa hierarquia dos movimentos de guerra e conceitua, ao longo do livro, a
natureza da batalha, quem são os agentes legítimos a atuar nela e de que forma devem
fazê-lo. Ele ainda caracteriza, em diversos trechos da obra, a atividade dos cavaleiros e,
por extensão, acaba informando sobre toda a cavalaria enquanto grupo legitimado pelo
rei e a serviço dele. Concentrar-nos-emos nos capítulos em que Bovet enumera
características louváveis dos cavaleiros, procurando identificar elementos que mostrem
diferenças e continuidades no que se refere à atividade militar exercida por esses
homens de armas na França da Baixa Idade Média.

Palavras-chave: Cavalaria francesa, Bom cavaleiro, Guerra dos Cem Anos

RESUME : L’Arbre des batailles est un traité de droit de guerre dédié au roi français
Charles VI (1380-1422) dans lequel son auteur, le prieur Honoré Bovet, né en Provence,
licencié en Droit et docteur en décrets, présente la guerre, pendant les conflits de la
Guerre de Cent Ans, comme un phénomène salutaire à la société, pourvu que le concept
de « guerre juste » soit respecté. Tout au long de son livre, en se servant de l’image de
l’arbre, Bovet établit une hiérarchie concernant les mouvements de guerre et définit la
nature des batailles, qui sont les agents légitimes à y agir et comment. Le prieur
caractérise à plusieurs reprises l’activité des chevaliers et par conséquent, il donne des
repères à propos de la chevalerie en tant que groupe légitimé par le roi et à son service.
Nous nous concentrerons sur les chapitres où Honoré Bovet détaille les caractéristiques
les plus dignes d’éloges chez les chevaliers et ainsi nous chercherons à identifier les
éléments qui révèlent les différences et les continuités en ce qui concerne l’activité
militaire entreprise par ces gens d’armes en France au Bas Moyen Âge.

Mots-clés : Chevalerie française , Bon chevalier , Guerre de Cent Ans

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


57
Nascido em uma família da região da Provença francesa por volta de 1345,
Honoré Bovet (ou Bouvet)1 foi monge beneditino, mas apesar da formação religiosa não
permaneceu em uma vida contemplativa, ao contrário, especializou-se, após sua
formação em Direito, tornando-se Doutor em decretos pela Universidade de Avignon
em 1386, formação que lhe rendeu bom trânsito tanto na esfera política quanto religiosa
na corte do monarca francês Charles VI (1380-1422). Residente de Avignon, Honoré
Bovet “parece ter exercido alguma função na corte do papa Clemente VII e afirma-se
efetivamente como clementista convencido” na obra que apresentamos aqui
(LEFÈVRE, 1992: 685)2. O que se sabe é que esteve presente como conselheiro do rei
entre os anos de 1392 até sua morte no ano de 1405, o que para alguns estudiosos pode
significar que tenha participado do grupo dos Marmousets3 ou ao menos tenha sido
próximo a eles.
A obra em língua francesa mais conhecida de Honoré Bovet e a que é
brevemente estudada neste trabalho é L’Arbre des batailles, e para isso utilizaremos a
edição de Ernest Nys de 1883 que traz a transcrição de um dos manuscritos mantidos na
época pela Biblioteca Real da Bélgica. A obra se configura como um tratado de direito
de guerra, dividido em quatro partes, dedicado ao soberano Charles VI em que o autor
apresenta suas reflexões sobre a guerra a partir de um ângulo jurídico, ainda que para
isso não faça uso dos jargões característicos desse domínio, antes se serve de uma
linguagem bastante acessível já que A Árvore das batalhas, como chamaremos daqui
em diante, pode ser definida como um “manual prático de casuística 4 guerreira e
portanto facilmente compreensível” (DUVAL, 2007: 260). A obra foi redigida em
1
Estudos realizados a partir de meados do século XX, confirmaram que a grafia mais acertada para o
nome do autor estudado no presente artigo seria Bovet, por isso, apesar de utilizarmos a transcrição
empreendida pelo editor Ernest Nys no final do século XIX e que apresenta o autor como Honoré Bonet,
privilegiaremos a grafia atualizada de seu nome. (Cf. OUY, G. “Honoré Bouvet (appelé à tort Bonet)
prieur de Selonnet”, Romania, LXXXV, 1959, p. 255-259 e também o site de referência sobre Literatura
Medieval, ARLIMA www.arlima.net).
2
A tradução de todas as citações em francês no original é de nossa autoria.
3
O grupo de conselheiros de Charles VI, posteriormente chamado Marmousets (favoritos do príncipe),
compunha-se de intelectuais ligados à universidade e que a convite do rei auxiliaram-no durante seu
governo a partir de 1388 quando o jovem Charles fazia frente à regência dos tios, buscando exercer um
governo mais sólido, promovendo a função pública e sustentando o papa de Avignon (AUTRAND, 2002:
885).
4
Casuística, segundo o Dictionnaire du Moyen Âge – littérature et philosophie, é um método utilizado em
Teologia, Direito e Medicina e que consiste em resolver problemas colocados pela ação concreta por
meio de princípios gerais e estudos de casos similares; e como ciência aplicada, a casuística não pode
prescindir do julgamento da consciência pessoal (VEREECKE, 1999: 238). Daí percebemos como
Honoré Bovet pôde exprimir sua própria opinião tão abundantemente em primeira pessoa ao longo de
toda a obra.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


58
várias fases, sendo a última redação do ano de 1389, e então oferecida a Charles VI que
ora se hospedava em Avignon (LEFÈVRE, 1992: 685) e em língua francesa, o que já
denotava que o público visado ia além daquele do ambiente jurídico. Tudo isso talvez
justifique a sobrevivência até nossos dias de quase uma centena de manuscritos da obra
de Bovet, em sua grande parte sem miniaturas e realizadas no século XV, trazendo
apenas o texto em versões completas ou reduzidas. Mas, é claro, alguns manuscritos
iluminados também foram confeccionados e entre eles o que possui a Biblioteca
Britânica sob a identificação Royal 20 C VIII e que apresenta um diagrama da árvore
referida por Bovet, conforme a ilustração a seguir, e uma miniatura do autor entregando
o livro ao duque Jean de Berry, tio de Charles VI, bem como as armas do duque na
borda ricamente ornada em ouro. A Biblioteca Britânica indica que seu manuscrito deve
ter sido composto no primeiro quarto do século XV encomendado pelo duque de Berry,
morto em 1416, de onde suas armas ilustradas no documento e a data estimada de
fabricação.

Fonte: British Library - ms Royal 20 C VIII, f. 2v


http://www.bl.uk/catalogues/illuminatedmanuscripts/ILLUMIN.ASP?Size=mid&IllID=40798

É no Prólogo à obra que Honoré Bovet declara intentar a realização de um livro


em louvor a Deus, à Virgem Maria e ao próprio rei a quem se apresenta como doutor em

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


59
decretos e se dirige em primeira pessoa, explicando quais as razões de seu trabalho: a
necessidade de se fazer algo com relação às tribulações por que passava a Igreja, desde
o cisma em 1378, à falta de paz no reino devida à guerra, aos conflitos na Provença
portadores de grandes sofrimentos aos habitantes da região 5, e finalmente, como Bovet
se coloca em posição de profeta, a quarta razão, dizer ao monarca francês que dele,
representante de tão nobre linhagem, viria o remédio aos males por que passava a
cristandade. Bovet ainda afirma em seus prolegômenos que para compor A Árvore das
batalhas se baseou nas Escrituras, nos decretos, nas leis e na filosofia e que se “uma tal
imaginação” lhe ocorreu ao apresentar a figura de uma árvore já no início de seu livro
foi para melhor discutir sobre a tribulação da Igreja, a dissensão entre reis e príncipes
cristãos e o desacordo entre as comunidades. Como bem se pode observar no diagrama6,
sua explanação serve bem aos fins que podemos chamar de didático-metodológicos,
pois as quatro grandes divisões da árvore orientaram a divisão do livro também em
quatro partes:

A primeira será sobre as tribulações da Igreja desde o advento de Jesus


Cristo nosso Senhor [interpretação do Apocalipse] e em seguida, a segunda
parte, será sobre a destruição e as tribulações dos quatro reinos que já não
existem mais [Babilônia, Macedônia, Roma e Cartago]. A terceira parte será
sobre as batalhas em geral [simples introdução à quarta parte]. E a quarta
parte será sobre as batalhas em especial (BOVET, 1883:3).

Trata-se de uma obra composta muito provavelmente entre os anos de 1386 e


1389, datação estimada devido às inúmeras referências a fatos históricos (o Cisma, a
adoção de Louis d’Anjou pela rainha de Nápoles, os conflitos naquela região, etc.), e
por outro lado, a falta de referências à viagem empreendida por Bovet em 1390 na
comitiva real à região do Languedoc e às crises de demência de Charles VI, iniciadas
em 1392, por exemplo. Dedicada a Charles VI, como já inferimos, A Árvore das

5
Os conflitos na região da Provença a que Honoré Bovet se refere se deram durante a disputa pela
sucessão da região, após a morte da regente Jeanne I, rainha de Nápoles e condessa da Provença (1326-
1382). ComoJeanne havia feito de Louis d’Anjou, filho do rei francês Jean II, le Bon, seu herdeiro por
adoção, a coroa francesa se colocou no direito de assumir a província, mas isso não foi bem aceito pelos
nobres da primeira casa de Anjou,que já estavam sediados ali. Essa disputa recebeu o nome de guerra da
União de Aix, referência à capital, Aix-en-Provence (1382-1387).
6
A Biblioteca Britânica descreve o diagrama da árvore da dor, como também é designada na obra, da
seguinte forma: a árvore é encabeçada pela Fortuna e sua roda, em seguida, sobre os galhos, a figura dos
dois papas, Clemente VII e Urbano VI com as faces rasuradas; na sequência, os reis da França, Charles
VI, e da Inglaterra, Ricardo II; o rei de Jerusalém e de Nápoles, Louis d’Anjou; o duque da Borgonha,
Philippe le Hardi; os reis de Castela e Leão, João I, e de Portugal, Fernando; o rei dos Romanos e o rei da
Hungria e Polônia. Abaixo, já em solo, os respectivos cavaleiros e suas mesnadas batalhando entre si.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


60
batalhas é repleta de empréstimos diretos e indiretos da Epitoma rei militaris de
Vegécio (século IV), da Chronicon pontificum et imperatorum, de Martin de Troppau
(século XIII), da Historia ecclesiastica nova, de Ptolomée de Lucques (início do século
XIV), da obra do bolonhês João de Legnano, De Bello, de Represaliis et de Duello, de
1360, bem como Platão, Aristóteles, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, citados
nominalmente no texto de Bovet (MONTEIRO, 2010:88; DUVAL, 2007:260), o que
era bastante comum na atividade de escrita do período em que a referência a autores
consagrados conferia autoridade e visibilidade a um novo volume.
Aliás, de Agostinho e de Tomás de Aquino, Bovet tomou o conceito de guerra
justa, ou seja, a guerra empreendida pela autoridade do príncipe, segundo uma causa
justa tendo em vista o bem comum, sem ser dirigida pela vingança, nem pela crueldade.
E adaptando-o ao contexto dos conflitos da Guerra dos Cem Anos, que haviam assolado
o reino da flor de lis, Bovet o faz tanto para incitar as ações que esperava do rei frente
aos inimigos ingleses, como também para moldar os comportamentos dos cavaleiros e
dos homens de armas, afirmando que a batalha enquanto desavença que visasse ao
acordo e à razão vinha do direito divino de se retornar à paz, e comparando-a à
medicina, levar a cura à cristandade. No entanto, os males por ela empreendidos são
condenáveis e “se durante a batalha são feitos muitos males, não é pela natureza da
batalha, mas pelo mau uso dela” (BOVET, 1883:83-84).
Não se pode, no entanto, afirmar que Bovet condenava a violência guerreira de
modo geral, pois naquele contexto, não havia considerações contrárias aos atos de
violência, tal como se pensa em nossos dias, mas sim contra seus excessos. Assim
Bovet condena a guerra particular e seus duelos, conflitos que seriam motivados por
causas pessoais, sem levar em conta o bem comum, ainda que fossem empreendidos por
nobres; e tantas outras batalhas que não respeitassem o conceito de guerra justa em que
ele se fundamentava7.

Responder injúria com injúria é do domínio do possível, até mesmo do


necessário, mas acrescentar propósitos ou gestos que infrinjam as regras do

7
Sem dúvida, apesar de os juristas da época de Honoré Bovet se prevalecerem das reformulações da São
Tomás de Aquino sobre a guerra justa, é preciso relembrar que a legislação conciliar da Paz de Deus e em
seguida da Trégua de Deus, defendida a partir dos concílios episcopais desde o século X, era com
frequência reiterada nos discursos moderados pela Igreja que afirmava com certa veemência que a guerra
deveria poupar os inermes. Afinal, numa concepção tripartite da sociedade, os bellatores deveriam
defender os laboratores (LAURANSON, 2002: 1035-1037).

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


61
combate é levar a discussão para um campo que lhe modifica o sentido e que
se qualifica de “vilão”, até mesmo de “desumano” [...]. Assim se esboça a
ideia de que pode haver uma violência lícita quando ela respeita as leis mais
ou menos tácitas que obrigam um combatente claramente anunciado entre as
partes adversas” (GAUVARD, 2006: 607).

Era, portanto, também lícita a guerra mortal (a guerra de fogo e sangue) que,
segundo o comportamento dos combatentes, entenda-se, nada mais era do que o conflito
compreendido dentro do conceito de guerra justa em que atos de violência eram
permitidos. A este conceito de guerra opunha-se o de guerra guerreável ou leal que
tratava de conflitos em que eram respeitados os preceitos da justiça de armas, isto é, não
haveria entre os combatentes nem má intenção e nem perversa atitude (CONTAMINE,
1979: 84). Dessa forma, é possível compreender como Bovet explica, segundo seu
entendimento de guerra justa, os conflitos entre reinos cristãos: as gentes de armas
seriam nada mais do que o flagelo de Deus para punir os pecadores, e se as guerras
atingiam os bons e os justos, isso seria creditado para sua glória quando recebidos nos
céus (BOVET, 1883:150).
Bem, sendo conhecido o contexto um tanto conturbado desse início de reinado
de Charles VI face aos tios, apesar do relativo apaziguamento dos conflitos com a
Inglaterra, qual seria o objetivo de um futuro conselheiro do rei em realizar um tratado
de casuística jurídica de guerra, visto que assim podemos designar o trabalho de Bovet,
ao levar em conta que do total de 171 capítulos da obra, 132 compõem a quarta parte
que trata do assunto especificamente?
Como hipótese a essa indagação, lançamos a ideia de que A Árvore das batalhas
se insere em um mesmo contexto de produção escrita do qual participaram outros
intelectuais ligados à corte francesa de Charles V e de seu filho Charles VI. Engajados
também com o registro dos acontecimentos, estavam, por exemplo, Philippe de
Mézières (Songe du viel pelerin, 1389; La Chevalerie de l’Ordre de la Passion, fim do
séc. XIV) e Christine de Pizan (Le Livre des fais et de bonnes meurs du Roi Charles V,
1404; Livre des fais d’armes et de chevalerie, 1410) que, além das referências a
Vegécio e das cópias entre si, compartilhavam com Bovet um ideal cavaleiresco que ora
mantinha preceitos bem tradicionais, como o debate sobre as virtudes de um bom
cavaleiro, ora lançava noções um tanto originais para a época, como a discussão sobre o
respeito aos direitos civis por parte de cavaleiros e senhores, bem como o serviço à

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


62
coroa francesa. Além disso, concordamos com a análise do medievalista Francisco
García Fitz que afirma:

Como se entendia que as batalhas podiam chegar a ser tão determinantes


para o curso da história, todo aquele que pretendesse transmitir aos
poderosos, aos que tinham nas suas mãos a tomada de decisões, os
ensinamentos preciosos para o governo das terras e dos homens, tinha que
deter-se a refletir sobre a guerra em geral [...]. A literatura didática,
desenvolvida por tratadistas que aspiravam a educar os príncipes ou os
nobres, não podia deixar passar a ocasião de aconselhar os seus possíveis
discípulos sobre aqueles fatos (GARCÍA FITZ, apud MONTEIRO,
2011:124).

Veremos, portanto, a partir deste ponto, como Honoré Bovet buscou aconselhar
o rei Charles VI, de quem viria o “remédio para os males da cristandade”, sobre o que
seria um bom cavaleiro, isto é, o que seria um bom militar então a serviço do rei e do
reino franceses8, e não apenas um assoldadado defendendo seu senhor a quem devia
fidelidade vassálica. Não intentamos com isso afirmar que as relações pessoais já
haviam caído em desuso no contexto cavaleiresco no final do século XIV na França, ao
contrário, era agora a figura do próprio rei que passava a ser mais próxima dos capitães
e consequentemente de suas mesnadas enquanto alvo de proteção contra os outros que, a
tal ponto da Guerra dos Cem Anos, eram os inimigos da coroa francesa, representados
em geral pelos ingleses.
A organização dos capítulos da terceira e da quarta partes do livro de Bovet, com
oito e cento e trinta e dois capítulos respectivamente, obedece ao que se conhece dentro
da tradição universitária da escolástica como procedimento da “questio”: a questão que
serve de título e tema ao capítulo e que introduz duas respostas, uma “pro” e outra
“contra” antes que o autor proponha a sua própria “solutio” (DUVAL, 2007:260), com
direito a expressar suas opiniões pessoais, nem sempre convencionais para a época9. E

8
Ambos medievalistas, Bernard Guenée concorda com Philippe Contamine, na resenha que faz de sua
obra Guerre, État et Société à la fin du Moyen Âge de 1972, que no início da Guerra dos Cem Anos, o
soberano francês Philippe VI não dispunha de uma força militar organizada nem fixa, devendo assoldadar
aqueles que respondiam a seu apelo, ou seja, indivíduos oriundos da sociedade civil e não militar. Trinta
anos depois, constatando que tal estratégia não dera bons resultados, Charles V, por sua vez, intentou
manter unidades permanentes, no entanto a força da nobreza não permitiu que os homens de armas
fossem recrutados segundo suas habilidades, exceto em casos bem pontuais, sendo mantido um efetivo
mais ligado às linhagens, o que evidentemente não era garantia de sucesso nos empreendimentos de
guerra (GUENÉE, 1974:1533-1534). Ainda assim, o que se vê é o rei e as instâncias próximas a ele
arregimentando os combatentes.
9
Tratando-se de opiniões pouco convencionais, vemos que, por exemplo, Bovet lança a pergunta se se
deve ordenar batalha contra os judeus (IV, cap. 63): sim, desde que apoiada nas Escrituras, embora antes
todos devam saber que Deus espera pela conversão dos judeus e que eles fazem lembrar da paixão de

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


63
Bovet se serve igualmente do discurso direto, dando voz a escudeiros, cavaleiros,
barões, clérigos, ao papa e ao próprio rei a fim de exemplificar com mais propriedade o
que ocorria durante os conflitos. A terceira parte encerra o que podemos chamar de
breve introdução à quarta parte, pois trata de conceitos mais gerais sobre o tema que
ganhará muito em riqueza de exemplos ao longo dos capítulos posteriores na quarta
parte.
Pois bem, Bovet não faz uma apologia a qualquer guerra, nem a qualquer
batalha, ele defende em primeiro lugar a batalha que seja justa nas suas motivações e em
seus procedimentos práticos, condenando atos de violência cometidos por senhores e
cavaleiros. Bovet explica, ilustrando com exemplos históricos, que mesmo aquele que
teve razão, estando em seu direito de batalhar, já havia perdido um conflito; prossegue
afirmando que não se deve tentar a Deus buscando provar seus direitos e finalmente
Bovet infere que tais batalhas demandariam o serviço de juízes a discutir em vão as
questões levantadas pelos oponentes. Vemos que ao se referir a conflitos pessoais
(batalhas e duelos em campo fechado) Bovet estende seus conselhos ao reino quando
num mesmo capítulo vai de uma ilustração pontual entre dois oponentes aos conflitos
gerenciados pelo papa e pelo rei da França10, ao que o tratadista acrescenta que jamais
se deve ferir o “direito dos costumes da realeza”.
No entanto, Bovet aquiesce que o conflito é da natureza humana e que nem
todos os homens apresentam a mesma constituição, sendo eles assim de “naturezas
contrárias” logicamente se disputariam entre si. Mas, Bovet acrescenta sempre uma
oposição, chamando aquele que o lê a ter bom senso e não ceder aos apelos da carne,
inclinada à violência e ao pecado:

Mas não digo que a Deus não seja possível promover a paz em qualquer
lugar desde que os homens sejam bons e sábios, assim não lhes seria

Cristo e ainda que se os judeus não fazem bem aos cristãos, estes por sua vez, também não fazem bem
àqueles. Em outro capítulo (IV, cap. 88), Bovet se refere à prática corrente na época de ingleses que
mantinham seus filhos na Universidade de Paris e que vinham visitá-los, a questão posta é se se pode
fazer desses ingleses prisioneiros de guerra, diz ele que não, contrariando a opinião dos cavaleiros, pois a
razão seria que não há “amor maior no mundo do que o de um pai pelo filho”, o que justificaria a
presença desses ingleses na cidade. Em outra ocasião (IV, cap. 2), Bovet se questiona sobre a
legitimidade de se guerrear contra os sarracenos: “Se para receber o santo batismo nós não podemos lhes
fazer guerra, por que poderíamos fazê-lo para tomar os bens que possuem? ” (BOVET, 1883:86).
10
A referência que Bovet evoca seria um “longo debate” entre o papa Urbano V e o rei francês Jean II, le
Bon sobre um duelo em campo fechado entre um cavaleiro francês e outro inglês supostamente ocorrido
na região de Avignon: o pontífice teria proibido ao público de acompanhar a luta e ao rei coube, portanto,
prevenir que a batalha não fosse adiante para que não houvesse prejuízo dos costumes reais.

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64
impossível viver em paz, pois todos dizemos que o homem sábio será senhor
das estrelas [...]. Pois se por seu entendimento e inclinação carnal ou dos
planetas ele [o homem] é tentado a fazer guerra, no entanto pela virtude da
sabedoria ele venceria a inclinação da carne (BOVET, 1883:74-75).

E avançando um pouco mais nas virtudes cardeais excelentes aos bons


combatentes, Bovet discorre sobre a mais importante delas na sua opinião, a força
(fortituto), enfatizando a diferença entre força física e força da alma. É claro, afirma o
escritor, a força física é fundamental para se empreender batalha, mas ela não serviria a
nada se não a comandasse a força da alma que Bovet entende como inteligência
estratégica para a batalha e temor aos ensinamentos das Escrituras. A essa primeira
virtude, são acrescentadas mais três: justiça, temperança e sabedoria, todas elas próprias
a manter o combatente perseverante nas batalhas e afeito a saber esperar, o que, segundo
a referência que Bovet faz a Aristóteles, seria mais difícil do que atacar.
Muito embora a maior parte dos preceitos de Aristóteles seja observada e
acatada pelo monge tratadista, não é sempre que há consenso entre suas ideias: no
sétimo capítulo da terceira parte, Bovet se pergunta se seria lícito um cavaleiro escolher
antes morrer que fugir diante de uma batalha difícil. Segundo Aristóteles, fugir seria
covardia e uma grande vergonha, no entanto, Bovet afirma que se a morte daquele
cavaleiro não produzisse um efeito positivo para seu regimento, ele bem poderia
escolher evadir-se do campo de batalha, pois “é claro que viver é coisa muito mais
agradável e prazerosa do que morrer, por isso é melhor fugir do que a morte esperar”
(BOVET, 1883:80). E seguindo esse mesmo raciocínio, Bovet defende sempre a vida (a
terrena ou a celeste) dos cavaleiros e dos civis, assegurando, por exemplo, que é lícita a
não obediência ao senhor a quem se deve fidelidade se este engaja o vassalo a cometer
um pecado (assassinar alguém sob o comando de seu senhor; acompanhar um sarraceno
obedecendo um salvo conduto de seu senhor; matar uma dama antes de seu servo; etc.),
já que às Escrituras deve-se obedecer em primeiro lugar.
Em alguns trechos de seu livro, Bovet se refere a “novas leis” e quando o faz
discute geralmente a questão da hierarquia (obediência e desobediência), um exemplo
disso é o capítulo 63 da quarta parte em que o monge dá direito ao servo de se defender
e de se vingar de um cavaleiro, seu senhor, que intentara assassiná-lo por desobediência.
Primeiramente porque, segundo essas “novas leis”, um senhor não teria mais o direito
de matar nenhum servo; e depois haveria muito menos direito desse senhor matar o
servo se este se negasse a obedecer alegando ser pecado a ordem recebida.
XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS
65
O que observamos até o momento é que além das quatro virtudes cardeais de
que deveria dar mostras o cavaleiro, ele deveria observar com cuidado as Escrituras e as
recentes discussões sobre os direitos civis. Aliás, sobre isso, o escritor diz haver “grande
debate e duras discussões” que se estendem, ao menos na Árvore das batalhas, ao
assassinato, à cobrança financeira, ao impedimento da circulação de homens idosos,
mulheres e crianças, bem como de clérigos e peregrinos; a essas questões Bovet
responde que os homens de armas não têm direito de intentar de tal maneira contra esses
grupos de pessoas, nem contra suas propriedades (BOVET, 1883:202, 208). São críticas
severas contra a rotina das batalhas empreendidas naquele contexto, não eximindo nem
mesmo o próprio rei, já que Bovet diz que este seria um “bom remédio” da parte do
soberano: impedir que tais práticas ocorressem e assim haveria paz e vitória sobre seus
inimigos.
E Bovet é ainda mais didático ao elencar as características de um bom cavaleiro
ao rei Charles VI. No sexto capítulo da terceira parte, o tratadista indaga “Por quantas
coisas é um cavaleiro muito valente” e explica que um cavaleiro se mostra valente para
conquistar a glória, para não perder a honra, para não ser feito refém, por ser um hábito,
por conhecer e usar muito suas armas, ter um bom cavalo e um sábio e bem afortunado
capitão, mas acima de tudo por possuir a virtude da força. E como se já não fosse o
bastante, Bovet reconhece que há cavaleiros valentes por serem levados pela ira e pela
simples ignorância, pois nem mesmo saberiam o que é a virtude da força e cegamente
seguiriam o exemplo de outros cavaleiros inconsequentes. O monge também não se
esquece de referir os casos em que cavaleiros se mostraram valentes pelo desejo
pecaminoso de obter riquezas. Todos esses exemplos, portanto, o rei deveria evitar
seguir.
É interessante notar, porém, que em momento algum Bovet faz referência à
linhagem daqueles que poderiam ser chamados de cavaleiros, sinal de que, naquele
contexto, a aptidão e a prática estariam mais uma vez corroborando com o modelo de
militar recuperado de Vegécio. Evidentemente, os preceitos desse cortesão cristão do
século IV julgavam ser mal o ingresso de outros povos no exército romano
(MONTEIRO, 2010:80), primando-se por uma pureza ligada ao sangue, poderíamos
dizer. Entretanto, o que se vê entre os intelectuais que se propõem a escrever sobre a
guerra na corte francesa nesse final de século XIV, é a revalorização da disciplina

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


66
militar e do conhecimento técnico para a batalha11, pois “só a compreensão deste
contexto e de suas regras originais nos permitem compreender as opções de uma elite
que se transforma nestes séculos finais da medievalidade e vai trocando o respeito ao
sangue pela primazia do serviço ao rei”(FERNANDES, 2014:15).
O capítulo décimo da quarta parte de A Árvore das batalhas apresenta os casos
em que um cavaleiro deveria ser punido e como (perder a vida, a montaria ou os bens),
assim, fazendo uma leitura às avessas, é possível ainda elencar algumas outras
qualidades de um bom cavaleiro, como por exemplo, dizer a verdade, promover a paz,
proteger a integridade física de seus companheiros de armas, lutar apenas quando sob o
comando de seu capitão ou senhor, não temer a morte e ser generoso. Bovet arremata
este capítulo, contudo, com a inserção de um senão: o cavaleiro seria poupado de
quaisquer punições se fosse provado que ele tinha sido um bom e leal cavaleiro. O que
nos leva a pensar que, nas leis evocadas por Bovet, as atenuantes de um bom
comportamento eram desejadas, mas que poderiam não estar sendo observadas,
acarretando talvez em punições que segundo o tratadista seriam injustas e danosas ao
reino francês12.
É bastante visível que, apesar do rigor com que trata o comportamento dos
homens de armas, Bovet exalta a importância da existência desses indivíduos para que o
rei pudesse “curar” a cristandade. A exemplo disso, o capítulo cinquenta da quarta parte,
em que Bovet examina a necessidade de haver batalha em dias santos, e ele o faz
estando consciente de que há decretos afirmando que não se deve batalhar em dias de
festa e nem em feriados. Mas prossegue com sua argumentação dizendo poder provar
que seria permitido batalhar em tais dias, pois em caso de necessidade, segundo o
Antigo Testamento, seria sempre lícito empreender batalha, e no Novo Testamento, o
próprio Jesus invalidaria a guarda dos dias santos, visto que curava em dia de sábado.

11
Christine de Pizan, por exemplo, na parte que dedica à cavalaria em sua biografia real oficial de
Charles V, Le Livre des fais et de bonnes meurs du Roi Charles V, realiza o que se pode chamar de um
verdadeiro compêndio das práticas militares mais eficazes para a época, instruindo como realizar a
tomada de um castelo, como golpear e com quais armas, como privar o inimigo de seus víveres, como
aproveitar a oportunidade de uma batalha que se mostra fácil, enfim, adaptando o conhecimento sobre os
embates vindo de tratadistas anteriores, Pizan atualiza e confirma que os laços sanguíneos não eram
garantia das vitórias de que tanto necessitava a França ante as investidas inglesas.
12
Tudo isso remete a uma ideologia cavaleiresca da Baixa Idade Média que, além do que já foi apontado
neste trabalho, também recorreu a procedimentos narrativos objetivando difundir no seio de uma
sociedade aristocrática e laica o perfil do cavaleiro ideal, a serviço da coroa francesa e não apenas do
Cristo, obedecendo doravante ao comando das hostes do reino e não ao de um senhor feudal.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


67
Bovet ainda diz que se o rei da Inglaterra atacasse o rei francês, como não contra-atacar
para defender sua honra e sua posição?

Pois se eles [os cavaleiros] observam ser vantagem e bom cavalgar, assaltar
castelos, pilhar e roubar tanto no dia de Páscoa quanto durante a Quaresma,
que o façam para a utilidade pública, pois seriam desculpados por todo o
mundo do pecado segundo uma opinião, e Deus sabe bem como hoje
preocupamo-nos com a utilidade pública13 (BOVET, 1883: 145).

Podemos concluir que, ao tecer tão nítido retrato da cavalaria francesa da Baixa
Idade Média, Bovet também “expressava na realidade a emergência de uma reflexão
sobre o direito internacional da guerra14, [pois] a ética cavaleiresca continuou a ser o
fermento da sistematização jurídica da guerra” (CARDINI, 2006:486). Era, portanto, de
grande valia informar e aconselhar o rei Charles VI sobre tais homens, aqueles que
mereciam ser tratados com honra até mesmo pelos inimigos, como o escritor mesmo
sustenta: “Diremos nós que quando um cavaleiro é tomado durante a batalha, que
devem fazer a ele todas as honras do mundo, festejá-lo, mantê-lo em grande alegria e
diversão por ter tão nobremente se comportado” (BOVET, 1883: 154). E ainda, esses
homens seriam os detentores da cavalaria, referida como uma dentre as qualidades
morais a que se poderia almejar, desejo que mesmo o rei deveria cultivar15.

13
Considerado por Honoré Bovet como um argumento favorável à guerra lícita, o conceito de “utilidade
pública” ou “bem-comum” a que o intelectual se refere pode ser compreendido entre as causas justas da
guerra permitida pelo movimento conciliar da Paz de Deus. Nesse contexto, a “utilidade pública” poderia
ser assegurada tão somente pelo rei, seu soberano senhor e garantia, em oposição aos usos particulares e
violentos da guerra privada, por exemplo.
14
Além das referências aos pais ingleses em visita aos filhos, Bovet traz vários exemplos que envolvem
estrangeiros, como castelhanos, alemães, italianos, escoceses e outros casos referindo embaixadores de
territórios inimigos à França. Todas as questões são trabalhadas pelo tratadista a partir de exemplos
concretos da guerra: salvo-conduto, prisões e resgates, apreensão de bens e valores, etc.
15
A Árvore das batalhas se encerra com um capítulo dedicado às atitudes próprias a um virtuoso, sábio e
discreto rei, o que inscreve o capítulo no gênero clássico dos “espelhos de príncipe”. Em certa altura,
Bovet aconselha o rei, enunciando o seguinte: “[...] ele deve ser muito discreto e comedido ao ceder aos
delitos carnais, ou seja, que ele não mantenha seu corpo deliciosamente nutrido, pois assim ele não estaria
apto à guerra para a qual dizemos que a cavalaria de hoje não apresenta mais a ousadia que apresentou no
passado, pois segundo as leis antigas, os cavaleiros comiam vagens, toucinho e carnes pesadas. Eles
dormiam em solo duro e vestiam armaduras a maior parte do tempo. Permaneciam fora da cidade e
apreciavam o ar do campo retirando-se nas bastidas e das fortalezas, preferindo voluntariamente os
campos. Assim, não guardavam o costume de beber o melhor vinho, bebiam água pura e por isso tinham
capacidade para suportar todo tipo de mal e grandes trabalhos” (BOVET, 1883:255).

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

REFERÊNCIAS DA FONTE
BOVET (BONET), H. L’Arbre des batailles. Paris : Ed. Ernest Nys, 1883.

OUTRAS REFERÊNCIAS
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Temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: Edusc, 2 v., 2006, p. 473-487.
CONTAMINE, P. L’idée de guerre à la fin du Moyen Âge ; aspects juridiques et
éthiques. In Comptes rendus des séances de l’Académie des Inscriptions et Belles-
Lettres. 123e an., nº 1, 1979, p. 70-86.
DUVAL, F. Lectures françaises de la fin du Moyen Âge : petite anthologie
commentée de succès littéraires. Genebra : Droz, 2007.
FERNANDES, F. R. Usurpações, casamentos régios, exílios e confiscos, as agruras de
um nobre português no século XIV, Rev. História Helikon, Curitiba, v.2, n.2, 2º
semestre/2014, p. 2-15. Disponível em
http://www2.pucpr.br/reol/pb/index.php/helikon?dd99=actual.
GAUVARD, C. “Violência” In LE GOFF, J. e SCHMITT, J.-C. Dicionário Temático
do Ocidente Medieval. Bauru, SP: Edusc, 2 v., 2006, p. 605-613.
GUENÉE, B. Philippe Contamine, Guerre, État et Société à la fin du Moyen Âge.
Études sur les armées des rois de France, 1337-1494. In Annales, Économies, Sociétés,
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LAURANSON, C. “Paix de Dieu”. In GAUVARD, C., LIBERA, A. et ZINK, M.
(orgs). Dictionnaire du Moyen Âge. 4e ed. Paris: PUF, 2002 [2012], p. 1035-1037.
LEFÈVRE, S. Honoré Bovet (ou Bouvet). In HASENOHR G., ZINK, M. (orgs.).
Dictionnaire des Lettres Françaises – Le Moyen Âge. Paris: Fayard – La
Pochothèque, 1992, p. 685-686.
MONTEIRO, J. G. Entre romanos, cruzados e ordens militares. Ensaios de História
militar Antiga e Medieval. Coimbra: Salamandra, 2010.
_____ Vegécio, Compêndio da Arte Militar. Coimbra: Annablume, 2011.
VEREECKE, L.-G. Casuistique. In Dictionnaire du Moyen Âge – littérature et
philosophie. Paris : Encyclopædia Universalis et Albin Michel, 1999, p. 238-241.

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69
CAMINHOS DE ARMAS E FÉ: UMA ABORDAGEM DOS
PRECEITOS LULIANOS DE CONDUTA EM TIRINHAS DIGITAIS
PARA O ENSINO BÁSICO
Carolina Minardi de Carvalho
Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL)
Mestranda em História Ibérica

RESUMO: A redução da disparidade de conhecimentos produzidos em âmbito


acadêmico e escolar requer esforços de caráter acentuado. Os conhecimentos sobre a
História Medieval da Península Ibérica, em especial, seguem rumos em meio
universitário que oferecem possibilidades de elaboração de trabalhos muito mais
abrangentes e significativos nas salas de aula do Ensino Fundamental e Médio que
aqueles tradicionalmente desenvolvidos. Estratégias pedagógicas que tornem a
apreensão dos conteúdos escolares menos maçantes, por sua vez, se fazem necessárias
para que os alunos conservem interesse nas temáticas abordadas, estabelecendo um
diálogo constante entre as instâncias educacionais. Para tanto, o presente trabalho
aponta elementos em desenvolvimento para uma proposta de elaboração didática
vinculada ao mestrado profissional em História Ibérica da Universidade Federal de
Alfenas.

Palavras-chave: Cavalaria, Tecnologias de Aprendizagem, Raimundo Lúlio

ABSTRACT: Reducing the disparity of knowledge produced in university and basic


school requires sharp efforts. Knowledge of the Medieval History of the Iberian
Peninsula, in particular, follows directions in university that offer opportunities for more
comprehensive and meaningful work in the classrooms of elementary and secondary
education than those traditionally developed. Teaching strategies that make the
apprehension of the least boring school subjects, in turn, are necessary for students to
retain interest in the issues addressed by establishing a constant dialogue between
educational institutions. Therefore, this study aims at developing elements for a
proposed didactic development linked to the professional master's degree in Iberian
history of the Federal University of Alfenas.

Keywords: Cavalry, Learning technologies, Ramon Llull

1. Introdução:
As demandas educacionais, hoje, caminham no sentido de uma modernização
das abordagens e dos recursos utilizados nos processos de ensino e aprendizagem,
colocando o uso de tecnologias num patamar de destaque. O ensino de História, que
ainda explora muito pouco os potenciais dessas tecnologias, pode ser bastante
enriquecido por elas quando elaborado com vistas a proporcionar maiores diálogos entre
os conhecimentos produzidos nas escolas superiores e básicas. Pode, também, se

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


70
beneficiar de forma muito marcante da aproximação que essas tecnologias
proporcionam com as linguagens e vivências dos alunos, acentuando sua relevância e
ampliando suas possibilidades.
Assim, apresento, a seguir, uma proposta de elaboração de um material
didático pautado pela pesquisa histórica desenvolvida durante o Mestrado Profissional
em História Ibérica da Universidade Federal de Alfenas. O esforço, aqui, é o de delinear
intersecções entre a História Medieval da Península Ibérica e os recursos tecnológicos
disponíveis para as necessárias renovações no ensino de História.
Pensar o desenvolvimento de um material visando à integração das diversas
áreas de conhecimento possíveis de serem abrangidas pela presente proposta é, a meu
ver, a maneira mais enriquecedora de acessar os conteúdos que podem ser trabalhados
por meio dela. Tal abordagem requer o entendimento de que essa temática se torna
limitada e incompleta quando compreendida apenas através do ponto de vista de uma
disciplina excessivamente especializada. A interdisciplinaridade, aqui, configura uma
forma de compreensão de padrões comportamentais cavaleirescos nos registros
históricos analisados que extrapolam seus contextos de origem, sendo perpetuados nas
sociedades contemporâneas em elementos da literatura que atravessaram os séculos e
em aspectos filosóficos que ainda hoje, guardadas as devidas proporções, possuem
enorme impacto no entendimento de nossas próprias formas de relação com segmentos
sociais de maior ou menor força de expressão.
A ética comportamental que nos interessa aqui é aristocrática e está presente
na obra O Livro da Ordem de Cavalaria, do filósofo catalão do século XIII, Raimundo
Lúlio.Trata-se de um registro que acabou por perpetuar imagens de forte apelo para a
cultura do contexto em que foi produzido e difundido. E, quer se baseie em perspectivas
concretamente vivenciadas ou apenas idealizadas, é notável que a conduta apontada por
ele como ideal permeava acentuadamente as concepções da sociedade a respeito dessas
figuras, uma vez que a circulação dessas ideias provavelmente atingia os mais variados
segmentos sociais e que, ao longo dos séculos, incontáveis obras foram produzidas nos
mesmos padrões desse registro, enaltecendo a bravura e impecabilidade de conduta dos
que guerreavam em nome de Deus.
E o período aqui em foco faz com que os registros produzidos sobre a
cavalaria, quer visem cavaleiros solitários ou a instituição de modo geral, sejam

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


71
tomados por representações impregnadas por uma cultura baseada na fé exacerbada
num cristianismo empenhado em erradicar da Europa a influência islâmica. A execução
desse propósito se dá, em grande medida, através da aclamação aos valores
cavaleirescos, vistos como exemplos a serem seguidos, mas sendo, essencialmente,
elementos de distinção e garantia de privilégios a um segmento exclusivo da sociedade.
Dessa forma, O Livro da Ordem de Cavalaria não apenas cumpre com a
função fundamental de servir como porta-voz do código moral idealizado para a
cavalaria, mas, também, assegura a perpetuação de uma imagem heroica dos cavaleiros
para a cultura medieval.
Assim, tais considerações conduzem a questionamentos fundamentais, que se
estruturam com a constatação de uma acentuada disparidade entre o saber produzido
pelas universidades e aquele produzido nas escolas básicas brasileiras. Portanto, o
problema essencial para o qual buscarei oferecer alternativas consiste na dúvida sobre
como é possível viabilizar, em linguagens atuais e aproximadas da realidade da
educação básica brasileira, um material de caráter pedagógico elaborado a partir de
conteúdos produzidos em meio universitário. E vinculadas a essa questão, surgem
diversas outras em momentos distintos de reflexão sobre o trabalho, entretanto
interdependentes no processo de elaboração da proposta de articulação pedagógica.
Como se dá, na obra de Lúlio, a delimitação de valores e comportamentos desejáveis à
cavalaria ibérica? Que relações podem ser percebidas entre esses ideais e o contexto da
Reconquista? Em que medida nossa visão, hoje, sobre os padrões comportamentais
tidos por ideais dos cavaleiros medievais é influenciada pela consolidação dessas
ideologias gestadas ainda no período medieval? Em que medida o estudo dessa temática
apresenta relevância para o desenvolvimento esperado das competências relacionadas
ao ensino básico, delimitadas pelo último Currículo Básico Comum de História (CBC) e
o edital do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM)? Que estratégias são possíveis
para proporcionar, através do material, uma pedagogia diferenciada, acessível e
interessante aos alunos da escola básica, uma vez que a temática se distancia
significativamente de suas realidades?

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


72
2. O desenvolvimento da temática:
A notável discrepância existente entre os conhecimentos produzidos em meio
universitário e aqueles abordados no ensino básico é fator comprometedor da qualidade
dos processos de ensino-aprendizagem, tornando os conteúdos engessados e muitas
vezes desatualizados, limitados em relação ao potencial de abrangência e
desinteressantes por se desconectarem, comumente, das realidades compreendidas pelos
alunos.
Especialmente quando nos referimos ao ensino de História, enfrentamos
dificuldades estabelecidas pela hipervalorização de teorias e formas de abordagem
excludentes de perspectivas mais complexas, fundamentando as concepções em
aspectos generalizantes e pouco precisos. A forte influência da historiografia francesa
no Brasil, por exemplo, nos conduz a análises históricas um tanto limitadas no ensino
básico. Elas nem sempre são adequadas, considerando-se a necessidade de evidenciar,
até mesmo para uma compreensão mais abrangente de nossa identidade cultural,
algumas peculiaridades referentes à forte herança ibérica no Brasil e as especificidades
políticas, sociais e culturais dos processos vivenciados na Península.
A história da Península Ibérica exige a consideração de incontáveis aspectos que
a tornam acentuadamente peculiar. Abordar os aspectos históricos pertinentes a essa
região sob a ótica a que estamos acostumados no ensino básico consiste em uma série
de simplificações e até mesmo em um significativo obscurecimento da riqueza de
elementos valiosos para a compreensão da História Medieval. Trata-se de um equívoco
que evidencia a carência de reflexões mais consistentes e de maiores esforços no que
concerne à superação das limitações por ele consolidadas. Acerca da Idade Média,
embora o Brasil produza, hoje, um elevado número de trabalhos acadêmicos baseados
em investigações sobre a Península Ibérica, os conteúdos abordados em salas de aula do
ensino básico são notavelmente desprovidos do rigor necessário à compreensão dos
vínculos com aspectos históricos que persistem em nossa cultura de formas variadas. A
redução da abordagem dos livros didáticos à concepção do feudalismo, às cruzadas e a
uns poucos elementos vinculados à política e economia consolidam imagens distorcidas
da riqueza de elementos presentes em contexto medieval ibérico, potencialmente
favorecedores de discussões de elevado caráter crítico.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


73
A temática central de abordagem da presente proposta se vincula a
características comportamentais de corpos sociais muito específicos, dotados de
privilégios e monopólios de direitos que se contrapõem às imagens romantizadas que
assumiram ao longo dos séculos. Tendo se tornado, para a visão do público em geral,
símbolos de comportamentos impecáveis e dotados de distinção por meio de ações
tomadas por corretas de acordo com uma ideologia fortemente vinculada à propagação e
consolidação da fé católica, as realidades dos cavaleiros em contexto medieval,
entretanto, podiam apresentar variações consistentes em relação aos ideais traçados.
Certamente, a ideologia presente na Reconquista se destaca como elemento
definidor da cultura guerreira desenvolvida ali. A cavalaria aristocrática fundamentou
seus ideais de guerra na defesa do cristianismo, na necessidade de expulsão e/ou
conversão dos infiéis presentes em território peninsular, se distinguindo dos ideais
cruzadísticos que compeliam guerreiros a se dirigirem ao Oriente para que lá se
propagasse a ideologia cristã. A Reconquista, sendo um processo bastante circunscrito e
sobre o qual acentuados investimentos recaíram, produziu uma cavalaria
particularmente comprometida com a fé católica.
Grandes heróis da Idade Média, esses cavaleiros existiram entre os ibéricos de
formas um tanto distintas daquelas observáveis em outras regiões. Em âmbito prático,
não eram eles tão romantizados, tão ideais quanto os que seriam glorificados pelas obras
literárias dedicadas às suas proezas. Eram, antes, repletos de brutalidade e rigidez,
adeptos da violência própria das guerras e, uma vez cientes do poder que sua
belicosidade lhes assegurava, não se continham diante das oportunidades de cometerem
abusos contra a população comum. O apontamento de códigos de conduta cavaleiresca
idealizados leva à constatação de uma necessidade de contenção da violência ou do
poder concentrado nas mãos desses detentores de armas e a análise desses códigos
possibilita uma compreensão sistêmica bastante rica no que se refere às formas de
organização social nos contextos em que os mesmos estiveram presentes. Tal análise
requer uma visão de caráter bastante amplo das instituições envolvidas na normatização
do comportamento cavaleiresco e, para o caso da Península Ibérica, de forma muito
particular, as figuras do Estado e da Igreja Católica assumem notável relevância.
E perpetuando uma imagem de cavaleiros medievais como agentes sociais
exemplares através dos códigos estabelecidos para a conduta da cavalaria ibérica,

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


74
diversas obras foram produzidas nos mais variáveis momentos históricos, tendo como
temática grandes figuras heroicas que apresentam hábitos impecáveis. Para a
compreensão do papel social dos cavaleiros através de seus códigos de conduta, essa
proposta se estrutura sobre a tentativa de apresentar aos alunos, de forma clara e por
meio de uma linguagem familiar e confortável a eles, que caminhos os cavaleiros
assumiram em relação àqueles que seriam definidos como seus ideais máximos na visão
das demais instituições presentes em seu contexto de ação.
O material aqui proposto visa delimitar, através dos perfis comportamentais
traçados pelo Livro da Ordem de Cavalaria, esses aspectos como elementos políticos de
extrema importância, determinantes nas relações sociais medievais e perpetuados no
Ocidente como elementos constituidores de distinção através de concepções de cunho
ético como honra, heroísmo e virtude.
Do ponto de vista pedagógico, é possível aproximar essa temática do ensino
básico considerando-se que os métodos didáticos possuem melhor potencial de
aproveitamento se abordados sob as formas de linguagem condizentes com aquelas
pelas quais os alunos apreendem o mundo quotidianamente. A atualização desses
métodos requer que seja levada em conta a velocidade com que a inovação tecnológica
atinge nossa realidade, bem como a crescente importância do ciberespaço para os
sistemas de comunicação das novas gerações.
Vivemos em uma sociedade que, a cada dia, se conecta mais às tecnologias
disponíveis e seu uso como recursos didáticos oferece a professores e alunos a
oportunidade de dinamizarem os processos educativos, tornando-os mais atrativos e
próximos do quotidiano. Entretanto, as dinâmicas de desenvolvimento dos recursos
tecnológicos ocorrem em velocidade muitas vezes não acompanhada pela adaptação de
professores e alunos aos usos dessas ferramentas, sendo improdutiva a simples inserção
das mesmas em ambiente escolar, por exemplo, sem a preparação adequada das pessoas
para seu manuseio eficaz.
Um aspecto de grande relevância no processo de reflexão para o melhor
aproveitamento das capacidades oferecidas por essas tecnologias é o de que é preciso
que sejam feitas considerações de caráter mais amplo acerca de suas origens, seus
propósitos, os contextos para os quais as mesmas foram idealizadas, as implicações da
inserção de tecnologias em ambientes diversos daqueles primariamente pensados,

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


75
tendo-se em vista que tratam-se de produções humanas provenientes de contextos
políticos, sociais, econômicos diversos e, portanto, tratam-se de elementos que, vistos
pelo prisma de sua historicidade, podem contribuir para uma utilização mais precisa,
crítica e menos passiva desses recursos.
É necessária a compreensão de que as tecnologias, enquanto produções da
humanidade, não se desvinculam das questões pertinentes aos conjuntos sociais, não se
manuseiam sozinhas e, portanto, fazem parte de um intrincado sistema composto por
partes interdependentes que, por sua vez, só podem ser compreendidas na realidade de
hoje através da análise complexa dos demais elementos componentes da vida social
humana no século XXI. Tendemos a vê-las como instrumentos da nossa dominação
sobre o meio em que vivemos, mas nos esquecemos de que somos, nós mesmos,
componentes desse meio e, portanto, ao utilizarmos as tecnologias para assegurarmos
nossas conquistas, nos colocamos em posição ambígua, criando e consolidando os
recursos que servem à nossa própria opressão. Utilizá-las de modo a promover, por
meio delas, processos adequados a uma educação de cunho libertador requer, de modo
incontornável, que as abordemos de forma mais responsável, compreendendo-as como
componentes indivisíveis do ambiente que nos cerca e das sociedades que as criam, as
utilizam e por elas são afetadas.
Assim, a proposição de tirinhas elaboradas a partir do conteúdo histórico
produzido pela pesquisa da fonte selecionada se mostra como alternativa de grande
potencial, principalmente se pensada para ser veiculada em meios digitais, com base em
reflexões adequadas às diversas realidades das escolas brasileiras. A internet, as redes
sociais e toda a gama de recursos por elas disponibilizados ganham cada vez mais
espaço na vida dos jovens, competindo muitas vezes com os horários de estudos e levar
os conteúdos, de forma descontraída, lúdica e atraente para esses ambientes em que os
alunos se sentem mais confortáveis pode ser uma estratégia vantajosa para o processo
educacional.
Essa proposta pretende contribuir para que os alunos possam perceber elementos
de construção dos modelos heroicos que extrapolaram seus períodos de surgimento para
serem perpetuados ao longo da História, assim como auxiliar no desenvolvimento do
senso crítico a respeito de padrões éticos vivenciados nos distintos contextos históricos.
Uma vez compreendidos os processos, que se estruturam sobre interesses de caráteres

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


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diversos, os alunos podem, em processo inverso, desconstruir essas imagens
consolidadas observando-as de forma mais crítica e exercitando suas capacidades de
pensar as estruturas que compõem uma sociedade em âmbito ideológico, bem como
podem perceber a intrincada rede de poderes presente em território peninsular, pouco
condizente com a visão a que estão acostumados da Idade Média e representativa de um
ambiente onde cada elemento social integra um sistema complexo de interdependência.

3. Questões Metodológicas:
Para desenvolver a proposta aqui apresentada, é necessária a compreensão de
que sua composição se origina em pelo menos três áreas do conhecimento que, embora
sejam interligadas, requerem reflexões particulares para serem devidamente exploradas.
Assim, os procedimentos a serem adotados se pautarão na consideração de etapas
fragmentadas que, posteriormente, se unirão em seus resultados, possibilitando a
conclusão e veiculação do objeto de aprendizagem.
A pesquisa histórica, etapa fundamental de todo o planejamento, conduzirá toda
a produção material e assumirá o protagonismo da proposta de inovação pedagógica,
uma vez que a pretensão, aqui, é a de tornar relevante um conteúdo histórico até então
desfavorecido (ou, mais precisamente, ignorado) pelas escolas básicas.
Para localizar essa pesquisa histórica em sua dimensão pedagógica, portanto,
serão necessárias reflexões de cunho educacional capazes de conduzir diagnósticos
acerca das relações entre os diversos ambientes de ensino e aprendizagem.
Uma vez considerados os elementos supracitados, será preciso ponderar formas
eficazes de promover, em âmbito prático, recursos que aproximem os conteúdos das
linguagens atuais. E pensar na dimensão tecnológica das práticas de ensino, no entanto,
requer também reflexões de caráter teórico que propiciem uma visão crítica e mais
consciente do uso de recursos midiáticos para além de suas dimensões recreativas e
extrapolando a transposição do conhecimento.
Ao serem concluídas essas etapas de especulação teórica, é para a execução
efetiva das tirinhas que se voltarão os esforços. Processos de roteirização com base nos
conteúdos históricos, esboço, finalização da arte, digitalização e elaboração de
sugestões para o uso e veiculação do material serão, então, contemplados, possibilitando
a conclusão do trabalho proposto.

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Fonte:
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OS SEPULCROS DA CARTUXA DE MIRAFLORES:
ICONOGRAFIA, SOTERIOLOGIA E POLÍTICA

Cinthia M. M. Rocha
PPGH-UFF
Doutora em História

RESUMO: Miraflores é um mosteiro da Ordem dos Cartuxos localizado em Burgos, na


Espanha. Foi construído no século XV pelo rei Juan II, que o elegeu para seu local de
sepultamento. No entanto, após sua morte, em 1454, a obra pouco avançou, o que se
atribuiu aos conflitos e guerras que marcaram o reinado de seu herdeiro, Enrique IV,
situação que somente se alterou após a ascensão dos Reis Católicos. A construção e
ornamentação de todo o espaço estiveram sob o encargo de Isabel I, tanto no que diz
respeito aos monumentos funerários, quanto ao restante das estruturas que compõem a
capela do local, como o retábulo e os vitrais, todos construídos entre as décadas de 1480
e 1490, formando um conjunto coeso, em estilo Tardogótico. Estão enterrados na igreja
do mosteiro o rei Juan II, sua segunda esposa, Isabel de Portugal, e o Infante Dom
Alfonso, filho do casal e, portanto, irmão uterino de Isabel, a Católica. Os sepulcros
foram construídos pelo mestre Gil de Siloé, artista de raízes estrangeiras que atuava na
região de Burgos. Todo o conjunto é formado por uma complexa iconografia, na qual é
possível identificar diversas origens, como Alemanha, Flandres e França. Existem
poucos exemplos semelhantes em Castela e em toda a Europa para o que se logrou
alcançar na Cartuxa em termos de magnificência e singularidade das peças. Os
monumentos funerários de Miraflores se apresentam como um intricado discurso
teológico, de forte sentido soteriológico, influenciado pela religiosidade e pelos rituais
cartuxos. Além desse aspecto, a análise das estruturas demonstra a construção de uma
iconografia de acordo com o discurso político do reinado de Isabel, baseado no ideal
moralizante de “rei cristianíssimo” e de “rei virtuosíssimo”.

Palavras-chave: Tardogótico, política, Castela

RESUMEN: Miraflores es un monasterio de la Orden de los Cartujos ubicado en


Burgos, España. Fue construido en el siglo XV por el rey Juan II, que lo eligió para su
lugar de enterramiento. No obstante, después de su muerte, en 1454, la construcción
evolucionó poco, lo que se ha atribuido a los conflictos y guerras que marcaron el
reinado de su heredero, Enrique IV, situación que cambió solamente después de la
ascensión de los Reyes Católicos. La construcción y ornamentación de todo el espacio
estuvieron bajo el encargo de Isabel I, tanto en lo referente a los monumentos
funerarios, como al resto de las estructuras que componen la capilla del local, como el
retablo y los vitrales, todos construidos entre las décadas de 1480 y 1490, formando un
conjunto cohesionado, en estilo Tardogótico. Están enterrados en la iglesia del
monasterio el rey Juan II, su segunda esposa, Isabel de Portugal, y el Infante Don
Alfonso, hijo de la pareja y, por lo tanto, hermano uterino de Isabel, la Católica. Los
sepulcros fueron construidos por el maestre Gil de Siloé, artista de raíces extranjeras
que actuaba en la región de Burgos. Todo el conjunto está formado por una compleja
iconografía, en la cual es posible identificar diversos orígenes, como Alemania, Flandes
y Francia. Existen pocos ejemplos similares en Castilla y en toda Europa para lo que se

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


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logró alcanzar en la Cartuja en términos de magnificencia y singularidad de las piezas.
Los monumentos funerarios de Miraflores se presentan como un imbricado discurso
teológico, de fuerte sentido soteriológico, influenciado por la religiosidad y por los
rituales cartujos. Además de ese aspecto, el análisis de las estructuras demuestra la
construcción de una iconografía acorde al discurso político del reinado de Isabel, basada
en los ideales moralizantes de “rey cristianísimo” y “rey virtuosísimo”.

Palabras clave: Tardogótico, política, Castilla

A origem de Miraflores remonta a um palácio de caça erguido por Enrique III


durante seu reinado. Localiza-se próximo a cidade de Burgos e possui um rico entorno
natural, estando cercado por colinas e bosques adjacentes ao rio Arlanzón. Segundo
Francisco Tarín y Juaneda, o rei era “muito dado à caça” e “em 1401, quis ter em
Burgos, sua cidade natal, um terreno próprio delimitado, no qual, sem afastar-se muito
da Corte, pudesse entregar-se ao seu passatempo favorito”(TARÍN Y JUANEDA, 1896:
45). Ao longo da regência de Juan II, o palácio foi utilizado diversas vezes como
residência real quando das estâncias do rei na cidade de Burgos. Atualmente, não
existem resquícios materiais da construção original.
Em 1441, Juan II doou o palácio e os terrenos à Ordem Cartuxa para que fosse
fundado um mosteiro. Segundo a documentação, a doação viria a atender um dos
desejos expressos pelo testamento de Enrique III de fundar um mosteiro franciscano.
Por essa razão, o mosteiro esteve de início dedicado a São Francisco, tendo,
posteriormente, mudado sua invocação para Santa Maria. O desejo de ser sepultado na
Cartuxa de Miraflores apareceu expresso em um privilégio rodado de 1450, explicitando
a especial devoção do monarca à Ordem.

Lo qual considerado e asimesmo por la singular devocion que yo he en la


Sancta orden de Cartuxa. Especialmente por la muy loable vida de los
religiosos que en ella biven. [...] Que por cuanto a mi plogo elegir mi
sepultura en el mi monasterio de Sant francisco de miraflores que es cerca de
la muy noble Cibdat de Burgos Cabeça de Castilla e mi Cámara.(Apud.
TARÍN Y JUANEDA, 1896: 549)

A Ordem Cartuxa surgiu em 1084 a partir do exemplo de vida de São


Bruno e seus primeiros seguidores. Bruno, nascido na Alemanha, alcançou elevados
cargos na catedral e na universidade de Reims. Já em idade madura, decidiu perseguir
um ideal de vida eremítico. Com o apoio de São Hugo, bispo de Grenoble, ele e seis
companheiros fundaram uma comunidade no vale de Chartreuse, local isolado e de

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


81
difícil acesso, onde passaram a viver de maneira austera, dedicando-se a contemplação e
oração. Após a morte de Bruno, a forma de organização do primeiro grupo foi
transmitida oralmente por seus seguidores até a composição dos Estatutos da Ordem por
São Guido, o quinto prior da Chartreuse (BARLÉS BÁGUENA, 2010: 64). Os cartuxos
são conhecidos pela estrita observância dos regimes da Ordem, baseados na
contemplação, solidão e silêncio.
No final da Idade Média, os cartuxos foram uma das ordens que mais
ganharam apoio e doações de leigos, estimulados pela busca de um novo ideal de
religiosidade expresso pela devotio moderna. As Cartuxas institucionalizaram a
predileção laica pelos santos eremitas, que emulavam a aspiração de renúncia do
mundo, tida como um meio seguro de alcançar a salvação. Assim, apoiar e exercer
patronato sobre um mosteiro cartuxo era considerado uma maneira de beneficiar-se do
sacrifício, das orações e da renúncia dos monges. No século XIV, a fundação de
cartuxas se converteu em objetivo de reis, nobres e eclesiásticos. Uma expressão desse
sentimento pode ser observada na carta de 13 de março de 1385 de fundação do
Mosteiro de Champmol, em Dijon, por Filipe II, o Audaz, Duque da Borgonha:

Considerando que é em especial frutífero e benéfico para a salvação das


almas o sacrifício e devotas orações de religiosos e pessoas piedosas que, por
amor a Deus, elegeram voluntariamente a pobreza, fugiram e abandonaram
todas as honras, riquezas e a vaidade em demasia e as delícias mundanas, e
renunciaram a sua própria e franca vontade, pela vontade de Deus, seguem e
singularmente concordam em servi-Lo. Entre os quais estimamos os monges
da Ordem dos Cartuxos que continuamente trabalham e se exercitam em vida
contemplativa, que de dia e de noite sem cessar oram a Deus pela salvação
das almas, pela prosperidade e bom estado do bem público e dos príncipes
que tem o governo, sob Deus (...).(Tradução nossa) (Apud. MONGET, 1898:
37)

Assim, Filipe II instituiu a Cartuxa de Champmol com panteão dos Duques e


passou a dotá-la com a magnificência da Corte borgonhesa, através da construção de
magníficos sepulcros e da doação de obras de arte. Na Península Ibérica, os primeiros
mosteiros cartuxos surgiram no Reino de Aragão no século XII. Em Castela, a
introdução da Ordem ocorreu em 1390, com a fundação do Mosteiro de Santa María de
El Paular. No final do século XV, havia no reino cinco mosteiros cartuxos.
Considerando essas questões, poderíamos dizer que o desejo de Juan II de enterrar-se
em Miraflores, ainda que sem precedentes em Castela, se insere em uma tendência mais

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82
ampla, em especial difundida pela Corte dos Duques da Borgonha, de predileção por
essa ordem prestigiada por sua austeridade.
Durante os anos seguintes à sua fundação, foram emitidos diversos Privilégios
reais em benefício de Miraflores. Entretanto, Tarín y Juaneda afirma que o desejo do rei
de construir o mosteiro sofreu diversas oposições, inclusive da cidade de Burgos
(TARÍN Y JUANEDA, 1896: 75-76). No ano de 1453, a Cartuxa sofreu um incêndio
que destruiu uma parte significativa das estruturas que haviam sido erguidas até então.
Após o ocorrido, foi chamado Juan de Colônia para que traçasse as novas edificações do
mosteiro, provavelmente por influência de Alonso de Cartagena, bispo de Burgos, que o
havia contratado para as obras da Catedral da cidade (YARZA LUACES, 2007a: 16-
17). Entretanto, as obras estavam pouco avançadas em 1455 quando foi transladado o
corpo de Juan II à Cartuxa.
Após a morte de Juan II, em 1454, as obras seguiram muito lentamente, pois o
mosteiro não foi alvo do interesse do monarca sucessor, Enrique IV, filho de Juan II. A
construção da Igreja do mosteiro chegou a ser de todo interrompida em 1464 e, segundo
Tarín y Juaneda, “nos doze anos seguintes, quase não se fez nada nela”, o que o autor
julgou ser devido às revoltas do reino (TARÍN Y JUANEDA, 1896: 124). A situação se
alterou somente com a ascensão ao trono dos Reis Católicos. A construção e
ornamentação de todo o espaço estiveram sobre o encargo de Isabel, a Católica, tanto no
que diz respeito aos monumentos funerários, quanto ao restante das estruturas que
compõem a capela, como o retábulo e os vitrais. Portanto, a análise que se segue sobre
tais elementos estão relacionadas ao âmbito artístico – e político – do reinado de Isabel
e não ao de seu pai, ainda tenha se mantido no horizonte o contexto conflituoso da
regência de Juan II.
É preciso considerar, em primeiro lugar, a natureza dos enterramentos que se
realizam na Cartuxa. Além do rei, no mesmo sepulcro, compartilhando, inclusive, a
escultura monumental, está sua segunda esposa, Isabel de Portugal. Em um sepulcro ao
lado, está o Infante Alfonso, filho do mesmo matrimônio. Trata-se, portanto, da linha
familiar de Isabel: pai, mãe e irmão. A primeira esposa de Juan II está enterrada no
Mosteiro de Guadalupe, ao lado do filho, o rei Enrique IV. A título de comparação,
antes de Juan, seu avô, Juan I, também havia contraído segundas núpcias, mas ao lado
de seu sepulcro, na Catedral de Toledo, está o de sua primeira esposa, de quem sucedia

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a linha dinástica legítima. Assim, a decisão de que os três sepulcros fossem localizados
no mesmo local partiu de Isabel, fazendo transladarem-se os corpos do Mosteiro de São
Francisco de Arévalo, onde o Infante Alfonso e Isabel de Portugal jaziam enterrados, à
Miraflores: seu irmão em 1492 e sua mãe em 15051. Segundo Yarza Luaces,

Em última análise, no encargo dos sepulcros houve muito mais que a


intenção de cumprir com o dever real e filial. Por uma parte, Isabel sinalizava
com claridade qual era a árvore genealógica correta, ao mesmo tempo em que
esquecia, de um modo consistente, seu meio-irmão não querido. (Tradução
nossa) (YARZA LUACES, 2007a: 22)

A estrutura da igreja, os sepulcros, retábulo e vitrais formam um conjunto coeso,


encomendados e realizados em datas muito próximas. Além disso, o estilo adotado,
ainda que com origem em oficinas distintas, também é o mesmo: o Tardogótico. A
estrutura arquitetônica foi encarregada a Simón de Colônia, filho de Juan de Colônia, já
falecido naquele momento. As abóbodas foram concluídas em 1488. Os sepulcros e os
retábulos foram realizados por Gil de Siloé entre 1489 e 1493. O mesmo escultor foi
também responsável pelo retábulo, junto com Diego de la Cruz, entre 1496 e 1499. Os
vitrais foram encomendados ao escultor Niclaes Rombouts, de Flandres, provavelmente
por intermédio do mercador Martín de Soria, e foram entregues em 1484. A rainha
Isabel acompanhou de perto as obras, visitando a Cartuxa em diversas ocasiões. Felipe
Pereda sinaliza que “talvez nenhum outro monumento de seu reinado foi tão
cuidadosamente supervisionado pela rainha como a tumba de seu pai” (PEREDA, 2001:
54).
A rainha, ou alguém encarregado por ela, aprovou em 1486 os desenhos dos dois
sepulcros realizados por Gil de Siloé. Não se sabe até que ponto Isabel pode ter
influenciado ou, inclusive, determinado a obra, recomendando ou sugerindo os
elementos que deveriam compor os túmulos. Tampouco se pode estipular o grau de
liberdade criativa do artista ao idealizar os conjuntos escultóricos, uma vez que
frequentemente se utilizavam de modelos pré-estabelecidos, oriundos, por exemplo, de
gravuras e livros iluminados. O fato é que todo o conjunto é formado por uma complexa
iconografia, na qual é possível identificar diversas origens, como Alemanha, Flandres e
França. Segundo Yarza Luaces, “tudo leva a considerar que Gil de Siloé foi um artista

1 O Infante Alfonso havia falecido em 1468 e a rainha Isabel em 1496.

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capaz de gerar desenhos originais a partir de diversos modelos que lhe serviram de
pauta, nunca de cópia” (YARZA LUACES, 2007b: 10). É justamente a originalidade
dos elementos dos sepulcros e retábulo – individualmente e enquanto conjunto – que
chama atenção na obra de Miraflores. Existem poucos exemplos semelhantes em
Castela e em toda a Europa para o que se logrou alcançar na Cartuxa, tanto em termos
de magnificência das peças, quanto na construção de uma iconografia acorde com o
discurso político do reinado de Isabel, como veremos adiante.
O monumento funerário de Juan II e da Rainha Isabel está localizado diante do
altar-mor da igreja. Todo feito de alabastro, está formado por dois quadriláteros
sobrepostos, que formam uma estrela de oito pontas. Sobre o sepulcro estão as imagens
jacentes dos monarcas, levando elaborada vestimenta, joias e coroa. Isabel porta um
livro e Juan portava um cetro, hoje perdido. Aos pés do rei há dois leões e, da rainha,
um putto e um cachorro que lambe os pés de um leão. Ao redor, os quatro Evangelistas
estão dispostos nos pontos cardeais da estrela; aparecem sentados, portando objetos
associados à escrita e acompanhados por seus elementos de representação – o touro para
Lucas, localizado na ponta mais próxima ao coro, a águia para João, localizado ao lado
da Rainha, o leão, para Marcos, disposto na ponta próxima ao Altar, e o anjo para
Mateus, que está ao lado do Rei.
Existem, ainda, oito estátuas de pé representando santos, dos quais pudemos
identificar São Pedro, Santo Estevão, São Tomás de Aquino, São Paulo, São Domingos
de Gusmão, São Tomé, São Tiago Menor e uma imagem que perdeu a cabeça e os
atributos, mas que, pela indumentária (com um medalhão fechando uma capa na altura
do peito) poderíamos associar a Santo Agostinho2.
Nas laterais do sepulcro, colocadas em pequenos nichos, estão dezesseis peças
móveis, representando as três Virtudes Teologais – Fé, Caridade e Esperança –, as
quatro Virtudes Cardinais – Prudência, Justiça, Fortaleza e Temperança –, sete figuras
do Antigo Testamento – Ester, Esdras, Daniel, David, Sansão, José e Abraão – e duas

2 Com exceção de Santo Agostinho, chamado pelo autor de “santo sem atributo”, e de Santo Domingos
de Gusmão, referido como “santo Dominicano com livro” nossa identificação coincide com a realizada
por Wethey. Vale destacar que, quando escreve, a imagem de São Tomás de Aquino estava no sepulcro
do Infante Dom Alfonso e a estátua da rainha estava no sepulcro de Juan. (WETHEY, 1936: 32-33).

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imagens marianas – a Pietà e a Virgem do Leite3. Nas extremidades laterais do sepulcro,
encontramos leões apoiando o símbolo heráldico de Castela e Leão. Ao redor de todo o
conjunto, dezenas de imagens religiosas de diversos tamanhos preenchem os espaços.
Na base, em cada um dos dezesseis lados, leões em postura agressiva são vistos em
diferentes atitudes, seja devorando uma cabeça humana ou brasões, seja lutando com
uma criança.
Os jacentes aparecem com os olhos abertos. Suas cabeças repousam em
almofadas, em atitude de descanso. Sua posição natural é a vertical, tendo sido
dispostos em nichos individuais. A representação dos defuntos em monumentos
funerários como se estivessem vivos é comum no mundo cristão desde o século XIII,
ainda que não tenha sido utilizado por monarcas castelhanos com anterioridade aos
exemplos de Miraflores. Os luxuosos tecidos da indumentária imitam brocados,
bordados e aplicações de pedras preciosas e pérolas. A representação das coroas e joias
também é trabalhada de forma complexa. Nota-se que se optou por apresentar os
monarcas como cortesãos, salientando riqueza e opulência. Juan II aparece, portanto,
como portador da dignidade real – representada pela Coroa – e da governança do reino
– representada pelo cetro –, membro plenamente integrado e destacado de uma Corte
rica e letrada, como na descrição que dele se faz em algumas de suas crônicas. Percebe-
se, assim, que a imagem de rei cortesão e governante foi priorizada a despeito da
imagem de cavaleiro ou homem religioso que costumavam aparecer em outros
monumentos funerários do período.
A iconografia dos sepulcros é de difícil interpretação, principalmente no que diz
respeito à presença dos membros do Antigo Testamento. Wethey afirma não ter
encontrado nenhuma fonte literária ou artística que os explique satisfatoriamente
(WETHEY, 1936: 38). Alguns autores optaram por analisá-los através de um viés
político (RUIZ MATEOS; PÉREZ MONZÓN; ESPINO NUÑO, 1999), enquanto
Felipe Pereda optou com uma análise de caráter soteriológico (PEREDA, 2001). Ambos
os modelos de análise são considerados pertinentes e apontam possíveis interpretações
para o entendimento do conjunto. Estamos particularmente de acordo com a proposta de
Pereda e também entendemos que o monumento tem como sentido último a

3 Essas imagens recebem identificação em dourado abaixo. A análise de seus atributos confirmou a
identificação, com exceção da Fé e Prudência, cujas legendas estão intercambiadas. (WETHEY, 1936:
36).

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representação da salvação das almas. Ao analisar a presença dos leões devorando ossos,
brasões e partes de corpos humanos na base do sepulcro em contraste com o corpo
incorrupto dos reis em posição de descanso na parte superior, Pereda afirma que se trata
da materialização através da escultura da ideia da ressurreição das almas a despeito da
aniquilação dos corpos, pensamento com o qual estamos plenamente de acordo.

Os corpos de alabastro dos reis, acompanhados a seus pés por grupos de


animais que brincam em um paradisíaco jogo, brilham íntegros e
incorruptíveis sobre os corpos terrestres desmembrados. São corpos imortais.
No aevum, onde desfrutam perpetuamente da visão beatífica, não se conhece
velhice nem infância, não existe tempo. Por isso, não há signo algum do seu
passo desenhado em seus rostos. Encontram-se serenos, placidamente
transportados a calma da eternidade. (PEREDA, 2001: 73)

Corroborando essa ideia, nas duas extremidades da estrela, orientados em


direção ao altar e ao coro, encontram-se pilares onde estão dispostas representações de
monges cartuxos portando livros. A presença de tais esculturas no sepulcro de Juan II
estaria relacionada à mesma razão pela qual uma Cartuxa parece ter sido escolhida para
receber o corpo do rei: as práticas religiosas da Ordem. Um dos exercícios fundamentais
de um monge cartuxo é a chamada Lectio Divina, ou Leitura Orante. Guido II
estabeleceu quatro degraus que levariam ao Céu: leitura, meditação, oração e
contemplação. O primeiro degrau começa com os livros e termina com a elevação da
mente a Deus. Essas ações são, portanto, parte fundamental do cotidiano dos religiosos
e, justamente, as que aparecem desempenhando no monumento funerário do rei. Trata-
se da representação material das atividades realizadas pelos monges em diversos
momentos do dia na igreja onde está depositado o corpo do monarca. A leitura,
meditação, oração e contemplação eram a garantia da Salvação Eterna – das quais os
defuntos se beneficiariam indiretamente. A presença das esculturas dedicadas à Lectio
Divina contribui, assim, para o sentido geral do sepulcro, vinculado à salvação das
almas de Juan e de sua esposa.
Podem-se mencionar ainda dois exemplos de como a religiosidade cartusiana
pode ter exercido influência no momento da execução dos sepulcros. O primeiro deles é
a presença do rosário nas mãos de esculturas de monges dispostas no nicho do sepulcro
de Alfonso e também nas representações de outras imagens religiosas, como as dos
Apóstolos. O método da Lectio Divina orante acompanhada pelo rosário recebeu grande

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impulso no século XV a partir, especialmente, do Rosário das Cláusulas difundido pelos
monges cartuxos Domingos de Tréveris e Adolfo de Essen, que buscava a devoção
interna e a contemplação por meio da reza da Ave-Maria unida às meditações e
cláusulas da vida de Cristo. A prática teria influenciado a iconografia cartusiana, uma
vez que em diversas imagens associadas à Ordem se veem figuras religiosas portando o
Rosário, como no caso de Miraflores.
Além disso, a ideia de contemplação da vida de Cristo também teve grande
difusão na Europa ao final da Idade Média graças à obra Vita Christi, de Ludonfo de
Saxonia, conhecido como o Cartusiano. O livro reunia os relatos dos quatro Evangelhos
da Bíblia em uma narrativa da vida de Jesus, estimulando sua contemplação que,
segundo o autor, era “cosa muy convenible” (DE SAXONIA, 1537, fol. III). A obra foi
traduzida já no final da Idade Média para vários idiomas e se tornou uma das
inspiradoras do movimento de devotio moderna. Em Castela, contou com uma tradução
solicitada por Isabel, a Católica, que foi realizada por frei Ambrosio de Montesino,
impressas entre 1502 e 1503. A noção de contemplação da Vita Christi pode ajudar a
estabelecer uma relação entre a disposição dos sepulcros e a elaboração do retábulo.
Trata-se, esta última, de uma elevada estrutura que tem ao centro uma grande roda
formada por anjos e uma cena da Crucificação, cujos braços dividem o círculo em
quatro zonas em que são representadas passagens da vida de Cristo: a Oração no Horto,
a Flagelação, o Caminho do Calvário e a Piedade. A função dessas cenas poderia ser
promover aos defuntos a contemplação dessas cenas, uma vez que os jacentes do
sepulcro de Juan II estão voltados para o retábulo, como era habitual, assim como o de
Alfonso, o que poderia contribuir para fornecer uma explicação para a postura orante
em que aparece representado.
Com relação às demais imagens que compõem o conjunto, reconhecemos a
impossibilidade de encontrar uma explicação definitiva para a presença de cada uma das
figuras, individualmente e enquanto grupo, pela ausência de fontes que apontem em
uma direção concreta. É preciso, então, navegar pelas incertas águas das análises
hipotéticas. Propomos aqui uma possível chave de interpretação que pode contribuir, ou
lançar novas possibilidades, para a compreensão do conjunto como um todo.
Acreditamos que a coesão entre as imagens é dada pela concepção de rei virtuoso –
nesse caso, reis virtuosos, já que o discurso se constrói com relação ao casal e não a um

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dos indivíduos – que se constituiu como um dos corolários do pensamento medieval
castelhano.
A concepção do monarca como “rei virtuosíssimo” acompanha a noção de “rei
cristianíssimo” como duas das imagens moralizadoras mais recorrentes em Castela.
Tratava-se da criação de um modelo moral que reunia todas as exigências para o que se
concebia como monarca ideal. Abundam referências literárias no século XV sobre as
virtudes e qualidades que deveriam ter os que portam a Coroa, aludindo a exemplos
bíblicos que ilustram tais características4. Como afirmou David Nogales Rincón, nos
espelhos de príncipe dos séculos XIV e XV

A exposição das virtudes segue um plano sistemático, baseado nas virtudes


cardinais (prudência, justiça, fortaleza e temperança) e teologais (fé,
esperança e caridade), tal como aparece já na a Glosa castellana al
Regimiento de príncipes e nos espelhos posteriores (Doctrinal de príncipes,
Regimiento de príncipes y Directorio de príncipes). Os exempla fazem
referência ao Antigo Testamento, a Idade Média e a Antiguidade.
(NOGALES RINCÓN, 2006: 22-23)

Assim, a figuração das virtudes teologais e cardinais no sepulcro de Juan II se


inscreve em um contexto mais amplo e em referências recorrentes que buscavam
representar rei e rainha como modelos de moral. Dessa maneira, torna-se clara a
interpretação dessa parte da iconografia, ainda que as mesmas apareçam representadas
de maneira singular, mesclando características de origem francesa e italiana que tornam
um desafio a identificação das raízes das mesmas. Nossa proposta é que, a partir das
Virtudes, se possa compreender a presença de algumas outras imagens que compõem o
conjunto, concretamente, dos personagens do Antigo Testamento.
Atualmente, as representações das Virtudes estão dispostas no lado
correspondente à rainha, enquanto os demais personagens estão no lado correspondente
ao rei. Ainda que a localização atual tenha sofrido alterações com o tempo, é possível
pensar que originalmente haveria uma correlação entre cada uma das imagens e a que
estava disposta no lado oposto. Essa relação contribuiria para a eleição da figura
correspondente. A associação, por exemplo, entre Sansão e a Força é bastante coerente5.
Abraão, que é representado no momento em que o anjo intervém e impede o sacrifício

4 Dois exemplos de relevo são o Doctrinal de Príncipes de Diego de Valera e o Regimiento de Príncipes
de Gómez Manrique.
5 “se entiende… por el Fuerte, Sansón”. (VALERA, 1959: 200).

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de Isaac, se emparelharia com a Esperança, enquanto o Rei David representaria a
Justiça6. As demais associações são mais especulativas. Daniel se ligaria a Caridade, de
acordo com a frase atribuída a ele por Valera: “Com esmola redimirás teus pecados”
(VALERA, 1959: 187). Além disso, em um dos nichos do sepulcro, onde hoje está
Esdras, mas que em épocas posteriores recebeu Daniel, pode-se ler a frase “Amor, Ve
Do Vas, Como Vieres, Así As”, que se poderia traduzir ao português moderno como
“Amor, onde o veja, como veja, assim o faz”. Trata-se de um ditado medieval,
reconhecido em Castela nesse período. Amor e Caridade estão muito relacionados entre
si nos textos Bíblicos e a hipótese de que originalmente o nicho recebera a imagem
emparelhada com a Caridade pode explicar sua presença. Tanto para Wethey
(WETHEY, 1936: 39), como para Gómez Bárcena (GÓMEZ BÁRCENA, 1988: 207), a
frase e sua relação com Daniel eram um enigma e a hipótese que aqui apresentamos
pode ajudar a explicá-la. Ester, por sua vez, se conectaria à Prudência, “a la qual virtud
pertenesce bien e a buen fin consejar”(VALERA, 1959: 191), pois “fue orrnada de todas
las virtudes que a reina pertenescen, la qual, tanto fue sierva de Dios, que por el ruego
suyo el pueblo de Israel fue librado de las crueles manos de sus enemigos”(VALERA,
1959: 70).
José, o patriarca egípcio, e Esdras supõem um desafio de interpretação ainda
maior, já que as referências a eles na literatura da época são escassas. Deve-se recorrer,
portanto, a seus relatos bíblicos. Diego de Valera, citando Santo Agostinho, diz que a
Temperança tem seis partes: contingência, modéstia, clemência, vergonha, abstinência e
honestidade (VALERA, 1959: 193-194). De todas elas, se detém mais
pormenorizadamente na clemência e sobre essa virtude afirma:

Y deve el príncipe ser muy más ligero en perdonar sus injurias e ofensas que
en las agenas; paresciendo a nuestro Señor, cuyo lugar tiene en la tierra, el
qual muy más ligeramente perdona los errores que contra Él cometemos, que
las injurias o dapños que a nuestros próximos fasemos.(VALERA, 1959:
194)

A clemência é um dos principais ensinamentos da passagem sobre José na


Bíblia, uma vez que esse, em diversas ocasiões, sofreu injustiças e teve clemência com

6 “E David dezía: Yo paresceré ante Ti en mi justicia; e: No permanescerán los injustos ante tus ojos”.
(VALERA, 1959: 176).

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seus causadores, como quando foi falsamente acusado de estupro ou quando perdoou
seus irmãos mesmo depois de ter sido vendido por eles como escravo.
A figura de Esdras, entre todas as presentes no sepulcro, é a menos frequente.
Wethey considera a interpretação de sua presença no sepulcro enigmática. Esdras
aparece representado portando uma bolsa e um cálice. Segundo Gómez Bárcena, a bolsa
estaria relacionada com o dinheiro que levou a Jerusalém para a construção do templo e
o cálice estaria relacionado à sua sétima visão, em que Deus lhe pede para beber o que
lhe oferecia, dando-lhe sabedoria (GÓMEZ BÁRCENA, 1988: 207-208). Em sua
análise de caráter soteriológico, Pereda considerou a figura de Esdras como fundamental
para o entendimento do conjunto. Ele se baseia no livro chamado 4 Esdras, considerado
apócrifo e ocasionalmente incluído na Vulgata de Jerônimo, mas que era amplamente
conhecido no medievo castelhano (PEREDA, 2001: 64). O livro, do qual a passagem do
cálice é retirada, narra uma viagem ao além-túmulo em que Esdras tem visões
proféticas. Desse texto viria a sentença incluída no início do Ofício dos Mortos –
Requiem aeternam dona eis, Domini – parafraseado de 2 Esdras 2:34. Esdras figuraria,
portanto, como o personagem com maior sentido soteriológico do conjunto. Se
concordarmos com Pereda em sua análise, a vinculação da imagem à salvação da alma
poderia justificar seu possível emparelhamento com a Fé: Sem fé, não há salvação.
Segundo Valera, a fé “es virtud theologal por quien verdaderamente creemos lo que no
vemos, sin la qual ningún onbre salvar se puede” (VALERA, 1959: 191).
Através dessa chave de análise, as Virtudes passariam a desempenhar, então,
grande importância no sepulcro e poderiam contribuir também para explicar algumas
das estátuas de pé, como pode ser o caso de Santo Agostinho, São Tomás de Aquino e
São Paulo, citados por Diego de Valera no Doctrinal de Príncipes como exemplo de
autores que trataram o tema. Essa hipótese reforçaria nossa identificação iconográfica
dessas imagens, já mutiladas ou restauradas.
A interpretação que oferecemos constitui uma possibilidade para explicar a
presença dos personagens do Antigo Testamento no sepulcro. Como dito anteriormente,
foram apresentadas por alguns autores outras interpretações possíveis, com as quais
também estamos de acordo. Afinal, diversas outras figuras bíblicas que não essas
poderiam ter sido escolhidas como paradigma das Virtudes. Portanto, poderíamos
considerar que mais de um critério pode ter sido utilizado durante a elaboração do

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


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monumento. Como já mencionamos, para Pereda, todas as imagens (exceto Ester) estão
vinculadas à encomendação das almas e aos rituais fúnebres, como o Ofício dos Mortos
(PEREDA, 2001). Ele utiliza, portanto, um critério religioso para explicar a iconografia
do sepulcro. Já para os autores de Las manifestaciones artísticas, as figuras estariam
associadas ao seu papel como governantes ou modelos de comportamento, pois, para
eles, “as tumbas de Siloé são um compêndio do pensamento político do momento…”
(RUIZ MATEOS; PÉREZ MONZÓN; ESPINO NUÑO, 1999: 366).

todos coincidem em sua consideração como prefigurações de Cristo, e


inclusive descendentes diretos (David), e em seu caráter exemplar por
haverem sido grandes líderes (Abraão, Isaac), excelsos governantes (José),
liberadores de poderes inimigos (Esdras e Ester) e paradigma de força
(Sansão) ou de sabedoria e justiça (Daniel). (RUIZ MATEOS; PÉREZ
MONZÓN; ESPINO NUÑO, 1999: 366)

De uma maneira geral, acreditamos que as manifestações artísticas estão


relacionadas à visão de mundo de determinado grupo. Elas fariam parte de uma
totalidade social complexa formada por uma série de outras práticas que dão sentido
àquela sociedade. Dessa maneira, as condições sociais de produção de um objeto
artístico se vinculariam a outros aspectos inerentes à ideologia dos grupos, tais como o
conjunto de ideias políticas e crenças religiosas compartilhadas por seus membros.
Como afirmou Nieto Soria,

[Na Baixa Idade Média] os fundamentos ideológicos do poder régio têm,


entre seus componentes mais significativos, os ideais políticos de origem
teológico, religioso ou sagrado, cuja consideração é inevitável, se se pretende
fazer compreensíveis tais fundamentos ideológicos.(NIETO SORIA, 1988:
49)

Portanto, acreditamos ser perfeitamente coerente que a iconografia do sepulcro


considere em igual medida aspectos religiosos e políticos, sem que haja a prevalência de
um aspecto sobre os demais.
Consideremos o exemplo de Ester. Sob o ponto de vista cristão, Ester foi
considerada como “prefiguração mariana ou, mais insistentemente, como imagem da
igreja” (CRAWFORD, 2003: 329-330). Em sua narrativa Bíblica, se casa com o rei
Assuero e, através de sua influência, consegue livrar o reino de seus inimigos. A história
tem um conteúdo moral claro, indicando que o poder é efêmero, pode ser alcançado

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


92
através da sabedoria e aqueles que o possuem devem usá-lo para o bem. O sentido
teológico se relaciona à Divina Providência, ensinando que os desejos de Deus podem
se expressar sem Sua intervenção direta e podem ser, muitas vezes, incompreensíveis
para os homens. Por meio das súplicas de Ester, o rei percebeu a perversidade de Amã e
o reino e o povo foram livrados dos males que sobre eles se abatiam. A presença da
rainha no sepulcro pode ter, portanto, um sentido moralizante. Poderíamos pensar em
sua relação com o papel desempenhado pela rainha Isabel, esposa de Juan II, durante
seu reinado. Sua influência foi decisiva para a queda de Álvaro de Luna, o condestável
de Castela e favorito do rei, pois, tendo sido uma de suas opositoras, logrou que o
Privado perdesse a confiança real, levando, posteriormente, à sua decapitação. A
representação de Ester assumiria, assim, um papel moralizante, de luta contra o inimigo,
que dialogaria também com a análise sobre o sepulcro do Infante Alfonso, exposta em
outra ocasião (ROCHA, 2015).
Cabe destacar, por último, que se trata de um monumento funerário em que estão
representados juntos o rei e a rainha, no mesmo leito. O discurso construído não diz
respeito apenas à figura do monarca, mas ao casal. A imagem sacralizadora, vinculada à
salvação da alma, e a imagem política, de “reis virtuosos”, se aplicam ao enlace
formado por Juan II e Isabel. Como o rei havia casado anteriormente e deste outro
matrimônio nascera Enrique IV, acreditamos que era importante para o discurso que
Isabel, a Católica, criava entorno a Miraflores que se exaltasse essa união, da qual ela
era fruto. Esse casal, que agora desfrutaria junto o Descanso Eterno, havia logrado
alcançar os principais ideais de virtude e boa governança, e não apenas o rei Juan II
individualmente.
De maneira geral, se pode afirmar que as capelas funerárias possuem uma
significância soteriológica inequívoca, uma vez que o sentido mesmo do sepultamento,
em especial daqueles que ocorrem em âmbitos religiosos, era facilitar, através das
orações, ofícios e do intermédio de santos e patronos, a salvação da alma do defunto.
Coincidia também, entre a nobreza e a monarquia desse período, a utilização desses
locais como signo de poder e como memória dos antepassados, adquirindo sentido
legitimador. Para a monarquia, no entanto, esses locais, além do mais, cumpriam o
papel de criação de uma imagem de dimensão religiosa, com forte cunho moralizante,
que contribuía para o discurso político-ideológico do caráter de sacralidade real.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


93
Nesse sentido, estamos de acordo com as conclusões de David Nogales Rincón
em sua tese de doutorado (NOGALES RINCÓN, 2009) quanto à capacidade
potencializadora das capelas reais no que dizia respeito à dimensão religiosa da
monarquia e com os pressupostos estabelecidos por José Manuel Nieto Soria em
diversos trabalhos, ao destacar a importância de um conjunto de imagens, a que
denomina teológicas, como um dos pilares fundamentais da formação de uma ideologia
monárquica. Em uma análise sobre os decessos reais do século XV, vemos que
predominam os discursos de cunho moralizante, que visavam criar e apresentar uma
imagem de monarcas virtuosos, baseada, especialmente em valores como humildade,
piedade e rígida devoção. Essa tradição esteve presente nos séculos anteriores e foi
especialmente reforçada nos momentos de debilidade da monarquia. Isabel, a Católica,
fez grande uso dessa estratégia, buscando, inclusive, atribuir um cunho providencialista
à sua ascensão ao trono como uma forma de remediar críticas que pudesse receber por
não ser a herdeira direta. Como afirmou Felipe Pereda,

Em Castela, onde não se havia desenvolvido nem os ritos sacralizadores das


monarquias vizinhas, nem sua complexa liturgia funerária, a morte do rei
tinha um caráter fundamentalmente exemplar. Sua morte cristã servia para
recordar o papel dos monarcas como vicários de Deus na terra. (PEREDA,
2001: 74)

O exemplo de Miraflores é bastante significativo no que diz respeito à busca por


reforçar a imagem da monarquia sacra. Não se tratava de uma exaltação personalista da
figura de Juan II, ainda que fosse uma clara referência à sua memória, pois o que estava
em evidência era o conjunto formado pela família do rei, enaltecendo não o poder
individual, mas a própria natureza do poder. Nesse caso, é a monarquia enquanto
instituição que foi revestida de um caráter sacro por meio das imagens que faziam
referência às virtudes ideais dos bons governantes, à luta contra o inimigo por
intermédio divino e à proximidade daquelas figuras com o âmbito sagrado, uma vez que
foram representados em um plano superior, pós-morte. Assim, todo o conjunto assumia
uma conotação providencialista, reforçando e materializando a imagem do rei como
vicário de Deus.
Assim, os monumentos funerários da Cartuxa de Miraflores se apresentam como
a junção de um complexo discurso teológico, influenciado pela religiosidade e pelos
rituais cartuxos, somado a um discurso político e moralizante baseado na vitória da
XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS
94
justiça e na plasmação de uma monarquia arquetípica. Pode-se antever uma perspectiva
providencialista, que vê no reinado de Isabel a culminância de um processo, pois seus
antecessores diretos já haviam aberto os caminhos para a criação de uma monarquia pia,
assentada no ideal de “rei cristianíssimo” e de “rei virtuosíssimo”.

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XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


96
A AÇÃO PARA ALÉM DA POLÍTICA SOCIAL DE D. MANUEL I:
O DECRETO DO ÉDITO DE EXPULSÃO DOS JUDEUS DE
PORTUGAL (1496)
Cleusa Teixeira de Sousa
Doutoranda em História pela UFG

RESUMO: O objetivo principal dessa comunicação centra-se na análise da relação


entre a promulgação do Édito de expulsão dos judeus e as transformações econômicas
ocorridas em Portugal. Pretende-se dar atenção especial à primazia de sua empreitada
marítima na ampliação econômica portuguesa, dado o privilégio do desenvolvimento
comercial com outros reinos, nos séculos XV e XVI. Apesar da relevância dessa
temática, as discussões historiográficas ainda não dispensaram novos olhares sobre uma
possível relação entre a expulsão judaica de Portugal e o desenvolvimento econômico
português. Assim, objetiva-se investigar a posição dos conselheiros régios quanto a essa
expulsão e vincular o banimento dos judeus à questão de eles não mais representarem a
maior fonte de arrecadação do reino como nos períodos anteriores. Visamos apontar que
esse pode ter sido o principal motivo para D. Manuel I (1495-1521) ter cedido à pressão
dos reis católicos e ter expulso os judeus das terras lusitanas.

Palavras-chave: Expulsão, Judeus, Portugal, D. Manuel I

ABSTRACT: This communication focuses on the analysis of the relationship between


the promulgation of the Edict of Jews’ Expulsion and the economic transformations that
have taken place in Portugal. It intends to give special attention to the primacy of the
maritime enterprise in the Portuguese economic expansion, given Portugal’s privilege in
the commercial development with other kingdoms in the fifteenth and sixteenth
centuries. Despite the relevance of this theme, the historiographical discussions have not
dismissed new perspectives about a possible relationship between the Portugal’s Jewish
expulsion and the Portuguese economic development. Thus, the objective is to
investigate the position of royal advisers regarding this expulsion and link the
banishment of the Jews to the question that they no more represented the largest
kingdom’s source of revenue as in previous periods. We aim to point out that this
economic fact may have been the main reason for King Manuel I (1495-1521) to yield
to the pressure of the Catholic Kings and expelled the Jews of Lusitanian lands.

Keywords: Expulsion, Jews, Portugal, D. Manuel I

1) Introdução
Essa pesquisa visa investigar a expulsão e ou conversão dos judeus em Portugal
em 1496-1497, durante o reinado de D. Manuel I (1495-1521). Para tanto, faz-se
necessário compreender a situação desses personagens no reino antes do decreto do
Édito (1496). Assim, é valido ressaltar que os judeus já se encontravam na Península

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97
Ibérica desde o século III d. C., (FERRO, 1979). E que embora Portugal tenha surgido
como reino independente apenas no século XII - especificamente em 1143 -, os judeus
representaram durante muitos séculos larga fonte de arrecadação fiscal para a coroa
portuguesa. Eram doutos em várias áreas do conhecimento, incluindo a medicina e de
modo particular a arte de lidar com as finanças. Este foi, senão o primordial, um dos
motivos pelos quais os governantes portugueses, desde D. Afonso Henriques (1143-
1185),1 se viram compelidos a tolerá-los em seu reino.
Nos reinados posteriores não foi diferente, os monarcas portugueses davam-lhes
empregabilidade na administração da coroa por sua eficácia intelectual e comercial,
mesmo desobedecendo às leis pertinentes ao Direito Canônico, que prescreviam que os
judeus não deviam assumir qualquer cargo público. Contudo, notamos inúmeras
performances políticas da parte da realeza portuguesa relativa a esse grupo. De um lado,
os reis precisavam de seus préstimos, fator relevante para tolerá-los e usarem da
diplomacia em favor dos judeus, por outro, estes últimos necessitavam de seus favores e
consentimento para se manterem em Portugal.
Apesar da existência de diversas normas e condutas destinadas aos judeus, na
prática, não havia eficácia em seu cumprimento. Os monarcas logo se convenceram de
que precisavam deles para gerirem suas finanças, dentre outras atividades relevantes
junto à coroa. Deste modo, os judeus não eram submetidos ao cumprimento dessas leis
que lhes foram imputadas, com tanto rigor. Como salienta Elias Lipiner, muitas vezes
os monarcas “[...] atenuaram generosamente o rigor das leis [...].” (LIPINER, 1982:17).
Em estudos anteriores, ainda, por ocasião da pesquisa para a escrita da
Dissertação de Mestrado, constata-se a ambivalência na relação entre os judeus e os
monarcas portugueses, concluindo que o tratamento dispensado pelos monarcas a esse
grupo oscilava, visto que os governantes os tratavam conforme seus próprios interesses.
De modo a abarcar fatores: políticos, religiosos e econômicos. Apesar do tratamento
dispensado aos judeus oscilar de acordo com cada monarca e de D. João II ter agido

1 Somente a partir de 1140, surgiram sinais de alguma individualização do território português e de seu
chefe, quando o título de rei português foi reconhecido pela Santa Sé. Parece, ter havido um processo
deliberado que corria lentamente para dar forma ao documento público. Em dezembro de 1143, Afonso
Henriques escreveu uma carta ao papa, se declarando subordinado da Santa Sé, pedindo-o que defendesse
sua honra e dignidade de seus sucessores e de sua terra. (MARQUES, 1996: 28).

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com certo rigor punitivo2, em relação aos judeus que entraram em Portugal sem sua
permissão, após terem sido expulsos da Espanha. A intolerância régia aos judeus em
Portugal só ocorreu a partir do governo de D. Manuel I (1495-1521). Nesta pesquisa
buscamos elencar razões que levaram esse monarca a disseminar esta mudança de forma
tão radical quanto aos judeus. Levando em conta que em períodos anteriores, mesmo
recebendo reclamações por parte da sociedade portuguesa, relativas aos abusos
usureiros da sociedade judaica, muitos reis optavam por infringir as determinações
Eclesiásticas a terem que perder as contribuições financeiras dos altos impostos pagos
pelos judeus à coroa.
Ademais, a longa história dos judeus no Ocidente medieval foi marcada por uma
série de conversões forçadas e expulsões de diversas regiões. Os judeus espanhóis,
expulsos de Aragão e Castela em 1492, sob o reinado de D. Fernando (1479-1516) e
Isabel (1474 e 1504) foi o caso mais conhecido, apesar de a situação dos judeus variar
de acordo com cada reinado. Em Portugal, eles vivam com maior comodidade que nos
demais reinos europeus no período que antecedeu a administração régia de D. Manuel I.

2 Embora a intenção do soberano fosse conceder residência a um número limitado de judeus, as 600
«casas», o facto é que muitos outros escolheram Portugal como local de permanência temporária. Um
número indeterminado entrou clandestinamente. Sobre estes, por não lhes ter sido concedida autorização
para entrarem em Portugal e sobre os que ficaram insolventes, a justiça real caiu dura: a servidão foi o
seu castigo. Jacob tornou-se escravo da estrebaria real. Bernáldez calcularia na ordem do milhar o número
de judeus castelhanos que se teriam tornado servos do rei (BERNALDEZ, 1856: 258).Para estes, D. João
II publicou em 19 de Outubrode 1492, urna lei tendente a atraí-los à conversão, concedendo-lhes amplos
privilégios e a possibilidade de regressarem á sua terra de origem. Aos que recusassem o baptismo e
estivessem na situação de devedores da coroa ou de clandestinos, o soberano mandar-lhes-ia tirar os
filhos que entregaria a Álvaro de Caminha, em 1493. O seu destino seria S. Tomé, ilha atlântica que o
soberano desejava povoar, além de nela desenvolver a cultura da cana sacarina. Apesar de toda a
crueldade que revestiu o acto, régio, D. João II não os deixou ao abandono, ficando o próprio capitão e
donatário da ilha responsável por eles, segundo o próprio testemunho, que deixou exarado no seu
testamento: «quamdo viim de Portuguall trouxe allvara del rrei dom Joham que Deus teem para a cada
cimquo mogos dar hüu escravo e hüua escrrava pera suas mamtemgas ou os dar a quem os guovernase em
quamto nom fosem pera per sy vyverem e porque niquem os podia milhor aguassalhados e curados teer
que eu memcarreguey delles thomamdos em minha casa guovernados com os ditos sseus escrravos e com
outros que dos del rrei pera isso thomey» (MARQUES, 1971: 504). Apesar de caber ao soberano o vestir
e a alimentação destes jovens judeus que ele baptizara e que foram educados em S. Tomé, a verdade é que
a vida não era fácil para ninguém e muito menos para crianças. A fome, a doença e os animais selvagens
viriam a dizimar muitas delas, o próprio Álvaro de Caminha afirmou: «muyito gedo tyve a comy disso
que avya no mato e mandey mogos fora pellas amgrras pera sserem mamtheudos ». Aos filhos dos judeus
castelhanos que sobrevivessem, deixava os bens que possuía como donatário de S. Tomé, Pedro Álvares,
seu familiar, que ele instituía como sucessor no cargo de capitão e donatário da ilha, ficava com a
incumbência de cuidar das crianças «e saber com sam limpos castiguados e emsignados e em sseus
mamtimentos e em todo ho all que pera consservagá de suas vidas e emsinos comprir» (TAVARES: 354-
355).

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99
2) A coroação de Manuel I em Portugal e sua governança acerca dos
judeus
D. Manuel I foi entronizado em 17 de Outubro de 1495, por ocasião da morte de
seu primo e cunhado D. João II3 (1481-1495). Membro de uma infortuna da família4,
filho de D. Fernando (1433-1470), Duque de Viseu e de Beatriz de Portugal (1430-
1536), seu avô paterno foi o rei D. Duarte (1433-1438) e o materno era D. João de
Portugal (1400-1442), quarto filho do rei João I (1385-1433) e de Filipa de Lencastre
(1360-1415) (MORENO, 1998:170). Logo no início de seu governo foi benevolente
com os judeus, concedendo liberdades àqueles que haviam sido escravizados por seu
antecessor, voltando a tributá-los como aos demais judeus. Segundo consta, e ainda não
sabemos o alcance disto, o monarca recusou-se a receber dos libertos alta quantia em
espécie, oferecida como forma de agradecimento. De acordo com Jerônimo da Fonseca
Osório (1506-1580), um dos biógrafos do monarca e o último bispo de Silves, afirmou
que sua ação de libertar os judeus aprisionados no tempo de D. João II, certamente
ocultava a intenção que movera D. Manuel I nesse propósito. Acrescenta ainda, que o
rei pretendia incitar os judeus à conversão de sua fé, por meio de suas atitudes
benevolentes. (OSÓRIO, cap. 10, f. II; KAYSERLING, 2009:158).
Assim como seus antecessores, esse monarca não se furtou em garantir-lhes
cargos na administração régia. Abraão Zacuto, bisavô do renomado médico lusitano do
mesmo nome, foi o maior exemplo dessa prática. Zacuto5 exerceu as atividades de

3 Apesar de D. João II ter três filhos, o príncipe D. Afonso (1475-1491), D. Jorge de Lancastre (1481-
1550) e D. Brites (1485 - 1521), apenas o infante D. Afonso era filho legítimo, fruto de seu matrimônio
com D. Leonor de Viseu e/ou de Portugal, os demais eram bastardos, provenientes de relacionamentos
aventureiros (grifos meus).
4 D. Manuel cresceu no seio de uma família poderosa, eram íntimos do rei D. João II e do príncipe
herdeiro Afonso, mas tratava-se de uma família que era constantemente assaltada pela morte. Mas, retinha
em suas lembrançasapenas a imagem de seu irmão D. Duarte, pois o seu outro irmão D. João falecera
quando ele ainda era pequeno (COSTA, 2011:.72).
5 “Até à expulsão consumada em 1497 os físicos judeus praticavam a medicina livremente em Portugal,
inclusivamente na Corte. A sua prática assentava nos conhecimentos de Galeno, eram os principais
divulgadores desta forma de abordagem da medicina. Para além de desempenharem a função de médicos,
astrônomos e matemáticos participaram activamente nos progressos que levaram às descobertas
marítimas, um empreendimento que envolveu activamente a Coroa. Entre os séculos XII e XIV destaca-
se a família Ibn Yahya cujos membros foram eminentes médicos sendo um dos mais conhecidos Ibn
Yahya ben Salomon ligado ao rei D. Fernando de Portugal. Destacaram-se ainda, Moisés Navarro, rabi-
mor e médico de D. João I e D. Pedro I, mestre Abraão Guedelha, físico de D. Duarte e de D. Pedro II,
mestreTomás da Veiga e mestre Rodrigo da Veiga, médicos de D. Afonso V  3, e também José Vizinho,
físico e conselheiro de D. João II. Mestre José, como também era conhecido, traduziu do hebraico para
latim o Almanach Perpetuum do salamanquino Abraão Zacuto, também ele conselheiro do Príncipe
Perfeito entre 1493 e 1496/97, tradução essa onde introduziu diversos melhoramentos fruto da sua própria

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100
astrólogo e cronista régio, dedicou grande parte de sua vida aos estudos da matemática e
especialmente da astronomia, exerceu a docência desta ciência por vários anos em
Salamanca e posteriormente em Saragoza. Por ocasião da expulsão dos judeus da
Espanha, esse cientista acompanhou seu velho professor Isaac Aboab em sua ida
definitiva para Portugal, em 1492.
Somente após receber os conselhos astronômicos de Zacuto6, que lhe apresentou
os perigos de tão longínqua viagem e as possibilidades de alcançar as riquezas
existentes na Índia, D. Manuel I7 deu prosseguimento a sua empreitada marítima.
Zacuto e D. Manuel I eram muito próximos devido aos constantes estudos sobre
astrologia. Essa amizade pode ter concedido aos judeus certos favores, que se findariam
em breve. Pois em 1496, os judeus sofreram o processo de expulsão das terras lusitanas,
o monarca D. Manuel I (1495-1521) proclamou publicamente a obrigatoriedade de
todos os judeus deixarem o reino no prazo de dez meses, caso contrário enfrentariam a
pena de morte e a perda de todos os seus bens, conforme o registro contido nas
Ordenações Manuelinas:

[...] Determinamos e Mandamos, que da pubricaçam desta Nossa Ley, e


Determinaçam atá per todo o mez d’Outubro do anno do Nascimento de
Nosso Senhor de mil e quatrocentos e noventa e sete, todos os judeus, e
Mouros forros, que em Nossos Reynos ouver, se saiam fora delles, sob a pena
de morte natural, e perder as fazendas [...]. (Edito de Expulsão,
ORDENAÇÕES MANUELINAS, Liv. II, tít. XLI: 212-214).

O monarca visava impedir a partida dos judeus e os obrigou à conversão forçada


ao cristianismo, apesar da promessa de facilitar a saída dos judeus e dos mouros do
reino, como descreve este trecho do Edito, “[...] Leixaremos hir livremente com todas
suas fazendas, e lhe Mandaremos paguar quaesquer dividas, que lhe em Nossos Reynos

experiência e, provavelmente, com a anuência do autor” (FRADE e SILVA, Sefarad, vol. 71:1, 2011: 51-
94).
6 Os trabalhos desenvolvidos por esse astrólogo possibilitaram a Vasco da Gama e a outros
“descobridores” a concretização de diversos planos marítimos. Coube a ele o aperfeiçoamento das tabelas
astronômicas elaboradas por Isaac Ibn Sid, denominadas por Tabelas Afonsinas. Compôs as tabelas do
sol, da lua e das estrelas, objetivando facilitar sua utilização nas viagens marítimas. Realizou o cálculo
aperfeiçoado visando melhorar o instrumento de medida da altura das estrelas que eram utilizados pelos
marinheiros, substituiu os astrolábios de madeira pelos de metais. (REMÉDIOS, 1895: 279-281).
7 Tamanha era a influência de Zacuto nas decisões tomadas por D. Manuel I quanto as empreitadas
marítimas, que Rodrigo José de Lima Felner, em Collecção de monumentos para história das conquistas
dos portuguezes em África, Ásia e América, aponta que antes de Vasco da Gama iniciar a viagem que
originou a chegada dos portugueses às Índias, D. Manuel I, solicitou o aval do astrólogo de sua confiança
para alçar as velas nesta empreitada.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


101
forem devidas, e assi pera sua vida lhe Daremos todo aviamento, e despacho que
comprir”. ORDENAÇÕES MANUELINAS, 1786, Liv. II, tít. XLI: 213). A
documentação aponta para o fato de que D. Manuel I não cumpriu o compromisso
firmado, mandando fechar os portos portugueses e as saídas de Portugal em 1497.
Fatores que nos leva a crer que esse rei teve motivos para além dos já apresentados pela
historiografia vigente, de que o fim da tolerância religiosa e o consequente banimento
dos judeus portugueses, se deram por conta da união matrimonial de D. Manuel I com a
princesa Isabel de Aragão e de Castela (1470-1498).
A administração de D. Manuel I foi orientada por um movimento
propagandístico intenso. Nesse tempo, o teatro vicentino desempenhou um
admirável papel na propaganda régia e na elaboração da imagem de um reino bem-
sucedido e abundante. O teatro constituía-se enquanto parte integrante de uma espécie
de “espetáculo do poder” que se fazia presente nas cortes mais poderosas do
Renascimento europeu (FROES, 1993:188). D. Manuel I, que ficou conhecido como o
mais rico e poderoso dos reis portugueses, marca que pode ser constatada numa parcela
relevante da produção teatral ibérica que foi elaborada posteriormente. Não podemos
nos esquecer de que a legitimação do poder monárquico na Idade Média se dava por
meio da subordinação dos súditos, alcançada pelo atendimento das expectativas da
sociedade e pelas próprias características do poder. Balandier aponta que esse processo
de legitimação política se dá pela necessidade da manifestação espetacular
(BALANDIER, 1982:7-8).
O século XVI representou um período de crescimento econômico para Portugal.
Os descobrimentos marítimos iniciados por D. João II e mantido por seus sucessores,
garantiram ao reino ibérico o luxo e o exotismo oriental, originando fortes mudanças na
vida econômica dos portugueses. As conquistas e os rendimentos do comércio marítimo
contribuíram para que D. Manuel administrasse um reino rico, no qual este monarca
efetuou profundas reestruturações. Constata-se que as grandes navegações
descortinaram um mundo até então desconhecido pelos portugueses. O discurso
medieval do ideal da conversão dos infiéis e gentios à fé cristã se constituiu em um dos
mais fortes argumentos para justificar essa empreitada à sociedade lusitana e a toda
Europa cristã.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


102
Embora, a empreitada marítima tenha sido tão importante para a economia
portuguesa no tempo de D. João II e D. Manuel I, a historiografia acerca dos judeus do
reinado de D. Manuel I e principalmente pertinente a sua expulsão de Portugal, não lhe
garantiu até o momento tanta relevância, assim como não vincula a expulsão dos judeus
à questão de eles não mais representarem a maior fonte de arrecadação para o reino
português como nos períodos anteriores. D. Manuel poderia abrir mão das rendas que os
judeus lhes proporcionava com as novas conquistas? Tentaremos entender que esse
fator pode ter sido o principal motivo para D. Manuel I ter cedido à pressão dos reis
católicos acerca da expulsão dos judeus de Portugal. Para tanto, torna-se imprescindível
perceber: qual era a posição dos conselheiros régios quanto à expulsão dos judeus de
Portugal.
É válido salientar ainda que os conselheiros do Estado português foram
consultados pelo monarca sobre a expulsão dos judeus como condição imposta pelos
reis espanhóis para realização de seu o casamento com a princesa Isabel de Aragão e
Castela. As opiniões divergiram formando dois grupos, aqueles que queriam ver os
judeus distantes do reino, citaram a França, a Inglaterra, a Escócia, o Reino
Escandinavo, locais em que os judeus já não eram mais tolerados. Salientaram ainda,
que os monarcas destes lugares, assim como os reis católicos, não teriam expulsado tão
grande quantidade – aproximadamente um milhão – de judeus se não lhes parecesse
mais útil e vantajoso. A questão central aqui se refere a pensar por que estes reinos
expulsaram os judeus e se suas motivações foram as mesmas.
Aconselharam ao rei a não se indispor com o reino vizinho, afirmando que seria
uma afronta aos espanhóis continuar admitindo e tolerando os judeus. Asseverando
também que era do agrado da sociedade cristã lusitana expulsá-los de Portugal, pois os
consideravam inimigos da fé, assim, ressaltaram que o prejuízo material causado pela
expulsão seria compensado pelo banimento deles no seio social das terras lusitanas.
Sobre tal assunto o mais relevante é que apontaram a destreza dos judeus na lida com as
finanças, assinalando que se os judeus permanecessem no reino eles sugariam o reino e
atrairiam para si larga quantidade dos bens móveis existentes. (KAYSERLING,
2009:164-165).
Aqueles que eram contrários ao banimento dos judeus de Portugal foram
motivados pela tolerância religiosa e defendiam a ideia de que diversos reinos e

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


103
repúblicas como Hungria, Boêmia, Polônia e outros reinos cristãos e mesmo o sumo
pontífice os toleravam em sua região. Destacaram suas habilidades laboriosas e
intelectuais e sua importância nos reinados de seus antecessores. Mencionaram até
mesmo que saindo de Portugal e com tamanha riqueza poderiam procurar a acolhida
junto aos príncipes mouros e utilizassem seus conhecimentos em benefício dos
muçulmanos quanto às manufaturas das armas e demais atividades. Salientaram ainda,
no tocante ao aspecto religioso, que se vivessem entre os cristãos seria mais fácil
convertê-los ao cristianismo. Apesar da divergência de opiniões entre os conselheiros, o
certo é que D. Manuel I não se furtou a expulsar os judeus de Portugal em 1496 e no
ano seguinte ordenou que os que ainda estavam em terras lusitanas não poderiam mais
dali sair, mas deveriam se converter ao cristianismo, mesmo que para isso fosse
necessário utilizarem de violência para com eles. Notamos que o reinado de D. Manuel
pode não ter sido tão “glorioso” o quanto demonstram seu cronista Damião de Góis, o
biógrafo João Paulo de Oliveira e Costa e diversos historiadores portugueses que
escreveram sobre o período de sua administração régia.
Neste estudo, pretendemos desenvolver uma análise das relações de poder que se
produziram nos âmbitos político-administrativo, cultural e religioso do período em
questão. É imprescindível, ressaltar que foi somente após o Edito de Expulsão em 1496,
que a história dos judeus em Portugal mudou radicalmente. Sabemos que já no mês de
dezembro daquele ano, muitos judeus saíram de Portugal, pois foi somente à época de D
Manuel I que os judeus sofreram perseguições e se viram forçados a conversão ao
cristianismo. O reino tornou-se quase totalmente cristão, após a conversão forçada por
ordem do monarca em 1497. Mas, mesmo os judeus conversos, nominados como
cristãos novos, conservaram as tradições da fé judaica, assim, adiantamos que só se
convertiam na palavra. Intimamente continuavam a exercer sua devoção aos rituais
concernentes a sua religião, os marranos8.
Outro fator de relevância acerca do tema abordado diz respeito à questão
Legislativa sobre as disposições de leis portuguesas criadas pelos governantes que
antecederam a D. Manuel I; estas não aparecem no Códice de seu tempo, o qual conta
com apenas duas leis acerca dos judeus, quais sejam: Que os Judeus e Mouros forros se

8 A palavra marrano refere-se aos judeus portugueses que foram forçados a se converterem ao
cristianismo nos reinos cristãos da Península Ibérica, mas que continuavam a praticar clandestinamente
seus costumes e religião anterior. (ROUTH, 1959).

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


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saiam destes Reynos, e nom morem, nem estem nelles (ORDENAÇÕES
MANUELINAS, Tít. XLI: 212-214), De como Cristão que foi Judeu deve de herdar a
seu pay, e a sua mãy, e aos outros parentes (ORDENAÇÕES MANUELINAS, Tít.
XLII: 214-218).

3) O que dizem os autores acerca da expulsão judaica de Portugal


Para compreender a situação em que o tema proposto se encontra no atual
cenário historiográfico devemos ressaltar dois pontos fundamentais: 1) a posição
religiosa e política dos judeus na Península Ibérica e, sobretudo, em Portugal; 2) como a
historiografia se coloca diante da presença judaica em terras Lusitanas, observando-se
que os judeus seriam mesmo uma afronta à fé católica ao tempo de D. Manuel I, ou se
houve outros motivos que o teriam levado a expulsá-los do reino.
Neste sentido, estudiosos como Radek Simik, Elias Lipiner, Jacques Attali,
Joaquim Mendes dos Remédios, Carsten Wilker privilegiaram esta continuidade no
processo de perseguição ressaltando a lembrança de que os judeus foram perseguidos
desde a Antiguidade com a queima do Templo de Jerusalém. Relatam ainda que por
Judas – o apóstolo que traiu Cristo – ter sido um judeu, esse povo foi culpado pela
morte de Jesus Cristo e foram por séculos conhecidos como seus deicidas. Outro fato se
deve à questão de eles serem conhecidos como o povo eleito por Deus, que passou por
muitas diásporas e sofreu as consequências da lealdade religião judaica. Como afirma
Radek Simik em Os judeus na sociedade portuguesa dos séculos XIV e XV:

Por razões religiosas, os judeus foram muitas vezes perseguidos. Os decretos


reais expulsaram os judeus da Grã-Bretanha (em 1290), da Espanha (em
1492) e de Portugal (em 1497). De um modo geral, a Idade Média foi uma
época cheia de massacres e perseguições. (SIMIK, 2009: 5).

Elias Lipiner em O tempo dos judeus segundo as ordenações do reino versa


sobre a legislação medieval portuguesa acerca dos judeus; nesta obra o autor salienta
que este povo sofreu grandes males por questões religiosas no governo de D. Manuel I:

Nós muito certo, que os Judeus e Mouros obstinados no ódio da Nossa


Sancta Fee Catholica de Christo nosso Senhor, que sua morte nos remio, tem
cometido, e continuamente contra elle cometem grandes males, e blasfêmias
em estes Nossos Reynos, aos quaes nom tam soomente a elles, que sam filhos
de maldiçam, em quanto na dureza de seus corações esteverem, Sam causa de

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


105
mais condenaçam, mas ainda a Christaos fazem apartar da verdadeira
carreira, que he a Sancta Fee Catholica[...]. (LIPINER, 1982: 243;
ORDENAÇÕES MANUELINAS, Liv. II, tít. XLI: 213).

O estudioso judeu Jacques Attali em Os judeus, o dinheiro e o mundo ressalta a


influência dos judeus sobre o dinheiro no mundo, para tanto o autor discorre sobre os
motivos históricos, sociais e teológicos que contribuíram para que os judeus sofressem
perseguições e massacres ao longo da história. Logo no prefácio de sua obra o autor
salienta: “Os judeus [...] eram vistos como culpados pela morte de Cristo e, portanto,
merecedores do castigo divino, eram barrados das profissões respeitáveis e tolerados
somente naquelas desprovidas de status”. (ATTALI, 2010: 11). Utilizando os registros
das Sagradas Escrituras, a Igreja Católica culpava os judeus de deicidas de Cristo e os
tornavam responsáveis por sua morte, revolviam-nos como homens e mulheres
indesejados em meio a sociedade cristã.
Apesar de o código Canônico estabelecer que os judeus devessem desempenhar
apenas funções que não lhes dessem status, em Portugal, a prática régia, pelo menos até
D. Maunel I, contrariava essas disposições. O III Sínodo de Toledo ocorrido em 589 –
presidido por Leandro, bispo de Sevilha –, foi a assembleia com maior número de
decretos em relação aos judeus; já naquela ocasião o cânone de nº 65 proibiu os judeus
de exercerem cargos públicos, e o 66 ordenava que os judeus não podiam ter servo
cristão (REMÉDIOS, 1895: 69-70). Igualmente durante o IV Concílio de Latrão, de
1215, a mesma questão voltou a ser mencionada. Este foi o concílio ecumênico de
maior relevância durante a Idade Média, em São João de Latrão se reuniu o maior
número de bispos, contou também com numerosa participação de padres conciliares do
Ocidente (FERREIRA, 2006). Ocorrido sob o pontificado de Inocêncio III (1198-1216),
foram decretados 70 cânones, cujo nº 69 proibiu os judeus de ocuparem cargos
públicos, e o de número 70 estabeleceu que os conversos não pudessem retomar a antiga
fé (FERREIRA, 2006). Notamos que a Igreja criou obstáculos visando impedir que os
judeus se sobrepusessem econômica e socialmente em relação aos cristãos.
Apesar disso, os judeus assumiram diversas atividades junto à coroa, D. Afonso
Henriques (1139-1185), aproveitou-os nas atividades fiscais, conferindo-lhes cargos de
almoxarifes como fiscais do reino, D. Sancho I (1185-1211) teve como colaborador e
administrador da coroa D. Yosef ben Yahia (1210-1260). (FAINGOLD, 1995: 78).
Somente na época de D. Afonso II (1211-1223), instituiu-se uma lei régia proibindo-

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lhes o acesso a cargos públicos. Mas, nos reinados posteriores retomariam as atividades
relativas aos cargos públicos; na administração de D. Sancho II (1223-1248), ocuparam
colocações importantes, o que se repetiu no reinado de D. Afonso III (1248-1279),
como é o caso de Yehudah ben Menir, conhecido por D. Judá, que foi seu arrabi-mor9 e
posteriormente foi ministro da fazenda de D. Dinis (1279-1325), e de D. Guedelha, que
ocupou, além de outros, o ofício de tesoureiro de D. Brites, mãe do referido monarca,
dando continuidade às suas atividades no reinado de D. Afonso IV (1325-1357).
Grande parte dos estudiosos10 que enveredaram por pesquisas acerca dos judeus
são de origem judaica, talvez este seja o motivo de priorizarem na sua históriaas
perseguições a que foram sujeitos. Neste sentido, é prudente observarmos os fatos com
certo distanciamento para não sejamos influenciados pela historiografia dominante.
Percebemos que os judeus sobressaíram em diversos âmbitos da sociedade e cultura
vigente à época pesquisada, mesmo mediante os inúmeros conflitos vivenciados por
eles, existem outros aspectos a serem observados. A política dominante de cada período
e os fatos sociais que a circundam nos dizem a respeito das ocorrências épicas.
Observamos que a historiografia judaica foi influenciada pelos momentos de dor e
violências que seus antepassados sofreram. Notamos que para os escritores de origem
judaica se distanciar destas angústias tem sido uma tarefa complicada, eles têm buscado
“ajustar as contas” com um passado que os aflige por conta dos laços sanguíneos que os
unem aos seus ancestrais injustiçados pelo acaso. Assim, buscaremos igualmente,

9 Em 1278, uma missiva de D. Afonso III ao concelho municipal de Bragança mencionou pela primeira o
cargo de arrabi-mor, criado para centralizar a justiça interna entre os judeus e a recepção dos seus
impostos. Em Castela e Aragão, já existia o termo “rabino da corte”, tendo esses dois reinos instituído
igualmente o alcaide-mor como chefe de todos os muçulmanos. A função de rabi-mor viria a adquirir em
Portugal estabilidade sem igual nos reinos vizinhos. Um interlocutor constantemente junto ao rei se
revertia em vantagens para os judeus, em contrapartida permitia à coroa o controle indireto sobre a vida
comunitária judaica (WILKE, 2009: 24).
10 Essa afirmativa se faz notória na obra, Moisés e o monoteísmo de Sigmund Freud, o qual busca
explicar que as perseguições pelas quais passaram os judeus ao longo da história perde o sentido quando
observa-se que não foram eles que pediram para ser o povo eleito de Deus, mas foi Deus que através de
Moisés os escolheu. Há dois fatores circunstanciais que não podem ser desprezados quando se trata de
Moisés e o monoteísmo. O primeiro deles, refere-se ao fato de o livro ter surgido em um tempo de
acirradas perseguições aos judeus - o que era o prenúncio do que veio a se constituir numa das maiores
tragédias históricas dos últimos séculos -, perseguições estas que atingiram o próprio Freud. O segundo é
ter sido esse um dos últimos (se não o último) escritos de Freud, criado na sua mais elevada maturidade
intelectual, tendo recebido, certamente, pinceladas de influências de suas questões pessoais. Tendo em
vista essas duas considerações, é possível propor que Moisés e o monoteísmo consiste em um texto que
deve ser analisado em estreita relação com a história e o momento de Freud ao escrevê-lo e publicá-lo,
isto é, a sua condição judaica e o período de sua transferência para Londres em consequência do ódio que
se abatera, contra os judeus. (FREUD, 1996).

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107
romper com essa literatura judaica que tem privilegiado as perseguições por questões
religiosas.
A historiografia portuguesa acerca dos judeus tem apresentado os
acontecimentos entre os anos de 1496-1497, apontando uma narrativa dominante,
difundindo que a decisão de D. Manuel de pôr fim à política de tolerância religiosa de
seus antecessores foi motivada pelo ímpeto de reger toda a Península Ibérica, casando-
se com a filha mais velha dos reis Isabel I de Castela (1474-1504) e Fernando II de
Aragão (1479-1516).
Esta corrente de pensamento defende que os reis católicos exigiram que D.
Manuel I expulsasse os judeus do reino português, como condição para o casamento
entre D. Manuel I e sua filha Isabel de Castela e Aragão. Alexandre Herculano (1810-
1877) analisou os acontecimentos concernentes à expulsão judaica em sua obra de
referência sobre As origens da Inquisição em Portugal em 1536. Em seu estudo, o
historiador lusitano salienta que D. Manuel I desconsiderou as instruções de seus
conselheiros, os quais o alertaram sobre a problemática da expulsão. Cedeu às pressões
espanholas expulsando-os por conta de seu desejo de administrar a Península Ibérica:

A princesa D. Isabel era filha mais velha dos Reis Católicos e sua herdeira
presuntiva, no caso de faltar o príncipe D. João, único fiador da sucessão
masculina ao trono de Castela. Casando com ela, o rei de Portugal via em
perspectiva, ao menos como possível, a reunião das duas coroas da Península
numa só cabeça (HERCULANO, 1975: 114).

Nesta perspectiva, a união matrimonial entre D. Manuel I e Isabel de Aragão e


Castela, representaria a junção das coroas: portuguesa e espanhola, embora Isabel tenha
morrido em 1498 no parto de seu único filho com D. Manuel I, em pouco menos de um
ano após seu casamento (1497). A esperança da união das coroas tão desejada por D.
João II ficara a cargo do único fruto desta aliança, Miguel da Paz, herdeiro dos reinos de
Portugal, Castela, Leão, Sicília e Aragão, mas o menino teve seu passamento atestado
em Granada no ano de 1500, com apenas 21 meses de nascido.
Diversos outros historiadores que se dedicaram aos estudos sobre os judeus
portugueses corroboraram a tese levantada por Alexandre Herculano (1975), a exemplo,
Meyer Keyserling (2009) e Joaquim Mendes dos Remédios (1895), José Amador de Los
Ríos (1960), Heinrich Graetz (1967) e Maria José Pimenta Ferro Tavares (1997)
adotaram a historiografia tradicional dando continuidade a narrativa que apresenta D.
XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS
108
Manuel I como um monarca ambicioso que sacrificou “seus judeus” por conta de sua
ambição pessoal. Anita Novinsk em O papel dos judeus nos grandes descobrimentos
acrescentou, a esse motivo, os sentimentos que possivelmente D. Manuel nutrisse pela
princesa Isabel – filha dos católicos da Espanha – os quais não podem ser ignorados, na
compreensão da história.
Podemos observar tal afirmativa nos escritos de Joaquim Mendes dos Remédios
em Os judeus em Portugal:

As ambições políticas de D. Manuel, que o levaram a acariciar a idéa de subir


ao throno de Hespanha, foram funestas aos judeus. A alliança com a casa real
de Hespanha era também ambicionada pelos reis hespanhoes, e tanto que
Fernando e Isabel se apressaram a mandar saudar o novo rei português pelo
seu embaixador especial D. Affonso da Silva[...]. (REMÉDIOS, 1895: 284-
285).

As discussões elaboradas por Meyer Kayserling11 em Judeus de Portugal


rememoram a trajetória dos judeus desde o período visigótico, ainda no século V,
mencionando que a presença judaica ganhou certa relevância no século XII, quando
surgiu Portugal, tese da qual corrobora Maria José Ferro Tavares em Os judeus em
Portugal no século XIV. O autor preocupou-se em esboçar a importância da presença
judaica em Portugal, mostrando suas contribuições para sociedade portuguesa,
principalmente aquelas relativas ao comércio, à administração, à gerência das finanças
do reino. No que concerne à expulsão judaica de Portugal, Kayserling aponta que D.
Manuel ambicionava reunir sob seu cetro toda a Península Pirenaica, plano facilmente
realizável por meio de uma aliança com uma princesa castelhana (KAYSERLING,
2009: 163).
Maria Ferro Pimenta Tavares em A expulsão dos judeus de Portugal: conjuntura
peninsular enfatiza a ambição de D. Manuel I em reunir a administração das duas
coroas. José Amador de Los Ríos em História social, política y religiosa de lós judíos
de Espana y Portugal, bem como H. Graetz, em History of the Jews, seguem a mesma
linha de análise.

11 Trata-se de um historiador e rabino alemão, que realizou seus estudos em Berlim, seguindo a escola de
Leopold Von Ranke, ainda jovem, dedicou-se à história e, particularmente, à literatura judaica na
Península Ibérica. Tinha apenas 28 anos de idade quando publicou, em 1859, o primeiro livro acerca do
tema, um estudo sobre “sefarditas” – judeus originários da Península Ibérica–. (KAYSERLING, 2009:
30).

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109
A obra mais recente que se refere a expulsão dos judeus de Portugal foi escrita
por François Soyer, A perseguição aos judeus e muçulmanos de Portugal: D. Manuel e
o fim da tolerância religiosa (1496-1497). Nesta, o autor faz uma abordagem do período
em que a tolerância religiosa de ser parte integrante da política régia, assevera que foi
motivado a desenvolver sua pesquisa por observar a combinação da escolha da
orientação religiosa que a fé cristã propõe ao reino português à intolerância até então
estranha a essa cultura que era tolerante a presença judaica em Portugal até o governo
de D. Manuel. O autor valida a tese defendida pela historiografia acerca do tema, de que
o casamento entre D. Manuel e Isabel de Castela e Aragão foi o principal motor para a
expulsão dos judeus do reino, mas acrescenta que esta decisão também fez parte da
diplomacia calculista e pragmática de D. Manuel, o qual buscava garantir a paz
duradoura com seus vizinhos espanhóis.
A importância da empresa marítima no medievo português era significativa,
conforme Mattoso em História de Portugal, D. João II em 1486 conseguiu do papa
Inocêncio VIII (1484-1492) a Bula da Cruzada ratificando o sentido de guerra santa,
ligado às conquistas africanas que agregava ganhos para a coroa, advindos dos
rendimentos eclesiásticos (MATTOSO, 1997, v. III: 46). No reinado de D. João II, no
entanto, os territórios africanos começaram a trazer riquezas através do comércio
principalmente das minas da Guiné e do açúcar da Madeira. O velho ideal cruzado,
apesar disso, não saiu do imaginário dos portugueses e ao lado dos interesses
econômicos a justificativa de guerra santa sempre era invocada.
Nenhum dos autores os quais cotejamos até o momento se dedicaram ao tema ou
se preocuparam com a importância que este monarca dava à empresa marítima, nem aos
lucros que essa empreitada gerou a Portugal naquele momento. Não há como
desvencilhar os judeus de sua crença, mas aqui nos propomos ir além das questões
religiosas que os envolviam, buscando observar os aspectos políticos e principalmente
econômicos deste período que podem ter influenciado consubstancialmente na decisão
de D. Manuel de expulsar os judeus de Portugal.
O fato dos judeus terem religião própria e serem fiéis a sua tradição, seguindo os
ritos e a cultura pertinentes ao judaísmo, colocou-os desde os tempos mais antigos como
uma afronta à fé católica. Os representantes legais da Santa Sé se reuniram em diversas
assembleias para disporem leis que desfavorecessem os judeus em relação aos cristãos.

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110
Em diversas partes da Europa os judeus sofreram as consequências de professarem uma
fé que não fosse a cristã. Em Portugal, dada à especificidade econômica do reino, num
tempo em que a economia estava sendo estruturada, os reis toleraram e até empregaram
os judeus na administração e na fiscalização monetária da coroa, aproveitando-se de sua
vasta instrução e experiência na lida com as finanças.
Apesar das constantes queixas da sociedade sobre a usura que esse povo
praticava nas transações que envolviam empréstimos, os monarcas sempre usaram da
diplomacia para contornar essas discórdias. Pois, necessitavam dos altos impostos que
lhes eram pagos pelos judeus e, ainda, podiam contar com a fidelidade deles na
execução das atividades que o rei lhes atribuía, dada a relação ambígua que existia entre
ambos. Os judeus necessitavam viver “em paz” no reino e para tanto, precisavam contar
com os favores régios, e os reis necessitavam de seus préstimos e de suas pagas
tributárias que em tempos anteriores à empreitada marítima representava a maior
arrecadação da economia portuguesa.

Fontes e Bibliografia

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111
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TAVARES, María José P. Ferro. Judeus econversos castelhanos em Portugal.
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DISSERTAÇÕES
SOUSA, Cleusa Teixeira de. Os judeus nos reinados de D. Dinis e D. Afonso IV: uma
análise da legislação portuguesa, nos séculos XIII e XIV. 170 f., 2012. Dissertação (de
Mestrado) - Faculdade de História, Universidade Federal de Goiás, Goiás, 2012.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


114
A QUESTÃO JUDAICA NA HISPANIA VISIGODA.
SÉCULOS VI-VII

Cynthia Valente
NEMED/UFPR.
Mestranda História

RESUMO: O Reino Visigodo de Toledo não apresentou muita tolerância com relação à
comunidade judaica. A repressão régia e eclesiástica demonstrou-se ora mais dura, ora
mais branda, dependendo do monarca no governo. Destacamos, no entanto, que a
tolerância foi maior no período dos reis arianos. Alarico, por exemplo, aboliu a maior
parte das leis romanas com relação aos judeus, mantendo apenas a proibição de
casamentos mistos, também proibidos pela comunidade judaica, mas seus ritos
permaneceram tolerados. Mesmo durante o bispado de Masona de Mérida, já durante o
reinado de Leovigildo, o bispo, árduo defensor niceísta, mostrou tolerância com judeus
e pagãos. Parece-nos que a questão judaica tomou contornos mais sérios e violentos
após o III Concilio de Toledo e a conversão católica do reino visigodo. Durante a
cristianização da Hispania visigoda, algumas crenças não ortodoxas foram consideradas
ameaças à unidade eclesiástica e régia. Após a conversão católica do reino pelo monarca
Recaredo em 589, a presença de judeus ocupou lugar nos debates dos Concílios
Toledanos, mostrando que a presença de uma religiosidade oposta ao rito niceísta
merecia atenção e, principalmente, atuação que a coibisse.

Palavras-chave: Reino Visigodo, Judeus, Concílios

ABSTRACT: The Visigoth Kingdom of Toledo did not show much tolerance in
regards to the Jewish community. The royal and ecclesiastical repression was shown
sometimes softer, depending on the monarch in the government. We emphasize,
however, that tolerance was higher in the period of the Aryan kings. Alaric, for
example, abolished most of the Roman laws regarding to the Jews, keeping only the
prohibition of mixed marriage, also forbidden by the Jewish community, but their rites
remained tolerated. Even during the bishopric of Masona of Merida, during the reign of
Leovigildo, the Bishop, a strong niceistic defender, who showed tolerance towards Jews
and pagans. It seems that the Jewish question took most serious and violent contours
after the III Council of Toledo and the Catholic conversion of the Visigoth Kingdom.
During the Chritianization of the Visigoth Hispania, some unorthodox beliefs were
considered threats to the ecclesiastical and royal unit. After the conversion of the
kingdom by the Catholic Monarch Recaredo in 589, the presence of Jews took place in
the debates of Toledan Counsils, showing that the presence of an opposing religious rite
to niceistic deserved attention and specially a restraining performance.

Keywords: Visigoth kingdom, Jews, Council

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOS MEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


115
A questão judaica emerge na Antiguidade Tardia1 como herança dos últimos
anos do Império Romano. Com a crescente cristianização do Império a partir de
Teodósio (347-395), no século IV, verifica-se um gradual endurecimento das relações
com a comunidade judaica, isso principalmente na região oriental do Império. O
historiador Gilvan Ventura (2009: 70) esclarece que, nesse período, os membros do
clero cristão tiveram um amparo jurídico para perpetrarem várias represálias contra os
judeus; consequentemente, tornou-se um momento de grandes escritos anti-judaicos e
de ações contra sinagogas2.
Na Hispania, Alarico II (?-507) apresentou um governo de certo modo
condescendente com a comunidade judaica; inclusive, ele chegou a abolir algumas das
leis romanas contra os judeus; no entanto, continuou mantendo a proibição dos
casamentos mistos, os quais eram proibidos também pela lei judaica. Da mesma forma
os judeus não poderiam ocupar cargos públicos; estavam autorizados a reformar suas
sinagogas, mas não construir novas. Outra lei abolida por Alarico à época foi com
relação aos cristãos conversos: os romanos não proibiam o retorno desses ao judaísmo,
algo que o rei godo passou a considerar um crime, tal como a conversão de um cristão à
fé judaica.
Com Leovigildo (569-586) não houve mudanças significativas com relação aos
judeus, tendo em vista que os godos teriam demonstrado certa relação de tolerância no
que se refere ao judaísmo, com as suas respectivas práticas. Nesse sentido, importante
ressaltar que Masona de Mérida, bispo católico, teve no período atitude de tolerância
para com aqueles que não professavam sua fé, dentro de seu hospital; neste, todos eram
tratados em iguais condições, fossem cristãos, judeus ou pagãos.
Os judeus começam a enfrentar realmente um antagonismo a partir da conversão
católica do reino visigodo, isso no ano de 589. De fato, o reinado de Recaredo assume
uma noção diferente de realeza: a conversão deste ao catolicismo, imediatamente após a

1 Para a definição do conceito de Antiguidade Tardia, recomendo a leitura da obra de FRIGHETTO, R.


Antiguidade Tardia. Roma e as Monarquias Romano-Bárbaras numa Época de Transformações -
Séculos II-VIII. Curitiba: Juruá, 2012; e seu artigo FRIGHETTO, R. A longa Antiguidade Tardia:
problemas e possibilidades de um conceito historiográfico. Atas da VII Semana de Estudos Medievais.
Por uma longa duração: Perspectivas dos estudos medievais no Brasil. Brasília: Editora casa das Musas,
2009.
2 Também de Gilvan Ventura, recomendo a leitura dos seguintes artigos, para aprofundamento no tema:
SILVA, G. V. Sementes da intolerância na Antiguidade Tardia: João Crosóstomo e o confronto com os
judeus de Antioquia. Dimensões, Espírito Santo, v.25, p 63-81, 2010; e também SILVA, G.V. da. A
sinagoga como heterotopia segundo João Crisóstomo. Phoînix, Rio de Janeiro, 18-1, p.134-156, 2012.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOS MEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


116
morte de seu pai, Leovigildo, pode ser compreendida como um movimento de
continuidade no processo de unificação do reino perseguido pelo falecido rei – o qual
havia pretendido uma centralização, mas em torno da fé ariana.
A fé niceísta, praticada pela maioria hispano-visigoda, seria então a religião
escolhida para fortalecer e unificar o reino. Com a conversão católica do reino,
Recaredo passou a incorporar uma noção de monarca moldada em cima do paradigma
cristão de moral e religiosidade. Ou seja, o monarca como defensor de Deus, da Igreja e
de todos os seus súditos. Um rei com tantos princípios teria que garantir um reino livre
dos inimigos de Deus. Tal como afirma Orlandis (1993: 54), “El rey católico aparece así
ante todo como el defensor de la Fe ortodoxa”.
Com a incorporação dos arianos eclesiásticos dentro da Igreja e o contínuo
batismo de pagãos e heréticos na fé niceísta, a presença do arianismo no reino de Toledo
vai aos poucos desaparecendo, deixando para os judeus o papel de “antagonistas” da fé
nicena. O reinado de Recaredo representa, portanto, um endurecimento das leis contra
os judeus. Tornava-se, desse modo, cada vez mais difícil a existência de qualquer
indivíduo que não fosse católico dentro do reino.
Vista como um obstáculo à total unificação do reino, a minoria judaica começou
a experimentar uma situação de exclusão social, a qual visivelmente os colocava à
margem do reino católico hispano-visigodo, este então idealizado pelo poder régio e
eclesiástico. Santiago Castellanos (2007: 262), neste tema, afirma:

En la historia del reino visigodo hispano, la política de acoso a los judíos


comenzó a cobrar relevancia a partir del reinado de Recaredo. Una de las
claves del origen de esta política represiva radica en que, a partir de ese
instante, la Iglesia como institución se vio respaldada por la política del reino,
comenzando por la declaración de los cánones del concilio III toledano, como
una ley a cumplir en todo el reino.

Verificamos que no cânone 14 do III Concílio Toledano3 encontram-se as


proibições para a comunidade judaica, conforme Vives (1963: 29) apresenta: “Que no
esté permitido a los judíos tener esposas o concubinas cristianas. Ni comprar esclavos
cristianos, ni judaizar, ni ejercer cargos públicos”.

3 Para maiores informações sobre este estema, recomendo também a leitura de XAVIER, N. A. Distinção
Religiosa no Reino Visigodo: uma análise do III Concílio de Toledo. Revista Labirinto, Porto Velho-
RO, n. XIV, v.20, p.173-183, 2014.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOS MEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


117
Isidoro de Sevilha (560-636), bispo que intensamente contribuiu para a
construção de uma ideologia hispano-visigoda de cunho católico, preocupou-se com a
questão judaica do reino, tanto que escreveu o opúsculo De fide catholica contra
Iudaeos. Nele, o bispo sevilhano escreveu um tratado onde advoga que os judeus devem
ser convencidos a abraçarem a fé cristã, a considerada fé verdadeira.
É importante frisar que em nenhum momento Isidoro de Sevilha se coloca a
defender as conversões forçadas; o testemunho teria de ser apresentado de vontade
própria por parte do judeu, fato este que colocaria o bispo contra a política de
conversões forçadas que seriam adotadas pelo rei Sisebuto. Em suma, a obra de Isidoro
é de caráter evangelizador, e o seu objetivo era esclarecer aos membros de sua Igreja
como deveriam agir frente à questão judaica, tendo em vista que a construção do reino
visava à centralização e à unificação de fé e poder régio 4.
Essas normas antijudaicas de Recaredo, porém, não foram devidamente seguidas
pelos monarcas que o sucederam, Witerico e Gundemaro (?-612); no caso, ambos
afrouxaram as aplicações das leis contra os judeus.
Mas em 612 ascendeu ao trono Sisebuto, que logo iniciou uma forte campanha
repressora com relação aos judeus: não somente restabeleceu a observância das leis de
Recaredo, como iniciou, sem aprovação conciliar, uma política de conversões forçadas;
tais conversões, ressaltamos aqui, não foram apoiadas pela hierarquia católica. Tanto
que o IV Concílio de Toledo, ocorrido em 633 durante o reinado de Sisenando, proibiu-
as através do seu cânone; no entanto, também justificou a atitude do monarca Sisebuto,
o qualificando como um homem “religiosíssimo”; e igualmente reitera que os monarcas
Alarico II, Recaredo e Sisebuto não foram perseguidores de judeus – o único propósito
deles seria justamente frear o proselitismo. Contribuindo com todo este debate, Rosa
Sanz Serrano (2009: 593) afirma que:

La persecución de los judíos la heredaron los godos de la política religiosa


imperial. En efecto el aparato legal ordenado con el fin de perseguir a los
herejes y a los paganos afectó igualmente a los judíos, que tuvieron que
contemplar como durante el gobierno de la dinastía teodosiana las masas
destrozaban algunas de sus sinagogas en Oriente y comenzaban a ponerse en
práctica las prohibiciones de matrimonios mixtos y las restricciones a sus
actividades comerciales o a las prácticas rituales.

4 Neste tema, sobre Isidoro de Sevilha, recomendo a leitura de FRIGHETTO, R. A regra monástica de
Isidoro de Sevilha e a questão dos limites entre as províncias eclesiásticas na Baetica Hispano-Visigoda
(século VII). Revista Tiempo y Espacio, Chillán, v. 14, p.31-42, 2004.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOS MEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


118
No ano de 636 Chintila sucede ao rei Sisenando no trono, logo após a morte
deste; com isso os judeus enfrentarão anos de recrudescimento na política régia. O novo
monarca não só passou por cima da decisão conciliar que proibia as conversões
forçadas, como também manifestava forte desejo de acabar com a chamada “superstição
judia”, com a intenção de permitir que somente católicos vivessem no reino. Seguem as
palavras de Thompson (2007: 221), a respeito desse posicionamento de Chintila:

La nueva política procedía claramente de Chintila, y no de los obispos, pero


los obispos, junto con todos los optimates y hombres ilustres, declaraban
ahora que todos los futuros reyes, antes de ascender al trono, debían de jurar
que no permitirían a los judíos violar la fe católica y que la indiferencia o el
soborno no les harían mostrarse favorables a los no creyentes.

Chintila, na sua política, colocou em prática as conversões obrigatórias. No seu


reinado ocorrem os chamados placitum, uma forçada profissão de fé. O rei pretendia,
dessa forma, acabar de uma vez com a heresia judaica.
Quando Recesvinto tornou-se rei, abriu imediatamente o VIII Concílio de
Toledo, em 653; nele, denunciou a vida e os diversos costumes judaicos. O código legal
do novo monarca apresentou pelo menos dez leis contra os judeus. A situação que se
apresentou para os judeus no reino visigodo de Toledo sob a coroa de Recesvinto foi,
portanto, de claro endurecimento; não ocorreram registros de placitum, mas com a
retirada do direito romano do reino visigodo e a implantação de outras leis, os judeus
ficaram sem imunidade judicial; a prerrogativa de tribunais especiais dentro da
comunidade judaica não existia mais; consequentemente, os judeus estavam agora
sujeitos aos tribunais seculares.
A não observância das leis por parte dos judeus poderia, inclusive, condená-los a
morte; dessa forma, nas palavras de Thompson (2007: 245), “ser judío practicante era
ahora un delito capital”.
A questão judaica ganhou contornos mais sérios durante o século VII, com o
agravamento crescente das relações. Nesse período foram produzidas mais duas obras
sobre a presença judaica no reino visigodo, são elas: De perpetua Virginitate Beatae

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119
Mariae adversus tres infideles, de Ildefonso de Toledo (667)5; De Comprobatione
Aetatis Sextae contra Iudaeos, de Julián de Toledo (686).
Pois bem, o tratado marianológico de Ildefonso de Toledo é uma obra dedicada
aos judeus, inimigos contemporâneos de fé. Nele o bispo toledano os interroga de forma
um tanto quanto direta e incisiva; e exatamente nesse sentido, destacamos as seguintes
palavras de Ildefonso (1972: 62):

¿Qué dices, judío? ¿Qué propones? ¿Qué inventas? ¿Que opones? ¿Que
objetas? He aquí que nuestra virgen es tuya por estirpe, tuya por raza, tuya
por descendencia, tuya por país, tuya por pueblo, tuya por generación, tuya
por origen. Pero por fe es nuestra.

A coroa e a Igreja, à época, agiam em conjunto diretamente contra as


comunidades judaicas que resistiam no reino. De fato, para o monarca Recesvinto, os
judeus profanavam o solo do reino, e a permanência dessa heresia comprometia os
planos de Deus para este reino católico.
No IX Concílio de Toledo, celebrado em 655, a preocupação com a prática cristã
por parte dos judeus conversos está explicitada no cânone XVII. Nele é decidido que os
judeus batizados devem celebrar os dias festivos junto com os bispos; trata-se aqui de
uma clara chamada de responsabilidade aos membros eclesiásticos, para que todos estes
participassem não somente da conversão, mas igualmente da continuação das práticas
cristãs pelos novos fieis. Vives (1963: 805) apresenta a passagem, citamos:

Los judíos bautizados , en cualquier lugar que se hallen el resto del año, sin
embargo, en las fiestas principales consagradas en el nuevo testamento, y en
aquellos días que en otro tiempo tenían como solemnes por determinación de
la ley antigua, mandamos que los celebren en las ciudades con públicas
reuniones, en unión de los sumos sacerdotes de Dios, para que el obispo
conozca su modo de proceder y su fe, y en ello se ajusten a la verdad. El
violador de esta ley, según lo permita su edad, será castigado con azotes, o
con abstinencia.

O cânone VII, já no X Concílio de Toledo de 656, proibia que os cristãos,


clérigos ou não, vendessem escravos cristãos para os judeus, como modo de evitar que
esses escravos, sob a autoridade judaica, fossem convertidos à fé herética. O cânone

5 Sobre este personagem, recomendo a leitura da obra de RIVERA RECIO, J. F. San Ildefonso de
Toledo. Biografia, época y posteridad. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1985; bem como
ROMÃO, P. M. De Isidoro a Ildefonso, Teologia Política e Política eclesiástica na Hispania Visigoda
do século VII. Dissertação de Mestrado.UFPR. Curitiba, 2004.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOS MEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


120
apresenta-se um tanto longo, com um grande discurso mostrando como tal atitude seria
considerada pífia, não somente aos olhos da lei do reino, mas também aos olhos de
Deus, já que em troca de lucro algumas pessoas acabam entregando almas cristãs à
heresia judaica. Tais criminosos seriam julgados sem benevolência no dia do juízo final,
conforme Vives (1963:818) apresenta: “¿Qué le aprovecha al hombre aunque gane todo
el mundo, si su alma sufre algún detrimento?”.
Após o X Concílio, o reino visigodo passou então um longo período sem
promover essas reuniões novamente. Objeto de estudos e análises, o fato de Recesvinto
não continuar convocando esses encontros acaba deixando um grande vácuo de
informações em relação ao período, o qual vai até a convocação do próximo concílio, o
XI em 675, já com o sucessor no trono, Wamba. Os bispos fizeram várias reflexões
sobre os anos sem reuniões eclesiásticas, onde segundo eles o reino caiu nas artimanhas
da imoralidade e da falta de fé.
Portanto não sabemos se durante esse período ocorreram ou não mudanças
significativas em relação às leis antijudaicas, e isso por conta da falta de informações.
Provavelmente não, assim considerando que o mote do reinado de Recesvinto seguia
claramente a política anti-herética do pai, Chindasvinto.
Pois bem, o acirramento das relações por parte da Igreja e do poder régio no que
se refere aos judeus acaba ganhando fôlego novamente com o sucessor na realeza,
Ervigio (680-687). Este não somente renovou o cânone XVII, do IX Concílio de
Toledo, como também reforçou a questão antijudaica durante o XII Concilio toledano
de 681, onde foram promulgadas 28 leis dedicadas aos judeus. Ervigio, de acordo com
Thompson (2007: 277-278), “se mostro casi tan fanático como Recesvinto en su actitud
hacia los judíos”, solicitando diretamente ao concílio: “extirpas elas pestilentas raíz y
rama del árbol judio”.
Demonstrando-se um tanto quanto obcecado em relação à necessidade de
manutenção do seu trono, Ervigio começou então a ver ameaça em qualquer um dos
ramos da sociedade que fosse diferente do modelo godo, ou mesmo que divergisse do
seu pensamento. A pressa por ele manifestada em estabelecer imediatamente essas leis
antijudaicas fez com que o rei exigisse que os bispos e clérigos reunissem todos os
membros da comunidade de judeus e, perante eles, lessem as 28 leis conciliares, além
de arquivar em suas igrejas toda a documentação referente à abjuração de conversão

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOS MEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


121
judaica. Assim, em 27 de janeiro de 681, na presença dos judeus toledanos, as leis
foram lidas na Igreja de Santa Maria.
Importante dizer neste momento que, mesmo com todas essas pesadas leis,
Ervigio aboliu a pena de morte instaurada por Sisebuto para todos os judeus que
praticassem o proselitismo ou não obedecessem corretamente às leis.
De todo modo, Ervigio, ainda que abolindo a pena de morte a que nos referimos
acima, acabou mantendo penas igualmente duríssimas no que ele considerou diversos
outros “delitos judaicos”, como as penas referentes à circuncisão. Nesse caso,
circuncidado e circuncidador teriam seus genitais amputados e perderiam todos os seus
bens; por ventura, caso o circuncidador fosse uma mulher, perderia também seus bens e
seu nariz seria cortado.
O rei teve um grande aliado em seu projeto de perseguição aos judeus, o bispo
metropolitano Juliano de Toledo; este, embora apresentasse descendência judaica, foi
um feroz condenador das leis mosaicas e de todos os seus seguidores. Escreveu diversas
outras obras de natureza dogmática e antijudaica, para além da citada anteriormente.
Seu fervor nessa questão dos judeus, como verificamos, era realmente forte; por
exemplo, em sua obra Responsiones, Juliano reitera fervorosamente todas as medidas
então defendidas por Ervigio. E na dedicatória desta obra, inclusive, chama ao rei para
que “en el día del juicio sería dispensado del castigo si pisoteaba el cuello de los
enemigos de Cristo y mantenía valientemente em alto el estandarte de la fe Cristiana”
(THOMPSON, 2007:281).
Com a morte de Ervigio, seu genro Egica (687-702), assume o trono, nomeado
pelo sogro. Decidido a banir definitivamente os judeus do reino, o rei tentará inclusive
escravizá-los, como forma justamente de coibir o sustento deles; meio pelo qual ele
ainda garantiu certa “liberdade”, através de subornos, e isso apesar de todas as leis
acima decretadas.
Em 9 de novembro de 694, realizou-se o XVII Concilio toledano, este
convocado pelo rei; Egica, desde o começo, esclarece que sua principal discussão seria
o “problema judaico”. Motivado por “notícias” de rebeliões judaicas contra governantes

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOS MEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


122
cristãos, o monarca tentará escravizar os judeus de seu reino, como afirmamos acima.
Segue o tópico em questão do Concílio, chamado “De la condenación de los judíos”6:

...mandamos que por sentencia de este nuestro decreto sean castigados con
irrevocable censura:...se trate de extirparlos con más rigor, privándoles de
todas sus cosas, y aplicándolas al fisco, quedando además sujetos a perpetua
esclavitud en todas las provincias de España las personas de los mismos
pérfidos, sus mugeres, hijos y toda su descendencia, espelidos de sus lugares,
y dispersándoles, debiendo servir á aquellos á quienes la liberalidad real los
cediera; ni por ningun motivo mientras sigan en la obstinacion de su
infedilidad, les permita volver al estado de ingenuidad (libertad), porque
quedaron completamente infamados por el gran numero de sus maldades. Y
decretamos también que por elección de nuestro principe se designen algunos
de los siervos cristianos de los mismos judios, para que reciban por via de
peculio de la propiedad de estos lo que el referido Señor nuestro quisiere
darles por la serie de las autoridades ó por las escrituras de la libertad; y que
los referidos siervos contribuyan sin alegar escusa alguna con lo que hasta
aquí han pagado al fisco los mismos judíos." (...) Y respecto a los hijos de
ambos sexos decretamos que luego como cumplan los siete años se los
separe de la compañía de sus padres, sin permitirseles ningún roce con ellos,
debiendo entregarlos sus mismos señores á cristianos fidelísimos para que los
eduquen, con objeto de que los varones lleguen a casarse con mujeres
cristianas y viceversa...( )

As rigorosas leis impostas por Égica aos judeus foram, no entanto, aliviadas por
alguns membros da igreja, os quais consideravam todas elas rigorosas demais. Mas esse
afrouxamento não ocorreu em outras partes do reino, onde a comunidade judaica sofreu
com a intensa intolerância visigoda.
Nesse sentido, devido às leis antijudaicas e às diversas perseguições então
sofridas dentro do reino hispano visigodo, judeus conversos auxiliaram a invasão
muçulmana que ocorreu desde Gibraltar7; estes judeus apoiantes foram motivados pelas
notícias de certa tolerância por parte dos governantes muçulmanos em relação aos
judeus e cristãos, nos territórios do norte da África por eles comandados. Somente após
esse feito, de fato, a comunidade judaica pode continuar seus rituais religiosos,
exercendo inclusive atividades dentro da corte muçulmana. Mas isso, ressaltamos,
somente seria alcançado no século VIII.

6 Conforme verificamos em: ESPAÑA VISIGODA: Los Concilios de Toledo sobre los esclavos de la
Iglesia; y sobre la esclavitud y los judíos. Disponível em: www.cedt.org/visigod2.htm. Acesso
21/06/2015
7 Recomendo a leitura de MORENO, L.A.G. El fin del reino Visigodo de Toledo. Decadencia y
catástrofe, una contribución a su crítica. Madrid: Universidad Autônoma de Madrid, 1975.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CASTELLANOS, S. Los Godos y la Cruz. Recaredo y la Unidad de Spania. Madrid:
Alianza Editorial, 2007.
ISIDORO DE SEVILHA. Etymologiarum. Ed. de Lindsay (latim). Trad. para o
espanhol de J.O.Reta e M. A. A. Casquero, com introdução de Manuel C. Díaz y Díaz.
Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1982.
ORLANDIS, J. El Rey Visigodo Católico. In: De la Antigüedad al Medievo (siglos IV
– VIII ) – III Congreso de Estudios Medievales. Ávila: Fundación Sánchez, Albornoz,
1993. p. 49-61.
PEREZ, J. Los judíos en España. Madrid: Marcial Pons, 2009.
SAN ILDEFONSO DE TOLEDO. La Virginidad Perpetua de Santa Maria. Edición
Crítica Bilíngue por Vicente Blanco. Biblioteca de Autores Cristianos: Madrid, 1971.
SERRANO, R. S. Historia de Los Godos. Una Epopeya Histórica de Escandinavia a
Toledo. Madrid: La esfera de los Libros, 2009.
SILVA, G. V. João Crisóstomo e o conflito com os judeus e judiaizantes de Antioquia,
PHILÍA - Informativo de História Antiga, Rio de Janeiro, n.32, p.3, 2009.
THOMPSON, E. A. Los godos em España. Madrid: Alianza Editorial, 2007.
VIVES, J. (org.). Concílios Visigóticos e Hispano-Romanos. Madrid: CSIC, Instituto
Enrique Florez, 1963.

SITES:
ESPAÑA VISIGODA: Los Concilios de Toledo sobre los esclavos de la Iglesia; y
sobre la esclavitud y los judíos. Disponível em: <www.cedt.org/visigod2.htm>. Acesso
em: 21 jun. 2015.
eHumanista - Journal of Iberian Studies. Vol. 29. Disponível em:
http://www.ehumanista.ucsb.edu/volumes/volume_29/index.shtml. Acesso em: 20 jun.
2015.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOS MEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


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ENTRE O IMAGINÁRIO E O VIVIDO – AS
REPRESENTAÇÕES DOS PADEIROS NA CATEDRAL DE
CHARTRES (FRANÇA – SÉCULO XIII) 1

Debora Santos Martins


PPGH-UFF/Scriptorium
Mestranda/CNPq

RESUMO: Estudo sobre os vitrais da catedral de Chartres que representam os ofícios e


suas organizações confraternais no âmbito da cidade, focalizando o ofício dos padeiros.
Do ponto de vista espacial, além da própria catedral, tomamos como referência a cidade
que a abriga e com quem espacialmente se relaciona. Partiu-se do princípio de que os
dados figurativos estruturam-se nos quadros imaginários da cristandade e das grandes
narrativas bíblicas. Portanto, não consideramos a relação imagem/texto como um
espelho da realidade ou diretamente estruturada num contexto. A ideia central é a de
que existe uma cultura visual presente nestas representações, elas mesmas estruturantes
deste universo.

Palavras-chave: Vitrais de Chartres, Corporações de Ofício, padeiros

RESUME: Étude sur les vitraux de la cathédrale de Chartres qui represent les offices et
les organisations confraternales urbaines, specialement les boulangeurs. Sur le point de
vue espacial, au-délà de la cathédrale, on prend la référence de la ville qui la situe et
qu’il est établit une relation. On part du principe que les donnés figuratifs se structurent
dans les quadres imaginaires du christianisme et dans les narratifs bibliques. Ainsi, on
ne considere pas que le rapport image/texte comme un reflexe direct de la réalité ou
simplement structuré dans un contexte. L’idée centrale est que existe une culture
visuelle présente dans ces répresentations, ces dernières sont une structuration de cet
univers. En effect, les fonctions de l’image sont multipliés et rendent présents les grands
ideaux du christianisme.
Mots-clés: Vitraux a Chartres, Corps de métiers, boulangeurs

Esta pesquisa, ainda em fase inicial, analisa os vitrais da catedral de Chartres2,


elaborados no século XIII, que representam os ofícios e suas organizações em
Communautés des Arts et métiers no âmbito da cidade, focalizando o ofício dos

1 Projeto orientado pela Profa. Dra. Vânia Leite Fróes, titular de História Medieval da Universidade
Federal Fluminense.
2
Todas as imagens utilizadas neste estudo foram captadas por Debora Santos Martins, autora da pesquisa,
em visita científica à catedral de Chartres entre os meses de maio e junho de 2013, com equipamento
digital Cannon SX50HS.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOS MEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


125
padeiros. Do ponto de vista espacial, além da própria catedral, toma-se como referência
a cidade que a abriga e com quem espacialmente se relaciona.
Parte-se, portanto, do princípio de que os dados figurativos medievais
estruturam-se nos quadros imaginários da cristandade e das grandes narrativas bíblicas.
Portanto, não consideramos a relação imagem/texto como um espelho da realidade ou
diretamente estruturada num contexto. A ideia central é a de que existe uma cultura
visual presente nestas representações, elas mesmas estruturantes deste universo
(FRÓES, 2012). Dessa forma, multiplicam-se as funções da imagem que presentifica os
grandes ideais da cristandade.
Nesse sentido, a imagem medieval constitui-se como um objeto privilegiado de
aproximação da vivência social, permitindo-nos questionar sobre a imposição ou um
tipo de proeminência por parte da Igreja sobre a norma social (ou dos detentores do
poder) num período (séculos XII e XIII) em que se atestam profundas mudanças na
concepção da categoria trabalho (LE GOFF, 2013).
Para tal, faz-se absolutamente necessário pensar a materialidade dessas
representações (FRÓES, 2009: 88). Os vitrais e a catedral são também objetos, artefatos
tridimensionais. É preciso percebê-los no quadro de uma iconosfera, conjunto de
imagens, que num dado contexto está socialmente disponível (MENESES, U. Apud
FRÓES, 2009: 88).
Eis aqui, portanto, a questão essencial: como os ofícios estão representados nos
vitrais da catedral de Chartres? Qual é o papel da cidade no contexto do reino de
França?
A cidade de Chartres está localizada na planície cerealífera de Beauce, no vale
do rio Eure, noroeste da França, a 90 quilômetros de Paris, a 80 km de Orléans, a 140
km de Tours, 110 km de Mans e 70 km de Evreux, o que faz da cidade um verdadeiro
entroncamento de rotas importantes, tanto comerciais quanto de peregrinação.
No século XIII, a cidade, cuja localidade é denominada de pays Chartrain,
pertencia ao domínio real, instaurado a partir de Paris. Encontramos já na documentação
do reino datada do século XII, ordenanças e editos na tentativa de controlar as
atividades e as relações comerciais entre a cidade e a capital do reino, Paris
(LESPINASSE & BONNARDOTT, 1879).

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOS MEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


126
A efervescente atividade urbana de Chartres favoreceu o aparecimento e a
organização do trabalho urbano. O Cartulário da Abadia de Saint-Père de Chartres
registrou os primeiros trabalhadores dos ofícios a partir do último terço do século XI,
em condição servil (ACLOQUE, 1917), muito embora as notações informem que esses
artesãos gozavam do fruto de seu trabalho e tinham o direito de passar o conhecimento
do ofício a seus descendentes.
Os padeiros e pasteleiros foram os primeiros ofícios ligados à alimentação a
serem registrados nesses documentos (o registro é precoce, antes de 1080), seguido
pelos açougueiros, numerosos desde o primeiro terço do século XI, quando a boucherie3
era um comércio de luxo, seguidos pelos cozinheiros, charcuteiros, mercadores de
vagens e legumes secos, os saleiros, os taverneiros e os viticultores. Em meados do
século XII, os ofícios citadinos são, de forma geral, registrados e fixados.
Como em toda cidade medieval os ofícios estão arruados, constituindo os
mesterais em padrão de organização do espaço urbano. Dessa relação da cidade e da
catedral com os ofícios urbanos, Chartres ainda abriga no nome de suas ruas.
A catedral Notre-Dame d’Assomption de Chartres4 é um dos mais belos e
completos exemplares da arquitetura gótica, e sua construção data do período de 1194-
1260 (data da sua consagração, na presença de Luís IX), mas os registros da catedral
nos informam que, no essencial, sua reconstrução após um incêndio foi concluída em
1220.
É importante sublinhar que em Chartres a relação dos ofícios urbanos com a
catedral é singular: é um dos raros exemplos em que eles estão representados em
profusão dentro da própria catedral. Essa singularidade não se deve às representações
propriamente ditas ou às relações entre os ofícios urbanos e a catedral5, mas a uma
relação muito mais sensível: os ofícios urbanos de Chartres constituem-se no segmento
social que mais vitrais doaram à catedral, isto considerando apenas os vitrais
atestadamente oferecidos pelas corporações e que apresentam as assinaturas6 dos

3 O ofício ligado ao abate e comercialização de carne e miúdos.


4 Nossa Senhora da Assumpção (dedicada à Ascensão de Nossa Senhora).
5 Em medidas variáveis caso a caso, essas representações do trabalho urbano figuram nas catedrais
góticas de forma geral, seja na estatuária - como no caso da estatuária de Amiens - ou mesmo nos vitrais -
como no caso da Notre-Dame de Paris em que as corporações também fizeram doações.
6 Constituem-se de cenas desses ofícios em plena ação, localizadas na base (borda inferior) do vitral.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOS MEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


127
ofícios7, dispostos diferentemente pela catedral, classificados entre vitrais altos e baixos
datados do século XIII.
Essas assinaturas constituem-se de cenas em que são representados
trabalhadores em plena ação, o ofício e tudo o que o cerca: os utensílios, o gestual, as
relações sociais, a divisão social do trabalho e o espaço das oficinas.
Segundo Jeanine Sauvanon, Chartres apresenta o maior conjunto iconográfico de
representações dos trabalhadores medievais – os laboratores – incluindo as devoções
relacionadas aos ofícios e possibilitando uma aproximação com a história social do
trabalho e dos trabalhadores da Idade Média.
A corporação dos padeiros da cidade de Chartres doou cinco vitrais para a
catedral (sendo dois em baia contígua e três em baias independentes. Quatro destes
vitrais em janelas altas e um vitral em janela baixa). Sua importância na cidade é
reforçada pela sua doação: essa oferta é a mais importante doação feita pelas
corporações à catedral, tanto em quantidade, quanto em relação à localização, posto que
três dos cinco vitrais encontram-se na área do coro, nas janelas altas (sendo que dois
deles localizam-se no centro do coro), área central do culto cristão.

Planta baixa da catedral de Chartres onde estão marcados os vitrais doados pelos padeiros.

No Livro dos Ofícios de Paris, os padeiros são a primeira comunidade de ofícios


(LESPINASSE & BONNARDOT, 1879: XCVI) a ser relacionada por Etienne Boileau
no primeiro grupo (grupo da alimentação). Vale dizer que este ofício recebeu privilégios
e regulamentações sobre as suas atividades desde o século XII (ao menos, são os
registros mais longínquos) sob Filipe Augusto. Essas ordenações reais direcionavam-se,

7 Cinco desapareceram, restam 45 vitrais doados pelas corporações ainda hoje na catedral de Chartres,
num total de 176 janelas.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOS MEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


128
em sua maioria, para arbitrar os conflitos entre os padeiros de Paris e aqueles da planície
cerealífera de Beauce, onde se localiza Chartres.
No século XIII, o ofício dos padeiros teve o seu estatuto (junto ao das demais
corporações) registrado pelo preboste da cidade de Paris, homem do rei Luís IX. O
regulamento é composto de sessenta e um artigos, alguns dos quais registram os
privilégios e direitos estabelecidos por Filipe Augusto, como o valor do hauban, fixado
na soma de seis soldos anuais pagos no dia 1º de novembro e o recolhimento semanal
do costume que garante a exclusividade e o direito de somente os padeiros de Paris
venderem pão todos os dias da semana, salvo aos sábados, em que os padeiros dos
arredores de Paris, incluindo os de Chartres, podiam vender seus pães no mercado. Uma
terceira taxa, instituída nos regulamentos do século XIII, de nome Tonlieu era cobrada
sobre as vendas, semanalmente, em duas partes: na quarta-feira, cada padeiro devia
pagar com um pão, chamado de demie pain, e no sábado, um denário. Além disso, o
costume estabelecia que cada padeiro deveria pagar por ocasião do Natal, 10 denários;
na Páscoa, 22 denários; em São João, 5 denários, somando 37 denários ao todo.
O sistema de aprendizado não é regulado no estatuto e não há qualquer menção à
quantidade permitida de aprendizes ou ao tempo estipulado para a aprendizagem do
ofício. Quanto à organização interna do ofício, o que se registrou foi a existência de um
mestre, denominado joindre ou jindre, que era auxiliado por ajudantes chamados de
vanneurs, bluteurs ou petrisseurs. Aos mestres também era reservado o direito de
ensinar o ofício aos seus herdeiros e descendentes.
Os estatutos fixavam uma distinção entre os novos padeiros e os antigos, que se
materializava na cobrança das taxas com valores diferentes. Esse procedimento pode
indicar uma espécie de sistema de aprendizagem. No que respeita à ascensão ao
mestrado, o candidato deveria fazer uma espécie de estágio com uma duração de quatro
anos, durante o qual pagava 25 denários referentes ao costume. Ao fim deste período e
comprovado o recolhimento das quatro taxas anuais, o mestre padeiro podia estabelecer-
se numa maison própria.
A cerimônia de recepção ao mestrado é descrita no artigo XIII do estatuto. O
novo mestre padeiro deve receber os outros mestres, ou as “gentes do ofício”, à porta da
padaria e mostra ao oficial que recolhe o costume, o seu registro marcado por quatro
entalhes que reconhece e concede o aval. Uma vez autorizado, é servido o banquete

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129
cozido pelo novo mestre. Essa cerimônia tinha a data estabelecida a cada primeiro
domingo do mês de janeiro.
O pão produzido então tem a forma de uma bola8 e os estatutos mencionam três
formas de elaborá-lo: dobrado, vendido por dois denários; o meio-pão, vendido por um
centavo; e o pão comum, a boule, vendido por um denário. É concedido ao ofício o
privilégio de fabricar pão desde a primeira hora da segunda-feira.
Como este estatuto regula o exercício do ofício especificamente na cidade de
Paris, é necessário observar que o recolhimento do hauban suprimia as complicações na
cobrança de impostos sobre a compra da farinha e porcos (que eram alimentados com os
restos da produção das padarias).
Em Chartres, os padeiros e os moedores de trigo (produtores da farinha) formam
um mesmo corpo de ofício. A cidade é considerada o celeiro de Paris, cuja planície
produzia cereais com qualidade e em abundância. Essa boa reputação do grão de Beauce
remonta um passado distante. Lutèce9 batizou seu mercado de cereais de “Salões de
Beausse” e uma rivalidade feroz nasceu entre os padeiros parisienses e os da província.
A variedade de produtos oferecidos era grande. Os padeiros de Chartres ofereciam pães
(sob a forma de bolas) e pastéis produzidos com diversos tipos de farinha, como o
fromento, o centeio, o trigo e a aveia. Em Chartres, os padeiros tinham um salão
particular:
Ils louaient ce “Palais des Noces”, au chapitre de la cathédrale, qui y avait
fait construire un four. Une allée étroite séparait deux rangées de neuf et six
étals. Six autres tables étaient disséminées dans la halle. Certains artisans
ouvraient aussi boutique dans un local attenant à leur maison. Le pain était
alors vendu à la fenêtre du fournil, agencée comme une sorte de vitrine.10
(SAUVANON, 2009: 19)

Essa descrição do salão de pães que se estabeleceu no capítulo da catedral (e a


construção de um forno), não só nos informa que o espaço utilizado pelos padeiros
estava associado diretamente à catedral, mas igualmente sobre a representatividade
considerável do ofício na cidade (uma vez que o espaço é composto de “duas linhas de
seis e nove baias” e de “seis mesas espalhadas pelo salão”, o que é reafirmado pela

8 Origem do nome Boulangers.


9 Nome antigo da cidade de Paris.
10 Livre tradução: “eles estabeleceram o “Palácio de Núpcias” no capítulo da catedral, onde fizeram
construir um forno. Um beco estreito separava duas linhas de nove e seis baias. Seis outras mesas estavam
espalhadas por todo o salão. Alguns artesãos também abriam a boutique de pães numa casa adjacente às
suas instalações. O pão era então vendido pela janela da padaria, agenciada como uma espécie de vitrine”.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOS MEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


130
quantidade (cinco vitrais) e localização dos vitrais doados à catedral pela corporação).
Estes vitrais encontram-se em áreas privilegiadas do coro (três deles nessa área e dois
vitrais contíguos na entrada da nave) sendo um deles o vitral central do coro,
representando a Virgem.
As diferentes formas de comercialização no salão de pães e na boutique estão
representadas nos medalhões dos vitrais, mas a configuração desta segunda, que
expunha os produtos na janela (que era usada como vitrine) não está referenciada. Em
todos os cinco vitrais há, pelo menos, um medalhão em que figura a venda dos pães.
Vale observar que a imagem do pão sendo trocado por uma moeda recorre em duas
composições (vitral da História dos Apóstolos [0], localizado na capela do Sagrado
Coração e vitrais contíguos de São Pedro e São Tiago Maior [140], localizados na nave,
ao lado direito, próximos à entrada da catedral), e numa delas é evidente a representação
do cambista judeu em seu ofício (vitral da História dos Apóstolos [0], segundo
medalhão), o que pode nos informar sobre a presença maciça dos judeus nesse ofício ou
apenas se tratar de um recurso iconográfico para representar um ofício em que a
presença dos judeus é marcante. É importante ressaltar que estes são os dois ofícios que
mais doaram vitrais para a catedral.

Detalhe dos três medalhões que compõem a assinatura do vitral História dos Apóstolos

A cidade de Chartres era um importante (em quantidade e qualidade) centro


produtor de grãos (sobretudo de trigo), conforme já mencionado, e os padeiros são

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importantes trabalhadores da cidade, rivalizando com os de Paris, inclusive. Sua
corporação era numerosa, como visto na descrição da citação anterior e, é possível que
controlassem a venda do trigo e as atividades de moagem e produção da farinha, o que
aumentaria a sua representatividade e peso no corpo citadino.
Mas Chartres é também conhecida por ser um importante ponto de peregrinação
e parte da via dos peregrinos que se dirigem a São Tiago de Compostela e os cambistas
são importantes nessas rotas, garantindo crédito, praticando o câmbio e fazendo
empréstimos. No vitral dedicado a São Pedro (140) (porém, inelegível), o pão e a moeda
possuem o mesmo tamanho. No entanto, no medalhão central do vitral A História dos
Apóstolos (0) o cambista representado conserva os olhos fixos na moeda que entregou
ao vendedor de pães. Seria um sinal de associação ou de marcada distinção entre essas
duas corporações? Que tipo de relações têm elas? Para estabelecer essa relação, se faz
necessário um aprofundamento da pesquisa nessa direção.
No primeiro medalhão dos doadores do vitral História dos Apóstolos (0), a
composição do vitral indica uma equivalência entre o apostolado e o ofício de padeiro.
O tamanho das figuras sempre proporcional cria uma homogeneidade no conjunto e
parece unificar a temática dos Atos com as dos padeiros em ação, representados na
barra. O padeiro que trabalha a massa com o rosto de Jesus impresso nela, é o
colaborador de Deus na criação do alimento, é aquele que produz o alimento sagrado, o
próprio corpo de Cristo. Nesta representação o rosto do Cristo aparece na massa ainda
sovada, ou seja, o produto do trabalho (o pão) é sacralizado desde o início da sua
elaboração, forjando uma espécie de elevação de seu ofício (um ofício braçal) na
hierarquia social.
Nesse medalhão o ambiente da casa de pães é representado. A mesa de trabalho,
a cremalheira, o suporte das sacas de farinha e as portas abertas para as ruas. Nesse
sentido não há nenhuma representação de uma padaria expondo seus produtos na janela
(transformada em vitrine). O que se percebe é uma grande quantidade de cestos de pães
oferecidos nas ruas, carregados em direção ao mercado. O mercado de pães é a maior
referência do comércio desse produto nos medalhões (representado em, pelo menos, três
medalhões com certeza, uma vez que na cena de venda do medalhão do vitral de São
Pedro não podemos identificar onde se dá a venda).

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132
É interessante observar que os medalhões representam pesadamente a “gente do
ofício”, melhor dizendo, a composição dos trabalhadores das maisons ou padarias. No
regulamento dos padeiros de Paris não há menção ao regime de aprendizagem. Nos
medalhões, no entanto, eles estão representados em profusão (em quatro medalhões
distribuídos pelos cinco vitrais doados: medalhões 1 e 3 do vitral História dos Apóstolos
(0); medalhão central do vitral dedicado a São Tiago de Maior (140), e no medalhão
central do Vitral da Virgem (100), localizado no centro do coro da catedral). A “gente
do ofício”, aqueles trabalhadores remunerados que são também os mais numerosos, é
muito representada (em quatro medalhões distribuídos pelos cinco vitrais: nos
medalhões 1 e 2 da História dos Apóstolos [0]; no medalhão central do vitral dedicado a
Moisés e Isaías [102] e no medalhão central dedicado à São Pedro [140]). No terceiro
medalhão da História dos Apóstolos (0), reconhecemos uma figura feminina no
exercício do ofício. No regulamento, não há interdição com relação ao ofício ser
exercido por mulheres.
O vitral dedicado aos Apóstolos alinha-se a leste e aos vitrais altos do coro,
especialmente aquele da Virgem (100). O sacerdote cristão que oficiava o rito realizava-
o voltado para esta direção, a do nascer do sol, a mesma da iluminação física e
espiritual. É também a direção que se alinha à planície fértil de trigo do Beauce, o
mesmo trigo que virará o pão da Eucaristia “para os cristãos, Cristo era a Luz do
Mundo, que vem com a Eucaristia”, cujo culto ganha força nesse período.

Detalhe do primeiro medalhão do vitral História dos Apóstolos, onde se percebe o rosto do Senhor
na massa sovada pelo padeiro

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Nesses vitrais altos do coro, o que é dedicado a Moisés e Isaías (102) apresenta a
temática da promessa, misturando figuras vetero-testamentárias às neo-testamentárias,
seguindo o programa de Santo Agostinho, em que o Novo Testamento “explica” o
Velho Testamento. Neste sentido, podemos observar a figura do Deus Pai representado
por Jesus (movimento cristocêntrico do período, já bem consolidado) na revelação de
Deus a Moisés sobre a Terra Prometida ao Povo Eleito.

Plano geral do vitral dedicado a Moisés e Isaías, localizado no coro da catedral

Os chifres em Moisés podem fazer referência ao livro de Daniel (Daniel 7: 6-7 e


19-27), em que o animal de chifres, aqui representado como o carneiro com os chifres
apontando para baixo, representa as potências, os reinos da terra, que cairão na
revelação do profeta. É Moisés quem leva o povo hebreu de volta a Canaã, o povo
eleito, à terra prometida por Deus, o reino. O vitral que representa o profeta Daniel está
localizado ao lado desse vitral.
Os chifres de Moisés apontam para Isaías e parecem demonstrar que o
verdadeiro reino vem do alto, o que reafirma a conexão com o tempo da profecia que
está em Daniel. Isaías era um grande profeta, foi contemporâneo à queda de Samaria e à
resistência de Jerusalém ao cerco de Senaqueribe (pelos assírios, em 701 a.C). Ele

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134
recebeu o dom profético depois de uma visão do trono de Deus (sobre o qual está
sentado) através de Serafins (representado no medalhão imediatamente acima). Foi o
profeta que mais falou da vinda de um messias e sua visão profética focava-se em
Jerusalém e nas normas de conduta que levariam o homem a Deus ou à punição pelos
pecados. O carneiro (representado à direita de Moisés) marca no calendário os trabalhos
do mês de abril, o início da Primavera, época em que o clima é ameno, o leite é
abundante (por ocasião do nascimento dos novilhos), o tempo da temperança e da
promessa.
No último medalhão, um serafim atravessa o portal da cidade celeste, a
Jerusalém celeste. Assim, o programa iconográfico organiza a temática agostiniana da
cidade de Deus e da cidade dos homens, a promessa advinda da profecia. Neste vitral,
figura-se o movimento de descida ou de chegada da Jerusalém celeste na terra, o
cumprimento da promessa de Deus aos homens, visualizada por Isaias, buscada por
Moisés e realizada na catedral, representada pelo ofício que fabrica o pão da Eucaristia,
pela própria Eucaristia.
É interessante como os pés dos grandes personagens representados nesse vitral
essa ligação entre os tempos das cenas, estabelecendo uma continuidade. A alma,
segundo Tomás de Aquino, está em todas as partes do corpo. Nota-se que os pés de
todos os personagens representados nos vitrais estão figurados. Distinguem-se pela
riqueza (como no caso de Maria) ou simplicidade dos calçados, ou pela sua nudez.
Somente apresentam os pés nus aqueles personagens que são considerados como
portadores de uma natureza consubstanciada ao Pai, como os anjos e Jesus. Além disso,
os pés nus devem indicar uma natureza diferenciada dos santos e também o exemplo da
simplicidade e do desapego. Os pés estão em contato permanente com a terra, sem os
quais não se pode caminhar e fixam o lugar em que se está no mundo. Também o ofício
dos padeiros está em permanente contato com a terra da planície produtora de trigo de
Beauce. Talvez o controle do trigo e as atividades comuns de moagem e fabrico de pães
estejam também representadas aqui.
Vale ressaltar que a catedral é a representação do corpo de Cristo e os padeiros
doaram mais dois vitrais contíguos na área da entrada da nave, que corresponde aos pés
do Cristo. A área do coro corresponde, portanto, à cabeça do Cristo. Podemos também
extrair dessa relação estabelecida pela iconosfera a representação da natureza ambígua

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135
do ofício, já que o pão é alimento para o corpo (os pés, a terra, a humanidade de Jesus) e
para o espírito (a cabeça, a Eucaristia).
No Vitral da Virgem (100), devido à sua localização, o sol nascente banha de luz
a composição que apresenta os olhos bem marcados. Segundo Tomás de Aquino, a
visão é o mais importante sentido no homem, através dele podemos “tocar” tudo o que
existe. A visão é produto da relação entre os olhos e a luz e, na materialidade da
catedral, o efeito produzido pela iconosfera evoca uma aproximação entre o homem e
Deus através da luz, uma vez que Deus é Luz, e uma luz que toca diretamente todas as
coisas por ela criadas. Essa relação está bem marcada nessa composição que apresenta
os traços de seu desenho bem diferenciados dos outros vitrais, talvez para organizar as
mesmas concepções apresentadas por Tomás de Aquino.

Detalhe da assinatura dos padeiros, medalhão único, vitral da Virgem.

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Plano geral do vitral da Virgem, localizado no centro do coro da catedral

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A Virgem Maria é a devoção principal a quem a catedral foi consagrada. Maria
representa a ascendência terrena de Jesus. Sua natureza é humana, e seus atos,
representados em profusão na estatuária dos portais e nos vitrais são os passos da vida
humana: nascimento, educação, casamento e morte. Estas fases são marcadas pelo
exemplo de sua santidade predestinada, escolhida por Deus para dar a luz ao Messias.
Maria prefigura o exemplo a ser seguido, marcadamente pela figura de uma mulher,
gênero depreciado pelos feitos de Eva.
As questões e análises aqui apresentadas permitem-nos questionar sobre a
imposição ou domínio por parte da Igreja sobre a norma social (ou dos detentores do
poder). Ao cotejarmos os documentos produzidos com a intenção da normatização ou
da formalização dos costumes, observamos uma tensão produzida por interesses e
concepções advindas de todos os segmentos sociais envolvidos no processo. Com a
finalidade de aumentar os conhecimentos e promover uma aproximação mais efetiva
com esse movimento maior de tensão social que entendo como mais verossímil à vida
dos homens e mulheres medievais, um aprofundamento da pesquisa nesse sentido está
em curso.
À guisa de conclusão, o que se verifica é um caráter de negociação, de
composição, com a participação dos muitos segmentos sociais na construção e nas
mudanças das mentalidades, tomando como ponto de partida os ofícios medievais (num
período de profundas mudanças na concepção do trabalho) nos vitrais da catedral de
Chartres. Deste ponto privilegiado de observação, essas mudanças e as relações
estabelecidas parecem mediadas, e as imposições, tentativas de controle sobre o social
que corresponde e propõe suas próprias interpretações e ordenações.

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XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOS MEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


139
O PENSAMENTO MISÓGINO MEDIEVAL EM CONFISSÕES, DE
SANTO AGOSTINHO

Edilson Alves de Souza


Universidade Estadual de Goiás
Mestre, FAPEG

RESUMO: Sabe-se que, desde a antiguidade clássica, a mulher é alvo de


inferiorizações, muitas, sem dúvida, justificadas pelo contexto de formação das
civilizações, às quais ela pertencia. A mulher foi constantemente qualificada como
perversa, pecadora, cobiçosa, degradante, desviante e um conjunto de adjetivos que
difamaram sua imagem. Platão, Aristóteles e seus continuadores, Agostinho e Tomás de
Aquino, em seus escritos, desvelam essa consciência derrogatória sobre a figura
feminina. Agostinho, dentre esses, obedecendo à ordem interpretativa falocêntrica cristã
derivada da exegese bíblica paulina, deixa claro que a existência da mulher contribuiu
para a metafísica cristã sobre o pecado, destacando que é por causa dela que o homem
cedeu ao pecado e deixou uma herança maculada e maculatória para a humanidade.
Esse é um dos transbordamentos das obras agostinianas que guiaram o pensamento
medieval e pós-medieval. Por causa disso, Agostinho se torna uma das fontes patrísticas
que ajudou a manter o ideário negativo sobre o feminino e que auxilia a compreender a
manifestação da misoginia e as suas motivações. Nessa direção, pretendemos com esse
trabalho investigar as motivações bíblicas da misoginia latentes no livro XIII das
Confissões.

Palavras-chave: Santo Agostinho, Confissões, Misoginia

ABSTRACT: It is known that, since classical antiquity, the woman is inferiorization’s


target, many of these are, undoubtedly, justified by the context of formation of
civilizations, to which she belonged. The woman was constantly described as wicked,
sinful, covetous, degrading, devious and a set of adjectives that defamed her image.
Plato, Aristotle and their followers, Augustine and Thomas Aquinas, in their writings,
unveil this derogation awareness of the female figure. Augustine, among these,
following the Christian phallocentric interpretive order derived from Pauline biblical
exegesis, makes it clear that the existence of women contributed to the Christian
metaphysics about sin, highlighting that it is because of her that the man gave in to sin
and left a tarnished and stainer legacy for humanity. This is one of the spillovers of the
Augustine’s works that guided the medieval and post-medieval thought. Because of this,
Augustine becomes one of the patristic sources which helped keep the negative ideas
about female and that helps to understand the manifestation of misogyny and its
motivations. In this direction, we intend with this work to investigate the biblical
motivations of latent misogyny in the book XIII of the Confissões.

Keywords: Saint Augustine, Confissões, Misoginy

Não permito que a mulher ensine, ou


domine o homem. Que conserve, pois, o silêncio.
Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva.
1 Timóteo 2, 12-13

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


140
Introdução
A epígrafe acima é retirada de uma das várias epístolas orientacionais de Paulo
às primeiras sociedades cristãs. Era por meio dessas cartas que o apóstolo tratava da
organização dos diversos aspectos do culto e das crenças; das advertências sobre a
transmissão dos ensinamentos de Jesus Cristo; e, também, organizava as comunidades,
determinando qual devia ser a obrigação, o comportamento e o lugar de cada um (dos
mais jovens aos mais velhos; dos leigos aos ministros; dos homens às mulheres). Foi em
uma dessas oportunidades que Paulo orientou: “Não permito que a mulher ensine, ou
domine o homem. Que conserve, pois, o silêncio” (1 Timóteo 2: 12-13). O apóstolo
Paulo ficou conhecido pela repercussão de seus posicionamentos bastante firmes e
severos. Além disso, também, pesaram/pesam sobre sua biografia os aspectos negativos
de suas colocações inferiorizantes sobre as mulheres.
Asseverar sobre a inferioridade da mulher, ou sobre a elevação do homem em
detrimento dela, não é uma novidade das Sagradas Escrituras. Desde a antiguidade
aristotélica, a figura feminina foi alvo de derrogação. No entanto, foram os ecos bíblicos
que, mais nitidamente, entusiasmaram os escritos de Aurelius Augustinus Hipponensis,
conhecido como Agostinho de Hipona, ou mesmo, Santo Agostinho. Influenciado pelas
exposições iniciais do livro de Gênesis e por algumas afirmações das epístolas do
Apóstolo Paulo – que são, em certa medida, uma reverberação daquelas expressas no
livro de Gênesis –, Agostinho é tomado, por muitos, como uma fonte de engendramento
da cultura misógina, principalmente, pelo inegável alcance de suas ideias no período
medieval e pós-medieval.
Em Confissões, por exemplo, Agostinho afirma que, em meio a harmonia
genesíaca, a mulher é destacada como o primeiro ser humano pecador e, por isso, deve
ser submissa ao homem que ela levou ao pecado. Ante tal constatação, deter-nos-emos,
nesse trabalho, na análise de uma das obras agostinianas mais famosas, Confissões,
especialmente do livro XIII.
Nossa pesquisa é produto parcial do projeto intitulado “Mulher difamada e
mulher defendida no pensamento medieval: textos fundadores”, que integra a Rede
Goiana de Pesquisa sobre a Mulher na Cultura e na Literatura Ocidental, da Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG). O projeto, por sua vez, tem por
objetivo “examinar, comentar, interpretar e criticar os diversos pronunciamentos

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


141
textuais significativos de difamação e de defesa da mulher em obras e autores
fundamentais da Idade Média”. A pesquisa, coordenada pelo professor Dr. Pedro Carlos
Louzada Fonseca, recebe apoio financeiro dessa instituição de fomento para o período
2013-2016.

Santo Agostinho
O filósofo cristão é portador de uma das biografias mais conhecidas. Porém,
diante dos nossos propósitos investigativos, é importante pontuarmos alguns momentos
da vida dele. Agostinho nasceu em 354 d. C., em Tagaste, norte da África, na região do
Baixo Império. Filho de Mônica, católica e corresponsável pela sua conversão ao
cristianismo, e Patrício, pagão, que se esforçou para que Agostinho tivesse uma
Educação Liberal. Pelo empenho do pai, teve uma boa formação, o que o levou,
ulteriormente, a Cartago e a ter contato com disciplinas como Gramática e Retórica.
“Antes, porém, de se interessar pelas questões intelectuais, sua atenção estava voltada
para as coisas mundanas” (PESSANHA, 2004:6). Assim sendo, em relações amorosas –
majoritariamente, conturbas e luxuriosas –, envolveu-se com uma mulher, com quem
teve um filho, Adeodato, que morrera ainda muito infante. Entre os desejos intelectuais
e os desejos carnais, Agostinho empenhou-se e se destacou no Magistério de maneira a
conseguir o privilégio de ir para “Milão para ensinar oficialmente retórica, cargo que lhe
havia sido atribuído pelo prefeito Símaco” (SANTIDRIN, 1997: 15).
Muito inquieto e especulativo, viveu impulsionado por uma procura incansável
pela verdade. Nessa busca, percorreu um itinerário, no qual encantou-se e se envolveu
com a filosofia a partir de Hortensius, de Cícero (Confissões, VIII, 7, 17);
Experimentou o “licor” do dualismo maniqueísta; passou do conflito binário maniqueo
a um período de “ceticismo e um ecletismo”, porém, “não muito consistentes”
(PESSANHA, 2004: 7); recebeu intensos influxos do mundo das ideias de Platão e dos
ideais místicos neoplatônicos de Plotino (SANTIDRIN, 1997: 15); percorreu o
pensamento plotiniano, que seria como uma via, por certas similitudes com a teologia
cristã (PESSANHA, 2004: 7), até ele ser seduzido e persuadido pelos posicionamentos
do bispo de Milão, Ambrósio.
Contudo, o principal acontecimento que o convenceu “definitivamente” foi seu
encontro com um petiz que cantarolava: “Tolle et lege, Tolle et lege” [Toma e lê, toma e

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


142
lê], que o conduziu para a leitura do texto de Paulo (Romanos 13: 13-14) que o advertia:
“Como de dia, andemos decentemente; não em orgias e bebedeiras, nem em devassidão
e libertinagem, nem em rixas e ciúmes. Mas vesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não
procureis satisfazer os desejos da carne”. Diante da vida que levava, restou-lhe uma
certeza, que descreveu nas Confissões (VIII, 12, 29): “Não quis ler mais, não era
necessário. Apenas acabei de ler estas frases, penetrou-me no coração uma espécie de
luz serena, e todas as trevas da dúvida fugiram”.
A partir de então, “foi-se desprendendo das sombras e das ideias maniqueístas.
Em 386, deixa o ensino e retira-se para Cassicciaco, perto de Milão, para meditar e
escrever. Recebe o batismo em 25 de abril de 387” (SANTIDRIÁN, 1997: 15). Em
pouco tempo se torna um sacerdote. Em 395 é ordenado bispo de Hipona, África
(SANTIDRIÁN, 1997: 16) e morre em 430, deixando uma herança que marcou
profundamente a humanidade (SANTIDRIÁN, 1997: 16).
Agostinho destacou-se pela grande aptidão para elaborar e, principalmente, para
questionar. Hoje, ele é inserido dentro de um grupo de padres que foram fundadores da
filosofia e da teologia que vigoraram e, parcialmente, ainda vigoram dentro do
Cristianismo. Esse conjunto de religiosos ficou conhecido como Padres da Igreja, que,
seguindo os passos de Paulo e outros escritores das Escrituras, deixaram o legado da
Patrística. “Patrística é o conjunto de escritos primitivos da era cristã, registrando suas
experiências, seus ensinamentos, seus rituais e a vida eclesial” (BOGAZ; COUTO;
HANSEN, 2011: 26). As produções patrísticas guiaram não somente a Igreja Romana,
mas, as várias sociedades que, subjugadas à moral cristã, após o declínio o Império
Romano, foram restruturadas com o auxílio das organizações eclesiais católicas.
Santo Agostinho é, indubitavelmente, o maior e o mais influente de todos os
Padres da Patrística (SCRAFF, s.d.: 8).

A obra literária de Agostinho é imensa! Na patrologia do Migne ocupa 15


volumes (PL 32-47). Como é que esse homem, de saúde delicada, chegou a
realizar tanto e a escrever tantos livros? Porque, além de umas 225 cartas que
nos restam de sua imensa correspondência, e de mais de 500 sermões que
chegaram até nós, sem contar cerca de outros 300 com os Tratados sobre o
Evangelho de João e os Comentários aos Salmos que foram publicados,
dispomos de um documento precioso que nos dá facilmente uma ideia de sua
produção (SANTIDRIÁN, 1997: 16).

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


143
Sua obra, além de vasta, compreende uma variedade de assuntos e gêneros.
Muitas têm sido traduzidas, editadas, principalmente Confissões e Cidade de Deus, e
também tem sido alvo de trabalhos críticos em várias línguas, como inglês, alemão,
francês e outras (SCHAFF, s.d.: 8-11). Junto, tal material, numa análise sumária, realiza
um trabalho de divulgação da teologia e da filosofia agostinianas grandioso.

As Confissões e a Misoginia
Dos escritos agostinianos, o que mais chama atenção é a sua “autobiografia”,
isto é as Confissões, pois nela, de uma só vez, encontram-se reunidos, além do relato de
“uma” vida, há um itinerário hagiográfico, filosófico e teológico. Ademais, de acordo
com José Américo Motta Pessanha (2004: 10) é igualmente nas Confissões, que o bispo
de Hipona “se revela admirável analista de problemas psicológicos íntimos tanto quanto
de questões puramente filosóficas”. Philip Schaff (s.d.: 13) declara que Agostinho, na
obra supracitada, da mesma forma que Davi no Salmo 50, confessa a Deus o que
sucedeu durante sua vida – sem reservar os pecados de sua juventude – ao mesmo
tempo em que pede a Deus a Graça de livrá-lo das trevas, conduzi-lo para a luz e
chamá-lo para servir no Reino de Cristo.
Outro aspecto que se destaca, ante a produção dessa obra, é a repercussão delano
período de seu aparecimento e nos séculos seguintes. O período posterior foi dominado
“pela palavra do bispo de Hipona, pois ninguém como ele tinha conseguido, na filosofia
ligada ao cristianismo, atingir tal profundidade e amplitude de pensamento”
(PESSANHA, 2004: 23). No que concerne ao prestígio dos escritos agostinianos, Pedro
Carlos Louzada Fonseca (2015) salienta que os “ensinamentos de Santo Agostinho
foram de grande influência na cristandade ocidental, exercendo notável influência e
direcionamento sobre ela por cerca de mais de um milênio”. Assim, vemos que as
reflexões bíblico-teológicas agostinianas alcançaram grande repercussão, e, por
conseguinte, influenciaram questões fundamentais para a concepção da sociedade
medieval.
A vida do homem e da mulher medievais, os aspectos inerentes a cada um, que
os condicionavam dentro de parâmetros de convivência individual e coletiva,
inevitavelmente, passava pelo crivo bíblico (D’HAUCOURT, 1994), também,
disseminado graças a Agostinho. É nesse sentido que se é possível observar a relação

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


144
das Confissões de Santo Agostinho e os relatos da Bíblia, não somente com a
estruturação da sociedade, mas, igualmente, com a produção e proliferação da cultura
misógina medieval. Sobre a legitimação de determinados discursos misóginos
difundidos por Padres da Igreja e por autoridades, Katherine Munzer Rogers (1966:56)
afirma que “o homem medieval, com o seu apreço por autoridades e exemplos antigos,
basearam-se quase tão fortemente no clássico acervo da misoginia quanto o fizeram em
relação à Bíblia e aos Padres da Igreja”.
Boa parte da difamação da mulher, no contexto de análise, provém de uma
inspiração da narrativa bíblica da Criação pertencente ao livro de Gênesis e
complementada, substancialmente, com as declarações paulinas contidas nas epístolas
do Novo Testamento. Mesmo alguns esforços religiosos, já em meados do século XI –
como o culto de veneração a Virgem Maria –, a população medieval se esbarrava na
“forte tradição misógina herdada de São Paulo e dos escritos patrísticos, que retratavam
a mulher como Eva, a suprema tentadora e obstáculo para a salvação” (HALLAM,
1997, s./p., grifos nossos).
Na Idade Média, repetiam-se, ao longo dos séculos, os empenhos patrísticos de
exegese bíblica que, com reforços pouco inconstantes, resultaram em “uma imagem
negativa e inferior do feminino na sua relação com o masculino” (KLAPISCH-ZUBER,
2006: 139). Esmiuçando, verifica-se que

Nos séculos IV e V, Ambrósio, Jerônimo, João Crisóstomo e em particular


Agostinho, elaboram um conjunto do comentários e interpretações de textos
bíblicos que os teólogos e filósofos posteriores vão considerar fundamentais e
retomar indefinidamente quando eles se confrontam como o problema da
dualidade sexuada, ordenada e instituída por Deus no sexto dia da Criação
(KLAPISCH-ZUBER, 2006: 138).

O texto começa observando a distinção entre as coisas superiores, isto é, aquelas


espirituais e que estão mais próximas de Deus, e as inferiores, que são materiais e
corpóreas. Para tanto, Agostinho, inicialmente, tece comentários elogiosos de louvor a
Deus pela Criação, valendo-se de dois binarismos fundamentais para o cristianismo: a
criação das “partes superior e inferior corpórea”, isto é, da “criação espiritual e
material” (referência a Gênesis 1, 1) e a separação da luz e das trevas (fazendo
referência ao relato do texto de Gênesis 1, 3-4). Seguindo essa sequência dualista,
constante na temática da narrativa da Criação, Agostinho fala do “firmamento”, do

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


145
“espaço do ar” ou “atmosfera” (Confissões XIII, 32, 47), que serve para separar “as
águas das águas” (Gênesis 1, 6), “as águas espirituais superiores e as águas corporais
inferiores” (Confissões XIII, 32, 47).
Percebe-se que a visão dos Padres da Igreja, de certo modo, está subjugada a
uma interpretação da mulher que encontra sua fundamentação num modelo feminino de
Eva, considerada inferior, pois, além de ter sido criada depois do homem, pecou
primeiro e, pecando, induziu o homem a pecar (1 Timóteo 2, 13-14). No esforço de
resgate dessas fontes misóginas, tomemos, como objeto de estudo, a literatura
agostiniana, nesse caso, conforme propomos, o livro XIII, mais especificamente na
parte 32, das Confissões, evidenciando os preceitos bíblicos que motivaram essa
escritura.

Aspectos misóginos em Confissões XIII, 32


O texto começa observando a distinção entre as coisas superiores, isto é,
aquelas espirituais e que estão mais próximas de Deus, e as inferiores, que são materiais
e corpóreas. Para tanto, Agostinho, inicialmente, tece comentários elogiosos de louvor a
Deus pela Criação por meio de dois detalhes fundamentais: a criação das “partes
superior e inferior corpórea”, isto é, da “criação espiritual e material” (referência
aGênesis 1, 1); e a separação da luz e das trevas, fazendo referência ao relato do texto
deGênesis 1, 3-4: “Deus disse: ‘Haja luz’ e houve luz. Deus viu que a luz era boa, e
Deus separou a luz e as trevas. Deus chamou à luz ‘dia’ e às trevas ‘noite’”. Seguindo a
sequência temática da narrativa da Criação, Agostinho fala do “firmamento”, do
“espaço do ar” ou “atmosfera” (Confissões XIII, 32, 47) que serve para separar “as
águas das águas” (Gênesis 1, 6), “as águas espirituais superiores e as águas corporais
inferiores” (Confissões XIII, 32, 47).
Santo Agostinho, da mesma forma que a deidade Criadora, “personagem” na
narrativa genesíaca, contempla a Criação. O autor cristão, durante a descrição, parece
apreciar e compreender “que isso [que fora criado] era bom” (Gênesis 1, 19). Percebe-se
um regozijo quando, com certo labor poético e a tessitura da escrita de um salmista,
descreve o que está escrito em Gênesis 1, 9-19:

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


146
Vemos a formosura das águas reunidas nas campinas do mar. Vemos a terra
árida, nua, ou de forma visível e ordenada, essa terra, mãe das plantas e das
árvores.
Vemos brilhar por cima de nós os luzeiros do céu, o sol bastar ao dia, a lua e
as estrelas consolarem a noite, e as divisões do tempo serem designadas e
medidas por todos estes astros (CONFISSÕES XIII, 32, 47).

É interessante perceber que são seguidos o encadeamento e a progressão do


assunto abordado no capítulo 1 de Gênesis – a Criação –, como que em uma atividade
de reescritura do texto bíblico. Prosseguindo, foram apresentadas a presença dos
animais, a variação das espécies e a consonância desses com o restante da Criação. A
harmonia é um tema importante, visto tudo ser criado por Deus. E Agostinho
(CONFISSÕES XIII, 32, 47) releva isso por meio de uma breve descrição das aves:
“Contemplamos por toda parte o elemento da água, fecundo em peixes, em monstros
marinhos e em aves, pois a densidade do ar, que sustenta o voo dos pássaros, cresce
com exaltação das águas”.
O autor medieval, nesse trecho, traz o “elemento água”, mais especificamente a
evaporação da água (“exaltação das águas”), ou a água em seu estado gasoso, como
responsável pelo surgimento da “densidade do ar” (atmosfera) que possibilita o voo às
aves. Assim sendo, percebe-se que na Criação um elemento corrobora para a existência
do outro. Destaca-se que, não obstante aos objetivos desse trabalho e a continuação da
discussão que ele propõe, Agostinho (Confissões XIII, 32, grifos nossos) finaliza,
sublinhando: “Estas são coisas que contemplamos, as quais, tomadas de per si, são
belas, e em conjunto são ainda mais belas”.
Após ver “a face da terra embelezar-se com animais terrestre” (CONFISSÕES
XIII, 32, 47), Agostinho narra a presença do homem que, além de criado à imagem e
semelhança de Deus (Gênesis 1, 26), foi “constituído em dignidade acima de todos os
seres viventes irracionais, por causa de vossa mesma imagem e semelhança, isto é, por
virtude da razão e da inteligência” (CONFISSÕES XIII, 32, 47). Esse pensamento
agostiniano obedece ao princípio bíblico, no qual Deus ordena ao homem e a mulher
que submetessem e dominassem a terra e tudo que há sobre ela (Gênesis 1, 28). Em
seguida, no texto, homem e mulher são referidos de maneira a se destacar a
singularidade de cada um – todavia, correlacionados – e a posição/função diferente que
assumem (ou devem assumir) diante da Criação:

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


147
E assim como na sua alma uma parte que impera pela reflexão e outra que se
submete para obedecer, assim também a mulher foi criada, quanto ao corpo,
para o homem. Ela, possuindo, sem dúvida, uma lama de igual natureza
racional e de igual inteligência, está, quanto ao sexo, dependente do sexo
masculino, assim como o apetite, de que nasce o ato, se subordina à
inteligência para conceber da razão a facilidade em ordem ao bom
procedimento (CONFISSÕES XIII, 32, 47).

Assim sendo, já nas primeiras declarações, percebem-se os influxos bíblicos. O


filósofo (CONFISSÕES XIII, 32, 47) afirma: “E assim como na sua alma uma parte que
impera pela reflexão e outra que se submete para obedecer, assim também a mulher foi
criada, quanto ao corpo, para o homem”. Aqui, se percebe a influência de Gênesis 2, 18:
“Iahweh Deus disse: ‘Não é bom que o homem esteja só. Vou fazer uma auxiliar que
lhe corresponda’”. Nesse caso, observa-se a mulher apenas como auxiliar e não ser
essencial, como um complemento do homem. Outro aspecto é aquele apontado em
Gênesis 2, 22, em que “da costela que tirara do homem, Iahweh Deus modelou uma
mulher e a trouxe ao homem”, isto é, a mulher foi criada a partir do homem e, como
destaca Agostinho, “para o homem”.
A ideia sobre a primazia cronológica de Adão demonstra que a Queda, tida,
muitas vezes, como a responsável pela inferiorização feminina e, consequentemente,
pelo antifeminismo medieval, representa uma pura constatação a respeito do que está
subjacente na narrativa da criação do casal primitivo, Adão e Eva. Com efeito, a mulher
apresentada na“versão jeovista, concebida desde o começo como secundária, derivada,
subsequente e complementar, assume o fardo de tudo aquilo que é inferior, depreciado,
escandaloso, perverso, durante a articulação fundadora dos sexos nos primeiros séculos
do cristianismo”(BLOCK, 1995: 34).
As duas características da criação da mulher (a mulher criada como auxiliar e
criada a partir do homem), somadas à passagem de Gênesis 3, 6, na qual ela é descrita
como a primeira a pecar, foram usadas como argumento pelo apóstolo Paulo para
justificar a obediência que ele impõe em I Timóteo 2, 11-14 e que pode corroborar o que
Agostinho chama, na citação de Confissões XIII, 32, 47: “outra [...] que se submete para
obedecer”.
O autor hiponense (CONFISSÕES XIII, 32, 47), além disso, garante que a
mulher“[...] possuindo, sem dúvida, uma lama de igual natureza racional e de igual
inteligência, está, quanto ao sexo, dependente do sexo masculino”.Nesse trecho das

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


148
Confissões, claramente, é destacada a dependência que a mulher deve ter do homem,
como já observamos na passagem de Gênesis 2, 22. O texto agostiniano demonstra
consonância com o texto paulino, quando em I Coríntios 11, 9, Paulo afirma que “o
homem não foi tirado da mulher, mas a mulher, do homem. E o homem não foi criado
para a mulher, mas a mulher para o homem”. Fonseca (2015), ao comentar o
posicionamento agostiniano sobre a sujeição da mulher ao homem, acentua que

se no intelecto a mulher recebe de Santo Agostinho [...] um tratamento mais


simpático e menos radical em comparação com os acerbos pronunciamentos
da grande maioria dos Padres da Igreja, mesmo assim ela continua sendo
reconhecida como desgovernada e inclinada, por princípio natural, para a
materialidade e para impulsos desviantes da boa conduta, necessitando o
controle superior dos bons princípios formativos e naturais da índole do
homem.

A autonomia da mulher, então, é destituída de maneira que verifica-se a


contribuição de Santo Agostinho para a inserção e confirmação de um discurso
falocêntrico por meio do qual o homem é elevado e a mulher é rebaixada à condição de
dependência. Tais asseverações formaram, de igual modo, o substrato do patriarcalismo
que compôs a população medieval, nos mais variados níveis sociais. Um detalhe
importante que ratifica essa concepção agostiniana e bíblica é que, segundo Chritiane
Klapisch-Zuber (2006: 137), “[h]omem e mulher não se equilibram nem se completam:
o homem está no alto, a mulher em baixo” e os dois “partilhavam essa mesma visão do
feminino”.
Destarte, como nos trechos que louvam a Criação são evidentes a recorrência
bíblica, os trechos destacados como uma atividade misógina retomam, também,
algumas passagens bíblicas. Outra realidade manifesta é que as passagens bíblicas
alimentam seus argumentos com outras passagem bíblicas, como Gênesis alimentou as
reflexões de Paulo, e os excertos bíblicos, por sua vez, alimentaram a literatura
agostiniana. Essa condição intertextual promove um círculo de ideias, no qual a
possiblidade de contradição é reduzida e a reafirmação do discurso predominante (ou
dominante) se fortaleça e reja a mentalidade dos fiéis. Apesar de Agostinho apresentar
duas faces da Criação, a harmonia e dependência da mulher, a segunda, de certo modo,
predominou e se tornou referência na atmosfera mediévica.

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REFERÊNCIAS
AGOSTINHO. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. São
Paulo: Nova Cultural, 2004. (Coleção Os pensadores).
BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 1994.
BLOCK, R. Howard. Misoginia Medieval e a invenção do amor romântico ocidental.
Tradução de Claudia Moraes. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.
FONSECA, Pedro Carlos Louzada. Bestiário e discurso do gênero no descobrimento
da América e na Colonização do Brasil. São Paulo: EDUSC, 2011.
______. Mulher e misoginia na visão dos padres da igreja e do seu legado
medieval: estudo e leitura de textos fundamentais. Goiânia: 2015. No prelo.
HALLAM, Elizabeth M. Mulheres. In: LOYN, Henry R. Dicionário da Idade Média.
Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
KLAPISCH-ZUBER, Chritiane. Masculino/Feminino. In: LE GOFF, Jacques;
SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do ocidente medieval. Vol. 2.
Coordenador da tradução Hilário Franco Jr. São Paulo: EDUSC e Imprensa Oficial do
ESTADO, 2006.
PESSANHA, José Américo Motta. Vida e Obras. In: SANTO AGOSTINHO.
Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina; “Vida e obra” por
José Américo Motta Pessanha. São Paulo: Nova Cultural, 2004. (Coleção Os
pensadores).
ROGERS, Katherine Munzer. The troublesome helpmate: a history of misogyny in
Literature. Seattle: Universityof Washington Press, 1966.
SANTIDRIÁN, Pedro R. Breve Dicionário de Pensadores Cristãos. Aparecida, SP:
Editora Santuário, 1997.
SCHAFF, Philip (Edr). Nicene and Post-Nicene Fathers: the Confessions and letters
of St. Augustin, with a sketch of his life and work. Tradução de Clark Edinburgh. Vol.
1. New York: WM. B. Eerdmans Publishing Company/ Grand Rapids, MI, s.d.
(Christian Classics Ethereal Library).

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


150
A ARTE POÉTICA NO CANCIONEIRO GERAL DE GARCIA DE
RESENDE, 1516
Geraldo Augusto Fernandes
Universidade Federal do Ceará

RESUMO: Seria possível que tivesse existido uma “arte poética” em Portugal, escrita
entre os séculos XIV e XVI, a exemplo das poéticas de Juan Alfonso de Baena, Juan del
Encina ou do Marquês de Santillana, contemporâneos do compilador do Cancioneiro
Geral, Garcia de Resende? Segundo afirma Alan Deyermond em Poesía de Cancionero
del siglo XV, “sería imprudente no contemplar la posibilidad de que la pérdida de uno o
más cancioneiros pudiera habernos privado de la obra de una floreciente generación de
poetas galaico-portugueses posterior a Dinis.” Adverte também sobre algumas alusões a
tais cancioneiros, valendo-se de estudos e do registro feito por Dom Pedro, o
Condestável, em seu Proêmio ao Marquês de Santillana, em 1449, no qual descreve um
cancioneiro que havia visto quando jovem. A existência de outros cancioneiros é
revelada inclusive em uma das esparsas do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende
(núm. 871). Nela, Resende pede a Diogo de Melo, que partia para Alcobaça, que lhe
trouxesse “ũ cancioneiro d'ũ abade que chamam Frei Martinho”, dizendo: “Decorai polo
caminho, / té chegardes ò moesteiro, / qu'ha-de vir o cancioneiro / do abade Frei
Martinho.”
Nestes supostos cancioneiros perdidos, poderia existir algum texto em que se
discorresse sobre a arte de trovar? Nesta comunicação, proponho entrever uma possível
arte poética implícita no Cancioneiro Geral, tendo em conta os estudos de Francisco
López Estrada. Parece-me que o cancioneiro resendiano, além de apresentar gêneros e
poemas de “alto grado de perfección”, pode revelar um sistema poemático, uma “arte
poética”, enfim, que reúne a forma, de modo inovador e elegante, em todos os sentidos
do termo.

Palavras-chave: artes poeticae, Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, formas


poéticas, cancioneiros dos séculos XV-XVI, poesia palaciana

ABSTRACT: Is it possible that there had been a "poetic art" in Portugal, written
between the fourteenth and sixteenth centuries, like the poetry of Juan Alfonso de
Baena, Juan del Encina or the Marquis of Santillana, texts contemporary to Garcia de
Resende’s Cancioneiro Geral? According to Alan Deyermond in Poesía de Cancionero
del siglo XV, “sería imprudente no contemplar la posibilidad de que la pérdida de uno o
más cancioneiros pudiera habernos privado de la obra de una floreciente generación de
poetas galaico-portugueses posterior a Dinis.” The existence of other songbooks is also
revealed in one of Garcia de Resende’s sparse (num. 871). In it, Resende asks Diogo de
Melo, who was leaving for Alcobaça, to bring him “ũ cancioneiro d'ũ abade que
chamam Frei Martinho”, dizendo: “Decorai polo caminho, / té chegardes ò moesteiro, /
qu'ha-de vir o cancioneiro / do abade Frei Martinho.” In these supposed lost songbooks,
there could be some text that elaborates on the art of trovar? In this paper, I propose a
glimpse of a possible implicit poetics in the Cancioneiro Geral, taking into account the
studies of Francisco López Estrada.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


151
Passwords: artes poeticae, Garcia de Resende’s Cancioneiro Geral, poetical forms, XV
century songbooks, courtly poetry

Em 1516, Garcia de Resende edita seu Cancioneiro Geral composto de 880


poemas. Em minha tese de doutorado, dediquei-me a dividir esses poemas em seis
grandes grupos, levando em consideração sua estrutura formal. Os grupos se
denominam: baladas, vilancetes, esparsas, trovas, cantigas e poemas de formas mistas1.
A divisão serviu para a constatação daquilo que Pierre Le Gentil referia
persistentemente: a irregularidade, não como defeito ou desconhecimento das técnicas
da poesia, mas como algo que dava ao Cancioneiro qualidade e prestígio (LE GENTIL,
1952: 187-188). Foi ela que permitiu aos poetas palacianos ser criativos e originais, em
conjunto com aquilo que mais apreciavam: a forma.
Tendo em conta as várias opiniões quanto à forma poemática que se
desenvolveu no Quatrocentos e no Quinhentos peninsulares, uma questão, pelo menos,
surge: quando se estudam essas formas do Cancioneiro de Resende, seria possível
estabelecer uma “poética implícita”, uma vez que não existe uma poética explícita em
Portugal dos anos 1400 e 1500? A investigação foi necessária, pois poderia contribuir
para o vazio existente quanto aos parâmetros estruturais que determinariam as poéticas
medievais inexistentes no lado ocidental da Península Ibérica. Em Portugal dos séculos
XV e XVI, não se produziu uma poética, como a que realizaram os provençais – as Leys
d’Amors – ou como a Arte de Trobar da poesia trovadoresca galego-portuguesa, para
citar apenas duas. Pelo menos, não há registro de uma produção de tal documento.
Dessa forma, a resposta para esses questionamentos poderia ajudar num melhor
entendimento do processo composicional dos poetas portugueses do período delimitado
para a investigação – os séculos XV e XVI.
Como se sabe, pelos prólogos que Juan Alfonso de Baena e Juan del Encina
produziram, nos quais escreveram suas artes poeticae, os recursos próprios da poesia

1
A característica original desse último grupo é a mescla de várias formas em uma só composição. Tome-
se como exemplo o texto que abre o Cancioneiro Geral, conhecido por “O cuidar e sospirar”. Trata-se de
146 poemas de formas mistas, em que se desenvolve um único tema: 116 trovas, uma sextilha, cinco
quadras, uma quintilha, 22 cantigas e um vilancete. Igual a esse poema, selecionei outros 95, cuja forma é
mista. O editor do Cancionero General de Hernando del Castillo, Joaquín González Cuenca, refere-se a
casos em que dois ou mais textos estão “vinculados”, o que revela a mistura. Para explicar a distribuição e
numeração dos poemas que reeditou, Cuenca comenta que “ocurre a veces que un poema largo incluye
uno o más poemas menores, generalmente canciones o cuarteta, que tienen autonomia propia.”
(CASTILLO: 2004, 135).

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


152
eram de suma importância. Baena escreve que a arte da poesia e da gaia ciência é feita
por “aquel que byen e sabya e sotyl e derechamente la saben fazer e ordenar e conponer
e limar e escandir e medir por sus pies e pausas, e por sus consonantes e sylabas e
açentos, e por artes sotyles e de muy diuersas e syngulares nonbranças” (ENCINA,
1984: 37). Para Encina,

el poeta contempla en los géneros de los versos, y de quántos pies consta


cada verso, y el pie, de quantas sílabas; y aún no se contenta con esto, sin
examinar la quantidad dellas. Contempla esse mesmo qué cosa sea
consonante y assonante; y quándo passa vna sílaba por dos, y dos sílabas por
vna (idem: 84)2.

Para se entender melhor as formas no CGGR3, foi necessário empreender um


levantamento estatístico quanto à maioria dos itens propostos a seguir, uma vez que não
há muitos estudos delas em suas particularidades. O levantamento se restringiu à
questão das estrofes, das glosas, dos motes, dos pés quebrados, da métrica, da língua e
do gênero, excetuando-se o sistema das rimas. Isso me pareceu indispensável para
fundamentar o estudo – a possibilidade de uma poética implícita no CGGR. Feito o
levantamento, a questão de uma poética palaciana portuguesa se revelou, pois,
diferentemente de uma grande parte dos cancioneiros medievais do Quatrocentos e
Quinhentos, e mesmo diferentemente do que ocorreu com os cancioneiros das poesias
provençal e galego-portuguesa, não se registra em Portugal daquelas duas centúrias
nenhum documento que “normalize” ou indique uma direção para o ato de fazer
poesias. É possível que, com outros estudos sistemáticos do corpus poético como o que
empreendi, se possa encontrar um denominador que remita a uma linha de
coincidências, a um estilema, a uma poética do CGGR. Creio que um caminho é
fornecido e traçado pelos poetas palacianos: as formas estróficas, os recursos retóricos,
a irregularidade e ainda alguns gêneros que têm seu ápice nos poemas de formas mistas
– todos eles resumem aquilo que significava, então, a arte de trovar. Parece que a chave

2
Encina trata tudo isso em pormenores nos capítulos V ao IX (final).
3
Para as referências ao Cancioneiro português, utilizei a sigla CGGR. A edição do Cancioneiro Geral de
Garcia de Resende utilizada é a mais recente, de 1990-1993, levada a cabo por Aida Fernanda Dias, cf.
Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, Fixação do texto e estudo por Aida Fernanda Dias, Maia,
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990-1993, Tomos I-IV. A estudiosa escreveu também uma edição
crítica (“A Temática”, 1998) e organizou um Dicionário Comum, Onomástico e Toponímico (Volume
VI), de 2003. Essas publicações são da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Maia. Dessa forma, todas as
referências ao número dos poemas, volumes e páginas em que estes se encontram remetem à edição da
estudiosa.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


153
para esta arte se encontra na palavra “invenção ”, que Resende cita em seu prólogo e
que, inúmeras vezes, aparece nos poemas do Compêndio. Esta palavra não se refere
apenas à ousadia na vestimenta, mas também significa ousar em atitudes e em poetar. E
esta ousadia, uma vez mais, se concretiza nos poemas de formas mistas. Em busca de
uma “poética” do Cancioneiro Geral, vali-me do estudioso Francisco López Estrada.
Para o autor, existem dois tipos de “poéticas”, uma explícita, ou seja, formulada em
tratados, outra implícita,

influyendo desde el ejemplo magistral que representan las obras que han
adquirido prestigio por el alto grado de perfección (eficacia comunicativa)
que muestran; al mismo tiempo esta Poética establece los principios por los
cuales las obras se agrupan en ‘géneros’ reconocidos por determinadas
características comunes (ESTRADA, 1984: 11).

É assim que surge, tanto no Prólogo de Garcia de Resende, mas principalmente


no conjunto de seus poemas, uma poética implícita, baseada em formas e gêneros com
características comuns.
Não obstante, é possível que tenha existido uma “arte poética” em Portugal,
escrita entre os séculos XIV-XVI? Alan Deyermond, em Poesía de Cancionero del siglo
XV, discorre sobre essa possibilidade:

Sería imprudente no contemplar la posibilidad de que la pérdida de uno o


más cancioneiros pudiera habernos privado de la obra de una floreciente
generación de poetas galaico-portugueses posterior a Dinis (…). La tardía
fecha de Vaticana y Colocci-Brancuti (…) hace probable que estuvieran
vinculados al arquetipo por una serie de manuscritos hoy perdidos, y varias
características de los existentes cancioneiros (…) sugieren que el arquetipo
estuvo precedido por muchos manuscritos que contenían la obra de poetas
individuales o de un solo género. Entre tantos manuscritos perdidos ¿no es
posible que hubiera cancioneiros que difirieran de la tradición que
representan los que se conservan? (DEYERMOND, 2007: 141).

Em seguida, refere o estudioso a várias alusões a tais cancioneiros perdidos, valendo-se


de estudos e, inclusive, do registro feito por Dom Pedro, o Condestável, em seu
Prohemio ao Marquês de Santillana, em 1449, descrevendo um cancioneiro que teria
visto quando jovem. (idem: 142).4 A existência de outros cancioneiros é revelada
também em uma das esparsas do CGGR (871), do próprio Garcia de Resende: nela, pede
4
Aida Fernanda Dias comenta sobre a possível existência de outro cancioneiro contemporâneo ao
cancioneiro de Resende, o Cancioneiro Português, como relatam Gil Vicente, André Falcão de Resende e
Bernardo Rodrigues (DIAS: 1998, 100-103).

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


154
a Diogo de Melo, que partia para Alcobaça, que lhe trouxesse “ũ cancioneiro d'ũ abade
que chamam Frei Martinho”:

Decorai polo caminho,


té chegardes ò moesteiro,
qu'ha-de vir o cancioneiro
do abade Frei Martinho.
5 E s'esperardes de vir
sem mo mandardes trazer,
podeis crer
que quem tinheis em poder
para sempre vos servir
10 olhos que o viram ir...

Nestes supostos cancioneiros perdidos, poderia existir algum texto em que se


discorria sobre a arte de trovar? À falta dessa, me propus descobrir uma possível “arte
poética” implícita do CGGR, levando em conta o parecer de López Estrada: da reunião
dos gêneros e das características próprias de um cancioneiro, pode-se determinar sua
poética. O Cancioneiro resendiano, além dos gêneros e poemas de “alto grado de
perfección”, que, como diz o estudioso, podem revelar um sistema poemático, apresenta
uma marca específica: sua forma.
Para este estudo tomo como parâmetro apenas o Prólogo de Garcia de Resende,
onde alguns índices são fornecidos. De forma esporádica, citarei alguns poemas
representativos do Cancioneiro. No Prólogo, a palavra “memória” aparece três vezes,
além das expressões que remetem a ela: “a natural condiçam dos Portugueses é nunca
escreverem cousa que façam”; “se podiam escrever (...) dos tempos passados como
d'agora”; “outras notaveis cousas que se nam podem em pouco escrever”; “muitas
cousas de folgar e gentilezas sam perdidas”;5 de “muitos emperadores, reis e pessoas de
memoria, polos rimances e trovas sabemos suas estórias”; “as [trovas] que sam perdidas
dos nossos passados se poderam haver e dos presentes s'escreveram”; “determinei
ajuntar algũas obras que pude haver d'algũs passados e presentes”6. Assim, segundo
Resende, o papel do poeta é cantar os grandes feitos – e no CGGR, eles vêm cantados
em números que não se restringem somente às grandes Conquistas, mas incluem

5
Note-se que Garcia de Resende alude a textos perdidos, corroborado por Deyermond.
6
As referências ao Prólogo de Garcia de Resende encontram-se nas páginas 9 a 11 da edição usada para
este estudo.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


155
aqueles que são característicos do homem – as indagações sobre o ser e o estar em uma
sociedade em mutação.
Nos prólogos de seus congêneres castelhanos, a memória é recorrente. Tome-se
como exemplo o Prologus baenensis: Baena, ao discorrer sobre a escritura, memória da
História, pregunta-se “Ca sy por las escripturas non fuesse ¿qual sabydurya o qual
engeño o memorya de omnes se podrye membrar de todas las cossas passadas?”
(BAENA, 1984: 32). E a resposta estaria nos escritos, através dos quais os homens
tomam conhecimento de todos os feitos e de todas as ciências. A memória, no
Cancioneiro resendiano, vem registrada de numerosas maneiras: no gênero epistolar;
nos poemas em que o tema do desconcerto do mundo é a preocupação primeira do poeta
– de fundo “saudosista”; nas numerosas críticas de costumes e de pessoas, geralmente
como sátira maldizente; nas descrições e referências a lugares conquistados durante as
empresas ultramarinas; nas várias alusões essas, em que o poeta compara os feitos
concretos dos portugueses a grandes nomes da Antiguidade; nos textos em que é
subjacente uma “saudade da terra”; nos poemas de elogio a poetas e a figuras da
História de Portugal; nas linhagens de famílias, cujo poema representativo são as trovas
457, de João Rodrigues de Sá, declarando alguns escudos de armas “d’algũas linhajeens
de Portugal, que sabia donde vinham”.
Outro termo a que recorre Garcia de Resende são as “virtudes”, as quais os
portugueses se esquecem de cantar. O escrivão reúne poemas em que essa preocupação
aflora – textos de fundo filosófico, em que os poetas meditam sobre a Virtude como
entidade, sempre ligada ao conceito clássico e medieval das virtudes cardeais. Estas
virtudes se revelam, também, nos poemas em que o mundo está ao revés, naqueles em
que a figura do adynaton é artifício central; nas sátiras, elas vêm cantadas quando o
poeta critica um costume que macula a moral ou quando os cortesãos se deixam levar
pela novidade exterior.
A esta se liga outra palavra que Resende coloca em seu Prólogo: as “manhas”.
De acordo com Aida Fernanda Dias, são os costumes, as habilidades, os modos (DIAS,
2003: 420), criticados, às vezes louvados, nas sátiras de costumes. A ciência – junto
com a guerra, a paz, as virtudes, as “manhas” e a gentileza – é esquecida. Quanto à
guerra e à paz, os termos vêm expressos ao longo do Cancioneiro ligados às Conquistas
e aos conflitos do amador desprezado pela dama a quem serve, chegando os poetas a

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156
“brincar” com a palavra, quando sua amada tem por nome Guerra, por exemplo. Por sua
vez, a palavra “gentileza” aparece três vezes no Prólogo: refere-se à cortesia, tanto a
etiqueta no trato do Paço, quanto as gentilezas do amor, tema majoritário na
Compilação. A “gentileza” ligada ao amor é aquela definida por Paul Zumthor como o
“grand chant courtois”, reminiscência nos séculos XV-XVI do amor provençal e galego-
português.
No entanto, a palavra “ciência” traz um questionamento – estaria ligada ao
conhecimento obtido pela observação e experiência, ou à “gaia ciência”, tão venerada
pelos poetas e também recorrente nos proêmios de Baena, Santillana, Encina e Villena?
O termo vem por enumeração na terceira linha do Prólogo: “de ciencia, manhas e
gentileza sam esquecidos”. O conjunto permite ambas interpretações, pois os
portugueses se esquecem de escrever sobre os grandes feitos, como diz Resende,
aqueles relacionados à prática – à ciência e à manha – e aqueles relacionados à arte de
trovar – a gentileza. Entretanto, para ambos os sentidos, se encontra no CGGR sua
expressão – na observação do homem e suas práticas e nos poemas em que os poetas
registram o tempo em que vivem. Apenas como exemplo, nas trovas de núm. 129, o
termo está relacionado à arte de trovar, como se pode verificar na estrofe que segue:

Nam vos toco mais azedo


por nam desfechar em vãao,
mas nam ja com vosso medo,
porque sei que tarde ou cedo
5 m'haveis de cair na mão.
Precurai outra ciencia
leixar a mim o trovar,
nam vos quero mais picar
por cargo de conciencia.

Mas nas trovas 257, o sentido é ligado ao conhecimento divino e humano:

Dame tu escudo claro, cristalino,


y armame todo con armas seguras,
para que contraste al mortal venino
y ravias caninas, feroces muy duras.
5 Tu, sabia maestra, tu que nos procuras
sciencias santas, humanas, divinas,
arriedra mi seso de mundanas curas,
distila em mi tus dulces doctrinas.

Relacionado às gentilezas, aparece ainda o verbo “folgar”, pelo menos em duas


acepções no Prólogo: refere-se aos poemas em que se declama o prazer deletério de
XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS
157
viver e, muito mais, às sátiras, numerosas no Compêndio, concorrendo de perto com a
temática amatória. Na primeira aparição, o termo remete ao passado e, na segunda, ao
futuro – quanto àquele, liga-se ao fato de que as “cousas de folgar”, assim como tudo
que é a “natural condiçam dos Portugueses”, são esquecidas; em relação ao futuro, é um
apelo de Resende aos poetas, futuros ou contemporâneos seus: devem estes, espelhados
no CGGR, “s'espertarem a folgar d'escrever e trazer aa memoria os outros grandes
feitos”. A poesia que tivesse por espírito o ato de folgar era para os poetas tão
importante que, somente nos poemas de formas mistas, jocosos ou sérios, o verbo, no
infinitivo ou conjugado, e seus derivativos em substantivo (folgança) e adjetivo
(folgado) aparece 55 vezes. Esse ato de “folgar” remete a outro termo intimamente
ligado a ele: “desenfadamento”. Essa, afinal, é a justificativa, confessa Garcia de
Resende, para entregar-se à sua Compilação. Dedica-a ao príncipe, futuro D. João III, e
deseja que ele “fosse servido e tomasse desenfadamento”, através das “cousas de
folgar”. O “desenfadamento” aparece nos poemas de formas mistas, em suas variantes –
verbos e substantivos – pelo menos cinco vezes, juntamente com seu contrário, o
“enfadamento”.
Como todos os tratados medievais, as referências e louvações à Cristandade
parecem significativas. No Prólogo, Garcia de Resende conta que os portugueses lutam
“debaixo da bandeira de Cristos (...) tornando tantos reinos e senhorios com inumeravel
jente aa fee de Jesu Cristo, recebendo agua do santo bautismo”. Com a arte de trovar,
será “Nosso Senhor louvado, como nos hinos e canticos que na Santa Igreja se cantam”.
Diz que tudo isso “se veraa” no livro que entrega ao Príncipe, e sua declaração é
confirmada pela variedade de poemas religiosos: imitando ou glosando uma oração,
parodiando textos bíblicos, louvando e cantando as personagens das Sagradas
Escrituras, fazendo alusões a santos, implorando ou invocando a Deus, através dos
expletivos, vendo na beleza da dama servida uma obra de Deus, ousando nas sátiras unir
o sagrado ao profano. No entanto, diferente dos proêmios castelhanos quinhentistas,
essas referências ao divino não se relacionam ao “trovar” como obra de inspiração de
Deus ou dos deuses. Em alguns poemas, entretanto, os poetas pedem inspiração a estes,
como nas trovas 361, de Diogo Brandão, em que canta o fingimento de amor:

Ó divina sapiencia,
de todos tam desejada

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158
e de mim pouco gostada
por nom ter suficiencia,
5 faze-me tam sabedor
que possa dizer aqui,
com favor de teu favor,
as grandes cousas que vi!

Todo o Prólogo do CGGR é uma apologia aos “mui e muitos grandes feitos” dos
portugueses. Garcia de Resende usa o verbo que resume os “grandes feitos” –
“navegar”, que será mote para muitas composições. Diz Resende “que nenhũas armadas
do Soldam nem outro nenhum gram rei nem senhor nom ousam navegar com medo das
nossas, perdendo seus tratos, rendas e vidas”. Nos poemas em que navegar é motivo
para poetar, a ação e o verbo adquirem conotação alegórica e quase nunca o resultado é
somente exaltação – é razão também de insegurança e de temor.
Ainda no Prólogo, Garcia de Resende discorre sobre o ato de fazer poesia, à arte
de trovar e faz com certo ressentimento pelo descaso com que os portugueses tratam a
gaia ciência: “muitas cousas de folgar e gentilezas sam perdidas, sem haver delas
noticia, no qual conto entra a arte de trovar” – arte que para ele é a mais “dina” de todas.
Sua Compilação vem, de certa forma, preencher o vazio deixado por tantas “cousas
perdidas”, pois é “polos rimances e trovas [que] sabemos suas estórias [as dos
imperadores, reis e pessoas de memória]”; e ela “nas cortes dos grandes princepes é mui
necessaria na jentileza, amores, justas e momos”, enfocando onde se desenvolve a gaia
ciência e através de que: da poesia cortês, da exaltação do amor, da poesia disputativa e
teatral. Sem dúvida, aqui Resende resume boa parte de seu Cancioneiro, uma vez que a
temática cortês, amatória, disputativa e dramática – ainda que incipiente, mas bem
representada pelos gêneros dialogados – é o cerne de sua Compilação. Quanto a essa
arte “dina”, Resende discorre sobre uma série de poemas que tem por alvo aqueles
cortesãos que, pelos “maos trajos e envenções [que] fazem, per trovas sam castigados e
lhe dam suas emendas, como no livro ao diante se veraa”, ressaltando a poesia que tem
por função desenfadar por meio das “cousas de folgar”, mas também uma poesia
didático-moralista, já que os que infringem a sociabilidade cortesã “sam castigados”.
A palavra “invenção” é recorrente nas artes trovadorescas desde as provençais
até as castelhanas. Se no Prólogo Garcia de Resende a toma no sentido de “novidade”
especificamente ligada à vestimenta, parece- me que sua intenção era maior justamente
porque a ela se refere toda a arte de trovar. A essa palavra, creio, está ligado o termo

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


159
“ciência”, sobre o qual já discorri anteriormente, mas que permite outra interpretação,
mesmo que relacionada à gaia ciência – poderia significar engenho, talento, como a
definem os tratadistas e poetas. Lênia Márcia Mongelli resume a “história” do termo
aliado à poesia:

vê-se que “antigos” e “modernos” fazem girar seu conceito de poética em


torno do mesmo princípio da invenção, que não significa necessariamente
“criar”, “fantasiar”, mas sim “organizar”, “arranjar”, “dispor’ as ideias, da
melhor maneira possível, no arcabouço de um discurso que deve ser, antes de
tudo, coerente (MONGELLI, 2002: 156-157).

Creio, então, que o uso do termo tem muito a ver com o ato de fazer poesias, e
este ato deve ser ousado. Sem dúvida, Garcia de Resende usou “invenção” não apenas
para se referir à vestimenta; seu sentido é mais amplo e vem da tradição, aplicada agora
a um novo modo de poetar cortesão, de fins do Quatrocentos e início do Quinhentos,
cuja expressão máxima é o Cancioneiro Geral. Para se ter uma dimensão da
importância desse termo no CGGR, encontram-se, nos poemas de formas mistas, 63
recorrências à palavra, assim enunciadas: inventurus, envenções, envençam, envenção,
invencion, envencion, inventadores, envencionar, envencionado, enventar, enventou,
inventar, enventados. Dessas ocorrências, apenas cinco não se relacionam com a
vestimenta ou indumentária: duas relacionadas ao amor, uma à crítica política, uma aos
costumes e outra ao preconceito. Vinculados à acepção de “novidade”, aparecem nos
poemas mistos os termos “fantasia” (fantesia, fanteseando), no sentido de imaginação,
criatividade – dezoito ocorrências, sendo apenas cinco relacionadas à
vestimenta/indumentária. Outro termo em íntima ligação com as novidades da
“invenção” é “maravilha” (maravilho, maravilheis, maravilhado), no sentido de algo que
traz admiração; são 15 ocorrências e, entre elas, somente sete relacionadas à vestimenta;
além desses termos, vem a palavra “novidade”, nas seguintes derivações: emnovar,
renovar, novidades, nova, enovada; aparecem sete vezes, sendo quatro ligadas aos
trajes. É interessante notar, nessa numerosa aplicação de termos relacionados ao ato de
“criar”, de “aparecer com algo novo”, de “destacar-se”, que o cortesão sentia
necessidade de se superar – em tudo, nos trajes exuberantes e luxuosos, mas também
como poeta, em um trabalho que deixasse registro de sua dedicação à arte de trovar. O
Prólogo de Garcia de Resende parece exíguo nas alusões à arte da poesia, se se tomar
como paradigmas os proêmios de seus contemporâneos castelhanos, mas não deixa de

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160
acentuar que é a poesia a arte enobrecedora do emergente império lusitano. Para ele, à
luz de Horácio, a arte de trovar é prodesse, é delectare e a reunião dos dois, iuncunda et
idonea.
Parece-me claro, no entanto, que os indícios de uma poética do Cancioneiro de
Resende não se restringem ao Prólogo – ela se revela muito mais no corpus das poesias
“ordenado” por seu organizador. López Estrada diz que uma arte poética se pode inferir
dos gêneros de destaque de um determinado cancioneiro; creio ser eles que, de certo
modo, indicam a predileção por alguns elementos repetitivos que retratam o espírito do
poetar de um determinado período. Por sua insistência, alguns gêneros se destacam no
CGGR: ainda que não completamente novos, revelam a técnica de que se serviram os
poetas palacianos para inovar. O primeiro deles é a disputatio: é ela de tal importância,
que o mais longo, mais famoso e inovador dos poemas do CGGR, o “Cuidar e sospirar”,
abre a Compilação e toma um terço do volume I. De origem provençal e galego-
portuguesa, as ajudas, as perguntas e as respostas, subgêneros da disputatio, aparecem
não só com nova denominação, mas com nova forma e novo conteúdo. Pelas regras do
gênero, o ideal seria que o respondente ou “ajudador” se manifestasse através do mesmo
sistema de rimas e métrico; isso não ocorre absolutamente no CGGR, excetuando-se os
poemas em que a resposta ou ajuda vem “polos consonantes”, quando a consonância
das rimas é perfeita, um exercício de agudeza do poeta, principalmente se ele usa as
mesmas palavras-rima do poema que responde ou ajuda. Acontece, também, que tanto
as perguntas quanto as respostas podem aparecer isoladas, por estranho que pareça. No
caso destas, o poeta poderá responder a uma pergunta, como nas trovas de número 2, em
que D. João de Meneses responde a um homem que acabara de sair de “ũs amores” e
queria saber como poderia “entrar em outros”, pedindo que a resposta fosse em
castelhano. Em todos esses casos, não há “pergunta” na composição, mas se sabe dela
pela didascália. Quanto às perguntas, vejam-se as trovas 88, que Nuno Pereira mandou
a Francisco da Silveira, em que a pergunta aparece depois de seis estrofes e ocorre em
outras duas, seguidas de um “cabo”:

Pregunta.

E vós lá galantear
e eu com foce e padam,
vós damejar,
eu enxertos enxertar,

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


161
5 quem teraa menos paixam?
Vós na corte cortesãao,
eu com meu fogo e meu lar,
vós louçãao
e eu com açor na mãao,
10 qual é mais certo folgar?

O subgênero ajuda é inovador e único no CGGR, pois não há registro dele, por
exemplo, no Cancionero General de Hernando del Castillo; neste, existe uma seção
especialmente dedicada a Preguntas y respuestas, composta de 56 poemas.7 Não se trata
a ajuda de pergunta nem de resposta, mas o poeta, ou poetas, é instigado a ajudar o
proponente e, quase sempre, é este quem a pede. Le Gentil comenta que

les ajudas rappelent, aussi bien par leur forme que par leur contenu, les
esparsas, les unes et les autres remontant, semble-t-il, aux coblas esparsas
des Provençaux. Il est curieux de voir ainsi renaître et se développer, en plein
XVe. siècle, un genre qui paraissait oublié... (LE GENTIL, 1949: 221).

A proposição pode estar na primeira estrofe ou em uma longa série de estrofes,


na cantiga ou no vilancete – caso dos poemas de formas mistas – ou ainda somente na
didascália8, e a ajuda, ou ajudas, segue em uma ou mais estrofes. Os exemplos de
diversidade de ajudas são numerosos; adquirem uma importância tal no CGGR que,
somente nos poemas de formas mistas, aparecem isoladamente em 56 composições
(58% do total de poemas mistos); compostas com outros gêneros ou subgêneros, somam
cinco peças. O conjunto pergunta/resposta aparece em quatro poemas; a pergunta
isolada aparece em apenas um e as respostas, em seis. O gênero disputativo, em sua
totalidade, representa 77% dos 96 poemas de formas mistas, sendo, portanto, o gênero
que caracteriza a poética do Cancioneiro de Resende e a ajuda é o grande destaque.
Outros gêneros que se distinguem por sua recorrência no CGGR e que podem
marcar sua poética são as glosas e as epístolas. No cômputo geral, aparecendo
isoladamente, as glosas somam 29 poemas, e o gênero epistolar, 28. Quanto a este,

7
Para os dados comparativos como um todo, usei somente a edição de 1511 do Cancionero General. Isto
me parece razoável, pois, uma vez que Resende inspirou-se no Cancionero de Castillo, é mais provável
que o tenha feito tomando como paradigma aquela edição; a de 1514, anterior à do cancioneiro português
em apenas dois anos, estaria demasiado próxima à edição do CGGR, daí que parece impossível que o
compilador português tenha se baseado nas duas edições.
8
As didascálias prevalecem em qualquer das artes poéticas da Idade Média. Esse procedimento assimila-
se às razós que antecediam as composições de alguns trovadores provençais, apesar de que, nesse caso,
havia uma intenção não só de explicar a motivação dos poemas de determinado trovador, mas também
apresentar, em prosa, seus dados biográficos.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


162
Pierre Le Gentil, comentando a arte dos Grands Rhétoriqueurs franceses, já registrava
que as “êpitres” ou “lettres missives” foram bem desenvolvidas por aqueles e que os
poetas peninsulares conheciam suas obras. Também no CGGR, tudo é motivo para se
dirigir a alguém através das “lettres missives”. As cartas ora aparecem designadas como
tal na didascália ou no corpo do poema ora seu enunciado permite inferir pertencer a
composição ao gênero epistolar. Portanto, considerei como “carta” somente aqueles
poemas em que tal intenção é clara; isso é importante, porque existe uma infinidade de
composições dirigidas a alguém, mas não se tem certeza de que tenha sido enviada pela
forma tradicional de destinatário/remetente.
Outro gênero de destaque no CGGR é a glosa, que se liga a outra característica
que sobressai da arte de trovar da Compilação, o culto às auctoritates. Ao tratar da
poética dos Rhétoriqueurs, também Paul Zumthor se refere a esse gênero e ao
tratamento a ele dado por aqueles poetas franceses. O estudioso denomina tal
procedimento de “variation”, em sentido mais amplo que o da variatio retórica; seria a
introdução, no texto, de partes de outro pré-existente, de modo literal ou alusivo, de
citações concretas ou de reminiscências delas. Quanto às citações, existem dois
registros: o provérbio ou a máxima, “emprunté à ce que l’on pourrait nommer le texte
sapientiel” (ZUMTHOR, [1976]: 329), e os versus cum auctoritate.
Mas não se restringe o CGGR a estes gêneros; além da mescla de dois ou mais
deles numa só composição, aparecem os conselhos, as imitações de orações religiosas,
os louvores e deslouvores, os diálogos, que se ligam à disputatio (mas aqui como
subgênero que retrata a conversa entre as personagens ou do poeta consigo mesmo), os
poemas épicos, as visões e a elegia. Não menos importantes no Cancioneiro de Resende
são aqueles gêneros pequenos em quantidade, mas reveladores de uma poética
característica ou de seu tempo ou de qualquer cancioneiro: o “porquê”, as “palavras
morais”, os “arrenegos”, o memento – todos ligados por temática que deixa o poeta da
era dos Descobrimentos perplexo ante um mundo em desconcerto. Outros, como os
anagramas e os acrósticos, relacionam-se com a atividade lúdica da poesia; alguns mais
ligam-se, ainda, ao gênero disputativo, pois exigem certa teatralidade, como os “breves”
e as “divisas”, ambos compostos para ser encenados, além de pedirem um complemento
visual, unindo a palavra ao ícone. No “memorial”, nas confissões e no menosprezo do
mundo – poucos no CGGR – revelam-se preocupações mais filosóficas; no único

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


163
“romance” do Compêndio, misturam-se gênero e forma para o tratamento que Garcia de
Resende dá à temática amatória.
Depois da questão dos gêneros, a segunda marca da arte de trovar é a métrica.
Não é novidade afirmar-se que o sistema preferido pelos poetas palacianos é a
redondilha maior; a menor aparece somente em nove composições e também alternada
com as redondilhas maiores ou como “pé quebrado” em algumas outras. Isso sem
dúvida registra, também na métrica mista, o gosto pela irregularidade. Muitos
estudiosos têm associado o gosto pela arte menor dos poetas do CGGR ao fastio e à
monotonia. Se o número é exagerado na Compilação, isso aponta o gosto da sociedade
cortesã do Quatrocentos/Quinhentos por essa métrica, e marca o apreço definitivo pela
melodia, em uma época quando a música se desassociou da poesia. São estas duas
modalidades, então, as que dão ao CGGR o sabor de novidade: os pés quebrados, como
uma técnica que permite ao poeta destacar qualquer sentimento ao quebrar os versos, e a
arte maior, como índice de renovação poética, explorada por movimentos estéticos
futuros9.
Para encerrar, valendo-me uma vez mais de Le Gentil, não é só amor pelas
formas o que demonstram os poetas de palácio, mas culto:

Ses formes préférées seront encore des formes médiévales, venues il est vraie
d’Italie. Mais ici encore, un acte de foi artistique transfigurera la preciosité
traditionelle en quelque chose qu’on pourra véritablement appeler, par
opposition à la simple virtuosité technique, le culte de la forme (LE GENTIL,
1952 : 476).

Creio que é através da forma que os poetas do CGGR querem registrar a história
da poesia do Quatrocentos e do Quinhentos, uma poesia marcada pela irregularidade
que, longe de ser defeito, é qualidade e distinção de um novo mundo, descoberto não
somente pelos “grandes feitos”, mas pela arte de arrumar as palavras e delas se servir
para a expressão de novidades, ainda que calcadas na longa tradição.

9
Deixo de citar outras recorrências que Paul Zumthor especifica quanto aos Grands Rhétoriqueurs e que
são patentes no CGGR. Estes casos podem ser verificados em minha tese de doutorado, disponível em:
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8150/tde-15092011-130549/.

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164
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Madrid: Ed. Castalia, 2004, ts I-V.
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DIAS, Aida Fernanda. Cancioneiro Geral de Garcia de Resende – A Temática. Maia:
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XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


165
A ARTE POÉTICA NO CANCIONEIRO GERAL DE GARCIA DE
RESENDE, 1516
Geraldo Augusto Fernandes
Universidade Federal do Ceará

RESUMO: Seria possível que tivesse existido uma “arte poética” em Portugal, escrita
entre os séculos XIV e XVI, a exemplo das poéticas de Juan Alfonso de Baena, Juan del
Encina ou do Marquês de Santillana, contemporâneos do compilador do Cancioneiro
Geral, Garcia de Resende? Segundo afirma Alan Deyermond em Poesía de Cancionero
del siglo XV, “sería imprudente no contemplar la posibilidad de que la pérdida de uno o
más cancioneiros pudiera habernos privado de la obra de una floreciente generación de
poetas galaico-portugueses posterior a Dinis.” Adverte também sobre algumas alusões a
tais cancioneiros, valendo-se de estudos e do registro feito por Dom Pedro, o
Condestável, em seu Proêmio ao Marquês de Santillana, em 1449, no qual descreve um
cancioneiro que havia visto quando jovem. A existência de outros cancioneiros é
revelada inclusive em uma das esparsas do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende
(núm. 871). Nela, Resende pede a Diogo de Melo, que partia para Alcobaça, que lhe
trouxesse “ũ cancioneiro d'ũ abade que chamam Frei Martinho”, dizendo: “Decorai polo
caminho, / té chegardes ò moesteiro, / qu'ha-de vir o cancioneiro / do abade Frei
Martinho.”
Nestes supostos cancioneiros perdidos, poderia existir algum texto em que se
discorresse sobre a arte de trovar? Nesta comunicação, proponho entrever uma possível
arte poética implícita no Cancioneiro Geral, tendo em conta os estudos de Francisco
López Estrada. Parece-me que o cancioneiro resendiano, além de apresentar gêneros e
poemas de “alto grado de perfección”, pode revelar um sistema poemático, uma “arte
poética”, enfim, que reúne a forma, de modo inovador e elegante, em todos os sentidos
do termo.

Palavras-chave: artes poeticae, Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, formas


poéticas, cancioneiros dos séculos XV-XVI, poesia palaciana

ABSTRACT: Is it possible that there had been a "poetic art" in Portugal, written
between the fourteenth and sixteenth centuries, like the poetry of Juan Alfonso de
Baena, Juan del Encina or the Marquis of Santillana, texts contemporary to Garcia de
Resende’s Cancioneiro Geral? According to Alan Deyermond in Poesía de Cancionero
del siglo XV, “sería imprudente no contemplar la posibilidad de que la pérdida de uno o
más cancioneiros pudiera habernos privado de la obra de una floreciente generación de
poetas galaico-portugueses posterior a Dinis.” The existence of other songbooks is also
revealed in one of Garcia de Resende’s sparse (num. 871). In it, Resende asks Diogo de
Melo, who was leaving for Alcobaça, to bring him “ũ cancioneiro d'ũ abade que
chamam Frei Martinho”, dizendo: “Decorai polo caminho, / té chegardes ò moesteiro, /
qu'ha-de vir o cancioneiro / do abade Frei Martinho.” In these supposed lost songbooks,
there could be some text that elaborates on the art of trovar? In this paper, I propose a
glimpse of a possible implicit poetics in the Cancioneiro Geral, taking into account the
studies of Francisco López Estrada.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


151
Passwords: artes poeticae, Garcia de Resende’s Cancioneiro Geral, poetical forms, XV
century songbooks, courtly poetry

Em 1516, Garcia de Resende edita seu Cancioneiro Geral composto de 880


poemas. Em minha tese de doutorado, dediquei-me a dividir esses poemas em seis
grandes grupos, levando em consideração sua estrutura formal. Os grupos se
denominam: baladas, vilancetes, esparsas, trovas, cantigas e poemas de formas mistas1.
A divisão serviu para a constatação daquilo que Pierre Le Gentil referia
persistentemente: a irregularidade, não como defeito ou desconhecimento das técnicas
da poesia, mas como algo que dava ao Cancioneiro qualidade e prestígio (LE GENTIL,
1952: 187-188). Foi ela que permitiu aos poetas palacianos ser criativos e originais, em
conjunto com aquilo que mais apreciavam: a forma.
Tendo em conta as várias opiniões quanto à forma poemática que se
desenvolveu no Quatrocentos e no Quinhentos peninsulares, uma questão, pelo menos,
surge: quando se estudam essas formas do Cancioneiro de Resende, seria possível
estabelecer uma “poética implícita”, uma vez que não existe uma poética explícita em
Portugal dos anos 1400 e 1500? A investigação foi necessária, pois poderia contribuir
para o vazio existente quanto aos parâmetros estruturais que determinariam as poéticas
medievais inexistentes no lado ocidental da Península Ibérica. Em Portugal dos séculos
XV e XVI, não se produziu uma poética, como a que realizaram os provençais – as Leys
d’Amors – ou como a Arte de Trobar da poesia trovadoresca galego-portuguesa, para
citar apenas duas. Pelo menos, não há registro de uma produção de tal documento.
Dessa forma, a resposta para esses questionamentos poderia ajudar num melhor
entendimento do processo composicional dos poetas portugueses do período delimitado
para a investigação – os séculos XV e XVI.
Como se sabe, pelos prólogos que Juan Alfonso de Baena e Juan del Encina
produziram, nos quais escreveram suas artes poeticae, os recursos próprios da poesia

1
A característica original desse último grupo é a mescla de várias formas em uma só composição. Tome-
se como exemplo o texto que abre o Cancioneiro Geral, conhecido por “O cuidar e sospirar”. Trata-se de
146 poemas de formas mistas, em que se desenvolve um único tema: 116 trovas, uma sextilha, cinco
quadras, uma quintilha, 22 cantigas e um vilancete. Igual a esse poema, selecionei outros 95, cuja forma é
mista. O editor do Cancionero General de Hernando del Castillo, Joaquín González Cuenca, refere-se a
casos em que dois ou mais textos estão “vinculados”, o que revela a mistura. Para explicar a distribuição e
numeração dos poemas que reeditou, Cuenca comenta que “ocurre a veces que un poema largo incluye
uno o más poemas menores, generalmente canciones o cuarteta, que tienen autonomia propia.”
(CASTILLO: 2004, 135).

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


152
eram de suma importância. Baena escreve que a arte da poesia e da gaia ciência é feita
por “aquel que byen e sabya e sotyl e derechamente la saben fazer e ordenar e conponer
e limar e escandir e medir por sus pies e pausas, e por sus consonantes e sylabas e
açentos, e por artes sotyles e de muy diuersas e syngulares nonbranças” (ENCINA,
1984: 37). Para Encina,

el poeta contempla en los géneros de los versos, y de quántos pies consta


cada verso, y el pie, de quantas sílabas; y aún no se contenta con esto, sin
examinar la quantidad dellas. Contempla esse mesmo qué cosa sea
consonante y assonante; y quándo passa vna sílaba por dos, y dos sílabas por
vna (idem: 84)2.

Para se entender melhor as formas no CGGR3, foi necessário empreender um


levantamento estatístico quanto à maioria dos itens propostos a seguir, uma vez que não
há muitos estudos delas em suas particularidades. O levantamento se restringiu à
questão das estrofes, das glosas, dos motes, dos pés quebrados, da métrica, da língua e
do gênero, excetuando-se o sistema das rimas. Isso me pareceu indispensável para
fundamentar o estudo – a possibilidade de uma poética implícita no CGGR. Feito o
levantamento, a questão de uma poética palaciana portuguesa se revelou, pois,
diferentemente de uma grande parte dos cancioneiros medievais do Quatrocentos e
Quinhentos, e mesmo diferentemente do que ocorreu com os cancioneiros das poesias
provençal e galego-portuguesa, não se registra em Portugal daquelas duas centúrias
nenhum documento que “normalize” ou indique uma direção para o ato de fazer
poesias. É possível que, com outros estudos sistemáticos do corpus poético como o que
empreendi, se possa encontrar um denominador que remita a uma linha de
coincidências, a um estilema, a uma poética do CGGR. Creio que um caminho é
fornecido e traçado pelos poetas palacianos: as formas estróficas, os recursos retóricos,
a irregularidade e ainda alguns gêneros que têm seu ápice nos poemas de formas mistas
– todos eles resumem aquilo que significava, então, a arte de trovar. Parece que a chave

2
Encina trata tudo isso em pormenores nos capítulos V ao IX (final).
3
Para as referências ao Cancioneiro português, utilizei a sigla CGGR. A edição do Cancioneiro Geral de
Garcia de Resende utilizada é a mais recente, de 1990-1993, levada a cabo por Aida Fernanda Dias, cf.
Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, Fixação do texto e estudo por Aida Fernanda Dias, Maia,
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990-1993, Tomos I-IV. A estudiosa escreveu também uma edição
crítica (“A Temática”, 1998) e organizou um Dicionário Comum, Onomástico e Toponímico (Volume
VI), de 2003. Essas publicações são da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Maia. Dessa forma, todas as
referências ao número dos poemas, volumes e páginas em que estes se encontram remetem à edição da
estudiosa.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


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para esta arte se encontra na palavra “invenção ”, que Resende cita em seu prólogo e
que, inúmeras vezes, aparece nos poemas do Compêndio. Esta palavra não se refere
apenas à ousadia na vestimenta, mas também significa ousar em atitudes e em poetar. E
esta ousadia, uma vez mais, se concretiza nos poemas de formas mistas. Em busca de
uma “poética” do Cancioneiro Geral, vali-me do estudioso Francisco López Estrada.
Para o autor, existem dois tipos de “poéticas”, uma explícita, ou seja, formulada em
tratados, outra implícita,

influyendo desde el ejemplo magistral que representan las obras que han
adquirido prestigio por el alto grado de perfección (eficacia comunicativa)
que muestran; al mismo tiempo esta Poética establece los principios por los
cuales las obras se agrupan en ‘géneros’ reconocidos por determinadas
características comunes (ESTRADA, 1984: 11).

É assim que surge, tanto no Prólogo de Garcia de Resende, mas principalmente


no conjunto de seus poemas, uma poética implícita, baseada em formas e gêneros com
características comuns.
Não obstante, é possível que tenha existido uma “arte poética” em Portugal,
escrita entre os séculos XIV-XVI? Alan Deyermond, em Poesía de Cancionero del siglo
XV, discorre sobre essa possibilidade:

Sería imprudente no contemplar la posibilidad de que la pérdida de uno o


más cancioneiros pudiera habernos privado de la obra de una floreciente
generación de poetas galaico-portugueses posterior a Dinis (…). La tardía
fecha de Vaticana y Colocci-Brancuti (…) hace probable que estuvieran
vinculados al arquetipo por una serie de manuscritos hoy perdidos, y varias
características de los existentes cancioneiros (…) sugieren que el arquetipo
estuvo precedido por muchos manuscritos que contenían la obra de poetas
individuales o de un solo género. Entre tantos manuscritos perdidos ¿no es
posible que hubiera cancioneiros que difirieran de la tradición que
representan los que se conservan? (DEYERMOND, 2007: 141).

Em seguida, refere o estudioso a várias alusões a tais cancioneiros perdidos, valendo-se


de estudos e, inclusive, do registro feito por Dom Pedro, o Condestável, em seu
Prohemio ao Marquês de Santillana, em 1449, descrevendo um cancioneiro que teria
visto quando jovem. (idem: 142).4 A existência de outros cancioneiros é revelada
também em uma das esparsas do CGGR (871), do próprio Garcia de Resende: nela, pede
4
Aida Fernanda Dias comenta sobre a possível existência de outro cancioneiro contemporâneo ao
cancioneiro de Resende, o Cancioneiro Português, como relatam Gil Vicente, André Falcão de Resende e
Bernardo Rodrigues (DIAS: 1998, 100-103).

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a Diogo de Melo, que partia para Alcobaça, que lhe trouxesse “ũ cancioneiro d'ũ abade
que chamam Frei Martinho”:

Decorai polo caminho,


té chegardes ò moesteiro,
qu'ha-de vir o cancioneiro
do abade Frei Martinho.
5 E s'esperardes de vir
sem mo mandardes trazer,
podeis crer
que quem tinheis em poder
para sempre vos servir
10 olhos que o viram ir...

Nestes supostos cancioneiros perdidos, poderia existir algum texto em que se


discorria sobre a arte de trovar? À falta dessa, me propus descobrir uma possível “arte
poética” implícita do CGGR, levando em conta o parecer de López Estrada: da reunião
dos gêneros e das características próprias de um cancioneiro, pode-se determinar sua
poética. O Cancioneiro resendiano, além dos gêneros e poemas de “alto grado de
perfección”, que, como diz o estudioso, podem revelar um sistema poemático, apresenta
uma marca específica: sua forma.
Para este estudo tomo como parâmetro apenas o Prólogo de Garcia de Resende,
onde alguns índices são fornecidos. De forma esporádica, citarei alguns poemas
representativos do Cancioneiro. No Prólogo, a palavra “memória” aparece três vezes,
além das expressões que remetem a ela: “a natural condiçam dos Portugueses é nunca
escreverem cousa que façam”; “se podiam escrever (...) dos tempos passados como
d'agora”; “outras notaveis cousas que se nam podem em pouco escrever”; “muitas
cousas de folgar e gentilezas sam perdidas”;5 de “muitos emperadores, reis e pessoas de
memoria, polos rimances e trovas sabemos suas estórias”; “as [trovas] que sam perdidas
dos nossos passados se poderam haver e dos presentes s'escreveram”; “determinei
ajuntar algũas obras que pude haver d'algũs passados e presentes”6. Assim, segundo
Resende, o papel do poeta é cantar os grandes feitos – e no CGGR, eles vêm cantados
em números que não se restringem somente às grandes Conquistas, mas incluem

5
Note-se que Garcia de Resende alude a textos perdidos, corroborado por Deyermond.
6
As referências ao Prólogo de Garcia de Resende encontram-se nas páginas 9 a 11 da edição usada para
este estudo.

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155
aqueles que são característicos do homem – as indagações sobre o ser e o estar em uma
sociedade em mutação.
Nos prólogos de seus congêneres castelhanos, a memória é recorrente. Tome-se
como exemplo o Prologus baenensis: Baena, ao discorrer sobre a escritura, memória da
História, pregunta-se “Ca sy por las escripturas non fuesse ¿qual sabydurya o qual
engeño o memorya de omnes se podrye membrar de todas las cossas passadas?”
(BAENA, 1984: 32). E a resposta estaria nos escritos, através dos quais os homens
tomam conhecimento de todos os feitos e de todas as ciências. A memória, no
Cancioneiro resendiano, vem registrada de numerosas maneiras: no gênero epistolar;
nos poemas em que o tema do desconcerto do mundo é a preocupação primeira do poeta
– de fundo “saudosista”; nas numerosas críticas de costumes e de pessoas, geralmente
como sátira maldizente; nas descrições e referências a lugares conquistados durante as
empresas ultramarinas; nas várias alusões essas, em que o poeta compara os feitos
concretos dos portugueses a grandes nomes da Antiguidade; nos textos em que é
subjacente uma “saudade da terra”; nos poemas de elogio a poetas e a figuras da
História de Portugal; nas linhagens de famílias, cujo poema representativo são as trovas
457, de João Rodrigues de Sá, declarando alguns escudos de armas “d’algũas linhajeens
de Portugal, que sabia donde vinham”.
Outro termo a que recorre Garcia de Resende são as “virtudes”, as quais os
portugueses se esquecem de cantar. O escrivão reúne poemas em que essa preocupação
aflora – textos de fundo filosófico, em que os poetas meditam sobre a Virtude como
entidade, sempre ligada ao conceito clássico e medieval das virtudes cardeais. Estas
virtudes se revelam, também, nos poemas em que o mundo está ao revés, naqueles em
que a figura do adynaton é artifício central; nas sátiras, elas vêm cantadas quando o
poeta critica um costume que macula a moral ou quando os cortesãos se deixam levar
pela novidade exterior.
A esta se liga outra palavra que Resende coloca em seu Prólogo: as “manhas”.
De acordo com Aida Fernanda Dias, são os costumes, as habilidades, os modos (DIAS,
2003: 420), criticados, às vezes louvados, nas sátiras de costumes. A ciência – junto
com a guerra, a paz, as virtudes, as “manhas” e a gentileza – é esquecida. Quanto à
guerra e à paz, os termos vêm expressos ao longo do Cancioneiro ligados às Conquistas
e aos conflitos do amador desprezado pela dama a quem serve, chegando os poetas a

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“brincar” com a palavra, quando sua amada tem por nome Guerra, por exemplo. Por sua
vez, a palavra “gentileza” aparece três vezes no Prólogo: refere-se à cortesia, tanto a
etiqueta no trato do Paço, quanto as gentilezas do amor, tema majoritário na
Compilação. A “gentileza” ligada ao amor é aquela definida por Paul Zumthor como o
“grand chant courtois”, reminiscência nos séculos XV-XVI do amor provençal e galego-
português.
No entanto, a palavra “ciência” traz um questionamento – estaria ligada ao
conhecimento obtido pela observação e experiência, ou à “gaia ciência”, tão venerada
pelos poetas e também recorrente nos proêmios de Baena, Santillana, Encina e Villena?
O termo vem por enumeração na terceira linha do Prólogo: “de ciencia, manhas e
gentileza sam esquecidos”. O conjunto permite ambas interpretações, pois os
portugueses se esquecem de escrever sobre os grandes feitos, como diz Resende,
aqueles relacionados à prática – à ciência e à manha – e aqueles relacionados à arte de
trovar – a gentileza. Entretanto, para ambos os sentidos, se encontra no CGGR sua
expressão – na observação do homem e suas práticas e nos poemas em que os poetas
registram o tempo em que vivem. Apenas como exemplo, nas trovas de núm. 129, o
termo está relacionado à arte de trovar, como se pode verificar na estrofe que segue:

Nam vos toco mais azedo


por nam desfechar em vãao,
mas nam ja com vosso medo,
porque sei que tarde ou cedo
5 m'haveis de cair na mão.
Precurai outra ciencia
leixar a mim o trovar,
nam vos quero mais picar
por cargo de conciencia.

Mas nas trovas 257, o sentido é ligado ao conhecimento divino e humano:

Dame tu escudo claro, cristalino,


y armame todo con armas seguras,
para que contraste al mortal venino
y ravias caninas, feroces muy duras.
5 Tu, sabia maestra, tu que nos procuras
sciencias santas, humanas, divinas,
arriedra mi seso de mundanas curas,
distila em mi tus dulces doctrinas.

Relacionado às gentilezas, aparece ainda o verbo “folgar”, pelo menos em duas


acepções no Prólogo: refere-se aos poemas em que se declama o prazer deletério de
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viver e, muito mais, às sátiras, numerosas no Compêndio, concorrendo de perto com a
temática amatória. Na primeira aparição, o termo remete ao passado e, na segunda, ao
futuro – quanto àquele, liga-se ao fato de que as “cousas de folgar”, assim como tudo
que é a “natural condiçam dos Portugueses”, são esquecidas; em relação ao futuro, é um
apelo de Resende aos poetas, futuros ou contemporâneos seus: devem estes, espelhados
no CGGR, “s'espertarem a folgar d'escrever e trazer aa memoria os outros grandes
feitos”. A poesia que tivesse por espírito o ato de folgar era para os poetas tão
importante que, somente nos poemas de formas mistas, jocosos ou sérios, o verbo, no
infinitivo ou conjugado, e seus derivativos em substantivo (folgança) e adjetivo
(folgado) aparece 55 vezes. Esse ato de “folgar” remete a outro termo intimamente
ligado a ele: “desenfadamento”. Essa, afinal, é a justificativa, confessa Garcia de
Resende, para entregar-se à sua Compilação. Dedica-a ao príncipe, futuro D. João III, e
deseja que ele “fosse servido e tomasse desenfadamento”, através das “cousas de
folgar”. O “desenfadamento” aparece nos poemas de formas mistas, em suas variantes –
verbos e substantivos – pelo menos cinco vezes, juntamente com seu contrário, o
“enfadamento”.
Como todos os tratados medievais, as referências e louvações à Cristandade
parecem significativas. No Prólogo, Garcia de Resende conta que os portugueses lutam
“debaixo da bandeira de Cristos (...) tornando tantos reinos e senhorios com inumeravel
jente aa fee de Jesu Cristo, recebendo agua do santo bautismo”. Com a arte de trovar,
será “Nosso Senhor louvado, como nos hinos e canticos que na Santa Igreja se cantam”.
Diz que tudo isso “se veraa” no livro que entrega ao Príncipe, e sua declaração é
confirmada pela variedade de poemas religiosos: imitando ou glosando uma oração,
parodiando textos bíblicos, louvando e cantando as personagens das Sagradas
Escrituras, fazendo alusões a santos, implorando ou invocando a Deus, através dos
expletivos, vendo na beleza da dama servida uma obra de Deus, ousando nas sátiras unir
o sagrado ao profano. No entanto, diferente dos proêmios castelhanos quinhentistas,
essas referências ao divino não se relacionam ao “trovar” como obra de inspiração de
Deus ou dos deuses. Em alguns poemas, entretanto, os poetas pedem inspiração a estes,
como nas trovas 361, de Diogo Brandão, em que canta o fingimento de amor:

Ó divina sapiencia,
de todos tam desejada

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e de mim pouco gostada
por nom ter suficiencia,
5 faze-me tam sabedor
que possa dizer aqui,
com favor de teu favor,
as grandes cousas que vi!

Todo o Prólogo do CGGR é uma apologia aos “mui e muitos grandes feitos” dos
portugueses. Garcia de Resende usa o verbo que resume os “grandes feitos” –
“navegar”, que será mote para muitas composições. Diz Resende “que nenhũas armadas
do Soldam nem outro nenhum gram rei nem senhor nom ousam navegar com medo das
nossas, perdendo seus tratos, rendas e vidas”. Nos poemas em que navegar é motivo
para poetar, a ação e o verbo adquirem conotação alegórica e quase nunca o resultado é
somente exaltação – é razão também de insegurança e de temor.
Ainda no Prólogo, Garcia de Resende discorre sobre o ato de fazer poesia, à arte
de trovar e faz com certo ressentimento pelo descaso com que os portugueses tratam a
gaia ciência: “muitas cousas de folgar e gentilezas sam perdidas, sem haver delas
noticia, no qual conto entra a arte de trovar” – arte que para ele é a mais “dina” de todas.
Sua Compilação vem, de certa forma, preencher o vazio deixado por tantas “cousas
perdidas”, pois é “polos rimances e trovas [que] sabemos suas estórias [as dos
imperadores, reis e pessoas de memória]”; e ela “nas cortes dos grandes princepes é mui
necessaria na jentileza, amores, justas e momos”, enfocando onde se desenvolve a gaia
ciência e através de que: da poesia cortês, da exaltação do amor, da poesia disputativa e
teatral. Sem dúvida, aqui Resende resume boa parte de seu Cancioneiro, uma vez que a
temática cortês, amatória, disputativa e dramática – ainda que incipiente, mas bem
representada pelos gêneros dialogados – é o cerne de sua Compilação. Quanto a essa
arte “dina”, Resende discorre sobre uma série de poemas que tem por alvo aqueles
cortesãos que, pelos “maos trajos e envenções [que] fazem, per trovas sam castigados e
lhe dam suas emendas, como no livro ao diante se veraa”, ressaltando a poesia que tem
por função desenfadar por meio das “cousas de folgar”, mas também uma poesia
didático-moralista, já que os que infringem a sociabilidade cortesã “sam castigados”.
A palavra “invenção” é recorrente nas artes trovadorescas desde as provençais
até as castelhanas. Se no Prólogo Garcia de Resende a toma no sentido de “novidade”
especificamente ligada à vestimenta, parece- me que sua intenção era maior justamente
porque a ela se refere toda a arte de trovar. A essa palavra, creio, está ligado o termo

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“ciência”, sobre o qual já discorri anteriormente, mas que permite outra interpretação,
mesmo que relacionada à gaia ciência – poderia significar engenho, talento, como a
definem os tratadistas e poetas. Lênia Márcia Mongelli resume a “história” do termo
aliado à poesia:

vê-se que “antigos” e “modernos” fazem girar seu conceito de poética em


torno do mesmo princípio da invenção, que não significa necessariamente
“criar”, “fantasiar”, mas sim “organizar”, “arranjar”, “dispor’ as ideias, da
melhor maneira possível, no arcabouço de um discurso que deve ser, antes de
tudo, coerente (MONGELLI, 2002: 156-157).

Creio, então, que o uso do termo tem muito a ver com o ato de fazer poesias, e
este ato deve ser ousado. Sem dúvida, Garcia de Resende usou “invenção” não apenas
para se referir à vestimenta; seu sentido é mais amplo e vem da tradição, aplicada agora
a um novo modo de poetar cortesão, de fins do Quatrocentos e início do Quinhentos,
cuja expressão máxima é o Cancioneiro Geral. Para se ter uma dimensão da
importância desse termo no CGGR, encontram-se, nos poemas de formas mistas, 63
recorrências à palavra, assim enunciadas: inventurus, envenções, envençam, envenção,
invencion, envencion, inventadores, envencionar, envencionado, enventar, enventou,
inventar, enventados. Dessas ocorrências, apenas cinco não se relacionam com a
vestimenta ou indumentária: duas relacionadas ao amor, uma à crítica política, uma aos
costumes e outra ao preconceito. Vinculados à acepção de “novidade”, aparecem nos
poemas mistos os termos “fantasia” (fantesia, fanteseando), no sentido de imaginação,
criatividade – dezoito ocorrências, sendo apenas cinco relacionadas à
vestimenta/indumentária. Outro termo em íntima ligação com as novidades da
“invenção” é “maravilha” (maravilho, maravilheis, maravilhado), no sentido de algo que
traz admiração; são 15 ocorrências e, entre elas, somente sete relacionadas à vestimenta;
além desses termos, vem a palavra “novidade”, nas seguintes derivações: emnovar,
renovar, novidades, nova, enovada; aparecem sete vezes, sendo quatro ligadas aos
trajes. É interessante notar, nessa numerosa aplicação de termos relacionados ao ato de
“criar”, de “aparecer com algo novo”, de “destacar-se”, que o cortesão sentia
necessidade de se superar – em tudo, nos trajes exuberantes e luxuosos, mas também
como poeta, em um trabalho que deixasse registro de sua dedicação à arte de trovar. O
Prólogo de Garcia de Resende parece exíguo nas alusões à arte da poesia, se se tomar
como paradigmas os proêmios de seus contemporâneos castelhanos, mas não deixa de

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acentuar que é a poesia a arte enobrecedora do emergente império lusitano. Para ele, à
luz de Horácio, a arte de trovar é prodesse, é delectare e a reunião dos dois, iuncunda et
idonea.
Parece-me claro, no entanto, que os indícios de uma poética do Cancioneiro de
Resende não se restringem ao Prólogo – ela se revela muito mais no corpus das poesias
“ordenado” por seu organizador. López Estrada diz que uma arte poética se pode inferir
dos gêneros de destaque de um determinado cancioneiro; creio ser eles que, de certo
modo, indicam a predileção por alguns elementos repetitivos que retratam o espírito do
poetar de um determinado período. Por sua insistência, alguns gêneros se destacam no
CGGR: ainda que não completamente novos, revelam a técnica de que se serviram os
poetas palacianos para inovar. O primeiro deles é a disputatio: é ela de tal importância,
que o mais longo, mais famoso e inovador dos poemas do CGGR, o “Cuidar e sospirar”,
abre a Compilação e toma um terço do volume I. De origem provençal e galego-
portuguesa, as ajudas, as perguntas e as respostas, subgêneros da disputatio, aparecem
não só com nova denominação, mas com nova forma e novo conteúdo. Pelas regras do
gênero, o ideal seria que o respondente ou “ajudador” se manifestasse através do mesmo
sistema de rimas e métrico; isso não ocorre absolutamente no CGGR, excetuando-se os
poemas em que a resposta ou ajuda vem “polos consonantes”, quando a consonância
das rimas é perfeita, um exercício de agudeza do poeta, principalmente se ele usa as
mesmas palavras-rima do poema que responde ou ajuda. Acontece, também, que tanto
as perguntas quanto as respostas podem aparecer isoladas, por estranho que pareça. No
caso destas, o poeta poderá responder a uma pergunta, como nas trovas de número 2, em
que D. João de Meneses responde a um homem que acabara de sair de “ũs amores” e
queria saber como poderia “entrar em outros”, pedindo que a resposta fosse em
castelhano. Em todos esses casos, não há “pergunta” na composição, mas se sabe dela
pela didascália. Quanto às perguntas, vejam-se as trovas 88, que Nuno Pereira mandou
a Francisco da Silveira, em que a pergunta aparece depois de seis estrofes e ocorre em
outras duas, seguidas de um “cabo”:

Pregunta.

E vós lá galantear
e eu com foce e padam,
vós damejar,
eu enxertos enxertar,

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


161
5 quem teraa menos paixam?
Vós na corte cortesãao,
eu com meu fogo e meu lar,
vós louçãao
e eu com açor na mãao,
10 qual é mais certo folgar?

O subgênero ajuda é inovador e único no CGGR, pois não há registro dele, por
exemplo, no Cancionero General de Hernando del Castillo; neste, existe uma seção
especialmente dedicada a Preguntas y respuestas, composta de 56 poemas.7 Não se trata
a ajuda de pergunta nem de resposta, mas o poeta, ou poetas, é instigado a ajudar o
proponente e, quase sempre, é este quem a pede. Le Gentil comenta que

les ajudas rappelent, aussi bien par leur forme que par leur contenu, les
esparsas, les unes et les autres remontant, semble-t-il, aux coblas esparsas
des Provençaux. Il est curieux de voir ainsi renaître et se développer, en plein
XVe. siècle, un genre qui paraissait oublié... (LE GENTIL, 1949: 221).

A proposição pode estar na primeira estrofe ou em uma longa série de estrofes,


na cantiga ou no vilancete – caso dos poemas de formas mistas – ou ainda somente na
didascália8, e a ajuda, ou ajudas, segue em uma ou mais estrofes. Os exemplos de
diversidade de ajudas são numerosos; adquirem uma importância tal no CGGR que,
somente nos poemas de formas mistas, aparecem isoladamente em 56 composições
(58% do total de poemas mistos); compostas com outros gêneros ou subgêneros, somam
cinco peças. O conjunto pergunta/resposta aparece em quatro poemas; a pergunta
isolada aparece em apenas um e as respostas, em seis. O gênero disputativo, em sua
totalidade, representa 77% dos 96 poemas de formas mistas, sendo, portanto, o gênero
que caracteriza a poética do Cancioneiro de Resende e a ajuda é o grande destaque.
Outros gêneros que se distinguem por sua recorrência no CGGR e que podem
marcar sua poética são as glosas e as epístolas. No cômputo geral, aparecendo
isoladamente, as glosas somam 29 poemas, e o gênero epistolar, 28. Quanto a este,

7
Para os dados comparativos como um todo, usei somente a edição de 1511 do Cancionero General. Isto
me parece razoável, pois, uma vez que Resende inspirou-se no Cancionero de Castillo, é mais provável
que o tenha feito tomando como paradigma aquela edição; a de 1514, anterior à do cancioneiro português
em apenas dois anos, estaria demasiado próxima à edição do CGGR, daí que parece impossível que o
compilador português tenha se baseado nas duas edições.
8
As didascálias prevalecem em qualquer das artes poéticas da Idade Média. Esse procedimento assimila-
se às razós que antecediam as composições de alguns trovadores provençais, apesar de que, nesse caso,
havia uma intenção não só de explicar a motivação dos poemas de determinado trovador, mas também
apresentar, em prosa, seus dados biográficos.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


162
Pierre Le Gentil, comentando a arte dos Grands Rhétoriqueurs franceses, já registrava
que as “êpitres” ou “lettres missives” foram bem desenvolvidas por aqueles e que os
poetas peninsulares conheciam suas obras. Também no CGGR, tudo é motivo para se
dirigir a alguém através das “lettres missives”. As cartas ora aparecem designadas como
tal na didascália ou no corpo do poema ora seu enunciado permite inferir pertencer a
composição ao gênero epistolar. Portanto, considerei como “carta” somente aqueles
poemas em que tal intenção é clara; isso é importante, porque existe uma infinidade de
composições dirigidas a alguém, mas não se tem certeza de que tenha sido enviada pela
forma tradicional de destinatário/remetente.
Outro gênero de destaque no CGGR é a glosa, que se liga a outra característica
que sobressai da arte de trovar da Compilação, o culto às auctoritates. Ao tratar da
poética dos Rhétoriqueurs, também Paul Zumthor se refere a esse gênero e ao
tratamento a ele dado por aqueles poetas franceses. O estudioso denomina tal
procedimento de “variation”, em sentido mais amplo que o da variatio retórica; seria a
introdução, no texto, de partes de outro pré-existente, de modo literal ou alusivo, de
citações concretas ou de reminiscências delas. Quanto às citações, existem dois
registros: o provérbio ou a máxima, “emprunté à ce que l’on pourrait nommer le texte
sapientiel” (ZUMTHOR, [1976]: 329), e os versus cum auctoritate.
Mas não se restringe o CGGR a estes gêneros; além da mescla de dois ou mais
deles numa só composição, aparecem os conselhos, as imitações de orações religiosas,
os louvores e deslouvores, os diálogos, que se ligam à disputatio (mas aqui como
subgênero que retrata a conversa entre as personagens ou do poeta consigo mesmo), os
poemas épicos, as visões e a elegia. Não menos importantes no Cancioneiro de Resende
são aqueles gêneros pequenos em quantidade, mas reveladores de uma poética
característica ou de seu tempo ou de qualquer cancioneiro: o “porquê”, as “palavras
morais”, os “arrenegos”, o memento – todos ligados por temática que deixa o poeta da
era dos Descobrimentos perplexo ante um mundo em desconcerto. Outros, como os
anagramas e os acrósticos, relacionam-se com a atividade lúdica da poesia; alguns mais
ligam-se, ainda, ao gênero disputativo, pois exigem certa teatralidade, como os “breves”
e as “divisas”, ambos compostos para ser encenados, além de pedirem um complemento
visual, unindo a palavra ao ícone. No “memorial”, nas confissões e no menosprezo do
mundo – poucos no CGGR – revelam-se preocupações mais filosóficas; no único

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


163
“romance” do Compêndio, misturam-se gênero e forma para o tratamento que Garcia de
Resende dá à temática amatória.
Depois da questão dos gêneros, a segunda marca da arte de trovar é a métrica.
Não é novidade afirmar-se que o sistema preferido pelos poetas palacianos é a
redondilha maior; a menor aparece somente em nove composições e também alternada
com as redondilhas maiores ou como “pé quebrado” em algumas outras. Isso sem
dúvida registra, também na métrica mista, o gosto pela irregularidade. Muitos
estudiosos têm associado o gosto pela arte menor dos poetas do CGGR ao fastio e à
monotonia. Se o número é exagerado na Compilação, isso aponta o gosto da sociedade
cortesã do Quatrocentos/Quinhentos por essa métrica, e marca o apreço definitivo pela
melodia, em uma época quando a música se desassociou da poesia. São estas duas
modalidades, então, as que dão ao CGGR o sabor de novidade: os pés quebrados, como
uma técnica que permite ao poeta destacar qualquer sentimento ao quebrar os versos, e a
arte maior, como índice de renovação poética, explorada por movimentos estéticos
futuros9.
Para encerrar, valendo-me uma vez mais de Le Gentil, não é só amor pelas
formas o que demonstram os poetas de palácio, mas culto:

Ses formes préférées seront encore des formes médiévales, venues il est vraie
d’Italie. Mais ici encore, un acte de foi artistique transfigurera la preciosité
traditionelle en quelque chose qu’on pourra véritablement appeler, par
opposition à la simple virtuosité technique, le culte de la forme (LE GENTIL,
1952 : 476).

Creio que é através da forma que os poetas do CGGR querem registrar a história
da poesia do Quatrocentos e do Quinhentos, uma poesia marcada pela irregularidade
que, longe de ser defeito, é qualidade e distinção de um novo mundo, descoberto não
somente pelos “grandes feitos”, mas pela arte de arrumar as palavras e delas se servir
para a expressão de novidades, ainda que calcadas na longa tradição.

9
Deixo de citar outras recorrências que Paul Zumthor especifica quanto aos Grands Rhétoriqueurs e que
são patentes no CGGR. Estes casos podem ser verificados em minha tese de doutorado, disponível em:
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8150/tde-15092011-130549/.

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Poétique, n. 27 (1976), Paris, pp 317-337.

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A RECONQUISTA CRISTÃ E SUA ATUALIDADE NO DISCURSO
MUÇULMANO. MÍDIA, REPRESENTAÇÃOE ENSINO DA
HISTÓRIA
Heloisa Guaracy Machado
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas)
Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP)

Marília Carneiro Ferreira


Bacharel em História e em Relações Internacionais pela PUC Minas

RESUMO: A questão do islamismo goza de grande atualidade no mundo


contemporâneo, em meio à intensificação do chamado terrorismo internacional, tendo
como pano de fundo as relações conturbadas entre o Ocidente e Islã. Apesar das
diferenças internas também entre as correntes muçulmanas, levando à radicalização da
violência em seus territórios, percebe-se certa convergência para um tipo de discurso
que procura desqualificar o mundo ocidental e os seus valores. Por outro lado, as
implicações desse processo são desconsideradas pelos analistas ocidentais, grosso
modo, movidos por uma perspectiva etnocêntrica e simplificadora da sua própria visão
de mundo. Nesse sentido, esta comunicação tem como objetivo a problematização desse
cenário beligerante e complexo, trazendo à tona, através da análise de fontes midiáticas,
duas vozes representativas do islamismo, uma extremista e outra moderada, cujos
discursos, proferidos por ocasião dos atentados às Torres Gêmeas, em 2001, e à sede do
jornal Charlie Hebdo, em 2015, recuperam o cenário da Hispania medieval em torno
dos episódios da Reconquista cristã.

Palavras-chave: Ibéria medieval, Reconquista cristã, islamismo.

RÉSUMÉ: La question islamique jouit d’une grande pertinence dans le monde


contemporain, vis-à-vis de l’intensification du soi-disant terrorisme international, avec
en toile de fond les rapports historiquement conflictuels entre l’Occident et le Moyen-
Orient. Malgré les disputes intestines entre les différents courants musulmans, menant à
la radicalisation de la violence dans les régions où ils sont situés, on perçoit leur
convergence dans un type de discours qui cherche à disqualifier le monde occidental et
ses valeurs. D’autre part, les implications de ce processus sont ignorées par les analystes
occidentaux, sous une perspective ethnocentrique, unilatérale et en simplifiant sa propre
vision du monde. Ainsi, cette communication vise à promouvoir la remise en cause de
cette scène belligérante et dotée d’une grande complexité, faisant de la place à deux
voix représentatives de l’Islam, l’une extrémiste, l’autre modérée. On part de l’analyse
des sources médiatiques dont les discours, prononcés à l’occasion des attaques contre
les tours jumelles en 2001, renvoient à l’épisode de la Reconquête chrétienne, qui a eu
lieu dans Hispania médiévale.

Mots-clés: Péninsule ibérique, Moyen Âge, Islam

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166
Introdução: o debate sobre as heranças ibéricas no Brasil
A questão do islamismo goza de grande atualidade no mundo contemporâneo,
em meio à intensificação do chamado terrorismo internacional, no âmbito das relações
conturbadas entre o Ocidente e o Islã. A despeito das diferenças internas entre as
correntes muçulmanas, levando à radicalização da violência em seus territórios,
percebe-se a sua convergência, grosso modo, para um tipo de discurso que procura
desqualificar de várias maneiras o mundo ocidental. Este, no sentido inverso, parece
desconsiderar as implicações desse processo a julgar pela perspectiva, predominante
entre os seus analistas, caracteristicamente etnocêntrica e simplificadora da sua própria
visão de mundo. Assim, buscamos problematizar esse cenário beligerante e complexo,
procurando abrir espaço para a escuta das vozes genuinamente islâmicas e o
entendimento do seu conteúdo. Analisamos, a partir de fontes midiáticas, dois tipos de
discurso representativos de duas fações, uma extremista e outra moderada, que,
proferidos por ocasião dos atentados às Torres Gêmeas, em 2001, e à sede do jornal
Charlie Hebdo, em 2015, surpreendem ao recuperar, enfaticamente, o cenário da
Hispania medieval e os acontecimentos da Reconquista cristã.
O trabalho faz parte de uma pesquisa em desenvolvimento, cujo pano de fundo é
a singularidade medieval ibérica, a sua atualidade e a necessidade de um modelo
interpretativo próprio na caracterização de sua herança cultural, com ressonâncias na
história das nações ibero-americanas, no estudo e no ensino da história, de acordo com
um novo paradigma em construção (MACHADO, 2009). Isso pressupõe, do ponto de
vista teórico-metodológico, dois planos intrinsecamente ligados: o plano sincrônico das
particularidades ibéricas (MACEDO, 2003: 109-125), marcada pela prolongada
presença muçulmana no seu território, e que conduz às suas grandes diferenças em
relação às demais regiões medievais europeias; e o plano diacrônico da longa Idade
Média (LE GOFF, 1985; BASCHET, 2006), que estabelece, não só as rupturas, mas,
sobretudo, as permanências entre o medievo e a contemporaneidade.
Nesse sentido, Aldo Agosti (2002) defende o posicionamento do historiador do
presente que busca no passado de longa duração explicações para a sua análise,
enquanto Benedetto Croce (apud CARR, 1996: 56) declarou que toda história é
“história contemporânea”, vale dizer, que a história é um diálogo contínuo entre o
passado e o presente. Dessa forma, o entendimento dos conflitos atuais pode e deve ser

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permeado pelas explicações que os antecedem e, desse modo, o medievo ibérico tem
muito a acrescentar no que tange às relações entre cristãos e muçulmanos. Faz-se
necessário, além disso, o estabelecimento de uma perspectiva multidisciplinar, voltada
para o redirecionamento da periodização convencional e a superação de certos
estereótipos, desde aqueles sobre a obscuridade e obsolescência do medievo, até os
relativos à história, lato sensu.
Em publicações anteriores analisamos essa questão nos seus desdobramentos,
iniciando com a problematização de certos vezos teóricos, historiográficos e conceituais
como eurocentrismo, modernidade, lusofobia, francocentrismo, tidos como ponto de
partida para uma abordagem consistente (MACHADO, 2009). Em outro trabalho,
visamos à recuperação do trajeto da herança ibérica na historiografia tupiniquim
(MACHADO, 2014), no âmbito de um debate ainda incipiente, mas esboçado desde o
século XIX, na obra de Silvio Romero e, posteriormente, de Joaquim Nabuco, que se
debruçou sobre oconceito de “formação” na análise da sociedade brasileira (1900).
Desde então, surgiram nomes expressivos, dispostos a defender o caráter nacional e/ou
discutir as ligações entre a Ibéria e as sociedades lusófonas e hispanófonas, como
Oswald de Andrade (1925), Mário de Andrade (1928), Gilberto Freyre (1933), Sérgio
Buarque de Holanda (1936), Caio Prado Jr. (1942), Raimundo Faoro (1958), Celso
Furtado (1958), Antônio Cândido (1959)1 e José Murilo de Carvalho (1980).
Esse debate, sistematizado nas décadas finais do século XX, teve como ponto de
inflexão O espelho de Próspero: cultura e ideias nas Américas,2 de Richard Morse
(1982), que confere um novo estatuto à herança ibérica ao caracterizá-la como “matriz
civilizacional singular”, nos moldes do estudo clássico de Tzvetan Todorov (1983)
sobre o caráter genuíno da conquista. Essa vertente abriu caminho para autores como
Rubem Barboza Filho (2000), que estende o campo das reflexões de Morse, Marilena
Chauí (2000), que discute a “matriz teológico-política” na fundação do estado
brasileiro, e Vamireh Chacon (2005), que defende a “hipótese de uma variante
civilizacional” para a história das Américas de colonização portuguesa e espanhola.

1 Para Silviano Santiago (2014), Antônio Cândido foi quem conseguiu melhor definir a ideia de
“formação” como “o trabalho indispensável dos cidadãos privilegiados e letrados para que o adjetivo
‘nacional’ aposto à literatura ─ ou à nação e sua história, economia, etc. ─possa se afirmar como
autêntico e se manter estável e rentável no conjunto das nações modernas do Ocidente”.
2 Mantemos no texto a acentuação original e correspondente ao período em que ostrabalhos foram
escritos.

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Mais recentemente, foi lançado o livro de Francisco Weffort (2012), que, no seu diálogo
com Barboza Filho, procura resgatar uma tradição apoiada nos valores em grande parte
medievais, como o catolicismo e a conquista territorial, enraizados no Brasil colônia, no
rastro de outros nomes consagrados que incluímos em outro trabalho (MACHADO,
2014).
A atualidade deste debate, que avança devagar, mas de forma consistente, se
revela também em âmbito institucional, através de esforços coletivos e individuais
pulverizados entre muitas universidades brasileiras, públicas e privadas. 3 Observa-se o
desenvolvimento de pesquisas em torno da valorização do passado colonial brasileiro e
da recuperação do diálogo ─ prejudicado pela extrema especialização científica,
associada à moda da chamada micro-história ─entre a História do Brasil, a História
Medieval e/ou a História Moderna, a exemplo dos artigos de Laura Mello e Souza
(2005) e de Lucília Siqueira (2009). E, ainda, a realização de dinâmicas em torno da
reflexão sobre novos paradigmas de análise na formação histórica brasileira, em eventos
como a VII SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS ─POR UMA LONGA
DURAÇÃO: PERSPECTIVAS DOS ESTUDOS MEDIEVAIS NO BRASIL
(PEM/UNB), em 2009, cujas palestras foram reunidas nas Atas da VII Semana de
Estudos Medievais (2010). É também representativo, nesse caso, a criação do mestrado
profissional de História Ibérica pela Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL), em
2014, tendo já realizado, no mesmo ano, o I CONGRESSO
INTERNACIONAL─PENÍNSULA IBÉRICA: ANTIGUIDADE, MEDIEVO E SUAS
PROJEÇÕES PARA O SÉCULO XVI.

O Islã e a Ibéria Medieval: o episódio da Reconquista cristã


Nessa linha de investigação, analisamos em outro artigo (MACHADO, 2013),
problemas encontrados, para nossa surpresa, em dois trabalhos de conceituados
historiadores. Ambos tratam, coincidentemente, de uma mesma fonte, as Cantigas de
Santa Maria, e de uma mesma iluminura, número 181, para ilustrar suas narrativas
sobre a “Reconquista cristã na Espanha” e a “islamização da Península Ibérica”.

3 Destacamos as universidades: Universidade de São Paulo (USP), Universidade de Brasília (UNB),


Universidade Federal Fluminense (UFF), Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL), Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC Rio), Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
(PUC Minas).

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


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Buscamos mostrar a inadequação da imagem selecionada com o conteúdo descrito, nos
meandros da história hispânica, em uma abordagem um tanto simplificadora a respeito
de uma obra renomada, de um grande erudito, o rei de Leão e Castela Afonso X, o
Sábio.
Acreditamos que tais distorções possam explicar, ao menos parcialmente, as
lacunas sobre a Península Ibérica na formação escolar, uma vez que normalmente os
historiadores, também os brasileiros, optam por seguiro filão convencional da passagem
do feudalismo para o capitalismo, muito mais representativo da França e do seu entorno.
Essa lógica econômica, capitaneada por países de além-Pireneus, só é capaz de inserir
os portugueses e espanhóis a partir do século XV, devido unicamente ao seu papel como
grandes intermediários no comércio entre as colônias e os portos da Europa. Tendo em
mente tal hipótese, pesquisamos de forma sistemática a abordagem sobre a Ibéria em
doze livros didáticos de História (MACHADO, 2014), adotados pelo ensino
fundamental e médio em escolas privadas e públicas de Belo Horizonte, dando
sequência à pesquisa desenvolvida pelos alunos de graduação em História da PUC
Minas. Pudemos confirmar de forma inequívoca uma grave inversão, notadamente sobre
o estudo dos países europeus,entre os séculos VI e XIV, praticamente restrito ao
fenômeno do feudalismo, excluindo aspectos muito mais próximos da história do Brasil
e de seus vizinhos: a dominação muçulmana, o grande desenvolvimento urbano e
comercial do Califado Ibérico, a Reconquista Cristã, ou o papel da cidade de Toledo,
como centro de saber da Europa nos séculos XII-XIII. 4
Agora, ampliando o leque da investigação, procuramos identificar as distorções
mencionadas e suas implicações no discurso midiático ocidental, impelida pelos
recentes atentados contra a sede do jornal parisiense Charlie Hebdo, em janeiro de
2015. Nesse sentido, examinamos dois exemplares da mídia impressa, legitimada como
fonte de análise desde a revolução documental introduzida pela Nova História: o jornal
O Estado de São Paulo, de 2001, e a revista Exclusive, de 2015, destacando os vínculos
necessários entre as suas matérias e o passado medieval.

4 Objetivamente falando, a nossa investigação mostrou que, em um conjunto de 12 livros, apenas dois
apresentam (breve) conteúdo sobre o medievo ibérico, sendo ambos de um mesmo autor, Flávio Campos
(também em coautoria), não por acaso especializado no tema.Os dois são utilizados em escolas públicas:
Ritmos da História.7º ano. São Paulo: Escala Educacional, 2009; e Jogo da História nos dias de hoje.
(ensino fundamental). São Pau7lo: Leya, 2012.

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Inicialmente é preciso destacar que a questão do islamismo só ganharia maior
visibilidade com a intensificação do chamado “terrorismo internacional”, desde os
atentados às Torres Gêmeas e ao Pentágono, nos Estados Unidos, em setembro de 2001,
com milhares de vítimas fatais. Muito se tem falado e produzido a respeito desses
acontecimentos, porém, pouca atenção se tem dado aos primeiros embates entre cristãos
e muçulmanos, desde o primeiro contato entre a Europa cristã e o Islã, em território
hispânico, no século VIII (GUICHARD, apud LE GOFF e SCHMITT, 2002: 633-649).
A complexidade da questão é desconsiderada, em regra, pela mídia comprometida com
determinados interesses políticos e econômicos no universo globalizado. Nesse sentido,
buscamos aprofundar o entendimento desse cenário beligerante, com a recuperação de
algumas constantes desse processo de longa duração histórica, marcado pelo imaginário
da Reconquista Cristã.
Como afirma Peter Burke (1992: 15), as nossas mentes não refletem diretamente
a realidade e só percebemos o mundo através de “uma estrutura de convenções,
esquemas e estereótipos, um entrelaçamento que varia de uma cultura para outra”. A
notícia, nesse caso, é uma forma de registro que contém o contexto de determinada
época, mostrando a relevância de analisar a ênfase e a forma como o fato é transmitido
aos leitores. Cabe ao pesquisador a reflexão sobre o conteúdo ou a sua formulação e, a
partir daí, passá-los para o plano do leitor que carrega em si, suas próprias convenções.
Nesse caso, Beatriz Kushnir (2004: 58-59) reitera que nada é mais importante para se
desvendar o passado do que a narrativa jornalística e a reflexão histórica, examinadas de
ângulos diversos, enquanto João Batista Natali (2004: 72) classifica a relação entre
ambas como fundamental, “quase osmótica”. Para o autor, a prática jornalística é
impossível sem um mínimo de curiosidade pela história, pois não há competência
profissional sem uma visão clara daquilo que está historicamente por detrás da notícia e
que as agências internacionais não transmitem.
Desse modo, procuramos mostrar o paradoxo que envolve as relações entre o
Ocidente e o Islã, através de dois aspectos interligados e por nós sintetizados da
seguinte forma: de um lado, a visão negativa que os radicais islâmicos têm sobre o
Ocidente; e, no sentido contrário, a visão negativa que o pensamento ocidental
hegemônico tem sobre o Islã. Ainda assim, e curiosamente, é possível perceber na
leitura das duas fontes midiáticas um conhecimento sobre a história medieval ibérica

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


171
pelo mundo islâmico bem maior do que da própria sociedade europeia, não só do grande
público, mas também dos meios intelectuais, com o seu silêncio a respeito de episódios
relevantes ali ocorridos.
Nesse ponto, cabe advertir, ainda que de forma sucinta, sobre a necessidade de
se precisar melhor algumas categorias utilizadas, levando em consideração o que Franco
Cardini caracteriza como o mal entendido a respeito da história das relações entre a
Europa e o Islã. Assim, para o autor, aquilo que se costuma identificar nos dias atuais
como “Ocidente” não pode ser tratado como bloco único ou como mera continuidade
entre a civilização greco-romana e a história europeia, compreendendo antes, uma
matriz civilizacional e de pensamento da qual ela faz parte, mas engloba outras nações e
suas elites, especialmente os Estados Unidos.5 Para o autor, um dos traços desse
pensamento seria um tipo de "fundamentalismo" que, sob a capa da tolerância, está
profundamente convencido de que o mundo da democracia liberal e do liberalismo
econômico é o melhor de todos os mundos possíveis e a meta única, final e necessária
de qualquer possibilidade para a cultura humana (CARDINI, 2015).
Por outro lado, e a despeito da grande unidade que distingue a Umma, também
não é possível tratar o islamismo como um todo homogêneo, pois a comunidade
islâmica é formadade facções, das moderadas às mais extremadas, envolvendo, muitas
vezes, a radicalização da violência dentro e fora das suas regiões de origem. Daí o
cuidado necessário, apontado por Natali, com a interpretação histórica que está por
detrás da notícia e que as agências internacionais não transmitem. Contrariando essa
praxe, encontramos uma crítica muito bem fundamentada de conhecido jornalista
brasileiro sobre a cobertura das ações muçulmanas pela mídia ocidental:

A representação do Islã e também da cultura árabe como obscurantistas e


retrógrados deixa de lado informações históricas fundamentais. No
apogeu do islamismo, nos séculos X a XII, a ciência teve um progresso
extraordinário. E os muçulmanos, nas suas conquistas, especialmente quando
ocuparam a Península Ibérica por vários séculos, foram tolerantes com as
outras religiões e culturas [...]
Mas durante a cobertura pós-11 de setembro, tudo isso foi ignorado. Afinal, o
Ocidente estava sendo atacado pelo Oriente selvagem e fanático. A difusão
de uma imagem extremamente negativa do islamismo foi sempre demolidora.
(DORNELES, 2003: 224-226; grifo nosso)

5 CARDINI, (2005:59), apoiado em Jean ZIGLER, aponta para as elites similares dispersas pelo mundo,
ainda que concentradasnos seguintes países e continentes: EEUU,Canadá, Europa, Japãoe Austrália.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


172
Com efeito, o tipo de representação apontada por Dorneles, pode ser nitidamente
identificada na reportagem de O Estado de São Paulodo dia 8 de outubro de 2001,
especialmente nas declarações atribuídas a Bin Laden e ao seu lugar-tenente, Aymanal-
Zawahiri, quando se referem, diretamente, aos conflitos entre cristãos e muçulmanos na
Andaluzia medieval:

Aparentando tranquilidade e firmeza, [Bin Laden] ressaltou em tom de


ameaça: “somos capazes de enfrentar essa agressão... A guerra santa contra
os judeus e cristãos começou”. Por sua vez, o lugar-tenente de Bin Laden e
chefe da Jihad egípcia, Ayman Zawahiri, dirigiu-se diretamente ao povo
americano.“Seu governo está levando vocês a uma guerra que, seguramente,
perderão”, disse ele, também chamado de “doutor do terror” e apontado
como mais radical que Bin Laden. “O mundo precisa saber que não vamos
permitir a repetição da tragédia da Andaluzia na Palestina”, ameaçou
ele numa referência à expulsão dos árabes da Península Ibérica. “Vamos
à vitória em honra de Jihad”, disse ele dirigindo-se aos “jovens combatentes
muçulmanos”. (O ESTADO DE SÃO PAULO, 2001: 4, grifo nosso)

Parece claro no fragmento transcrito que os atos de vingança presentes no


discurso muçulmano encontram sua motivação muito além dos conflitos atuais,
reportando aos choques com os cristãos, ainda na Idade Média, ou seja, muito antes das
prisões do Egito, como indicado por Lawrence Wright:

Uma linha de pensamento propõe que a tragédia americana do 11 de


setembro nasceu nas prisões do Egito. Defensores dos direitos humanos do
Cairo argumentam que a tortura criou uma vontade de vingança, primeiro em
Sayyid Qutb e depois em seus seguidores, incluindo Aymanal-Zawahiri. O
alvo principal da ira dos prisioneiros foi o governo secular egípcio, mas uma
raiva enorme também foi dirigida ao Ocidente, visto como a força
capacitadora por trás do regime repressivo. Eles consideram o Ocidente,
responsável por corromper e humilhar a sociedade islâmica. De fato, o tema
da humilhação, a essência da tortura, é importante para compreender a raiva
dos islamitas radicais. As prisões do Egito se tornaram uma fábrica de
militantes cuja necessidade de desforra─ eles chamavam de justiça ─ era
total e absoluta. (WRIGHT, 2007: 67)

As falas dos membros do grupo extremista Al Qaeda, no trecho de O Estado de


São Paulo já referido, procuram desqualificar o mundo ocidental e os seus pretensos
valores, tendo como alvo maior os Estados Unidos, muitas vezes apontados como o
“grande satã”. Além das manifestações de ressentimento ou de ódio, chama atenção a
referência feita à Península Ibérica, tanto pelo conteúdo relativo à expulsão dos mouros,
quanto pelo tratamento dado, sua forma natural e bastante próxima a um acontecimento
ocorrido há cerca de seis séculos, mas percebido, em linha de continuidade direta, como

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


173
passado recente. Se a referência à Península é explicitada por Zawahiri, quando afirma
que não permitirá a repetição dos episódios da Andaluzia─ na alusão ao antigo Califado
ibérico de Al Andaluz ─, ela está velada na fala de Laden, mas não é menos eloquente.
Ao dizer que a guerra santa contra os judeus e cristãos começou, ele remete,
seguramente, ao cenário medieval hispânico do confronto étnico-religioso que pôs fim à
coexistência possível entre muçulmanos, cristãos e judeus, sob o estatuto jurídico
islâmico da “tolerância religiosa”, adotado pelo Califado. Em sentido diametralmente
oposto, os comentaristas ocidentais passam ao largo desse acontecimento, confirmando
a descontinuidade entre tais acontecimentos no imaginário europeu atual.
Porém, a alusão ao medievo ibérico não é exclusividade da ala radical, como
pode ser constatado na fala de um muçulmano moderado, o Sheik Makhtar El-Khal, à
frente do (único) Centro islâmico de Minas Gerais, sediado em Belo Horizonte, há 26
anos. Em entrevista concedida à Revista Exclusive (2015: 68), ele afirma textualmente
─ o que reforça os nossos argumentos ─ que “a prova maior da tolerância e da boa
convivência islâmica é a Península ibérica. Quando os muçulmanos eram
conquistadores da verdade e da ciência chegaram a ter a Europa”. Aqui, provavelmente,
ele está se referindo à expressiva contribuição da cultura árabe, certamente menos
divulgada do que o desejável, para o desenvolvimento do renascimento europeu,
sobretudo com as famosas traduções, do árabe para o latim, das obras de Aristóteles,
Ptolomeu e outros clássicos helenísticos, também destacados por Cardini (2015).6
Sobre o episódio relativo ao Charlie Hebdo, o Sheik ponderou, com muita
serenidade, que “enquanto liberdade de expressão é algo sagrado no Ocidente, para os
muçulmanos Deus é mais sagrado do que qualquer coisa. Se você não quer que eu atinja
a sua coisa sagrada, você não deve atingir a minha. A balança está desequilibrada.”
Além disso, demonstrou independência e autocrítica ao condenar certos atos dos seus
correligionários, afirmando que se “faz coisas erradas, contra a essência do islã”

6 Cardini afirma que a sociedade ocidental é tributária das contribuições islâmicas no medievo europeu: o
renascimento do comércio e da civilização urbana, o nascimento do sistema monetário e do crédito
moderno, as traduções de árabes, judeus e cristãos incansáveis, que trabalhavam de comum acordo,
notadamente em Espanha, promovendo o nascimento de um centro científico e cultural sobre teologia,
filosofia, astronomia, física, química, medicina, matemática e tecnologia moderna. Sem o Islã, que
reciclou a cultura helenística e divulgou a persa, a indiana e a chinesa, então desconhecidasna Europa, não
haveria as belas catedrais e universidades europeias. Por isso ele confessa sua eterna gratidão ao
islamismo moderno de Avicena, Averróis, IbnKhaldun, sem os quais não haveriaAbelardo, Tomás de
Aquino, Dante, Maquiavelou Galileu, ressalvando que, naturalmente, o Islã hoje não é mais o que era
naquela época.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


174
(EXCLUSIVE, 2015: 68-69), referindo-se à degolação de um jornalista, pelos
muçulmanos radicais, diante das câmeras da televisão. Chegou mesmo a questionar o
comportamento de alguns ditos “moderados” e, ao mesmo tempo, responsáveis por
certos atos que, a nosso ver, podem ser vistos como um tipo diferente de violência,
silenciosa ou insidiosa, abrindo espaço para outro tipo de reflexão:

Agora, nós, muçulmanos, estamos exportando a dança do ventre e a comida.


Antigamente, éramos exportadores de medicina, da ciência e da cultura. Os
logarítimos são fruto de estudos muçulmanos. O islã incentiva a pesquisa,
mas os muçulmanos de hoje investiram nos prédios e no melhor hotel, à beira
do mar e com torneiras de ouro. Porém existem boas cabeças que estão sendo
esmagadas, obrigadas a fugir para Itália para lavar louças.
Nossos dirigentes deixaram surgir esse tipo de pensamento fanático no
mundo muçulmano. Quando um jovem culto, que tem todas as capacidades
não acha uma oportunidade de trabalho no próprio país, sabendo que existem
riquezas embaixo do solo dele em todo canto, ele se revolta. O petróleo
pertence a uma minoria de sheiks, os ‘sheiks sem fundo’ [risos], que estão
usando e abusando do dinheiro para uma minoria, para muito além do
sustento. Os presidentes que foram derrubados na Tunísia, no Egito e na
Líbia tinham milhões e milhões de contas da Suíça. (EXCLUSIVE, 2015: 68-
69)

Percebe-se, no trecho transcrito, um questionamento sobre o modo de vida


ocidental, responsabilizado, em grande medida, pela revolta dos jovens contra a
perversidade do modelo capitalista, com a sua adoção pelos dirigentes muçulmanos que
se desviaram da essência da doutrina e se alinharam a um cenário abusivo: de
consumismo, de grande concentração de renda, de ostentação e, por fim, de corrupção,
que deslocou vultosas somas de dinheiro para os bancos suíços. Em outra passagem do
mesmo artigo, ele muda o seu foco para incitar a memória e o reconhecimento dos
brasileiros a respeito da herança islâmica, sobretudo na Bahia, apontando para certas
permanências no vestuário e, no léxico português, da palavra “oxalá” (EXCLUSIVE,
2015: 70), ligada etimologicamente ao árabe in shaa Allaah.7
Quanto à outra abordagem, relativa à visão negativa sobre o Oriente islâmico por
parte do mundo ocidental, vê-se que o redator do texto citado no Estadão atribui
exclusivamente aos muçulmanos ─ direta ou indiretamente ─ a condição de “terrorista”.
No primeiro caso, quando alude à fala de Bin Laden como a “declaração do líder

7 Conforme Ferreira (2004), trata-se de palavra da língua portuguesa utilizada como interjeição para
expressar o desejo que algo aconteça, tendo como sinônimo "tomara" ou "queira Deus" e,como origem, a
expressão árabe in shaaAllaah, cujo significado é “se Deus quiser”. Em espanhol, seu desenvolvimento
deu origem à palavra ojalá, exatamente com o mesmo significado.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


175
terrorista”, e no segundo, referindo-se ao comentário do porta-voz da Casa Branca, Ari
Fleischer: “o presidente George W. Bush reuniu o mundo na luta contra o terrorismo,
para que a liberdade prevaleça sobre o terror”. (O ESTADO DE SÃO PAULO, 2001: 4)
A publicação segue o padrão de base nas mesmas fontes, com a mediação de
agências internacionais ─Ansa, Associated Press, DPA, EFE, France Presse e Reuters.
Uma curiosidade na versão brasileira é que o Estadão foi o único jornal examinado a
publicar as referências à Península Ibérica e à Reconquista, que foram subtraídas dos
seus congêneres de ampla circulação, como analisado em monografia dedicada
especialmente à Folha de São Paulo (FERREIRA, 2011). Isso reforça a hipótese do
desconhecimento ou descaso sobre a história de Portugal e Espanha pelos jornalistas
ocidentais, que se movem, quase mecanicamente, na órbita da visão etnocêntrica da
mídia hegemônica ocidental, integrada, conforme as agências antes nomeadas, por
países de notória influência no cenário mundial ─ Alemanha, França, Inglaterra,
Estados Unidos ─ ou, ainda, Itália e Espanha.
Nesse caso, a mídia brasileira faz coro com a visão ambivalente sobre o mundo
islâmico, que como disse o Sheik Makhtar El-Khal, se encanta com o seu folclore ─ a
dança, a comida e, poderíamos acrescentar os contos das mil e uma noites. Mas que, se
não é tomada pela ira, olha para os seus costumes e sua religiosidade com certo desdém
ou mesmo com a condescendência de um sentimento de superioridade em relação a uma
cultura supostamente inferior e retrógada. Apesar de defendermos a liberdade
fundamental de expressão e repudiarmos os atos de violência praticados contra o
Charlie Hebdo, não deixamos de perceber certo exagero no tom jocoso das caricaturas
sobre o Profeta.
Parece que o despertar da visão ocidental teria que esperar pelos ataques de 11
de setembro, quando o extraordinário impacto provocado, atingindo de modo certeiro os
objetivos iniciais de seus idealizadores, levaria à redescoberta do Islã, também na sua
capacidade intelectual e estratégica.

Considerações finais
Diante do exposto, e a título de conclusão, gostaríamos de propor uma reflexão
sobre duas questões de longa duração histórica, no âmbito, quer das relações

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


176
internacionais, quer da formação social brasileira, cotejando a mídia com a
historiografia.
A primeira diz respeito a um traço do tipo “maniqueísta” que, em pleno século
XXI, se mantém como uma espécie de denominador comum entre a visão islâmica e o
pensamento ocidental, grosso modo, cujas relações são percebidas em termos de
oposição: Ocidente versus Oriente, cristãos versus islâmicos, liberdade versus terror e
americanos versus árabes, em última instância, do bem versus o mal. Isto é ainda mais
problemático se entendermos, como Cardini (1999), que as civilizações europeia e
muçulmana, embora diferentes, possuem áreas de convivência e uma raiz comum
profunda, eurasiática, helenística e mediterrânea. O autor afirma, nesse sentido, que o
antagonismo entre Europa/Ocidente e o Islã é uma construção histórica de poucos
séculos e predominantemente ocidental. Mesmo assim, não nos parece que o
antagonismo tenha se dissipado do imaginário islâmico, mantendo-se de forma latente
por um longo período para irromper com força assim que a nova conjuntura o permitiu.
Com efeito, encontramos muitas referências sobre o ódio do Islã ao Ocidente.
Porém, pouco se diz, no sentido inverso, sobre uma espécie de concertação anti-
islâmica, mascarada pela retórica politicamente correta do respeito à alteridade, no
contexto contemporâneo, globalizado e paradoxal de afirmação de identidades e de
reconhecimento das diferenças. Tal concerto é formado por posturas convergentes, mas
não similares, incluindo algumas ativas e deliberadas, com graus variados de
hostilidade, e outras passivas e mecânicas as quais, pela força da inércia, são capazes de
manter, mesmo não intencionalmente, uma visão pejorativa das práticas e dos valores
muçulmanos, projetada em um discurso bastante elaborado. Este, como bem lembra
Foucault (1970), “fala” através dos sujeitos ou, no caso da mídia em análise, dos
personagens, na tradução feita pelos seus pretensos intérpretes, isto é, os autores das
reportagens que reproduzem a rejeição ao Islã de várias formas.
A segunda questão, que se desdobra da primeira, refere-se a certo
desconhecimento do mundo ocidental sobre si mesmo, dos seus limites e de suas
idiossincrasias. Isso inclui o Brasil que, fiel ao seu traço característico de origem,
norteia-se basicamente pelo paradigma cultural exógeno e dominante projetado no vezo
simplificador da mídia impressa. Trata-se de uma tendência que conduz à
desinformação ou, ainda, ao que costumamos chamar de “desconhecimento do próprio

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


177
desconhecimento” e, em consequência, à impossibilidade de uma avaliação madura,
isenta e fidedigna. Essa distorção, que acaba por desqualificar os valores nativos, aponta
para a necessidade de uma revisão crítica, com vistas principalmente à reorientação da
formação escolar e acadêmica do ensino de história no Brasil, conduzindo à maior
conscientização sobre o significado e o exercício da cidadania, de acordo com os
parâmetros curriculares estabelecidos pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC).
Em outras palavras, o resgate de uma cultura genuína passa, necessariamente,
pelo processo de “descolonização mental” proposto por Luiz Estevam Fernandes e
Marcus Vinícius de Morais (2003) e inclui o reconhecimento da herança cultural
ibérica, associada às contribuições da cultura islâmica e suas ramificações, sua
pluralidade e atualidade, despindo-a de preconceitos milenares. Este seria o ponto de
partida para uma abordagem mais completa e equilibrada da formação social brasileira
no respeito ao seu tripé fundante, representado pelos grupos aborígenes, portugueses e
africanos.
Cabe tanto aos historiadores, quanto aos jornalistas, uma crítica mais
verticalizada sobre o tema.

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XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


180
A RECONQUISTA CRISTÃ E SUA ATUALIDADE NO DISCURSO
MUÇULMANO. MÍDIA, REPRESENTAÇÃOE ENSINO DA
HISTÓRIA
Heloisa Guaracy Machado
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas)
Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP)

Marília Carneiro Ferreira


Bacharel em História e em Relações Internacionais pela PUC Minas

RESUMO: A questão do islamismo goza de grande atualidade no mundo


contemporâneo, em meio à intensificação do chamado terrorismo internacional, tendo
como pano de fundo as relações conturbadas entre o Ocidente e Islã. Apesar das
diferenças internas também entre as correntes muçulmanas, levando à radicalização da
violência em seus territórios, percebe-se certa convergência para um tipo de discurso
que procura desqualificar o mundo ocidental e os seus valores. Por outro lado, as
implicações desse processo são desconsideradas pelos analistas ocidentais, grosso
modo, movidos por uma perspectiva etnocêntrica e simplificadora da sua própria visão
de mundo. Nesse sentido, esta comunicação tem como objetivo a problematização desse
cenário beligerante e complexo, trazendo à tona, através da análise de fontes midiáticas,
duas vozes representativas do islamismo, uma extremista e outra moderada, cujos
discursos, proferidos por ocasião dos atentados às Torres Gêmeas, em 2001, e à sede do
jornal Charlie Hebdo, em 2015, recuperam o cenário da Hispania medieval em torno
dos episódios da Reconquista cristã.

Palavras-chave: Ibéria medieval, Reconquista cristã, islamismo.

RÉSUMÉ: La question islamique jouit d’une grande pertinence dans le monde


contemporain, vis-à-vis de l’intensification du soi-disant terrorisme international, avec
en toile de fond les rapports historiquement conflictuels entre l’Occident et le Moyen-
Orient. Malgré les disputes intestines entre les différents courants musulmans, menant à
la radicalisation de la violence dans les régions où ils sont situés, on perçoit leur
convergence dans un type de discours qui cherche à disqualifier le monde occidental et
ses valeurs. D’autre part, les implications de ce processus sont ignorées par les analystes
occidentaux, sous une perspective ethnocentrique, unilatérale et en simplifiant sa propre
vision du monde. Ainsi, cette communication vise à promouvoir la remise en cause de
cette scène belligérante et dotée d’une grande complexité, faisant de la place à deux
voix représentatives de l’Islam, l’une extrémiste, l’autre modérée. On part de l’analyse
des sources médiatiques dont les discours, prononcés à l’occasion des attaques contre
les tours jumelles en 2001, renvoient à l’épisode de la Reconquête chrétienne, qui a eu
lieu dans Hispania médiévale.

Mots-clés: Péninsule ibérique, Moyen Âge, Islam

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


166
Introdução: o debate sobre as heranças ibéricas no Brasil
A questão do islamismo goza de grande atualidade no mundo contemporâneo,
em meio à intensificação do chamado terrorismo internacional, no âmbito das relações
conturbadas entre o Ocidente e o Islã. A despeito das diferenças internas entre as
correntes muçulmanas, levando à radicalização da violência em seus territórios,
percebe-se a sua convergência, grosso modo, para um tipo de discurso que procura
desqualificar de várias maneiras o mundo ocidental. Este, no sentido inverso, parece
desconsiderar as implicações desse processo a julgar pela perspectiva, predominante
entre os seus analistas, caracteristicamente etnocêntrica e simplificadora da sua própria
visão de mundo. Assim, buscamos problematizar esse cenário beligerante e complexo,
procurando abrir espaço para a escuta das vozes genuinamente islâmicas e o
entendimento do seu conteúdo. Analisamos, a partir de fontes midiáticas, dois tipos de
discurso representativos de duas fações, uma extremista e outra moderada, que,
proferidos por ocasião dos atentados às Torres Gêmeas, em 2001, e à sede do jornal
Charlie Hebdo, em 2015, surpreendem ao recuperar, enfaticamente, o cenário da
Hispania medieval e os acontecimentos da Reconquista cristã.
O trabalho faz parte de uma pesquisa em desenvolvimento, cujo pano de fundo é
a singularidade medieval ibérica, a sua atualidade e a necessidade de um modelo
interpretativo próprio na caracterização de sua herança cultural, com ressonâncias na
história das nações ibero-americanas, no estudo e no ensino da história, de acordo com
um novo paradigma em construção (MACHADO, 2009). Isso pressupõe, do ponto de
vista teórico-metodológico, dois planos intrinsecamente ligados: o plano sincrônico das
particularidades ibéricas (MACEDO, 2003: 109-125), marcada pela prolongada
presença muçulmana no seu território, e que conduz às suas grandes diferenças em
relação às demais regiões medievais europeias; e o plano diacrônico da longa Idade
Média (LE GOFF, 1985; BASCHET, 2006), que estabelece, não só as rupturas, mas,
sobretudo, as permanências entre o medievo e a contemporaneidade.
Nesse sentido, Aldo Agosti (2002) defende o posicionamento do historiador do
presente que busca no passado de longa duração explicações para a sua análise,
enquanto Benedetto Croce (apud CARR, 1996: 56) declarou que toda história é
“história contemporânea”, vale dizer, que a história é um diálogo contínuo entre o
passado e o presente. Dessa forma, o entendimento dos conflitos atuais pode e deve ser

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permeado pelas explicações que os antecedem e, desse modo, o medievo ibérico tem
muito a acrescentar no que tange às relações entre cristãos e muçulmanos. Faz-se
necessário, além disso, o estabelecimento de uma perspectiva multidisciplinar, voltada
para o redirecionamento da periodização convencional e a superação de certos
estereótipos, desde aqueles sobre a obscuridade e obsolescência do medievo, até os
relativos à história, lato sensu.
Em publicações anteriores analisamos essa questão nos seus desdobramentos,
iniciando com a problematização de certos vezos teóricos, historiográficos e conceituais
como eurocentrismo, modernidade, lusofobia, francocentrismo, tidos como ponto de
partida para uma abordagem consistente (MACHADO, 2009). Em outro trabalho,
visamos à recuperação do trajeto da herança ibérica na historiografia tupiniquim
(MACHADO, 2014), no âmbito de um debate ainda incipiente, mas esboçado desde o
século XIX, na obra de Silvio Romero e, posteriormente, de Joaquim Nabuco, que se
debruçou sobre oconceito de “formação” na análise da sociedade brasileira (1900).
Desde então, surgiram nomes expressivos, dispostos a defender o caráter nacional e/ou
discutir as ligações entre a Ibéria e as sociedades lusófonas e hispanófonas, como
Oswald de Andrade (1925), Mário de Andrade (1928), Gilberto Freyre (1933), Sérgio
Buarque de Holanda (1936), Caio Prado Jr. (1942), Raimundo Faoro (1958), Celso
Furtado (1958), Antônio Cândido (1959)1 e José Murilo de Carvalho (1980).
Esse debate, sistematizado nas décadas finais do século XX, teve como ponto de
inflexão O espelho de Próspero: cultura e ideias nas Américas,2 de Richard Morse
(1982), que confere um novo estatuto à herança ibérica ao caracterizá-la como “matriz
civilizacional singular”, nos moldes do estudo clássico de Tzvetan Todorov (1983)
sobre o caráter genuíno da conquista. Essa vertente abriu caminho para autores como
Rubem Barboza Filho (2000), que estende o campo das reflexões de Morse, Marilena
Chauí (2000), que discute a “matriz teológico-política” na fundação do estado
brasileiro, e Vamireh Chacon (2005), que defende a “hipótese de uma variante
civilizacional” para a história das Américas de colonização portuguesa e espanhola.

1 Para Silviano Santiago (2014), Antônio Cândido foi quem conseguiu melhor definir a ideia de
“formação” como “o trabalho indispensável dos cidadãos privilegiados e letrados para que o adjetivo
‘nacional’ aposto à literatura ─ ou à nação e sua história, economia, etc. ─possa se afirmar como
autêntico e se manter estável e rentável no conjunto das nações modernas do Ocidente”.
2 Mantemos no texto a acentuação original e correspondente ao período em que ostrabalhos foram
escritos.

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Mais recentemente, foi lançado o livro de Francisco Weffort (2012), que, no seu diálogo
com Barboza Filho, procura resgatar uma tradição apoiada nos valores em grande parte
medievais, como o catolicismo e a conquista territorial, enraizados no Brasil colônia, no
rastro de outros nomes consagrados que incluímos em outro trabalho (MACHADO,
2014).
A atualidade deste debate, que avança devagar, mas de forma consistente, se
revela também em âmbito institucional, através de esforços coletivos e individuais
pulverizados entre muitas universidades brasileiras, públicas e privadas. 3 Observa-se o
desenvolvimento de pesquisas em torno da valorização do passado colonial brasileiro e
da recuperação do diálogo ─ prejudicado pela extrema especialização científica,
associada à moda da chamada micro-história ─entre a História do Brasil, a História
Medieval e/ou a História Moderna, a exemplo dos artigos de Laura Mello e Souza
(2005) e de Lucília Siqueira (2009). E, ainda, a realização de dinâmicas em torno da
reflexão sobre novos paradigmas de análise na formação histórica brasileira, em eventos
como a VII SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS ─POR UMA LONGA
DURAÇÃO: PERSPECTIVAS DOS ESTUDOS MEDIEVAIS NO BRASIL
(PEM/UNB), em 2009, cujas palestras foram reunidas nas Atas da VII Semana de
Estudos Medievais (2010). É também representativo, nesse caso, a criação do mestrado
profissional de História Ibérica pela Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL), em
2014, tendo já realizado, no mesmo ano, o I CONGRESSO
INTERNACIONAL─PENÍNSULA IBÉRICA: ANTIGUIDADE, MEDIEVO E SUAS
PROJEÇÕES PARA O SÉCULO XVI.

O Islã e a Ibéria Medieval: o episódio da Reconquista cristã


Nessa linha de investigação, analisamos em outro artigo (MACHADO, 2013),
problemas encontrados, para nossa surpresa, em dois trabalhos de conceituados
historiadores. Ambos tratam, coincidentemente, de uma mesma fonte, as Cantigas de
Santa Maria, e de uma mesma iluminura, número 181, para ilustrar suas narrativas
sobre a “Reconquista cristã na Espanha” e a “islamização da Península Ibérica”.

3 Destacamos as universidades: Universidade de São Paulo (USP), Universidade de Brasília (UNB),


Universidade Federal Fluminense (UFF), Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL), Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC Rio), Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
(PUC Minas).

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Buscamos mostrar a inadequação da imagem selecionada com o conteúdo descrito, nos
meandros da história hispânica, em uma abordagem um tanto simplificadora a respeito
de uma obra renomada, de um grande erudito, o rei de Leão e Castela Afonso X, o
Sábio.
Acreditamos que tais distorções possam explicar, ao menos parcialmente, as
lacunas sobre a Península Ibérica na formação escolar, uma vez que normalmente os
historiadores, também os brasileiros, optam por seguiro filão convencional da passagem
do feudalismo para o capitalismo, muito mais representativo da França e do seu entorno.
Essa lógica econômica, capitaneada por países de além-Pireneus, só é capaz de inserir
os portugueses e espanhóis a partir do século XV, devido unicamente ao seu papel como
grandes intermediários no comércio entre as colônias e os portos da Europa. Tendo em
mente tal hipótese, pesquisamos de forma sistemática a abordagem sobre a Ibéria em
doze livros didáticos de História (MACHADO, 2014), adotados pelo ensino
fundamental e médio em escolas privadas e públicas de Belo Horizonte, dando
sequência à pesquisa desenvolvida pelos alunos de graduação em História da PUC
Minas. Pudemos confirmar de forma inequívoca uma grave inversão, notadamente sobre
o estudo dos países europeus,entre os séculos VI e XIV, praticamente restrito ao
fenômeno do feudalismo, excluindo aspectos muito mais próximos da história do Brasil
e de seus vizinhos: a dominação muçulmana, o grande desenvolvimento urbano e
comercial do Califado Ibérico, a Reconquista Cristã, ou o papel da cidade de Toledo,
como centro de saber da Europa nos séculos XII-XIII. 4
Agora, ampliando o leque da investigação, procuramos identificar as distorções
mencionadas e suas implicações no discurso midiático ocidental, impelida pelos
recentes atentados contra a sede do jornal parisiense Charlie Hebdo, em janeiro de
2015. Nesse sentido, examinamos dois exemplares da mídia impressa, legitimada como
fonte de análise desde a revolução documental introduzida pela Nova História: o jornal
O Estado de São Paulo, de 2001, e a revista Exclusive, de 2015, destacando os vínculos
necessários entre as suas matérias e o passado medieval.

4 Objetivamente falando, a nossa investigação mostrou que, em um conjunto de 12 livros, apenas dois
apresentam (breve) conteúdo sobre o medievo ibérico, sendo ambos de um mesmo autor, Flávio Campos
(também em coautoria), não por acaso especializado no tema.Os dois são utilizados em escolas públicas:
Ritmos da História.7º ano. São Paulo: Escala Educacional, 2009; e Jogo da História nos dias de hoje.
(ensino fundamental). São Pau7lo: Leya, 2012.

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Inicialmente é preciso destacar que a questão do islamismo só ganharia maior
visibilidade com a intensificação do chamado “terrorismo internacional”, desde os
atentados às Torres Gêmeas e ao Pentágono, nos Estados Unidos, em setembro de 2001,
com milhares de vítimas fatais. Muito se tem falado e produzido a respeito desses
acontecimentos, porém, pouca atenção se tem dado aos primeiros embates entre cristãos
e muçulmanos, desde o primeiro contato entre a Europa cristã e o Islã, em território
hispânico, no século VIII (GUICHARD, apud LE GOFF e SCHMITT, 2002: 633-649).
A complexidade da questão é desconsiderada, em regra, pela mídia comprometida com
determinados interesses políticos e econômicos no universo globalizado. Nesse sentido,
buscamos aprofundar o entendimento desse cenário beligerante, com a recuperação de
algumas constantes desse processo de longa duração histórica, marcado pelo imaginário
da Reconquista Cristã.
Como afirma Peter Burke (1992: 15), as nossas mentes não refletem diretamente
a realidade e só percebemos o mundo através de “uma estrutura de convenções,
esquemas e estereótipos, um entrelaçamento que varia de uma cultura para outra”. A
notícia, nesse caso, é uma forma de registro que contém o contexto de determinada
época, mostrando a relevância de analisar a ênfase e a forma como o fato é transmitido
aos leitores. Cabe ao pesquisador a reflexão sobre o conteúdo ou a sua formulação e, a
partir daí, passá-los para o plano do leitor que carrega em si, suas próprias convenções.
Nesse caso, Beatriz Kushnir (2004: 58-59) reitera que nada é mais importante para se
desvendar o passado do que a narrativa jornalística e a reflexão histórica, examinadas de
ângulos diversos, enquanto João Batista Natali (2004: 72) classifica a relação entre
ambas como fundamental, “quase osmótica”. Para o autor, a prática jornalística é
impossível sem um mínimo de curiosidade pela história, pois não há competência
profissional sem uma visão clara daquilo que está historicamente por detrás da notícia e
que as agências internacionais não transmitem.
Desse modo, procuramos mostrar o paradoxo que envolve as relações entre o
Ocidente e o Islã, através de dois aspectos interligados e por nós sintetizados da
seguinte forma: de um lado, a visão negativa que os radicais islâmicos têm sobre o
Ocidente; e, no sentido contrário, a visão negativa que o pensamento ocidental
hegemônico tem sobre o Islã. Ainda assim, e curiosamente, é possível perceber na
leitura das duas fontes midiáticas um conhecimento sobre a história medieval ibérica

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pelo mundo islâmico bem maior do que da própria sociedade europeia, não só do grande
público, mas também dos meios intelectuais, com o seu silêncio a respeito de episódios
relevantes ali ocorridos.
Nesse ponto, cabe advertir, ainda que de forma sucinta, sobre a necessidade de
se precisar melhor algumas categorias utilizadas, levando em consideração o que Franco
Cardini caracteriza como o mal entendido a respeito da história das relações entre a
Europa e o Islã. Assim, para o autor, aquilo que se costuma identificar nos dias atuais
como “Ocidente” não pode ser tratado como bloco único ou como mera continuidade
entre a civilização greco-romana e a história europeia, compreendendo antes, uma
matriz civilizacional e de pensamento da qual ela faz parte, mas engloba outras nações e
suas elites, especialmente os Estados Unidos.5 Para o autor, um dos traços desse
pensamento seria um tipo de "fundamentalismo" que, sob a capa da tolerância, está
profundamente convencido de que o mundo da democracia liberal e do liberalismo
econômico é o melhor de todos os mundos possíveis e a meta única, final e necessária
de qualquer possibilidade para a cultura humana (CARDINI, 2015).
Por outro lado, e a despeito da grande unidade que distingue a Umma, também
não é possível tratar o islamismo como um todo homogêneo, pois a comunidade
islâmica é formadade facções, das moderadas às mais extremadas, envolvendo, muitas
vezes, a radicalização da violência dentro e fora das suas regiões de origem. Daí o
cuidado necessário, apontado por Natali, com a interpretação histórica que está por
detrás da notícia e que as agências internacionais não transmitem. Contrariando essa
praxe, encontramos uma crítica muito bem fundamentada de conhecido jornalista
brasileiro sobre a cobertura das ações muçulmanas pela mídia ocidental:

A representação do Islã e também da cultura árabe como obscurantistas e


retrógrados deixa de lado informações históricas fundamentais. No
apogeu do islamismo, nos séculos X a XII, a ciência teve um progresso
extraordinário. E os muçulmanos, nas suas conquistas, especialmente quando
ocuparam a Península Ibérica por vários séculos, foram tolerantes com as
outras religiões e culturas [...]
Mas durante a cobertura pós-11 de setembro, tudo isso foi ignorado. Afinal, o
Ocidente estava sendo atacado pelo Oriente selvagem e fanático. A difusão
de uma imagem extremamente negativa do islamismo foi sempre demolidora.
(DORNELES, 2003: 224-226; grifo nosso)

5 CARDINI, (2005:59), apoiado em Jean ZIGLER, aponta para as elites similares dispersas pelo mundo,
ainda que concentradasnos seguintes países e continentes: EEUU,Canadá, Europa, Japãoe Austrália.

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Com efeito, o tipo de representação apontada por Dorneles, pode ser nitidamente
identificada na reportagem de O Estado de São Paulodo dia 8 de outubro de 2001,
especialmente nas declarações atribuídas a Bin Laden e ao seu lugar-tenente, Aymanal-
Zawahiri, quando se referem, diretamente, aos conflitos entre cristãos e muçulmanos na
Andaluzia medieval:

Aparentando tranquilidade e firmeza, [Bin Laden] ressaltou em tom de


ameaça: “somos capazes de enfrentar essa agressão... A guerra santa contra
os judeus e cristãos começou”. Por sua vez, o lugar-tenente de Bin Laden e
chefe da Jihad egípcia, Ayman Zawahiri, dirigiu-se diretamente ao povo
americano.“Seu governo está levando vocês a uma guerra que, seguramente,
perderão”, disse ele, também chamado de “doutor do terror” e apontado
como mais radical que Bin Laden. “O mundo precisa saber que não vamos
permitir a repetição da tragédia da Andaluzia na Palestina”, ameaçou
ele numa referência à expulsão dos árabes da Península Ibérica. “Vamos
à vitória em honra de Jihad”, disse ele dirigindo-se aos “jovens combatentes
muçulmanos”. (O ESTADO DE SÃO PAULO, 2001: 4, grifo nosso)

Parece claro no fragmento transcrito que os atos de vingança presentes no


discurso muçulmano encontram sua motivação muito além dos conflitos atuais,
reportando aos choques com os cristãos, ainda na Idade Média, ou seja, muito antes das
prisões do Egito, como indicado por Lawrence Wright:

Uma linha de pensamento propõe que a tragédia americana do 11 de


setembro nasceu nas prisões do Egito. Defensores dos direitos humanos do
Cairo argumentam que a tortura criou uma vontade de vingança, primeiro em
Sayyid Qutb e depois em seus seguidores, incluindo Aymanal-Zawahiri. O
alvo principal da ira dos prisioneiros foi o governo secular egípcio, mas uma
raiva enorme também foi dirigida ao Ocidente, visto como a força
capacitadora por trás do regime repressivo. Eles consideram o Ocidente,
responsável por corromper e humilhar a sociedade islâmica. De fato, o tema
da humilhação, a essência da tortura, é importante para compreender a raiva
dos islamitas radicais. As prisões do Egito se tornaram uma fábrica de
militantes cuja necessidade de desforra─ eles chamavam de justiça ─ era
total e absoluta. (WRIGHT, 2007: 67)

As falas dos membros do grupo extremista Al Qaeda, no trecho de O Estado de


São Paulo já referido, procuram desqualificar o mundo ocidental e os seus pretensos
valores, tendo como alvo maior os Estados Unidos, muitas vezes apontados como o
“grande satã”. Além das manifestações de ressentimento ou de ódio, chama atenção a
referência feita à Península Ibérica, tanto pelo conteúdo relativo à expulsão dos mouros,
quanto pelo tratamento dado, sua forma natural e bastante próxima a um acontecimento
ocorrido há cerca de seis séculos, mas percebido, em linha de continuidade direta, como

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passado recente. Se a referência à Península é explicitada por Zawahiri, quando afirma
que não permitirá a repetição dos episódios da Andaluzia─ na alusão ao antigo Califado
ibérico de Al Andaluz ─, ela está velada na fala de Laden, mas não é menos eloquente.
Ao dizer que a guerra santa contra os judeus e cristãos começou, ele remete,
seguramente, ao cenário medieval hispânico do confronto étnico-religioso que pôs fim à
coexistência possível entre muçulmanos, cristãos e judeus, sob o estatuto jurídico
islâmico da “tolerância religiosa”, adotado pelo Califado. Em sentido diametralmente
oposto, os comentaristas ocidentais passam ao largo desse acontecimento, confirmando
a descontinuidade entre tais acontecimentos no imaginário europeu atual.
Porém, a alusão ao medievo ibérico não é exclusividade da ala radical, como
pode ser constatado na fala de um muçulmano moderado, o Sheik Makhtar El-Khal, à
frente do (único) Centro islâmico de Minas Gerais, sediado em Belo Horizonte, há 26
anos. Em entrevista concedida à Revista Exclusive (2015: 68), ele afirma textualmente
─ o que reforça os nossos argumentos ─ que “a prova maior da tolerância e da boa
convivência islâmica é a Península ibérica. Quando os muçulmanos eram
conquistadores da verdade e da ciência chegaram a ter a Europa”. Aqui, provavelmente,
ele está se referindo à expressiva contribuição da cultura árabe, certamente menos
divulgada do que o desejável, para o desenvolvimento do renascimento europeu,
sobretudo com as famosas traduções, do árabe para o latim, das obras de Aristóteles,
Ptolomeu e outros clássicos helenísticos, também destacados por Cardini (2015).6
Sobre o episódio relativo ao Charlie Hebdo, o Sheik ponderou, com muita
serenidade, que “enquanto liberdade de expressão é algo sagrado no Ocidente, para os
muçulmanos Deus é mais sagrado do que qualquer coisa. Se você não quer que eu atinja
a sua coisa sagrada, você não deve atingir a minha. A balança está desequilibrada.”
Além disso, demonstrou independência e autocrítica ao condenar certos atos dos seus
correligionários, afirmando que se “faz coisas erradas, contra a essência do islã”

6 Cardini afirma que a sociedade ocidental é tributária das contribuições islâmicas no medievo europeu: o
renascimento do comércio e da civilização urbana, o nascimento do sistema monetário e do crédito
moderno, as traduções de árabes, judeus e cristãos incansáveis, que trabalhavam de comum acordo,
notadamente em Espanha, promovendo o nascimento de um centro científico e cultural sobre teologia,
filosofia, astronomia, física, química, medicina, matemática e tecnologia moderna. Sem o Islã, que
reciclou a cultura helenística e divulgou a persa, a indiana e a chinesa, então desconhecidasna Europa, não
haveria as belas catedrais e universidades europeias. Por isso ele confessa sua eterna gratidão ao
islamismo moderno de Avicena, Averróis, IbnKhaldun, sem os quais não haveriaAbelardo, Tomás de
Aquino, Dante, Maquiavelou Galileu, ressalvando que, naturalmente, o Islã hoje não é mais o que era
naquela época.

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(EXCLUSIVE, 2015: 68-69), referindo-se à degolação de um jornalista, pelos
muçulmanos radicais, diante das câmeras da televisão. Chegou mesmo a questionar o
comportamento de alguns ditos “moderados” e, ao mesmo tempo, responsáveis por
certos atos que, a nosso ver, podem ser vistos como um tipo diferente de violência,
silenciosa ou insidiosa, abrindo espaço para outro tipo de reflexão:

Agora, nós, muçulmanos, estamos exportando a dança do ventre e a comida.


Antigamente, éramos exportadores de medicina, da ciência e da cultura. Os
logarítimos são fruto de estudos muçulmanos. O islã incentiva a pesquisa,
mas os muçulmanos de hoje investiram nos prédios e no melhor hotel, à beira
do mar e com torneiras de ouro. Porém existem boas cabeças que estão sendo
esmagadas, obrigadas a fugir para Itália para lavar louças.
Nossos dirigentes deixaram surgir esse tipo de pensamento fanático no
mundo muçulmano. Quando um jovem culto, que tem todas as capacidades
não acha uma oportunidade de trabalho no próprio país, sabendo que existem
riquezas embaixo do solo dele em todo canto, ele se revolta. O petróleo
pertence a uma minoria de sheiks, os ‘sheiks sem fundo’ [risos], que estão
usando e abusando do dinheiro para uma minoria, para muito além do
sustento. Os presidentes que foram derrubados na Tunísia, no Egito e na
Líbia tinham milhões e milhões de contas da Suíça. (EXCLUSIVE, 2015: 68-
69)

Percebe-se, no trecho transcrito, um questionamento sobre o modo de vida


ocidental, responsabilizado, em grande medida, pela revolta dos jovens contra a
perversidade do modelo capitalista, com a sua adoção pelos dirigentes muçulmanos que
se desviaram da essência da doutrina e se alinharam a um cenário abusivo: de
consumismo, de grande concentração de renda, de ostentação e, por fim, de corrupção,
que deslocou vultosas somas de dinheiro para os bancos suíços. Em outra passagem do
mesmo artigo, ele muda o seu foco para incitar a memória e o reconhecimento dos
brasileiros a respeito da herança islâmica, sobretudo na Bahia, apontando para certas
permanências no vestuário e, no léxico português, da palavra “oxalá” (EXCLUSIVE,
2015: 70), ligada etimologicamente ao árabe in shaa Allaah.7
Quanto à outra abordagem, relativa à visão negativa sobre o Oriente islâmico por
parte do mundo ocidental, vê-se que o redator do texto citado no Estadão atribui
exclusivamente aos muçulmanos ─ direta ou indiretamente ─ a condição de “terrorista”.
No primeiro caso, quando alude à fala de Bin Laden como a “declaração do líder

7 Conforme Ferreira (2004), trata-se de palavra da língua portuguesa utilizada como interjeição para
expressar o desejo que algo aconteça, tendo como sinônimo "tomara" ou "queira Deus" e,como origem, a
expressão árabe in shaaAllaah, cujo significado é “se Deus quiser”. Em espanhol, seu desenvolvimento
deu origem à palavra ojalá, exatamente com o mesmo significado.

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terrorista”, e no segundo, referindo-se ao comentário do porta-voz da Casa Branca, Ari
Fleischer: “o presidente George W. Bush reuniu o mundo na luta contra o terrorismo,
para que a liberdade prevaleça sobre o terror”. (O ESTADO DE SÃO PAULO, 2001: 4)
A publicação segue o padrão de base nas mesmas fontes, com a mediação de
agências internacionais ─Ansa, Associated Press, DPA, EFE, France Presse e Reuters.
Uma curiosidade na versão brasileira é que o Estadão foi o único jornal examinado a
publicar as referências à Península Ibérica e à Reconquista, que foram subtraídas dos
seus congêneres de ampla circulação, como analisado em monografia dedicada
especialmente à Folha de São Paulo (FERREIRA, 2011). Isso reforça a hipótese do
desconhecimento ou descaso sobre a história de Portugal e Espanha pelos jornalistas
ocidentais, que se movem, quase mecanicamente, na órbita da visão etnocêntrica da
mídia hegemônica ocidental, integrada, conforme as agências antes nomeadas, por
países de notória influência no cenário mundial ─ Alemanha, França, Inglaterra,
Estados Unidos ─ ou, ainda, Itália e Espanha.
Nesse caso, a mídia brasileira faz coro com a visão ambivalente sobre o mundo
islâmico, que como disse o Sheik Makhtar El-Khal, se encanta com o seu folclore ─ a
dança, a comida e, poderíamos acrescentar os contos das mil e uma noites. Mas que, se
não é tomada pela ira, olha para os seus costumes e sua religiosidade com certo desdém
ou mesmo com a condescendência de um sentimento de superioridade em relação a uma
cultura supostamente inferior e retrógada. Apesar de defendermos a liberdade
fundamental de expressão e repudiarmos os atos de violência praticados contra o
Charlie Hebdo, não deixamos de perceber certo exagero no tom jocoso das caricaturas
sobre o Profeta.
Parece que o despertar da visão ocidental teria que esperar pelos ataques de 11
de setembro, quando o extraordinário impacto provocado, atingindo de modo certeiro os
objetivos iniciais de seus idealizadores, levaria à redescoberta do Islã, também na sua
capacidade intelectual e estratégica.

Considerações finais
Diante do exposto, e a título de conclusão, gostaríamos de propor uma reflexão
sobre duas questões de longa duração histórica, no âmbito, quer das relações

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internacionais, quer da formação social brasileira, cotejando a mídia com a
historiografia.
A primeira diz respeito a um traço do tipo “maniqueísta” que, em pleno século
XXI, se mantém como uma espécie de denominador comum entre a visão islâmica e o
pensamento ocidental, grosso modo, cujas relações são percebidas em termos de
oposição: Ocidente versus Oriente, cristãos versus islâmicos, liberdade versus terror e
americanos versus árabes, em última instância, do bem versus o mal. Isto é ainda mais
problemático se entendermos, como Cardini (1999), que as civilizações europeia e
muçulmana, embora diferentes, possuem áreas de convivência e uma raiz comum
profunda, eurasiática, helenística e mediterrânea. O autor afirma, nesse sentido, que o
antagonismo entre Europa/Ocidente e o Islã é uma construção histórica de poucos
séculos e predominantemente ocidental. Mesmo assim, não nos parece que o
antagonismo tenha se dissipado do imaginário islâmico, mantendo-se de forma latente
por um longo período para irromper com força assim que a nova conjuntura o permitiu.
Com efeito, encontramos muitas referências sobre o ódio do Islã ao Ocidente.
Porém, pouco se diz, no sentido inverso, sobre uma espécie de concertação anti-
islâmica, mascarada pela retórica politicamente correta do respeito à alteridade, no
contexto contemporâneo, globalizado e paradoxal de afirmação de identidades e de
reconhecimento das diferenças. Tal concerto é formado por posturas convergentes, mas
não similares, incluindo algumas ativas e deliberadas, com graus variados de
hostilidade, e outras passivas e mecânicas as quais, pela força da inércia, são capazes de
manter, mesmo não intencionalmente, uma visão pejorativa das práticas e dos valores
muçulmanos, projetada em um discurso bastante elaborado. Este, como bem lembra
Foucault (1970), “fala” através dos sujeitos ou, no caso da mídia em análise, dos
personagens, na tradução feita pelos seus pretensos intérpretes, isto é, os autores das
reportagens que reproduzem a rejeição ao Islã de várias formas.
A segunda questão, que se desdobra da primeira, refere-se a certo
desconhecimento do mundo ocidental sobre si mesmo, dos seus limites e de suas
idiossincrasias. Isso inclui o Brasil que, fiel ao seu traço característico de origem,
norteia-se basicamente pelo paradigma cultural exógeno e dominante projetado no vezo
simplificador da mídia impressa. Trata-se de uma tendência que conduz à
desinformação ou, ainda, ao que costumamos chamar de “desconhecimento do próprio

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desconhecimento” e, em consequência, à impossibilidade de uma avaliação madura,
isenta e fidedigna. Essa distorção, que acaba por desqualificar os valores nativos, aponta
para a necessidade de uma revisão crítica, com vistas principalmente à reorientação da
formação escolar e acadêmica do ensino de história no Brasil, conduzindo à maior
conscientização sobre o significado e o exercício da cidadania, de acordo com os
parâmetros curriculares estabelecidos pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC).
Em outras palavras, o resgate de uma cultura genuína passa, necessariamente,
pelo processo de “descolonização mental” proposto por Luiz Estevam Fernandes e
Marcus Vinícius de Morais (2003) e inclui o reconhecimento da herança cultural
ibérica, associada às contribuições da cultura islâmica e suas ramificações, sua
pluralidade e atualidade, despindo-a de preconceitos milenares. Este seria o ponto de
partida para uma abordagem mais completa e equilibrada da formação social brasileira
no respeito ao seu tripé fundante, representado pelos grupos aborígenes, portugueses e
africanos.
Cabe tanto aos historiadores, quanto aos jornalistas, uma crítica mais
verticalizada sobre o tema.

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PERPETUAR A MEMÓRIA: O MOSTEIRO DA BATALHA NO
TESTAMENTO DE D. JOÃO I (1426)

Hugo Rincon Azevedo


Mestrando em História – PPGH/UFG
Bolsista CAPES

RESUMO: Este texto tem como objetivo analisar o Mosteiro da Batalha no Testamento
do rei D. João I (1426). Partimos da premissa de que este mosteiro enquanto panteão
régio da casa de Avis teve um papel fundamental enquanto aparato de poder na
construção simbólica da dinastia no século XV. A escolha do mosteiro enquanto
panteão fúnebre de D. João I e seus sucessores têm dois eventos como marcos
principais: a trasladação do corpo da rainha D. Filipa de Lencastre em 1416 para o
panteão, visto como o marco inicial, e dez anos depois a oficialização do mosteiro no
testamento do rei. Portanto, o conteúdo deste Testamento permite-nos problematizar
sobre as construções simbólicas desta dinastia, cujo panteão régio, para muitos
historiadores, é o maior símbolo político, de poder e de memória física da Casa de Avis
e do reino português no século XV.

Palavras-chave: Mosteiro da Batalha, Testamento, Memória

ABSTRACT: This text proposes to analyze the Monastery of Batalha in king John I’s
Testament (1426). We assume that this monastery as a royal pantheon of the House of
Avis had a key role as an apparatus of power in the symbolic construction of the
dynasty in the fifteenth century. The choice of the monastery as funeral pantheon of
King John I and his successors have two events as the main landmarks: the queen’s
body repatriation in 1416 to the Pantheon, seen as the starting point, and ten years later
the monastery official in the king's Testament. Therefore, the content of this Testament
allows us to question about the symbolic constructions of this dynasty, whose royal
pantheon, for many historians, is the largest political symbol of power and physical
memory of the House of Avis and the Portuguese kingdom in the fifteenth century.

Keywords: Monastery of Batalha, Testament, Memory

O Testamento de D. João I, para além de outras fontes, é uma ferramenta


necessária para os estudos acerca da Dinastia de Avis, e, também, para a compreensão
do projeto político Joanino para o reino português no início do século XV. Em seu
testamento, datado de 1426, publicado na Crônica do Rei Dom João I, de Fernão Lopes,
o rei deixou ordens relativas aos procedimentos de seu sepultamento, no Mosteiro de
Santa Maria da Vitória, lugar escolhido como seu panteão fúnebre. D. João ordenou ser
sepultado junto a sua esposa, a rainha D. Filipa de Lencastre (+1415), que por mandado
do rei teve seus restos mortais trasladados do Mosteiro de Odivelas para o Mosteiro da
Batalha em 1416. Partimos da premissa, de que o fato de D. João I ter escolhido o

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181
panteão batalhino como sua necrópole, fez daquele mosteiro um local de construção e
propagação de memória da dinastia avisina. Santa Maria da Vitória deveria
salvaguardar, além dos restos mortais do rei e da sua linhagem, a memória de um
reinado e de uma dinastia. Este foi um fator primordial para que se construísse um
aparato simbólico em torno a Casa de Avis, pois os seus sucessores mantiveram o
Mosteiro como seu panteão, estando sepultados naquele local, D. João I (+1433), D.
Duarte (+1438), D. Afonso V(+1481), e D. João II (+1495). O conteúdo deste
Testamento permite-nos problematizar sobre as construções simbólicas desta dinastia,
cujo Panteão Régio, para muitos historiadores, é o maior símbolo político, de poder e de
memória física da Casa de Avis e do reino português no século XV.
O ponto de partida desta pesquisa consiste na perpetuação da memória de D.
João I na combinação entre a “memória escrita” (o Testamento) e a “memória em
pedra” (o Mosteiro da Batalha). Para isso, problematizamos qual a importância dada ao
mosteiro pelo rei em seu testamento. Nesse sentido, um dos objetivos de nossa pesquisa
é entender o processo da construção do Mosteiro da Batalha enquanto local de memória.
Entendemos a memória como uma construção social e que é agenciada por
transformações sociais, e as memórias individuais dos homens seriam um ponto de vista
sobre a memória coletiva. Assim, “as memórias são cruzamentos entre signos emitidos
pela empiria e o trabalho sobre eles do consciente ou do inconsciente.”
(ALBUQUERQUE JR., 2007:204). Deste modo, entendemos que as memórias coletivas
e individuais são construções sociais. A memória individual, voluntária ou involuntária,
sendo a primeira relacionada à lembrança, a recomposição do passado e à rememoração,
e a segunda ao fruto da civilização, da disciplinarização e da absorção do meio social,
são também construtoras e resultados da memória coletiva. Nesse sentido, apontamos o
Mosteiro da Batalha como propagador da memória e representante do discurso
legitimador da Casa de Avis, influenciando diretamente na construção de uma memória
coletiva que beneficiasse e fosse ao encontro dos interesses da nova dinastia. Neste
texto também pretendemos discutir a utilização política da memória coletiva pelos
monarcas da Casa de Avis através de práticas simbólicas, sendo algumas destas
mencionadas no testamento do Mestre de Avis. Partimos do conceito de memória
coletiva formulado por Paul Ricoeur (2007), no qual, a consciência individual e a sua
memória integram-se a memória coletiva por um conjunto dos traços deixados pelos

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182
acontecimentos que influenciaram o curso da história de determinados grupos sociais e
a quem se reconhece o poder de trazer à cena lembranças em comum por ocasião de
ritos, festas e celebrações políticas. (RICOEUR, 2007).
Legado da Batalha de Aljubarrota, da vitória e independência perante Castela, D.
João I mandou erguer no local de seu grande triunfo o Mosteiro de Santa Maria da
Vitória. A princípio, como forma de agradecimento à virgem, pela “ajuda divina” aos
portugueses durante a batalha, que no imaginário da época, lhes deu a vitória, como
ressaltou o rei “porque nos prometemos no dia da batalha que ouvemos com el Rey de
Castela, de que Noso Senhor Deus nos deu vitoria, de mandarmos fazer aa homrra da
dita Nossa Senhora Samta Maria”. (TESTAMENTO DE D. JOÃO I in GOMES, 2002:
135). Segundo Saul António Gomes;

O mosteiro resultava, pois, de um processo de maturação por parte do


monarca e de algumas personalidades influentes na corte, não nos parecendo
que tenha sido obra decidida, em definitivo, num só momento. Para sua
importância simbólica e política, que adquirirá ao ser eleito panteão real, a
partir de 1416, tornou-se necessário esperar pela evolução das condições
económicas e políticas do reino, ao mesmo tempo que se tornava objeto de
consensos por parte dos mais diversos quadrantes sociais do poder. (GOMES,
1990: 5)

Enquanto monumento à vitória perante Castela e de agradecimento à virgem, o


Mosteiro da Batalha foi mandado a ser edificado em 1386, por D. João I. Com o passar
dos anos, durante o reinado do mestre, o mosteiro foi ganhando maior importância, até
ser eleito como panteão fúnebre do rei português. Posteriormente foi entregue à Ordem
dos Dominicanos. A escolha dessa ordem insere-se no contexto diplomático da posição
do reino português perante o papado romano. Entende-se que, em um período de
diversas guerras contra Castela, como foi nas duas décadas finais do século XIV, o
apoio do papado romano, visto que o inimigo apoiava-se em Avinhão, seria
fundamental, e isso justifica a escolha da Ordem de São Domingos. No testamento, D.
João afirmou que após o inicio da construção do mosteiro ordenou que o mosteiro fosse
entregue à ordem de São Domingos, pois esta era parte da promessa em honra de Santa
Maria, e que garantiram ao rei que esta ordem era muito devota da Virgem, o que
justificava a sua escolha. Segundo o rei, este ordenou que o mosteiro fosse entregue a
“hordem de Sam Domymguos (...) porque asy foy noso prometimento de se fazer aa

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183
homrra da dita Senhora Santa Maria.” (TESTAMENTO DE D. JOÃO I in GOMES,
2002:135).
Dentro do contexto diplomático exterior, já no século XV, o Mosteiro da Batalha
se insere no contexto de panteões dinásticos que se alastraram pela Europa, grandes
necrópoles reais, de demonstração física de poder e culto à memória e aos corpos dos
reis falecidos. O marco inicial da transformação do Mosteiro da Batalha enquanto
Panteão de Avis foi a trasladação do corpo da rainha D. Filipa de Lencastre, do mosteiro
de Odivelas para a Batalha. Falecida em 1415, os restos mortais da rainha foram levados
para a Batalha no ano seguinte a mando do rei, em 1416, onde se encontra sepultada na
Capela dos Reis, junto ao rei D. João I, que se junta a sua consorte no ano de 1433. O
rei português “mandou erguer para si e para sua esposa um túmulo conjugal, até então
nunca visto no reino, guardado no interior da capela que sacralizava os restos mortais de
um rei fundador, acompanhado da sua linhagem.” (COELHO, 2010: 62).
Sobre a trasladação dos restos mortais da rainha para o Mosteiro da Batalha,
Gonçalo Lourenço Gomide (1350 – 1426), escrivão da puridade de D. João I, em uma
fonte datada de 1416, registrou que:

Estando hi o muito alto, ilustriximo dom Joham pela graça de Deus Rei de
Portugal e do Algarve e Senhor de Çepta e com el os muitos altos e nobres
senhores Ifantes seus filhos e os nobres condes e cavaleiros e ricos homees e
fidalgos dos seus senhorios e outrossi muitos muitos honrrados e discretos
bispos e abades e priores de sua terra e muito clerigos e religiooes dos seus
Regnos que por seu mandado foram chamados pera traladarem aa mujto alta
e nobre ilustrixima sua molher dona Philipa Rainha dos dictos Regnos em
cuja gloria Deus acreçente, do Moesteiro d Odivelas onde primeiramente foy
sopultada ao dicto Moesteiro de Sancta Maria da Batalha. (LOURENÇO,
1985 in GOMES, 2002: 93).

A trasladação dos restos mortais da rainha D. Filipa marcaram a escolha do


Mosteiro de Santa Maria da Vitória enquanto Panteão Fúnebre, mas apenas na década
seguinte, o rei D. João I oficializou essa escolha, quando exige em seu testamento ser
sepultado junto a sua esposa no mosteiro da Batalha, em que pede que seus corpos
sejam lançados no “Moesteiro de Samta Maria da Vitoria, que nos mandamos fazer com
a rrainha dona Felipa, mynha molher”, e dentro do mosteiro, o rei ordena que o
sepultamento seja “na capella moor, asy como ora Ella jaaz, ou na outra que ora
mandamos fazer, despois que for acabada.” (TESTAMENTO DE D. JOÃO I in
GOMES, 2002:134).

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


184
A ligação do Mestre de Avis e seu “Moesteiro de Samta Maria da Vitoria” é de
suma importância na construção simbólica e legitimação da nova dinastia realizada
principalmente por meio da forte propagação política de sua memória. Feito a
contextualização do processo de construção, a escolha Mosteiro da Batalha como
panteão régio, como este se inseriu nas vontades póstumas do rei em seu testamento?
Escrito no ano de 1426, o testamento se inicia com D. João explicando os motivos de se
testar. O rei que naquele momento tinha em torno de 69 anos, reforça que devido à
finitude da vida humana, e sabendo da fragilidade de sua idade, deveria estabelecer em
testamento as suas vontades para que estas fossem cumpridas após o seu falecimento.
Após exigir que seu corpo seja sepultado ao lado da rainha D. Filipa na Capela
Mor do panteão, o rei define a sua sucessão. D. João deixa seu herdeiro, D. Duarte e
aqueles que venham a se tornar reis e senhores de Portugal que cumpram as suas
vontades estabelecidas neste documento. Em seguida, D. João legitima o seu
primogênito e herdeiro, D. Duarte, estabelecendo além dos outros infantes como D.
Pedro e D. Henrique na linha de sucessão régia.
Uma parte importante destinada ao mosteiro no testamento é em relação à
administração deste. O Mestre preocupou-se em deixar registrado como deveriam ser
feitas as continuidades das obras (estas se arrastaram pelo século XV), a quantidade de
servidores (como cozinheiros, lavadeiros, sapateiros e similares) que deveriam trabalhar
no panteão, as formas de pagamentos, e os mantimentos necessários para os frades (o rei
enumera vinte frades de ordens sacras e dez noviços e frades leigos) e demais pessoas a
residirem em Santa Maria da Vitória. Em relação ao sustento das obras do mosteiro, dos
frades dominicanos e servidores, D. João ordena que as rendas da vila de Leiria sejam
destinadas ao mosteiro. O rei registrou que o mosteiro:

Se acabe de crasta, casaryas e todollos outros edifiçios que a boom


comprimento do dicto Moesteiro forem necessaryos pellas rrendas de Leyria
e seu termo com seu almoxarifado, asy e pela guisa que se hora faz (...) E
acabado o dito Moesteiro de todallas obras neçesaryas, como dicto he, pellas
ditas rrendas de Leyrea e termo e seu almoxarifado, tiramdo aquello que for
neçessaryo para governança dos dictos frades, se comprem tamtas e taaes
herdades e beens per que se possam rrazoadamente manteer e governar de
comer, beber, vestir, calçar os ditos xxx frades da dita hordem de Sam
Domynguos.” (TESTAMENTO DE D. JOÃO I in GOMES, 2002: 136)

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


185
Em relação à administração de Santa Maria da Vitória, D. João exige que os
bens a serem adquiridos para o sustento dos frades e servidores do mosteiro não sejam
entregues diretamente a estes, mas que seja administrado por dois senhores de Leiria
que ocupem os cargos de “Provedor” (do mosteiro) e o “Escrivão”. O rei pede que os
bens sejam entregues a “dous boons homeens naturaaes destes regnos de boas famas e
com çiemçias moradores na dita villa de Leyrea que ajam boons beens de raiz e sejam
bem a Rey guados: huum que sejam proveedor dos dictos beens e o outro scripvam.”
(TESTAMENTO DE D. JOÃO I in GOMES, 2002:137). Estes senhores seriam
escolhidos pelo rei e deveria prover e administrar dos “comeres, beberes, vestidos e
callçados” dos frades dominicanos. Nesta parte, o rei reforça que também é papel de seu
filho e sucessor, D. Duarte, e daqueles que vierem se tornar senhores de Portugal
fornecer também recursos para a administração do mosteiro. Caberia também aos seus
sucessores escolherem os senhores que ocupariam os cargos de provedor e escrivão,
assim como também fiscalizá-los e garantir que estivessem fazendo uma boa
administração.
Uma grande preocupação de D. João em seu testamento está ligada às missas e
aos ritos a serem realizados ao rei e a rainha após a sua morte. Esta preocupação dos
monarcas da Casa de Avis com a memória post-mortem reflete em possibilidades da
idealização do poder dos reis através do seu Panteão Régio. Para Renata Nascimento,

As diversas concepções perante a morte não diminuem a demonstração


pública de poder real, expressando a dimensão da importância da nova casa
reinante. O panteão também é uma representação do projeto expansionista
preconizado por Portugal nos fins da Idade Média, mesmo que este possa ser
visto como extensão da reconquista. Permanece, portanto a ideia da licitude
da guerra feita em defesa da cristandade.” (NASCIMENTO, 2013: 256).

Desta forma, a preocupação com a presevação da memória do rei após a sua


morte está intimamente ligada à continuidade do seu poder. Para José Mattoso (2001), a
íntima relação entre o culto à morte do rei, a preservação da memória e a prorrogação
do poder político existentes na escolha de um panteão régio:

Revela-se assim o propósito de expremir a permanência da autoridade e de a


ligar a um lugar sagrado que aparece aos olhos dos súbditos como o
testemunho da ligação do poder terreno a um poder invisível, intocável,
protegido diretamente por Deus e que, por isso, garante a permanência da
comunidade.” (MATTOSO, 2001:112-113).

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


186
O Mestre de Avis demonstrou preocupação com os cultos e missas a serem
realizadas no mosteiro, em sua memória e da rainha D. Filipa. A preocupação do
monarca de Avis com a realização dessas missas, provavelmente, transcende a
preocupação com os destinos de sua alma, envolve também a memória e ato de cultuar o
seu reinado. Em seu testamento, D. João I exige que;

Nos dias dos finamentos da dita rrainha e meu, os frades d Alcobaça e os do


dicto Moesteiro e outros quaaesquer frades e cleriguos que hy venham digam
hum trimtayro rrezado em cada humm sahimento aalem das missas e Oras
que ham de dizer. E sejam sempre pagadas as ditas mysas pello proveedor e
scrivam do Moesteiro, segundo se custumarem de pagar as missas rrezadas
aaquelles tempos que se fezerem os ditos saymentos. (TESTAMENTO DE
D. JOÃO I in GOMES, 2002:137).

O ato de se realizar missas para propagar a memória dos reis falecidos também
era comum no mosteiro. Como visto, D. João havia deixado registrado seu desejo de
que se realizassem missas cultuando seu reinado após sua morte. Esta solenização da
morte dos reis representava uma afirmação pública do poder monárquico e de
propaganda política. (MATTOSO, 2001: 145). No ano de 1438, cinco anos após a morte
do Mestre de Avis, e último ano de reinado de seu filho e sucessor, D. Duarte, nota-se
no registro do frade dominicano Mestre Gonçalo, a necessidade de se realizar as missas
cultuando o aniversário da morte do casal real (D. João I e D. Filipa). Este deixou
registrado que:

Asy he que de domingo que foy aos nove dias andados do mes de Novembro
Era de myl quatrocentos e xxxbiii anos sse ffez huum ssolene anyversaryo
por os senhores do muy notavel e grande memorreael Rey dom Joham e a
Raynha dona Fylipa coja as almas Deus aja em o qual dia eu Mestre Gonçalo
prior e provynçyall da ordem de Ssam Domingos disse a mysa do dicto
anyversario. (LOURENÇO, 1985 in GOMES, 2002: 226).

A realização dessa cerimônia é um elemento de propagação do poder real. D.


Duarte encarregou-se de reforçar e manter a memória dos seus pais e da Dinastia de
Avis. D. Duarte, que “se ocupou, meticulosamente, da cerimonialização e ritualização
do tempo de luto e de dó – da linhagem e família para com o seu progenitor e parente;
(...) de toda a população do reino para com seu chefe e rei.” (COELHO, 2010:77). Deste
modo, entendemos que o papel do sucessor na realização da cerimônia de luto do seu rei

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187
antecessor e seu pai (como ocorreu com os reis de Avis até D. João II), representava
também uma afirmação de que o poder do rei não acaba com a sua morte, mas
continuava na sua sucessão. Assim, a grandiosidade e a expressividade do espetáculo
funerário, realizado pelo sucessor, tinha um papel primordial: afirmava que “a morte do
rei não significava a morte do poder; a morte do rei tornava-se, pelo contrário, no
momento da sua demonstração mais inesquecível.” (MATTOSO, 2001: 123).
No testamento, D. João também deixa quantas e como devem ser feitas as missas
e rezas pela sua alma e a de D. Filipa, a ser realizada pelos frades dominicanos. Além
das rezas e missas habituais feitas pelos frades no mosteiro, o rei ordena que parte
destas deva ser destinada à sua alma e à da rainha, cabendo também a seus sucessores
fazerem ordenamentos de missas para o casal real. O rei ordena que façam “sahymentos
por mynha alma e da rrainha mynha molher (...) acreçemtando por mynha alma, depois
do nosso enterramento, aquellas myssas e oras.” (TESTAMENTO DE D. JOÃO I in
GOMES, 2002:136). Estas demais missas e orações deveriam ser feitas a partir da
ordenação dos infantes ou do rei. Assim, os frades deveriam, pelas esmolas que
receberiam da família real, estar encarregados de “dizerem por mynha alma e da dita
rrainha mynha molher em cada humm dia duas missas rrezadas, a saber: huuã de Samto
Sprito e outra e Santa Maria...” (TESTAMENTO DE D. JOÃO I in GOMES,
2002:137).O Mestre de Avis ordena que os seus sucessores fiscalizassem essas missas e
orações em seu nome. Ele exige ainda que D. Duarte, e aqueles que venham a se tornar
reis de Portugal, conheçam bem a rotina das missas/rezas e a vida dos frades, e que caso
achem necessário, que estes interfiram e corrijam ao encontrar erros nos atos dos frades,
para que se façam as orações da melhor maneira pelas as suas almas.
D. João deixou em seu testamento também o ordenamento de quais pessoas
poderiam dotar de jazigos e capelas no seu Mosteiro da Batalha. A preocupação do rei
com seu túmulo e também dos seus sucessores exprimem a necessidade de manifestar o
seu poder após a sua morte. A indicação do lugar do túmulo pelo rei representa:

O testemunho da secular e ininterrupta sucessão dos reis e da sua proteção


tutelar sobre o reino. Os túmulos são a prova visível de que os reis mortos
continuam a velar sobre o seu reino e a protegê-lo, de uma maneira silenciosa
e invisível, inspirando aos seus sucessores as boas ações, a força e o poder
que lhes permite manter a paz e a justiça, vencendo todos os inimigos e
afastando todas as perturbações. (MATTOSO, 2001: 144).

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


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Dentro desta relação entre os túmulos, a sucessão e a continuidade do poder régio,
na Capela Mor da Batalha, apenas aqueles que fossem reis de Portugal (ou filhos e netos
de rei) poderiam dotar de jazigos. Como registrou o rei:

Mandamos e emcomendamos ao dicto iffante e a outro qualquer que for Rey


destes regnos que nom comsymtam que nymguem se lamçe nem soterre
demtro no jazigo que nos mandamos fazer em a nossa capella, em alto nem
no chãao, salvo se for Rey destes regnos. E mandamos que pellos jasyguos
das paredes da capella todas em quadra, asy como sam feytas se posam
lamçar filhos e netos de rreix e outros nom.” (TESTAMENTO DE D. JOÃO
I in GOMES, 2002: 138).

O rei, ao definir que “nom lamçe nehuum de qualquer estado e comdiçam que
seja na capella primçipall e mayor do dito Moesteiro”, definiu o espaço de sacralidade
régia que se tornaria a principal Capela do Mosteiro da Batalha. Nesta, apenas os reis e
seus descendentes poderiam dotar de jazigos e assim, constituindo-se de monumentos
fúnebres para o culto à memória do seu fundador e a dinastia de Avis. Os sucessores de
D. João I, D. Duarte e posteriormente D. Afonso V, além de outros infantes, também
manifestaram em seus testamentos o desejo de serem sepultados no Mosteiro da
Batalha, e nestes reforçam a sacralidade do fundador da dinastia. Assim, posterior à
oficialização do mosteiro como panteão régio no testamento do Mestre de Avis, para
Saul A. Gomes:

Stª Maria da Vitória ganhou paulatinamente uma importância e dimensão


inicialmente não previstas. Tornando Panteão régio, o complexo monástico
transformara-se num meio de afirmação e reforço da legitimidade da nova
dinastia, símbolo da sua dignidade e coesão. Tornou-se um local sacro,
princípio segurizante da nova face do poder régio português a que era
necessário dar um corpo visível, arquitetônico e simultaneamente paradigma
da majestade do monarca. (GOMES, 1990: 10).

Entendemos que D. João I utilizou-se diversas práticas simbólicas que visavam


legitimar seu reinado e sua linhagem. Dentre estas práticas, várias estão relacionadas à
representação de poder e propagação de memória. Durante o seu reinado e
posteriormente aos de seus sucessores, o Mestre e os reis de Avis objetivaram construir
e propagar uma memória que exaltasse a figura régia (não apenas do rei, mas de sua
família), memória esta registrada principalmente de duas formas: escrita e em “pedra”.
No testamento de D. João I essas duas “memórias” se entrelaçaram, o rei deixou por
escrito suas vontades, registrou aquilo que desejava passar a seus sucessores, e mais,
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189
manifestou uma grande importância a seu panteão régio (o Mosteiro da Batalha), um
majestoso monumento que simbolizava suas conquistas, seu reinado e seu poder. A
oficialização de Santa Maria da Vitória como panteão fúnebre no seu testamento tornou-
se um marco que entendemos como a tentativa da construção de uma memória que
sacralize e idealize o rei após a sua morte. Assim, o Mosteiro da Batalha eternizou em
pedra a memória das “grandes glórias” de D. João I, da vitória em Aljubarrota, passando
por seus 48 anos de reinado, a sua sacralização após a morte.

REFERÊNCIAS

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A RELAÇÃO CORTESANIA E RUSTICIDADE NA
DRAMATURGIA IBÉRICA QUINHENTISTA

Jamyle Rocha Ferreira Souza1


PPGLITCULT/UFBA/IFBAIANO2
Márcio Ricardo Coelho Muniz – PpgLitCult – UFBA/ CNPq

RESUMO: Cortesania e rusticidade são dois conceitos com convenções literárias


distintas, com temas e formas que raramente convergem entre si. Curiosamente, a opção
estética dos nossos dramaturgos ibéricos se renova justamente quando, em salões
palacianos, fazem representar rústicos num contexto sociológico como o da Corte. A
rusticidade, de «indelicadeza», «incivilidade» e «grosseria», expressa em tensão
linguística e em um pretendido realismo na arte dramática de Juan del Encina (1468-
1529), Lucas Fernández (1474-1541) e Gil Vicente (1502?-1536?), pode ser
compreendida, segundo o crítico espanhol José María Díez Borque (1987), como um
«salto mortal», uma vez que confronta a privilegiada estimativa literária da poesia
cortesanesca e cumpre um fim imediato de divertir a nobreza ociosa. É bastante
provável que o dramaturgo castelhano Juan del Encina seja o iniciador, na cena ibérica,
deste processo de reconhecimento do «estilo rústico» enquanto expressão estética, indo
de encontro à poética culta cortesã. Nessa perspectiva, o presente trabalho pretende
abordar o processo de “dignificação” do estilo rústico no espaço cortesão ibérico nos
fins do século XV e início do século XVI.

Palavras-chave: Cortesania, Rusticidade, Teatro Ibérico Medieval

RESUMEN: Cortesanía y rusticidad son dos conceptos con convenciones literarias


distintas, con temas y formas que raramente convergen entre sí. Curiosamente, la opción
estética de nuestros dramaturgos ibéricos se renueva justamente cuando, en salones
palacianos, hacen representar rústicos en un contexto sociológico como el de la Corte.
La rusticidad, de «indelicadeza», «incivilidad» e «grosería», expresa en tensión
lingüística e en un pretendido realismo en el arte dramática de Juan del Encina (1468-
1529), Lucas Fernández (1474-1541) y Gil Vicente (1502?-1536?), puede ser
comprendida, según el crítico español José María Díez Borque (1987), como un «salto
mortal», una vez que confronta la privilegiada estimativa literaria de la poesía
cortesanesca y cumple un fin inmediato de divertir a nobleza ociosa. É bastante
probable que el dramaturgo castellano Juan del Encina sea el iniciador, en la escena
ibérica, de este proceso de reconocimiento del «estilo rústico» mientras expresión
estética , indo de encuentro a la poética culta cortesana. En esa perspectiva, el presente
trabajo pretende abordar el proceso de “dignificación” del estilo rústico en el espacio
cortesano ibérico en los fines del siglo XV y empiezo del siglo XVI.

Palavras clave: Cortesanía, Rusticidad, Teatro Ibérico Medieval

1 E-mail: myle.mestrado@gmail.com
2 Docente de Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa no Instituto Federal Baiano, campus
Valença. Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da
Bahia, com o projeto de tese intitulado “A relação cortesania-rusticidade na cena ibérica: Gil Vicente,
Juan del Encina e Lucas Fernández” sob orientação do professor Márcio Ricardo Coelho Muniz.

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192
1.
As éclogas, farsas e autos pastoris dos dramaturgos castelhanos Juan del Encina
(1468-1529) e Lucas Fernández (1474-1541); e do dramaturgo português Gil Vicente
(1502?-1536?), reiteradamente, encenam o encontro entre a corte e o campo. A vida
campesina e sua gente, suas canções, seus trajes, seus costumes e hábitos encantam as
cortes reais dos finais do século XV e início do século XVI. Na obra dramática desses
autores, aspectos de uma tradição rústica assumem contornos variados e é temática
insistente em suas dramaturgias. As catorze peças do cancioneiro de Juan del Encina
encenam ações de tipos rústicos em quase sua totalidade; do mesmo modo encontramos
inúmeros exemplos de personagens pastoris nas sete Farsas y Églogas al modo y estilo
pastoril y castellano fechas por Lucas Fernández; bem como as quase cinco dezenas de
autos de Gil Vicente que chegaram até nós também apresentam um número amplamente
variado de rústicos.
Perante o conjunto de textos dramáticos destes três autores, pode-se afirmar que
as circunstâncias de produção e recepção de ambos podem ser enquadradas em
parâmetros semelhantes. Considerados artistas de corte, Encina, Fernández e Vicente
desenvolvem em suas obras técnicas de composição similares, embora se deva
considerar suas particularidades histórico-literárias. Sabe-se que Juan del Encina inicia
seu teatro em terras castelhanas, com a responsabilidade de entreter seus amos, os
duques de Alba, para os quais ele exerceu atividades de músico, poeta e dramaturgo
(tanto de autor como ator dramático), no período entre 1492 a 1498. O mesmo viria a
acontecer com Lucas Fernández, que continuou o trabalho de Encina, cuja obra teve
como inspiração primeira. Já o dramaturgo Gil Vicente exerce suas atividades artísticas
nas cortes portuguesas do rei D. Manuel I e de seu filho, D. João III. A partir da
apresentação da sua primeira peça, Auto da Visitação, em 1502, até sua morte, entre
1536-1540, seria o responsável pelas festas da corte como escritor, diretor de cena e,
algumas vezes, como ator (TEYSSIER, 1985).
Convém salientar que as duas categorias centrais do nosso trabalho são
«rusticidade» e «cortesania». Ambas envolvem aspectos históricos, culturais, sociais e
estéticos que acabam por desencadear várias vertentes interpretativas. Do ângulo da
nossa análise, em domínios literários, interessa examinar o modo e a função destas duas
categorias nas obras de Encina, Fernández e Vicente enquanto fórmulas de expressão e

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193
de pensamento, numa perspectiva retórica, ou seja, como topoi, baseada no método
fecundo de investigação de Ernst Robert Curtius, em Literatura Europeia e Idade
Média Latina (1979).
Principiando por considerá-las enquanto topoi pode-se afirmar que a relação
entre «cortesania» e «rusticidade» é um dos motivos mais recorrentes no expediente
dramático dos três autores ibéricos. A recorrência deste topos no decurso de suas obras,
portanto, interfere diretamente nas escolhas dramáticas de suas peças. O modo como
estas duas categorias são vistas e tratadas dramaticamente revela um modelo de teatro
que busca a síntese de duas culturas completamente distintas: a rústica e a cortesã.
Nossa análise deve observar que a construção histórica dos dois termos assume uma
preceptiva de ‘local ideal’ para o conflito dramático baseado na oposição entre corte e
campo. Quer isto dizer que cortesania e rusticidade são formadas em polos sociais
opostos que, ao mesmo tempo, se complementam entre si e acabam por favorecer na
construção do nó da ação dramática que reside na composição dos universos rústico e
cortesão.
Cabe ressaltar que cortesania e rusticidade são dois conceitos com convenções
literárias distintas, com temas e formas que raramente convergem entre si. Parece-nos
que a construção teórica das duas categorias, civilitas e rusticitas, está em consonância
com a separação clássica entre as duas tradições distintas na literatura, sublimitas e
humilitas, estudadas pelo crítico alemão Erich Auerbach, em Mímesis: a representação
da realidade na literatura (1976). Segundo o crítico, na Antiguidade, nas classificações
estilísticas, o estilo elevado e o estilo baixo se distinguiam de acordo com o assunto a
ser tratado. O estilo elevado era utilizado para tratar dos eventos sublimes, sérios e
perenes, ou seja, atos heroicos e situações extraordinárias. Os personagens eram deuses,
reis, heróis da mitologia e príncipes, como é característico da tragédia; tudo acontecia
no quadro do sublime, do estilo elevado; o realismo cotidiano, que representava o estilo
baixo, efêmero, mortal e corporal, não condizia com as ações narradas. Como ele
afirma,

na antiga teoria, o estilo de linguagem elevado e sublime chamava-se sermo


gravis ou sublimis; o baixo, sermo remissus ou humilis; ambos deviam
permanecer severamente separados. No cristianismo, ao contrário, as duas
coisas estão fundidas desde o princípio, especialmente na encarnação e na
paixão de Cristo, nas quais são tornadas realidade e são unidas, tanto a

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194
sublimites quanto a humilitas, ambas, no mais alto grau (AUERBACH,
1976:129).

A atitude no cristianismo medieval é exatamente o oposto da tradição da


antiguidade clássica. No contexto cristão, a história de Jesus Cristo é o modelo do
sublime e do trágico e também do estilo baixo e humilde. Isso porque a figura de Cristo
evoca tanto Deus quanto o homem, portanto, tanto o sublime quanto o baixo. O termo
latino humilis que vem de humos, solo, e significa literalmente “baixo”, passa a designar
o estilo baixo e a caracterizar a Encarnação e a Paixão de Cristo. O sublime da religião
cristã estava intimamente ligado a essa significação louvável da humildade, por isso
essa mescla de sublime e humilde acalora todas as partes do drama cristão universal
representado vivazmente pelo teatro medieval cristão. De certa maneira, as dramaturgias
dos autores aqui estudados estão integradas nesta tradição, a exemplo das inúmeras
peças de Encina, Fernández e Vicente inspiradas nos textos evangélicos da Bíblia.
Contudo, o que mais importa saber é que dentro dos parâmetros literários dos
séculos XVI e XVI, têm-se dois níveis literários distintos: a poética cancioneril,
considerada de estilo nobre e discreta; e, a poética pastoril-rústica, vista como popular,
ínfima e vulgar. Curiosamente, a opção estética dos três dramaturgos se renova
justamente quando em salões palacianos, no período quinhentista, fazem representar o
universo rústico no espaço cortesão ibérico.

2.
Juan del Encina já inaugura sua dramaturgia com dois pastores em cena, no
Natal de 1492, em uma sala principal do palácio dos duques de Alba, Dom Fadrique
Alvarez Toledo e sua esposa. O diálogo da Égloga representada en la noche de la
Natividad gira em torno de Juan y Mateo na sala onde estavam os duques. A conversa
entre os pastores nada tem a ver com a cena do presépio, mas sim com a vida do próprio
autor/dramaturgo. A expressão que se encontra no texto inicial da peça – “se introduzen
dos pastores [...] en la sala adonde el Duque y Duquesa estavan [..]” – sugere um jogo
de ilusão muito próprio da linguagem do teatro. O jogo da vida dentro da convenção
teatral converte-se em possível cena real composta de pastores castelhanos que chegam

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195
até a sala do palácio com tudo que lhe é próprio: seus costumes e língua explorados
cenicamente3.
É bastante sugestivo que a primeira peça dramática de Juan del Encina encene a
«entrada» de uns pastores cujo diálogo privilegia a apresentação justamente de sua obra
pastoril aos duques de Alba. Todo texto da peça versa sobre o próprio poeta salmantino
e sua obra. O que se percebe é que através da máscara rústica, Encina encontra
elementos cênicos que fundem intimamente «estilo» e «vida pastoril». Desse modo, a
peça é também uma apresentação do seu projeto literário, que acaba sendo incorporado
no conjunto de produções artísticas da corte castelhana, como nota-se nas palavras do
pastor Juan (será Encina?) quando fala da sua arte:

Delante destos señores,


quien me quisiere tachar,
yo me obrigo de le dar
por un error mil errores.
Tenme por de los mejores.
Cata que estás engañado,
que si quieres de pastores
o si de trobas mayores,
de todo sé, Dios loado.
Y no dudo aver errada
en algún mi viejo escrito.
que quando era zagalito
no sabía quasi nada.
Mas agora va labrada
Tan por arte mi lavor
que, aunque sea remirada,
no avrá cosa mal trovada
si no miente el escritor (vv. 118-135).

De certa maneira, a écloga está a serviço do poeta para demonstrar seu valor
pessoal quando afirma que «no avrá cosa mal trobada», bem como busca valorizar sua
obra frente aos seus mecenas. A personagem-autor traça o próprio percurso literário de
Juan del Encina, na medida em que o «autor» (se) conta e “se dá em espetáculo” as
habilidades de poeta/dramaturgo. E, interpreta ainda, o estilo pastoril como uma opção
estética, não importa se for de «pastores» ou «trobas mayores» o poeta afirma que «de
todo sé».

3 Esta visão critica já foi sinalizada por José María Díez Borque em seu texto “La obra de Juan del
Encina: Una poética de la modernidad de lo rústico pastoril” (1987). Para o crítico espanhol, as
explicações que precedem às peças dramática de Juan del Encina podem ser um testemunho de
dignificação do estilo rústico pela vida.

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196
No final da pequena peça de 180 versos, o pastor Juan termina laudando seus
amos/mecenas: «Nunca tal amo se vio / ni tal ama tan querida, / nunca tal ni tal nació, /
Dios, que tales los crió, / les dé mil años de vida» (vv. 176-180). Diante de tantos
elogios e justificativas, a estratégia enciniana é conseguir que os Duques não hesitem
em serem benevolentes e acabem por valorizar sua obra. Assim, a serviço da corte
castelhana, Encina faz entrar no palácio seus pastores e sua vida quotidiana. Os jogos,
as distrações, as relações familiares, bem como as amorosas, as preocupações do
cotidiano, o modo de falar expresso no dialeto rústico saiaguês, as atividades com seus
animais, são algumas das estratégicas dramáticas e temas explorados na composição do
estilo rústico que agora se encena no espaço cortesão ibérico.

3.
Duas décadas depois, em território português, a chegada de um vaqueiro na
câmara da rainha parece repetir esse jogo de ilusão entre a vida e a convenção teatral.
Estamos a falar, como informa a didascália da peça, da primeira “cousa que o autor [Gil
Vicente] fez e que em Portugal se representou”, o Auto da Visitação, de 1502. A ocasião
é o nascimento do príncipe D. João III, grande motivo de festa na corte real portuguesa,
pois agora estava assegurada a sucessão varonil da dinastia real. Na explicação que
precede à peça consta que estavam no castelo, a assistir a representação, o pai e a mãe
do recém-nascido, Manuel e Maria, e, ainda, a avó e as tias do nascituro, Beatriz, Lianor
e Isabel. O texto afirma que “estando esta companhia assi junta, entrou um vaqueiro”.
Novamente a expressão «entrou um vaqueiro» produz uma ilusão cômica de que um
suposto vaqueiro, com língua e costumes próprios do campo, «entrou» nos paços do
Castelo São Jorge de Lisboa com intuito de homenagear o nascimento do futuro rei de
Portugal.
No texto vicentino, essa «entrada» ainda enfrenta metafórica e simbolicamente
entraves, barreiras. O homem disfarçado de pastor trava uma luta para abrir caminho
entre os guardas reais, diz ter sido enviado da vila e deseja saber se é verdade a notícia
do nascimento. No contexto dramático, a entrada é surpresa e violência: «Pardiez / siete
arrepelones / me pegaron a la entrada / mas yo di una puñada / a uno de lós rascones»
(vv. 1-5). Desse modo, o jogo cênico da peça expressa simbolicamente o processo de
incorporação do estilo rústico à corte portuguesa. Ainda mais quando compartilhamos

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197
da ideia defendida por vários estudiosos de que o vaqueiro disfarçado talvez seja o
próprio Vicente (MATEUS, 1990). Isto se torna ainda mais evidente quando o
dramaturgo português assume uma posição clara, atribuindo ao rústico um lugar central
na sua obra (BERNARDES, 2006).

4.
Estas circunstâncias de produção e recepção favorecem e nos fazem pensar de
que maneira se deu o processo de reconhecimento do «estilo rústico» enquanto recurso
estético, indo ao encontro da poética culta cortesã. Resulta claro através de uma análise
comparada que Juan del Encina é considerado o iniciador, na cena ibérica, na
valorização da cultura rústica. O crítico espanhol, José María Díez Borque, afirma que
“lo que Enzina se propuso [...] fue otorgar carta de naturaleza literaria, contando con el
gusto cortesano, a un mundo cultural considerado inferior; para «gente baja e de servil
condición» [...]” (DÍEZ BORQUE, 1987:147). Compreende-se então que a pretensão do
dramaturgo espanhol é suprimir os limites estabelecidos entre a poesia culta e a poesia
pastoril. O crítico espanhol acrescenta que

la gran hazaña teórica del padre de nuestro teatro es intentar encontrar en lo


pastoril-rústico un prestigio suficiente, una estetica válida, para enfrentarla a
la periclitada poética antigua, adelantándose a Lope en la pretensión de
convertir el gusto en justo, al dar validez teórica a esa rustificación cortesana,
a esa invasión por lo pastoril de los salones palaciegos (DÍEZ BORQUE,
1987: 126).

O projeto literário expresso no Cancioneiro enciniano (Salamanca, 1496) revela


que o anseio do autor salmantino é renovar a tradição cancioneiril com a matéria poética
que envolve o universo rústico-pastoril. Para o crítico Álvaro Taúler, trata-se de uma
reivindicação humanística, própria de alguém que teve formação escolar e universitária
pela Universidade de Salamanca, que não ao caso traduz as Bucólicas virgilianas e que
demonstra através dos seus textos uma consciência clara de sua própria inovação
(TÁULER, 2014). Parece-nos que toda sua obra exprime uma constante reivindicação
pela valorização do estilo pastoril e, consequentemente, o prestígio da mesma. Um
exemplo disto é o prólogo que acompanha a tradução das Bucólicas de Virgílio:

Mas por no engendrar fastidio a los letores desta mi obra, acorde de la trobar
en diversos géneros de metro y en estilo rústico, por consonar con el Poeta,

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198
que introduze personas pastoriles, aunque debaxo de aquella corteza y rústica
simplicidad puso sentencias muy altas y alegóricos sentidos, y en esta obra se
mostró no menos gracioso que doto en la Geórgica y grave en la Eneyda
(ENCINA apud TÁULER, 2014: 17).

Deve-se observar que Encina reforça a estratificação social de dois


estilos literários: o alto – poesia cortesanesca; e, o baixo – poesia pastoril. Neste âmbito,
como justificação de sua obra pastoril, cita uma auctoritas clássica, «El Poeta», e
assinala que o exercício literário em estilo rústico de um poeta como Virgílio outorga
argumento válido para legitimação de sua arte. Dentro desse desígnio, Encina
acrescenta no Prólogo, dedicado ao príncipe D. Juan: “[…] pues tan ecelentes cosas ser
siguieron del campo, y tan grandes hombres amaron la agricultura y vida rústica y
escrivieron della, no deve ser despreciada mi obra por ser escrita en estilo pastoril”
(ENCINA apud DIEZ-BORQUE, 1987:129). Ora, a intenção do dramaturgo mais uma
vez é pontuar que a matéria pastoril é tão valiosa como a não pastoril. Neste ponto,
Encina recorre a uma lista de pastores ilustres, desde figuras bíblicas (Abel, Noé,
Abraão, Isaque, Moisés, Davi) até pastores da literatura clássica (Fabios, Pisones,
Cicerones, Léntulos etc.) para reforçar a importância do estilo rústico no decorrer da
história.
A crítica especializada afirma que a personagem mais recorrente de sua arte
dramática é justamente a figura do pastor (PÉREZ PRIEGO, 1991; DÍEZ-BORQUE,
1987). De fato, a importância se dá não só pela vasta galeria destas figuras, mas,
principalmente, pelo tratamento dramático que elas recebem. A posição de personagem
lírica vinculada aos modos litúrgico, contemplativo ou celebrativo assume um lugar
mais dinâmico. O pastor desfruta, ao longo da obra de Encina, de um processo de
autonomização, torna-se um rústico socialmente configurado, numa diversidade de
contextos dramáticos. Tal aspecto inspira as dramaturgias de Lucas Fernández e Gil
Vicente. Na obra dos três autores, a figura do pastor deixa de ser uma personagem plana
e adquire voz própria no conjunto da ação (BERNARDES, 2006).
Em face deste tratamento literário dado ao pastor que se constata que Juan del
Encina busca engrandecer o estilo rústico-pastoril expresso através da vida e da
realidade. É nesse sentido que o processo de dignificação da rusticidade na qualidade de
«indelicadeza», «incivilidade» e «grosseria» expressa em sua tensão linguística e em um
pretendido realismo pode ser compreendida, segundo José María Díez Borque (1987),

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como um «salto mortal», uma vez que confronta com a privilegiada estimativa literária
da poesia cortesanesca. Desse modo, Encina eleva uma linha da poética pastoril rústica,
em perspectiva distinta da cultivada pelas convenções clássicas da tradição bucólica,
que enuncia um ideal de vida campestre através das lindas paisagens do campo, do
espaço dos pastores e da ingenuidade do campo. Segundo o crítico espanhol,

...hay que pensar en una vía de lo pastoril, no automaticamente dignificable


en su rustificación de dureza de fondo y forma (sayagués, tensiones violentas,
etc.) que encontrará en el teatro un medio propio (piénsese en el valor
determinante de la comunicación oral o de la finalidad docente, o en si
misma, de la burla). Comprendemos así que la justificación primera se haga
por la vida (DIEZ BORQUE, 1987:128).

A via defendida pelo dramaturgo castelhano supõe uma perspectiva que


contrasta vivazmente com a vida palaciana. Comumente, associa-se ao homem nobre
aspectos que estão relacionadas à delicadeza, mesura, amabilidade. Porquanto, em
maior ou menor adesão, a personagem palaciana é sempre tratada nas peças dos autores
aqui estudados como «señor bueno», «hombre del palacio», «linda sangre»,
«gentilhombre», «polido», «sabido», «cortés», «muy limpio», «requebrado», «bien
hablado», em consonância com o ideal de comportamento aristocrático, que implica
civilidade, polidez, elegância, refinamento de costumes, e, além desses atributos sociais,
o sentido da honra cavaleiresca. Ao homem cortês é associada à ideia de civilizado,
letrado; ao rústico, a ideia de ignorância e rusticidade.
Em suma, Juan del Encina cultiva uma perspectiva humanista da poesia pastoril
que se distancia da tradição pastoril castelhana expressa nas obra de autores como
Gomes Manrique, Mingo Revulgo e Fray Iñigo. A Idade Média alimenta uma poesia de
base metafórica e simbólica, mesmo quando apresenta pastores disfarçados e muito
próximos daqueles de tom realista. A obra enciniana, como acrescenta Álvaro Táuler,
“no debe ser vista despectivamente como rasgo «medievalizante» o folklórico, sino
típicamente humanista y renovador.” (TÁULER, 2014:20). Nesse sentido, Encina
amplia as possibilidades cênicas da tradição pastoril e religiosa e demonstra,
principalmente através da sua obra dramática pastoril, uma opção artística consciente e
inovadora no que diz respeito à configuração das personagens rústicas.

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200
5.
É dentro desse desígnio de valorização da cultura campesina que as obras dos
três dramaturgos ibéricos partilham muitas similitudes. Numa corrente relativamente
homogênea, Juan del Encina, Lucas Fernández e Gil Vicente têm o universo rústico
como espinha dorsal em suas obras. Pode-se afirmar que participam de uma mesma
escola dramatúrgica, que tem como eixo central o topos do rústico na corte.
É bem verdade que os pastores de cada obra apresentam nuanças próprias. Por
exemplo, o universo literário pastoril de Lucas Fernández já não apresenta tantos
matizes como a obra do seu rival Juan del Encina. Fernández escreve apenas seis textos
considerados de fato dramáticos. Talvez o conjunto limitado de textos pode ter
favorecido uma posição mais contida quanto aos processos técnico-compositivos das
suas personagens rústicas. Por outro lado, Fernández desenvolve à exaustão um dialeto
próprio dos pastores, o saiaguês, primeiramente estilizado por Encina. A utilização do
saiaguês como traço estilístico definidor das personagens rústicas será também
estratégia a que Gil Vicente em seus primeiros autos pastoris. Nesse âmbito, Fernández
contribui significativamente para o aprimoramento da invenção enciniana: uma língua
literária convencional com certo ar de realismo popular para suas personagens pastoris.
Na corte portuguesa, Gil Vicente avança e apresenta na sua obra contornos mais
diversificados. O crítico Paul Teyssier afirma que é com a obra vicentina “que o estilo
rústico aparece pela primeira vez na literatura portuguesa, e tudo nos leva a crer que Gil
Vicente seja o seu fundador” (TEYSSIER, 2005: 89). O dramaturgo inclusive
“nacionaliza” a linguagem rústica do saiaguês. Adota como modelo a linguagem do
povo do seu tempo, especialmente da Beira, formando assim o que seria a linguagem
rústica portuguesa, para poder empregá-la em suas personagens rústicas. É inegável que
a língua rústica, seja nas obras de Encina e Fernández, seja na obra de Vicente, é uma
das partes indispensáveis na compreensão do universo rústico ibérico.
No cômputo das obras do três dramaturgos, vale ressaltar, mesmo que de forma
sucinta, que as vertentes temáticas em muito se aproximam. Vários temas circundam as
artes dramáticas de Encina, Fernández e Vicente e dois se destacam aqui: o Natal e a
oposição entre o cortesão e o rústico no desenvolvimento da tópica do amor.
Na esfera religiosa, a cena do nascimento de Cristo talvez seja um dos temas
mais repetidos no teatro litúrgico na Idade Média e certamente nos «autos» dos séculos

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


201
XV e XVI. Noel Salomón acredita que a tradição natalina foi a que “se realizó con
mayor acierto la fusión de la ignorancia y del candor rústico con la devoción y la fe”
(SALOMON, 1985:350). Com efeito, o pano de fundo natalino favoreceu o
desenvolvimento dramático das personagens rústicas.
Muitos elementos do programa litúrgico natalino serão adaptados às diversas
cenas dramáticas, inclusive sem o fundo típico religioso. Os aspectos destacados no
texto bíblico – personagens pastoris, elementos da natureza, a cena da anunciação, o
nascimento e a visita dos pastores ao presépio – favorecem o desenvolvimento de uma
estratégia dramática recorrente em peças que não têm nada a ver com o Natal
propriamente dito. A primeira peça de Gil Vicente, como já foi dito, é um auto que
comemora o nascimento não de Cristo, mas do príncipe D. João, futuro rei D. João III.
Na gramática da construção da peça, veem-se os elementos do esquema tradicional da
cena natalina: a personagem rústica, o nascimento, a visitação, o oferecimento de
presentes.
É dentro desse esquema representacional que Juan del Encina escreve duas peças
para os festejos natalinos da corte de Alba: Égloga representada en la misma noche de
Navidad e Écloga de las grandes lluvias. Lucas Fernández também representa duas
peças natalinas: Écloga o Farsa del Nacimiento de Nuestro Señor Jesucristo e O Auto o
Farsa del Nacimiento de Nuestro Señor Jesucristo.
Com um número mais expressivo, entre 1502 e 1536, o dramaturgo português
contribui com sua arte para a celebração do nascimento de Cristo por nove vezes:
Pastoril Castelhano (1502), Fé (1509? 1510?), Tempos (1511?), Sibila Cassandra
(1513?), Purgatório (1518), Pastoril Português (1523), Feira (1527? 1528?), Mofina
Mendes (1534), e, talvez ainda Festa (datável dos anos 20). Conta-se ainda entre os
autos executados para época natalícia mais dois autos, Reis Magos, na epifania de 1503,
e, talvez, Clérigo da Beira, possivelmente no Natal de 1526.
Quase todas as obras de nossos dramaturgos acima referidas incluem no
contexto religioso aspectos da vida pastoril, exceto algumas poucas peças vicentinas.
Normalmente, esses pastores, num primeiro momento, estão envolvidos com outros
assuntos e o diálogo entre eles não diz respeito diretamente ao Natal. Só em um
segundo momento da estrutura do auto desenvolve-se a cena propriamente dita do
nascimento. No desenrolar da ação, percebem-se dois tempos, o dos pastores do final do

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


202
século XV e o do nascimento de Cristo, imbricados, formando um só tempo. Contudo,
não significa dizer que a cena natalícia não seja recriada cenicamente e até ofereça
elementos da atualidade do público assistente.
Outra inovação de larga repercussão nas obras dos três autores é o tema da
oposição entre o cortesão e o rústico4 quando envolve assuntos amorosos. Nöel
Salomón evidencia que “la disputa entre villano y del hidalgo en la comedia es situación
bastante repetida y en una perspectiva de mera morfologia literária en la línea de una
tradición elaborada en el siglo XVI” (SALOMÓN, 1985: 706-707). Assim, dentro dessa
morfologia literária, a tópica do amor é quase sempre a força motriz da ação e pretexto
para o desenvolvimento dramático do conflito entre as personagens do pastor e do
cavaleiro. É sabido que o amor codificado por regras de alta formalidade só é possível
dentro do universo cortês. No entanto, não é o que atestam as dramaturgias de Encina,
Vicente e Fernández. Embora deixe transparecer o teor hierarquizado do amor,
evidenciando-o enquanto elemento distintivo da figura do cavaleiro, os pastores também
são tomados pelo amor.
Dessa maneira, Encina enquanto precursor deste processo de reconhecimento,
constrói primeiramente a base conceitual do amor rústico. Na verdade, o poeta
salmantino desenvolve um dos códigos mais recorrentes da cultura cortesã que é o
«amor cortês» para o universo pastoril e inova mais uma vez ao expressá-lo em estilo
rústico. São muitas cenas dramáticas que apresentam pastores apaixonados e
embevecidos pelo amor. Na Écloga X de Juan del Encina, Representación sobre el
poder del Amor, a personagem Amor fere ao pastor Pelayo quando chega um escudeiro
pasmo porque não pode crer que os efeitos do amor possam sentir também os pastores:

¿Y amores acá [campo] sentís? (v. 310).

Com efeito, o amor entre os plebeus não é visto da mesma maneira que o do
amor cortês. Não serão poucos os exemplos que atestarão a diferença entre eles.
Reiteradamente na obra dos nossos autores fica evidente que o domínio da arte de amar
se restringe aos nobres. Na Farsa ou cuasi comedia de Donzella, Pastor y el Cavallero,

4 Sobre este tema analisa o crítico espanhol José Maria Diez Borque (1970) em “Aspectos de la oposición
‘caballero-pastor’ em el primer teatro castellano (Lucas Fernández, Juan del Encina, Gil Vicente)”.

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203
de Lucas Fernández, a dama nobre quando cortejada pelo pastor também estranha que
entre os rústicos também se sinta o amor:

Y ¿hasta acá el Amor extiende


su poder entre pastores? (vv. 208-209).

Esta visão não escapa ao dramaturgo português Gil Vicente. O caso de amor
excêntrico, na Tragicomédia de D. Duardos, entre Camilote e Maimonda, sua amada,
possuidora de uma feiura exótica, leva o Imperador a analisar o caso de amor extremo.
A fala do Imperador expressa o grau de convencimento de que o amor é elemento
distintivo do nobre:
Son los milagros de amores
maravillas del Copido.
Oh, gran Dios!
Que a los rústicos pastores
das tu amor encendido
como a nos! (vv. 271-276).

Fica ainda mais evidente pela personalização do próprio Amor na Écloga X,


Representación sobre el poder del Amor, de Encina, a ideia hierarquizada deste
sentimento:

tengo todos los estados


hasta los brutos pastores (vv. 99-100).

A preposição «hasta» indica limite espacial e o adjetivo «bruto» já indica a


existência da forma distintiva entre a corte e o campo. Em certa medida, o mesmo
sentimento atinge, a nível literário, rústicos e cavaleiros. No entanto, os estamentos
sociais estão bem definidos. O amor é de ascendência cortês, mas pode ocorrer «hasta»
em ambiente campestre com tudo que isso implica em níveis sociais e estéticos.
Creio que das observações já apresentadas podemos inferir que a relação entre
corte e campo implica dois aspectos centrais: a perspectiva de uma relação baseada na
oposição como estratégia dramática; e, a topística do amor cortês enquanto força-motriz
da ação. Da tradição religiosa, as cenas natalícias são as mais profícuas nas obras de
nossos autores.
Em guisa de conclusão, interessa-nos ainda pontuar que Juan del Encina é
referência fundamental no que diz respeito ao processo de dignificação do estilo rústico

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204
na cena ibérica. Encina rompe os limites sociais da cortesia; inspira a arte dramática de
Fernández e Vicente; e, faz conviver no mesmo espaço dramático estilos considerados
distintos, multiplicando, assim, as possibilidades literárias.
Nessa medida, consciente da variedade de processos e intenções estéticas que
abarca o topos do rústico na corte, não só Encina, mas também Lucas Fernández e Gil
Vicente fazem florescer em seus textos dramáticos a técnica do rústico-cômico para
divertimento do paço. Ambos conheciam o público, polido e refinado em seus
costumes, que compunham as cortes ibéricas, como preconizava o ideal de «cortesia».
Sabiam a que ele estava habituado e de que mais gostava. E, com certeza, os quadros
cômicos da disputa entre rusticitas e civilitas agradavam a plateia palaciana.

REFERÊNCIAS:
AUERBACH, Erich. Adão e Eva. In: _________________ Mímesis: a representação da
realidade na literatura ocidental. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1976.
BERNARDES, José Augusto Cardoso. Sátira e Lirismo no Teatro de Gil Vicente.
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2006.
CURTIUS, Ernst Robert. Literatura Europeia e Idade Média Latina. Brasília:
Instituto Nacional do Livro, 1979.
DÍEZ-BORQUE, José María. Aspectos de la Oposición Caballero/Pastor en el
Primer Teatro Castellano (Lucas Fernández, Juan del Encina, Gil Vicente).
Bordeaux :Institut d’ Études Ibériques et Ibero-Américaines de l’Université de
Bordeaux, 1970.
DÍEZ-BORQUE, José María. La obra de Juan del Encina: una poética de la modernidad
de lo rústico pastoril. In.: DÍEZ-BORQUE, José María. Los géneros dramáticos en el
siglo XVI: el teatro hasta Lope de Vega. Madrid: Taurus Ediciones, 1987.
ENCINA, Juan del. Teatro completo. Edición de Miguel Angel Pérez Priego. Madrid:
Cátedra, 1991.
FERNÁNDEZ. Lucas. Teatro Selecto Clásico. Edición, prólogo y notas de Alfredo
Hermenegildo. Madrid: Escelicer, 1972.
MATEUS, Osório. Visitação. Lisboa: Quimera, 1990.
PÉREZ PRIEGO, M. A. Introducción. In: ENCINA, Juan del. Teatro completo.
Edición de Miguel Angel Pérez Priego. Madrid: Cátedra, 1991. p. 11-94.
SALOMÓN, Nöel. Lo villano en el teatro del Siglo de Oro. Madrid: Castália, 1985.
TAÚLER, Álvaro Bustos. Sonriéndome estoy»: Juan del Encina y sus pastores ante la
tradición cómica y dramática. In.: DÍEZ-BORQUE, José María. Hacia el gracioso:
comicidad en el teatro español del siglo XVI. Madrid: Visor Libros, 2014.

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205
TEYSSIER, Paul. A Língua de Gil Vicente. Lisboa: Impressa Nacional-Casa da
Moeda, 2005.
__________. Gil Vicente – O Autor e a obra. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua
Portuguesa, 1985.
VICENTE, Gil. As obras de Gil Vicente. Direção científica de José Camões. Lisboa:
Centro de Estudos de Teatro/Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002. Vol. 5.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


206
DESENHANDO O RECATO DO OLHAR: FERDINAND
GREGOROVIUS, LUCRÉCIA BÓRGIA E AS TENSÕES
ESTÉTICAS DA ESCRITA HISTORIOGRÁFICA
Jéssika Hingridi Rodriguês Vieira1
Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT
Mestranda - Capes.

RESUMO: No século XIX a literatura povoou o passado com traços de um


reconhecimento social burguês. Os passados medieval e renascentista não foram
exceções ao alcance da cultura escrita oitocentista: diversos personagens tiveram sua
existência histórica observada como se pudéssemos descobri-los por trás da cortina,
como um expectador privilegiado. Um dos personagens transfigurados pela
sensibilidade burguesa foi Lucrécia Bórgia, filha do papa Alexandre VI (1431-1503).
Em Lucrecia Bórgia (1874) o autor, historiador alemão Ferdinand Gregorovius operou a
junção de elementos literários e historiográficos, unidos pelos valores estéticos
oitocentistas. Buscamos compreender como se deu esta captura do passado pelo gênero
romance através da escrita de um historiador.

Palavras chaves: Romance, Lucrécia, Gregorovius, Burguesia.

ABSTRACT: In the nineteenth century literature was populated by the past with traces
of a bourgeois social recognition. The medieval and Renaissance past were no
exceptions to the scope of the nineteenth century written culture: many characters have
had their historical existence observed as if we could find them behind the curtain, as a
privileged spectator. One of the characters transfigured by bourgeois sensibility was
Lucrezia Borgia, Pope Alexander VI's daughter (1431-1503). Lucrecia Borgia (1874)
was written by the German historian Ferdinand Gregorovius; in the book he operated
the junction of literary elements and historiographical, united by nineteenth-century
aesthetic values. We seek to understand how this capture works in the romance genre
written by a historian.

Keywords: Romance, Lucrezia, Gregorovius, Bourgeoisie.

Geralmente quando lemos um romance – clássico ou contemporâneo – não nos


atentamos em fazê-lo com a preocupação de analisá-lo criticamente buscando uma
definição categórica para suas linhas. Em regra nosso principal objetivo ao lermos um
romance é o de nos entretermos culturalmente. Adentrarmos no mundo da imaginação a
partir das linhas do autor que aparentemente parece-nos teletransportar a outras épocas e
a outros personagens. O escritor retrata os princípios morais e éticos vigentes em nossa
sociedade em sua narrativa, e desse modo causa aos seus leitores uma sensação de

1 E-mail: jhingridi@gmail.com

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


207
pertencimento. Essa sensação de pertencimento nos prende do inicio ao fim da leitura e
promove o sucesso do romancista.
George Lukács se preocupou em caracterizar o gênero Romance, definindo sua
forma, seu estilo, suas limitações e nuances. Segundo ele podemos ler um romance e
intuir dele pelo menos três características que nos saltam aos olhos, características que
por sua vez não estão prontas e não são entregues tão facilmente a partir de uma leitura
descompromissada. São elementos peculiares, porém se não o lermos atentamente não o
perceberemos. Estamos tratando de três características: o referencial de perda da
totalidade; o individuo nostálgico; e o individuo degradado.
Nessas linhas destacaremos apenas uma dessas três características, a saber: o
referencial de perda da totalidade. Lukács destaca que podemos alcançá-lo em
qualquer romance. Mas o que seria a totalidade? A totalidade é entendida como um
elemento de unidade absoluta entre o homem e o mundo, a relação harmônica entre o
homem e seu exterior, compreendendo toda a realidade social, em seu âmbito religioso,
político, vida concreta e cotidiana. Como principal exemplo de unidade do homem com
o seu meio, Lukács realça o homem da epopeia clássica e defende que aquele homem se
sentia em total sintonia com o mundo exterior e o sentia como parte de si. Nesse sentido
a vida do homem clássico repousava de forma integrada à totalidade.
Mas na modernidade acontece um divórcio dramático. E Lukács vai dizer que o
homem moderno não se sente mais pertencente à totalidade, “a unidade foi rompida e
não há mais uma totalidade espontânea do ser” (LUKÁCS, 2009: 35). O homem
moderno não possui a perfeita harmonia, “torna-se um ser solitário que não vive mais na
soma de um mundo perfeito e homogêneo” (GALLO, 2002: 42). O individuo precisa
agora reproduzir com suas próprias forças e condições tudo o que até então sempre fora
dado de forma espontânea. E é justamente esse desprendimento da unidade totalitária
que originará um ambiente propício à criação do gênero romance. Nesse sentido o
romance pode ser caracterizado como uma complexa epopeia burguesa.
Dessa forma, quando a totalidade não é mais fornecida de forma espontânea –
como acontecia anteriormente – o escritor burguês precisava criá-la a partir de sua
própria rede de experiências éticas e morais, transferindo aos seus personagens suas
respostas e reações diante das questões que circulam sua própria realidade. Sua missão é
criar a totalidade ficcional, pois, na modernidade o romance não é capaz de se apropriar

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


208
da realidade objetiva de forma pronta e acabada. O futuro não está mais garantido e
cotidianamente “experimentamos o sentimento de [termos] sido deixados a sós na terra”
(ZUMTHOR, 2009:19). Fomos “deixados para trás” e esse sentimento de abandono não
cansa de nos perseguir.
Seguindo esse referencial de busca de totalidade podemos destacar Adolf
Ferdinand Gregorovius - conhecido como grande erudito medieval do seu tempo – que,
enquanto autor, apreendeu em suas narrativas um ideal dessa constante busca e perda de
unidade com o todo. Gregorovius viveu no século XIX, mas passou a maior parte de sua
vida produzindo sobre outras épocas. Muito conhecido no meio acadêmico,
Gregorovius produziu importantes obras principalmente sobre o mundo medieval.
Como escritor do seu tempo, não deixou de se envolver com a cultura literária,
escrevendo romances, compilando musicas, poemas e obras com peso historiográfico.
Sua Lucrécia é escrita em 1874 e mostra uma personagem em constante desajuste com o
seu meio social.
Segundo Gregorovius, Lucrécia vive em um ambiente movido por brigas entre
clãs, assassinatos por disputas de poder, insurreições na procura por espaços. No trecho
a seguir, o autor deixa bastante claro que essas disputas sanguinárias varriam toda a
Cidade Eterna: “As famílias mais amargas brigam na cidade, nos bairros da Ponte,
Parione e Regola, onde parentes incitados por assassinatos diários encontram-se em
combates letais”. Alianças e desacordos faziam parte da ordem do dia, Gregorovius
exemplifica essas sublevações dando ênfase aos nomes das famílias envolvidas: “no
verão de 1480, houve uma nova insurreição de velhas facções do Guelph e Ghibbeline
de Roma; antes os Savelli e os Colonna estavam contra o papa, mas aqui os Orsini
fazem esse papel” (GREGOROVIUS, 1903: 14). Adiante salienta a participação das
famílias “Damilias Valle, Margana e Santa Croce [que] inflamadas pelo desejo de
vingança pelo sangue que havia sido derramado, aliaram-se com uma ou outra facção”
(GREGOROVIUS, 1903: 14). Alianças eram necessárias num mundo onde a rivalidade
suja ganhava seus herdeiros.
O referencial de totalidade que Gregorovius dá a menina Bórgia é o Papado.
Aquela Itália do século XVI mostrava uma face completamente material mesmo num
ambiente que deveria transmitir a pura santidade. O papado é o sinônimo do todo.
Gregorovius resume todas as esferas da vida de Lucrécia Bórgia a apenas um único

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


209
campo: a corte papal. É apenas nesse pequeno espaço que o escritor coleciona
ferramentas para dar sentido ou não à vida da moça. A Corte do tempo dos Bórgia era –
segundo o escritor – um perfeito modelo de imoralidade. No papa, Gregorovius via
tanto o homem secular quando o homem espiritual que caminhavam de mãos dadas,
movidos pela ambição do poder.
A Lucrécia de Gregorovius personifica o referencial da perda da totalidade.
Seu referencial de totalidade é exemplificado pela Corte. Gregorovius insiste em dizer
que “Lucrécia, de fato, nasceu em um período terrível na história do mundo; o papado
estava se despindo da santidade, a religião estava completamente material, além de uma
imoralidade sem limites algum” (GREGOROVIUS, 1903: 14). Nesse trecho podemos
perceber que Gregorovius insiste em resumir toda a história do mundo à realidade
romana, especificamente ao papado. Para ele o referencial de imoralidade pode ser
claramente percebido na Corte papal sem a menor dificuldade. Sua ênfase à história do
mundo deixa claro que seu objetivo era o de reduzir toda a história global à história de
Roma, e mais do que isso, à história da corte papal - e nesse caso, à corte dos Bórgias.
Procura enfatizar - sem meias palavras – a imoralidade e a secularidade da corte papal,
que não se parecia nada com o ideal de santidade que um seguidor de cristo deveria
possuir.
Gregorovius afirma que “saber que era filha de um papa, certamente deve ter
afetado a fantasia de Lucrécia muito mais do que a concepção de sua imoralidade. "Ela
logo aprendeu como essas relações em Roma foram comuns” (GREGOROVIUS, 1903:
34). Mais uma vez Gregorovius insiste em transformar toda a história da humanidade,
toda uma época, à corte papal. Uma corte que não media qualquer escrúpulo para se
manter no poder. Gregorovius mesmo sendo historiador e vivendo em pleno século
XIX, quando o lucro era a finalidade de tudo e qualquer coisa, nos diz que é “é raro na
história da humanidade a circunstancia de que se aceita obter o lucro em qualquer
condição”. A moral é uma questão universal para Gregorovius. Mas a partir do que ou
de onde o escritor tira tais conclusões morais? Sua referência é o Papado, Lucrécia
Bórgia no papado romano renascentista. Gregorovius anula todos os outros pecadores
do mundo, e imprime unicamente à família Bórgia todas as piores idiossincrasias
profanas. Como se aquela fosse a única família daquele período que utilizasse
nepotismo, corrupção, assassinato, acordos matrimoniais e outras estratégias

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


210
maquiavélicas para se manter no poder. Como se no Oitocentos a burguesia não
utilizasse artifícios parecidos para ganhar notoriedade social.
Gregorovius afere pensamentos a Lucrécia. Disse que ela constantemente “ouvia
falar que a maioria dos cardeais viviam com suas amantes e eram providas de maneira
principesca por seus filhos. Disseram-lhe sobre os cardeais Giuliano Della Rovere e
Piccolomini; ela viu com seus próprios olhos os filhos e as filhas de Estouteville e ouviu
dos barões o que seu rico pai havia adquirido nas montanhas de Albán”. Ela viu os
filhos do antigo papa Inocêncio VIII receberem grandes honras. “Ela soube que o
vaticano foi à casa de outros filhos e netos do papa e ela frequentemente via a sua filha
Madona Teodorina e seu consorte genovês indo e vindo” pelas ruas de Roma”. Lucrécia
tinha apenas oito anos quando viu Donna Peretta se casar com toda a pompa no vaticano
com Alfonso. O casamento foi tão suntuoso e polêmico que toda a Roma comentou
sobre ele por muitos meses (GREGOROVIUS, 1903: 35).
Era essa Corte papal o referencial de totalidade de Lucrécia Bórgia. Naquela
época “instruções religiosas sempre foram a base da educação das mulheres na Itália.
Consistia, não na cultivação do coração e da alma, mas numa estrita observância das
formas da religião” (GREGOROVIUS, 1903: 24). Aqui podemos perceber que
Gregorovius denuncia uma característica salutar à caracterização do romance. Lucrécia
não pertencia naturalmente à totalidade. Não havia uma cultivação religiosa do coração
e da alma. Os princípios morais e éticos eram inculcados, aprendidos, decorados pela
menina a partir de um exercício puramente mecânico de formas da religião e nunca pelo
coração e alma.
Logo a seguir, Gregorovius diz que no século XVI “pecar não fazia nenhuma
mulher repulsiva, e mesmo a fêmea mais degradante não foi impedida de executar todos
seus deveres de igreja, e parecer uma cristã bem treinada” (GREGOROVIUS, 1903: 24).
Ou seja, não era necessário seguir todos os preceitos cristãos fielmente para
aparentemente ser uma cristã bem treinada. Note-se que Lucrécia deveria apenas
parecer uma boa cristã e não necessariamente ser, de corpo e alma. E isso, um treino
rígido já garantiria. Assim podemos aferir que Lucrécia não era um modelo natural do
seu meio. Seus atributos eram ensinados desde pequena com muito zelo e prática. Seu
comportamento era mecânico. Nada naquela menina parecia ser natural, genuíno,
espontâneo ou orgânico.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


211
Adiante Gregorovius afirma que “essas mulheres não foram céticas ou livres
pensadoras; isso teria sido impossível naqueles dias” (GREGOROVIUS, 1903: 25). O
historiador está dizendo que Lucrécia não era livre pensadora simplesmente porque a
sua época não lhe permitia isso. Não havia pensamento autônomo ou independente.
Lucrécia não parecia agir por conta própria. Seus passos eram guiados pelo seu pai e seu
irmão. Lucrécia não poderia desacreditar, questionar ou desobedecer. Seu capricho ante
as palavras do pai era esperado e de todo respeitado.
Sua mãe Vanozza conquistou sua reputação de piedade a partir da compra,
mesmo tendo vivido discretamente com o cardeal – e depois papa Alexandre: “Vanozza
comprou e ornamentou a capela em S. Maria de Popolo. Ela teve uma reputação de
piedade, mesmo durante a vida de Alexandre VI” (GREGOROVIUS, 1903: 24). Tanto sua
mãe, quanto Adriana tinham o dever maternal de “inculcar um comportamento cristão”
na menina, e esse adestramento social parece ter funcionado muito bem, pois,
“posteriormente, um embaixador Ferrarese elogiou o seu “comportamento santo”
(GREGOROVIUS, 1903: 24).
A Lucrécia de Gregorovius parecia não ter uma personalidade definida. Mas - ao
que parece - com essas condições qualquer personalidade seria desnecessária. Até
mesmo suas cartas foram analisadas por Gregorovius. Segundo ele, nenhum conteúdo
de suas cartas era de importância, e salienta ainda que suas cartas poderiam até mostrar
“alma e sentimento”, mas nenhuma delas demonstrava qualquer “profundidade
mental”. Gregorovius viu até na caligrafia irregular da moça as marcas de outras
pessoas, “Às vezes tinha as linhas fortes que nos faz lembrar a escrita enérgica do seu
pai. Outros agudos e delicados como os de Vittoria Colonna” (GREGOROVIUS, 1903:
32). Lucrécia demonstrava por todos os seus efeitos psicológicos e emocionais, que não
era um individuo pertencente de forma natural ao seu meio.
Vitima dos desejos incontroláveis de sua família, Lucrécia via sua “felicidade
sujeita à vontade de outro homem”, e a partir desse momento “ela não era mais o
delineador de seu próprio destino”. Desde os oito anos – seu pai já era um cardeal com
objetivos bem definidos no Vaticano – Lucrécia estava predestinada a fazer de sua
beleza e sangue trunfo da família. Gregorovius salienta que casamentos arranjados eram
costumes usuais em todas as casas grandes e menores do período. Mas segundo ele, se
Lucrécia tivesse se casado enquanto seu pai ainda era cardeal com o seu primeiro

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


212
pretendente – o espanhol Dom Cherubino - sua vida não teria “achado nenhum lugar na
história do papado e da Itália” (GREGOROVIUS, 1903: 43) e Lucrécia teria sido
desconhecida da maioria de nós. Entretanto, a jovem ainda não se casaria naquele
momento.
Assim, esta perda da totalidade pode ser exemplificada ainda pelo isolamento e
pela passividade de Lucrécia. “Prometida não a um, mas a dois jovens espanhóis”, ela
via a vida escorrer entre suas mãos. Enquanto o pai e o irmão discutiam as melhores e
mais influentes alianças, Lucrécia, apática, esperava por seu destino. Pouco importava
se a sua reputação estaria maculada ou não, os contratos matrimoniais iam sendo feitos
e desfeitos. Seus treinos diários de santidade – além, é claro da posição do seu pai - a
colocaram no páreo entre as donzelas mais concorridas da península italiana. Seu pai e
seu irmão, sujeitos ativos, pertenciam completamente ao seu meio, enquanto que a
menina permanecia indiferente ao seu destino. Dando claros sinais de que seu lugar não
era aquele.
Disputada entre dois pretendentes espanhóis, nenhum deles levaria sua mão ou o
seu dote. Lucrécia estava predestinada a um casamento maior e mais rentável. “Nada
menos que um príncipe deveria receber a mão dela”. Alexandre aceitou a proposta de
Giovanni Sforza, que mesmo sendo filho ilegítimo de Costanzo Ascanio, era um
homem “bem formado e cuidadosamente educado, como a maior parte dos déspotas
italianos” (GREGOROVIUS, 1903: 50). O plano de uma vida brilhante para a sua filha
começava a ser desenhado. Alexandre esperava estar fazendo o melhor negócio. Um
contrato que garantiria a felicidade a Lucrécia e a toda família Bórgia, “pois, mesmo ele
sendo um soberano independente, pertencia à ilustre casa de Sforza” (GREGOROVIUS,
1903: 50), influente e poderosa. E Sforza por sua vez “se apressa a aceitar a oferta da
mão da jovem Lucrécia antes que qualquer outro dos numerosos pretendentes pudesse
ganhar” (GREGOROVIUS, 1903: 50).
Lucrécia, ao não se encontrar em totalidade, se aproxima cada vez mais da
degradação pessoal. Foi testemunha diária das relações adúlteras de seu pai. Uma
verdadeira “escola de vícios” estava às suas mãos. Gregorovius faz a seguinte pergunta:
“pode uma jovem criatura de somente quatorze anos permanecer pura em tal atmosfera”
(GREGOROVIUS, 1903: 71). Todo o seu texto indicava que não. E continua: “Não deve
a imoralidade no meio pelo qual ela foi forçada a viver ter envenenado seus sentidos

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


213
entorpecidos, suas ideias de moralidade e virtude, e finalmente penetrou o seu próprio
personagem!” (GREGOROVIUS, 1903: 71). Lucrécia vive tão fortemente em contradição
com a totalidade que esta se volta contra ela e a envenena. Certamente se a moça tivesse
nascido em qualquer outra família, não sofreria os danos provocados pelos escandalosos
pecados a que foi exposta por toda vida.
Seus sentidos estavam entorpecidos. Sua moralidade e virtude foram
envenenadas. Sua personalidade foi formada, guiada, predestinada num mundo caído
pelas piores armadilhas da alma. Longe de conseguir fugir, Lucrécia – débil e frágil – se
envolveu de tal forma que a lama imoral corrompeu sua própria personalidade. Lucrécia
é a personificação perfeita de vitima de sua totalidade. Sua corte a matou. Não tinha
liberdade, nem pensamento critico, nem esperanças de guiar as rédeas de sua própria
vida. Seu destino fora traçado pelas mãos de outrem: daqueles que falavam pela
totalidade.
Como Lukács salienta, os habitantes do mundo moderno estão perdidos. Pairam
numa constante busca de uma relação mais complexa com o seu mundo. Foram
abandonados pelos deuses e vivem um divórcio dramático com a totalidade. Lucrécia
Bórgia representada por Gregorovius é um perfeito modelo desse conflito. O mundo de
Lucrécia (o papado Bórgia) destaca um rebuliço. Lucrécia não parece naturalmente
pertencer à sua totalidade. Seu comportamento, gestos e opiniões são cuidadosamente
moldados pelos seus próximos. Lucrécia deveria parecer uma Bórgia. Mas com uma
alma pura e ingênua, não conseguiria atingir esse objetivo.

BIBLIOGRAFIA
GALLO, Renata Altenfelder Garcia. “A teoria do romance” e “o romance como
epopeia burguesa”: um estudo comparado da concepção de romance em Georg
Lukács. São Paulo, 2002.
GREGOROVIUS, Ferdinand. Lucrecia Borgia. New York: Appleton, 1903.
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Ed. 34, 2009.
ZUMTHOR, Paul. Falando de Idade Média. São Paulo: Perspectiva, 2009.

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MUSEU DAS CAVALHADAS: ACERVO DE IMAGENS E
NARRATIVAS SOBRE UMA REPRESENTAÇÃO MEDIEVAL NO
CERRADO
João Guilherme da Trindade Curado
Universidade Estadual de Goiás – Câmpus Pirenópolis
Grupo de Pesquisa Saberes e Sabores Goianos
Ciranda da Arte
Doutor em Geografia IESA/UFG
Agência Financiadora: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (Fapeg)1

Célia Fátima de Pina


Museu das Cavalhadas
Graduada em Tecnologia em Gestão de Turismo UEG/Pirenópolis

RESUMO: Na cidade de Pirenópolis/GO, são encenadas, pelo menos, desde 1826, as


Cavalhadas, uma representação das históricas lutas entre Mouros e Cristãos que tiveram
por campo de batalhas a Europa Medieval. Em Goiás, a encenação das Cavalhadas
acontece em várias cidades, mas talvez tenha sido em Pirenópolis que o enredo tenha
melhor se adaptado ao Cerrado, uma vez que a trama se inicia com a descoberta e morte
do espião mouro em território cristão, sendo a espia representada por uma onça. As
Cavalhadas são bastante frequentadas pelos pirenopolinos, e os Cavaleiros Mouros e
Cristãos se tornaram ícones da cultura local, o que faz com que este espetáculo
reconduza a momentos históricos outros, trajetória esta que será o foco da investigação.
Com quase dois séculos, as Cavalhadas de Pirenópolis vêm passando por significativas
alterações nas últimas cinco décadas, desde a questão da recorrência, das vestimentas e
dos adereços até a espacialidade utilizada para encenação, mas que não tem
descaracterizado o enredo que remete ao “Ciclo de Carlos Magno”. São imagens e
narrativas que se propõem investigar, a partir de referenciais sobre as Cavalhadas em
Pirenópolis e, principalmente, pela análise do acervo documental e visual do Museu das
Cavalhadas, o primeiro a abordar esta temática no Brasil e que foi fundado na casa de
dois ex-cavaleiros.

Palavras-chave: Museu das Cavalhadas, Pirenópolis, Festa do Divino

ABSTRACT: In the city of Pirenópolis/GO, it is staged at least since 1826, the


Cavalhadas, a representation of the historical struggles between Moors and Christians
who had by battlefield the Medieval Europe. In Goiás, the staging of Cavalhadas
happens in several cities, but perhaps in Pirenópolis the plot has best adapted to the
Cerrado, once the play begins with the discovery and death of Moorish spy on Christian
territory, being a spy represented by an ounce. The Cavalhadas are quite accessible to
pirenopolinos, and the Moors and Christians Knights have become icons of local
culture, what makes this spectacle renew its other historical moments, making this path
the focus of the investigation. With almost two centuries, Cavalhadas of Pirenópolis
have undergone significant changes over the last five decades, from the question of

1 Projeto de pesquisa: Artes e saberes nas manifestações católicas populares – Chamada Pública
005/2012.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


215
recurrence, of the clothing and adornments to the spatiality used for staging, but that has
not mischaracterized the play which refers to the "Cycle of Charles Magne ". They are
images and narratives that propose to investigate, from references on Cavalhadas in
Pirenópolis and especially for the examination of documentary and visual collection of
the Museum of Cavalhadas, the first to address this issue in Brazil, which was founded
in the two-house former riders.

Keywords: Museum of Cavalhadas Pirenópolis, Divine Festival

Pirenópolis surge em 1727 na busca pelo ouro às margens do Rio das Almas
(JAYME, 1971). Conforme o referido autor a denominação de Minas de Nossa Senhora
do Rosário de Meia Ponte advém da prerrogativa de homenagear os santos católicos do
dia mais próximo à chegada.
De tal modo a toponímia local foi designada, mas outras ordens deveriam ser
obedecidas para a constituição de uma comunidade: a ereção de uma capela Matriz, cujo
orago deveria render homenagens à padroeira, sendo no mesmo Largo levantada
também uma Casa de Câmara e Cadeia. O Largo deveria ainda ter comunicação com o
manancial aurífero e ser o centro irradiador da povoação em formação.
Considerando estas premissas baseadas na aliança entre Estado (Coroa
Portuguesa) e a Igreja Católica, implantou-se a continuidade de uma política de poder
instituída pela noção de Império Cristão, que segundo Flori “Carlos Magno exalta e
revivifica” (2013: 35).
A partir da exaltação, das vivências e das experiências pirenopolinas com uma
de suas manifestações culturais mais conhecidas na atualidade, as Cavalhadas, é que
propomos investigação sobre esta representação medieval que ocorre no Cerrado: as
Cavalhadas em Pirenópolis, tendo como componente principal de estudo o Museu das
Cavalhadas, o único destinado a esta temática no Brasil — mesmo que as Cavalhadas
sejam representadas em mais de quinze das Unidades Federativas do país.
Pretende-se desenvolver uma breve narrativa sobre as Cavalhadas, basicamente
a partir do acervo de imagens e de objetos expostos no Museu das Cavalhadas que, além
disso, conta a história de vida de Maria Eunice Pereira e Pina, a fundadora do Museu e
mãe de dois ex-cavaleiros que participou cada um, por mais de vinte e cinco anos das
encenações das Cavalhadas em Pirenópolis.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


216
As Cavalhadas em Pirenópolis
A notícia primeira conhecida sobre as Cavalhadas em Pirenópolis advém das
pesquisas de Jayme (1971) ao publicar Esboço Histórico de Pirenópolis, obra pioneira
no que se refere à história pirenopolina, escrita a partir de intensa pesquisa documental.
O autor, ao aludir às Cavalhadas, data a ocorrência da primeira encenação em 14 de
maio de 1826, segundo o autor:

Padre Manuel Amâncio da Luz. Promoveu a primeira Cavalhada. Foi êsse


festeiro que mandou fazer, de prata, a belíssima coroa do Divino e ofereceu à
Matriz. Introduziu a distribuição de verônicas de alfenim e pãesinhos ao
povo. Foi uma festa que teve larga repercussão (JAYME, 1971:611).

Destacamos na narrativa proposta por Jayme a indicação de que a festa teve


“larga repercussão”, o que é evidenciado pelos novos elementos inseridos ao contexto
festivo, como a coroa que passou a ser uma insígnia utilizada pelo Imperador ou festeiro
do Divino, cargo escolhido por sorteio a cada ano. A coroa contribui para a ampliação
da pompa e relação com a nobreza, tanto da tradição europeia, como a recém-
implantada no Brasil.
No aspecto gastronômico, menciona a distribuição de verônicas, doce em forma
de medalhão feito a partir da base da massa de alfenim, muito utilizado pelos árabes e
posteriormente pelos portugueses a partir dos intensos contatos travados na Península
Ibérica medieval.
Quanto às Cavalhadas, vale ressaltar que outras localidades realizavam esta
encenação festiva durante as comemorações de Pentecostes, mesmo anterior a
Pirenópolis, então Meia Ponte. A título de exemplificação há o relato do viajante
francês Auguste de Saint-Hilaire quando em sua passagem por Goiás, mas
especificamente por Santa Luzia, atual Luziânia — localizada na Região do Entorno de
Brasília. Narrou o viajante sobre o ano de 1819:

Acabava de ser realizada em Santa Luzia a festa de Pentecoste. Todos os


fazendeiros das redondezas estavam reunidos no arraial, e no momento em
que cheguei à praça pública ia ser realizada uma cavalhada [...] Havia sido
traçado na praça, com pó branco, um grande quadrado, à volta do qual se
enfileiravam os espectadores, de pé ou sentados em bancos. Os cavaleiros
vestiam o uniforme da milícia. Traziam na cabeça um capacete de papelão e
seus cavalos estavam enfeitados de fitas. Eles limitavam-se a galopar pela
praça em várias direções (SAINT-HILAIRE, 1975:24).

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


217
Distinta indicação de Cavalhadas nos foi deixada em relatos do austríaco Johann
Emanuel Pohl, que em visita à Vila Boa de Goiás, atual Cidade de Goiás, antiga capital, durante
as comemorações da Semana Santa, também do ano de 1819, contribuiu para indicar que as
Cavalhadas se estendiam ao calendário festivo, não se limitando apenas a Pentecostes.

Fora da cidade, ao ar livre, representava-se uma comédia de Carlos Magno,


na qual os papéis femininos eram desempenhados por homens. O traje é
realmente luxuoso, em geral veludo, guarnecido de ouro puro. As joias, de
boa vontade cedidas por empréstimo, rebrilham à luz do dia. Com notável
fluência, porém com má acentuação, são proferidos os longos discursos, às
vezes de várias páginas. Toda a ação da peça é enfadonha e, mesmo com bem
executados combates, frequentemente repetidos, não se consegue tolerar até o
fim. É continuada nos dias seguintes (POHL, 1976:143).

A constatação de que na Cidade de Goiás as Cavalhadas eram encenadas em outros


momentos que não só durante a Festa do Divino, também foi ressaltada por Britto (2015), que
encontrou documentos com indicações de que ali as Cavalhadas também eram anteriores à
encenação de Pirenópolis.
Vale advertir ainda que em Pirenópolis, as Cavalhadas não possuíam uma constante
recorrência anual, conforme informações contidas no Esboço Histórico de Pirenópolis (JAYME,
1971: 610-617). A repetição das encenações a cada ano data de 1971. Na mesma década outro
fator precisa ser referenciado: o ano de 1976 que se apresenta como um divisor, por ter ali
iniciado o apoio estatal com a GoiásTur, Empresa Goiana de Turismo criada naquele período e
que passou a destinar verbas para a realização das Cavalhadas em Pirenópolis.
Interessante destacar que o primeiro trabalho destinado a estudo mais aprofundado
sobre as Cavalhadas de Pirenópolis acontece antes da intervenção estatal nesta manifestação
cultural pirenopolina. Portanto, para melhor compreender esta que talvez tenha sido uma das
alterações mais significativas nas encenações das Cavalhadas pirenopolinas, recomenda-se a
obra: “Cavalhadas de Pirenópolis: um estudo sobre representações de cristãos e mouros em
Goiás” (BRANDÃO, 1974), que descreve não apenas os aspectos históricos, mas
principalmente apresenta uma narrativa que contempla o ritual, inclusive com a descrição das
Cavalhadas, recorrendo a texto e esquemas que grafam e esboçam os movimentos dos
cavaleiros mouros e cristãos dentro do campo de encenação.
Os espaços para a manifestação das Cavalhadas também foi alterado em
Pirenópolis, inicialmente a ocorrência se dava no Largo da Matriz até 1958, no espaço
atualmente ocupado pela Casa e Salão Paroquial, Correios e também pela Praça Central. A
partir de então a manifestação popular foi transferida para um campo de futebol que passou a ser

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


218
conhecido como Campo das Cavalhadas, quando inclusive alterou a denominação da Avenida
Benjamin Constant, que popularmente passou a ser designada por Rua do Campo.
Outra mudança espacial ocorreu por ocasião das Cavalhadas em 2005, que foram
encenadas no espaço Beira Rio, às margens do Rio das Almas, uma vez que o Campo das
Cavalhadas estava passando por alterações devido ao projeto que o pretendia transformar no
“Estádio de Múltiplo Uso Arena das Cavalhadas”, popularmente conhecido como
Cavalhódromo, uma obra inacabada e que impôs alterações significativas à encenação das
batalhas entre mouros e cristãos, devido ao afastamento projetado entre os cavaleiros e o
público em geral. No ano seguinte a encenação voltou para o local, mesmo em obras.
No transcorrer do tempo, as alterações engendradas por imposição ou por vontade da
própria comunidade foram muitas e mantiveram a encenação das Cavalhadas. Dois estudos em
especial apresentam as mudanças mais recentes e vislumbram a Festa do Divino, em sua
totalidade, como uma festividade ligada ao rural, o que é acentuado pela presença de cavaleiros.
Maia (2002) analisa a comunidade pirenopolina por meio da tradição, que promove
ainda redes de organização da festa. Enquanto Spinelli (2009) visa explicitar as Cavalhadas por
meio de uma etnografia equestre, descrevendo o cotidiano festivo dos cavaleiros para além do
campo em que são personagens de uma das mais importantes manifestações culturais locais.
Na mesma direção estão as contribuições de Silva (2001), que apontam para as
mudanças impetradas na Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis, como um todo, desde a
romanização até o processo de patrimonialização institucional.
Dois outros momentos foram, em termos de pesquisas, importantes para as Cavalhadas
de Pirenópolis. A aplicação do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) em 2008 e
o Registro da Festa do Divino Espírito Santo como Patrimônio Cultural do Brasil em 2010. A
certidão foi entregue em solenidade durante a abertura das Cavalhadas daquele ano, no
Domingo do Divino.
A abertura das Cavalhadas é o desdobramento ápice da encenação, que para ser
realizada necessita de vários ensaios que acontecem dias antes, pela manhã e pela tarde.
Enquanto os doze cavaleiros mouros e os doze cavaleiros cristãos estão ensaiando, as
mães, esposas deles ou mesmo costureiras locais contratadas estão preparando ou
restaurando as roupas e ornamentos que eles utilizarão durante as apresentações.
As vestimentas, os adereços pessoais e os adereços destinados aos cavalos estão
cada vez mais elaborados e enfeitados, distinguindo-se extremamente dos ornamentos
que eram empregados até a década de 1970. Exigindo assim, mais criatividade das
costureiras e das bordadeiras, além de caracterizar a necessidade de um maior

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


219
orçamento para a confecção das roupas e demais enfeites, uma vez que os cavaleiros
“montam cavalos ricamente enfeitados”, conforme já indicam Pereira e Jardim
(1978:82).
São três as tardes consecutivas, a partir do Domingo de Pentecostes, em que
ocorrem as Cavalhadas de Pirenópolis, sendo que em cada um deles a narrativa é
distinta. No domingo o enredo tem início quando o último cavaleiro cristão,
denominado cerra-fila, ao fazer reconhecimento do território se depara com uma onça
embaixo da única árvore presente no campo. Na verdade a onça é um espião mouro em
terras cristãs, por isso é abatida com um tiro, sendo a onça e a árvore retiradas do
Campo, para o início das carreiras: alegorias a galope feitas pelos cavaleiros. Brandão
(1974) descreve a pouca pompa nesta cena de abertura, que muitas vezes pode nem ser
percebida pelos presentes, mas que é de fundamental importância, pois é a partir deste
ocorrido que acontecem todos os demais desdobramentos das Cavalhadas em
Pirenópolis.
Ainda no primeiro dia as carreiras são dedicadas ao reconhecimento do campo,
diante dos vários diálogos travados inicialmente e que são reproduzidos pelo sistema de
som para que o público ouça os debates e entenda um pouco mais o enredo que as falas
caracterizam. O fim da primeira tarde é marcado pelo pedido de trégua de um dia, feito
pelo rei mouro. Os cavaleiros mouros saem pelo lado da nascente enquanto os cristãos
pelo poente.
No segundo dia os embatesse acirram e culminam com a prisão dos mouros
pelos cristãos, daí o Batismo que simboliza a conversão dos muçulmanos ao
catolicismo. A partir de então as alegorias passam a ser mescladas, contendo cavaleiros
mouros e cristãos, em fila única.
No terceiro dia, mesmo após a conversão, os cavaleiros mouros continuam a se
vestirem de vermelho. É o dia dedicado à confraternização caracterizada pela formação
dos buquês das flores por cada seis cavaleiros, sendo três mouros e três cristãos. Os
quatro buquês são ofertados para pessoas da comunidade. Posteriormente iniciam os
jogos de tira-cabeça (máscaras de papel apoiadas em troncos de bananeiras) e de
argolinhas (aro de metal bastante fino, dependuradas em um arco); atividades que
exigem dos cavaleiros destreza e pontaria.
Para participar como um dos vinte e quatro cavaleiros (doze mouros e doze

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220
cristãos) é necessário: “vontade de participar, boa vontade para ensaiar, saber adestrar
cavalos e montar bem” (PEREIRA, 1983:160-1), pois a cada dia é exigido dos
cavaleiros habilidades diferentes.
Terminando as encenações no terceiro dia, é hora de limpar e guardar todas as
roupas e ornamentos para o ano que vem. É neste momento que alguns cavaleiros, já
vislumbrando novas vestimentas e adereços, fazem doações ao acervo do Museu das
Cavalhadas, o único no Brasil com esta temática.

Museu das Cavalhadas


Maria Eunice Pereira e Pina nasceu a 16 de junho de 1930, na cidade de
Pirenópolis. Morou durante toda a infância e juventude nas proximidades do Rio das
Almas e ao se casar, constituiu nova residência na Rua Direita, nº 39.
Foi nesta casa com um imenso quintal que acessa a Rua Nova (logradouro
paralelo à Rua Direita), que criou seus filhos, permitindo a eles brincarem
tranquilamente por entre as árvores frutíferas que ali cresciam. Uma das brincadeiras
deles com os amigos era a representação das Cavalhadas, sendo que os cavalos eram na
verdade cabos de vassouras.
A grande influência vinha não só das Cavalhadas que eram encenadas na cidade,
mas também pelo fato de que um dos avôs e dois tios teriam participado enquanto
cavaleiros, e estes eram vizinhos de Maria Eunice.
Dos filhos de Maria Eunice, Luiz Armando começou a participar das Cavalhadas
quando tinha apenas catorze anos de idade. João Luiz aos quinze se tornou cavaleiro.
Eram ainda adolescentes, fato hoje não permitido devido ao porte de arma de fogo.
Iniciaram enquanto soldados cristãos, mas quando tiveram oportunidade transferiram-se
para o castelo mouro, chegando o primeiro a rei e o segundo a embaixador. Os dois
mais altos postos na hierarquia dos cavaleiros em uma Cavalhada.
Foram cavaleiros por quase três décadas e durante este período se casaram, mas
voltavam para a casa materna durante o período de preparação para as Cavalhadas.
Todas as roupas, adereços e demais equipamentos ficavam guardados ali, e nos dias das
encenações os cavalos eram preparados nas sombras propiciadas pelas árvores do
quintal.
Maria Eunice, não só armazenava as vestimentas e ornamentos em uso, mas as

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221
demais que não eram mais utilizadas. Tinha ainda a preocupação de guardar todos os
materiais publicados sobre as Cavalhadas, desde programação da Festa do Divino a
notícias de jornais impressos, fotografias, cartazes, reportagens de revistas; pois
geralmente seus filhos apareciam, já que eram o rei e embaixador dos mouros.
Inicialmente o cantinho das coisas de Cavalhadas, na casa de Maria Eunice,
ficava em uma área próxima ao quintal, onde a arriata e algumas outras peças eram
acondicionadas. Os demais objetos passaram a ocupar a sala da casa. Ter um acervo de
notícias e dois cavaleiros que se aprontavam em sua casa, situada na área central e bem
próxima à Igreja da Matriz, fez com que pessoas e principalmente pesquisadores, em
especial da UnB em um primeiro momento, passassem a frequentar a residência para
buscar maiores informações sobre as Cavalhadas. Foi a partir de demandas como esta
que Maria Eunice começou a batalhar para a realização de um grande sonho: “Ter um
museu, foi sonho meu” como expõe em versos da poesia “O museu e eu” (In: PINA,
2008).
Pensava em um espaço a ser construído ou adaptado para abrigar o museu que
seria destinado às Cavalhadas, mas como as dificuldades persistiam buscou alternativas
e continuou colecionando tudo o que os filhos cavaleiros pensavam em dispensar.
Guardava ainda os buquês que flores e as argolinhas ofertadas pelos cavaleiros a cada
ano. Diante dos obstáculos não esmoreceu, até que em 1992, resolveu que o museu seria
mesmo em sua própria residência. Foi quando abriu oficialmente o Museu das
Cavalhadas.
Transformou a sala da frente no Museu e o espaço foi destinado a vários eventos
culturais, dentre eles o lançamento do livro de poesias que ela escreveu: “Devaneios de
uma pirenopolina” (PINA, 1993), com várias poesias dedicadas às Cavalhadas.
Com o tempo e com o aumento de pessoas visitando o Museu das Cavalhadas,
este passou a ter significativa representatividade para a comunidade local, foi quando
doações de objetos, livros e principalmente de roupas e adereços de outros cavaleiros
passaram, junto com todo o material de Maria Eunice, a compor o acervo que vem se
ampliando paulatinamente, ao ponto de atualmente ocupar duas salas e dois antigos
quartos da residência.

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222
Acervo de imagens e narrativas
O Museu das Cavalhadas possui um rico acervo composto por materiais
bibliográficos, objetos, vestimentas de cavaleiros, máscaras, demais objetos utilizados
nas Cavalhadas e inúmeras outras peças que possibilitam narrativas diversas sobre o
contexto da Festa do Divino Espírito Santo em Pirenópolis, com foco para as
Cavalhadas.
São inúmeras as fotografias expostas em porta-retratos ou em quadros
dependurados nas paredes, que para o visitante proporciona conhecer um pouco mais
sobre as manifestações e para os pirenopolinos identificarem a si ou parentes e
conhecidos; é possível ainda se lembrar do ano da festa e a partir de todas estas
possibilidades as narrativas se ampliam, constituindo o sentido de ser do Museu.
Destarte, há concordância com Guimarães, que ao estudar a Crónica de 1419,
nos afirma que: “narrar é construir uma racionalidade própria para o entendimento de
experiências” (2013:169). É neste caminho de estabelecer conhecimentos múltiplos
sobre as Cavalhadas de Pirenópolis que o Museu das Cavalhadas se insere, recebendo
visitantes e novas informações que se encontram com o acervo existente.
Propomos breves considerações sobre o acervo de imagens e narrativas do
Museu das Cavalhadas a partir de uma fotografia que possibilita uma visão geral a partir
da porta de entrada do Museu, e que foi tirada durante a coleta de informações e
pesquisa para a produção deste artigo.

Figura 1: Sala de entrada Museu das Cavalhadas

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


223
Foto: João Guilherme Curado, 2015.

O equipamento utilizado foi uma máquina digital amadora e não houve


preocupação em melhor organizar o campo visual. Atentou-se em retratar a realidade
cotidiana do Museu das Cavalhadas, que de acordo com sua diretora atual, filha de
Maria Eunice, seria “um museu aberto de portas fechadas” como ela bem definiu o
Museu das Cavalhadas que também pode ser categorizado como um “Museu casa”
(PINA, 2013), por ser um museu criado em uma residência, que permaneceu ainda com
a mesma funcionalidade anterior, mesmo abrigando um museu.
A representatividade da imagem exposta acima nos remete a afirmativa de
Wunenburger, para quem: “é possível falar de imaginário de um indivíduo, mas também
do de um povo, expresso no conjunto de suas obras e crenças” (2007:7).
O imaginário de Maria Eunice narra a vontade da poetisa em consolidar um
museu voltado para as Cavalhadas, para isso ela se alicerça inicial e particularmente na
trajetória dos filhos que foram cavaleiros por quase três décadas cada um, em períodos
quase simultâneos. Vale ressaltar ainda que transforma este devaneio em realidade,

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


224
mesmo que para isso tenha diminuído parte de sua privacidade e de sua família ao
constituir o “museu casa”.
Para o contexto local a iniciativa foi extremamente bem vista e por isso recebeu
auxílios por meio de apoio e de algumas doações para ampliação do acervo. É preciso
mencionar, ainda, que na década de 1990, o turismo passa a ser uma atividade com
apoio institucional na cidade, o que colabora para incentivar a demanda por novos
atrativos, em especial os que se relacionavam com a cultura local, como as Cavalhadas.
Manifestação cultural que ligada à Festa do Divino Espírito Santo remete ainda à
Europa Medieval, em que as lutas entre mouros e cristãos possuem destaque por
sintetizarem diversas conexões da conjuntura do medievo, sendo que “a época
carolíngia não marca apenas o distante e mítico ponto de partida de uma ideia de
cruzada ainda por nascer. Constitui antes de tudo um momento privilegiado nas relações
entre Igreja e Estado, que condicionaram em grande medida a formação da ideia de
‘guerra santa’” (FLORI, 2013: 37).
Transpondo a perspectiva de guerra para os objetos expostos no Museu das
Cavalhadas, a imagem (Figura 1) possibilita a percepção dos grupos antagônicos,
mouros e cristãos, por meio das vestimentas e adereços: capas e capacetes utilizados
pelos cavaleiros. Se inicialmente o acervo se pautava nos mouros, já que os filhos de
Maria Eunice pouco tempo foram cavaleiros cristãos; atualmente, devido às doações dos
cavaleiros cristãos, a exposição se mostra mais equilibrada entre as cores vermelho e
azul.
Na parte superior da estante, ao fundo da sala, na qual há livros, vídeos, revistas
e jornais, estão expostos adereços que remetem às armaduras, utilizadas como peitorais,
protetores para braços e pernas, além de capacetes que na versão de encenação das
Cavalhadas se apresentam com plumas, visando efeito plástico mais interessante
durante as alegorias.
As roupas expostas não são iguais às utilizadas atualmente pelos cavaleiros, são
mais simples, com menor ornamentação e mais curtas. As camisas eram mais
elaboradas artisticamente, pois eram raras as armaduras nos peitorais e nos braços. As
rabeiras, que compõem a ornamentação dos cavalos, eram mais visíveis, mas com o
crescer das capas foram cobertas e se tornaram pouco expostas. No Museu das
Cavalhadas existe uma rabeira, de cavaleiro cristão, afixada junto à porta de acesso ao

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


225
segundo cômodo do “museu casa”.
Nas paredes há ainda inúmeros cartazes da Festa do Divino, quase todos eles
tendo as Cavalhadas por temática, o que corrobora com a observação de que a Festa do
Divino em Pirenópolis é divulgada pela mídia como sendo as Cavalhadas. Os quadros
com fotografias e porta-retratos permitem também perceber a participação,
principalmente dos filhos de Maria Eunice no transcorrer de quase três décadas,
mostrando igualmente as modificações pelas quais passaram as Cavalhadas, desde os
cavaleiros até o espaço de realização.
O Museu das Cavalhadas é um referencial no tocante às imagens sobre esta
manifestação cultural que remete aos combates medievais e também das narrativas
produzidas sobre esta festa, uma vez que possui parte do acervo organizado por meio de
um catálogo. O estoque de informação ficou tão vultoso que um dormitório da casa foi
transformado em sala de pesquisa, por onde têm passado quase todos os pesquisadores
cuja temática é Pirenópolis, tendo as Cavalhadas ou não como tema central.

Considerações Finais
Indagar sobre ações ocorridas na Idade Média a partir de reflexões sobre o
presente foi possível por meio de algumas referências bibliográficas sobre o
medievalismo, em especial as que abordam sobre o “Ciclo de Carlos Magno”, quando
se faz possível considerar que “numa sociedade em que a cavalaria desempenhava um
papel ativo, não havia o menor problema para o recrutamento; bastava sensibilizar os
cavaleiros, excitar-lhes o fervor e as ambições para conseguir um exército” (ROUSSET,
1980:15).
Transpondo para a realidade das Cavalhadas em Pirenópolis é verificável que há
situações dicotômicas. No passado a ausência de Cavalhadas era explicada pela falta de
interesse de pessoas em ser cavaleiros, mas com o advento da popularização e da
intensa presença da mídia e dos apoios institucionais, inclusive com verbas destinadas
aos cavaleiros, a situação foi alterada e há filas de espera para se tornar um cavaleiro.
Sobre as adaptações de aspectos culturais medievais no Cerrado, é possível
afirmar que cada vez há menos elementos de ligação, principalmente após a construção
do Cavalhódromo. Sendo o espião mouro em terras cristãs, que é caracterizado como a
onça da Cavalhada, que permite também maior familiaridade e identificação com a

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226
trama encenada a galopes.
Ainda em relação às imagens e narrativas de uma das representações medievais
“quer nós as consideremos a mais tremenda e a mais romântica das aventuras cristãs ou
a última das invasões bárbaras, as Cruzadas constituem um fato crucial da história da
Idade Média” (RUNCIMAN, 2003:11) e por isso fazem parte do imaginário de grande
parte da população, seja por meio de livros ou pelo cinema. Em Pirenópolis este
universo pode ser experienciado durante a encenação das Cavalhadas ou de maneira um
pouco menos intensa ao visitar o Museu das Cavalhadas, “um museu aberto de portas
fechadas”.

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228
CAMADAS DE TEMPO: O DISCURSO ENGENDRADO NA
DESTITUIÇÃO DE D. SANCHO II (1223-1248) E SEU ALCANCE

Johnny Taliateli do Couto


Doutorando em História PPGH/UFG
Bolsista CNPq

RESUMO: Em relação às teorias acerca do poder que estavam em voga no decurso do


século XIII, a bula Grandi non immerito que depõe Sancho II de Portugal, foi no
mínimo rebuscada. O Papa Inocêncio IV encarnava através do texto o seu papel de juiz
supremo nos assuntos espirituais e seculares. O Sumo Pontífice promovia o discurso de
estar preocupado com a paz e a tranquilidade e, nestes termos, retomava a noção de bem
comum para justificar o seu ato ao destituir o governante português. Sancho II foi
assim, considerado um rei incapaz, insuficiente para exercer o encargo régio.
Entretanto, não podemos olvidar que o processo de deposição se deve também a uma
articulação que envolvia não somente os altos dignitários eclesiásticos portugueses, mas
também o irmão Afonso, o Conde de Bolonha, nomeado pelo Papa na bula Grandi,
como o curador do reino. Contudo, não foi o texto papal que fez Sancho II ser afastado
de vez do governo, mas sim, o resultado da guerra civil travada em Portugal entre os
partidários régios e os do Conde de Bolonha. Apenas após a morte do irmão, Afonso
pôde ser feito rei de fato. Com este trabalho, queremos demonstrar as camadas de tempo
que encontramos em um discurso político, como aquele articulado por Inocêncio IV na
Grandi. Queremos ressaltar também, a distância que existe entre o plano do discurso e o
seu real alcance no mundo social. Trata-se de fazer uma análise de como através do
texto a destituição foi articulada e como ela foi recebida.

Palavras-chave: Inocêncio IV, Sancho II, Portugal

ABSTRACT: Regarding the theories about the current power in thirteenth


century A.D., the Grandi non immerito bull that deposes Sancho II, King of Portugal,
was, at least, refined. Innocent IV incarnated his role as supreme judge, through his
text, both in spiritual and secular matters. The Supreme Pontiff promoted his speech
about being concerned with the peace and tranquility, and those terms recaptured the
notion of welfare to justify his acts regarding the deposition of the Portuguese ruler.
This happened to Sancho II, considered an incapable king, and not good enough to
exercise the royal charge. However, we cannot forget that the process of deposition had
also an articulation which encompassed no just the highest ecclesiastic dignitaries, but
the count of Bologna, the king’s brother Alfonso, likewise, nominated by the Pope at
the Grandi non immerito bull, as curator of the realm. Nevertheless, it was not the
Papal document which made Sancho II be removed from the government, but this was
the outcome of the civil war in Portugal, between the king´s supporters and those under
the leadership of the Count of Bologna. Only after his brother’s death, Alfonso could be
proclaimed true king. With this paper, we aim to show the layers of time likely to
be found in a political speech, such as this articulated by Innocent IV. We also want to
remark the distance that lies between the planning and the real reach of the speech in it´s
social reality. This is about the analysis of how the writing of Grandi act affected, and
how it was perceived, in the destitution of this particular ruler.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


229
Keywords: Innocent IV, Sancho II, Portugal

O leitor pode nos indagar o porquê de “camadas de tempo” neste título.


Informamos de antemão, que não é nossa proposta fazer uma reflexão teórica específica,
sobre a velha questão sobre o tempo. O assunto foi largamente debatido por filósofos e
estranhamente, pouquíssimos historiadores1. Sem querer entrar na grande controvérsia
dicotômica, quanto à natureza objetiva ou subjetiva do tempo, nossa reflexão pauta-se
especificamente, na temporalidade que podemos encontrar em um discurso, numa
narrativa. O que dizer então de um discurso político, com suas grandes intenções.
O autor de um texto retórico, como foi o caso da bula de deposição de D. Sancho
II, articula temporalidades com vista a atingir seu intento 2. Se como historiadores,
estamos acostumados a fazer isso por ofício, sem empreendermos reflexão sobre, o que
dizer de um discurso político difundido em prol de um objetivo específico, no nosso
caso, afastar um rei de seu trono. A eloquência desse modelo de narrativa, se vale da
experiência de seu autor. Dessa maneira, podemos falar que o autor articula camadas de
tempo, já que faz usos do passado para sua elaboração narrativa e, nem sempre, de
apenas um passado, ou do seu passado. O discurso político é construído desse modo,
para dar peso ao seu arcabouço retórico. Assim, acessa diferentes estratos de
temporalidades, ressinifica aquilo que foi usado como modelo, tudo em prol daquilo que
se espera, ou seja, convencer o público para quem o discurso foi destinado. De acordo
com a experiência acessível, projeta sua intenção, com a expectativa de que seu
objetivo, saia da forma como o articulou (KOSELLECK, 2011: 305-327)3. Devemos
considerar então, que temos na bula Grandi non immerito, estratos do passado para sua
fundamentação, ao mesmo tempo que, o tempo da intenção de seu autor, aquele que
formula o discurso com base nessa experiência e, aquilo que se espera alcançar com
toda a fundamentação. Tal como a narrativa histórica, devemos colocar na balança que

1 Agradeço ao Prof. Dr. Eugênio Rezende de Carvalho, pois esta reflexão foi possível graças as
discussões calorosas feitas na sua disciplina Tempos da História e dos Historiadores, que cursei no
doutorado.
2 Fizemos uma análise mais abrangente acerca do reinado de D. Sancho II em nossa dissertação de
mestrado, intitulada Rei, Reino e Papado: a destituição de D. Sancho II de Portugal (Séc. XIII), sob
orientação da Profa. Dra. Armênia Maria de Souza, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal de Goiás e defendida em 11 de fevereiro de 2015.
3 Intencionalmente, estamos fazendo uma clara referência às duas categorias meta-históricas de
Koselleck, o campo de experiência e o horizonte de expectativa.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


230
algumas de nossas fontes, também articulam distintas temporalidades. Reúnem a
contemporaneidade do não contemporâneo e por isso, podemos falar em camadas
(KOSELLECK, 2014: 9).
Mas por que estamos nos preocupando em afirmar isso? Pois nós historiadores
somos convencidos facilmente pelo desfecho das tramas que procuramos problematizar.
Por nosso apego ao acontecimento, o colocamos como marco fundamental do limite de
nossa pesquisa, fazendo uma construção dos fatores que levaram até determinado
evento. O problema advém de algo muito claro, o futuro é terreno proibido ao
historiador! Mas não é do meu ou do seu futuro que estamos falando na pesquisa, mas
do sujeito que analisamos. Não poderíamos problematizar isso? Existem outras
possibilidades de trabalho, quando levamos em conta que nossos personagens – sujeitos
históricos – fizeram projeções, mesmo que o desfecho acontecimental tenha sido outro.
Se ao menos pensamos que as coisas podiam ter acontecido diferente, talvez
compreendemos melhor o conjunto de ações empreendidas em dado contexto. Se um
ator projeta um futuro específico, ele move suas ações naquela direção, logo, se somos
determinados pelo marco final desse processo, perdemos uma grande parte das ações
movidas durante o mesmo processo.
Com estas considerações mais gerais sobre o nosso ofício, podemos afirmar que
é provável que os motivos elencados, tenham pesado para a construção historiográfica
que foi feita acerca de D. Sancho II, o rei deposto pelo papado sendo considerado
insuficiente para o governo. Por ter sido deposto, por não escapar das amarras de poder
que foram feitas contra ele, observamos que uma série de trabalhos, optaram por buscar
as origens de sua incapacidade política, ou pelo menos, esta é a chave de leitura que
encontramos em alguns autores. Diante disso, prevaleceu até há pouco, o discurso
instituído na bula Grandi non immerito, chegando até nós a representação histórica do
rex inutilis português. Se esse modelo alcançou nossos dias atuais, podemos dizer que
Inocêncio IV produziu um grande discurso, na sua articulada bula de deposição. Mas
isso permaneceu, por sermos tão determinados pelo desfecho da trama. Estes aspectos
de nosso trabalho são tão irônicos, que se o leitor fizer um movimento imaginativo em
que a realidade tivesse sido outra, na qual a deposição não tinha dado certo, boa parte
das hipóteses ou inferências que nos chegaram, cairiam por terra. Ao invés de ser visto
como inútil, incapaz, insuficiente, provavelmente nessa realidade imaginária, Sancho II

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


231
seria visto como centralizador, como o rei que conseguiu vencer a determinação
pontifícia, em uma época de ápice da chamada plenitudo potestatis. Nosso trabalho é
dotado de muitas armadilhas.
Investigamos e tentamos compreender seres humanos como nós, ou como diria
o tradicional Bloch, estudamos os homens no tempo (BLOCH, 2002: 55). Da mesma
forma que nós, aqueles sujeitos eram capazes de iniciativa, retrospecção e prospecção.
Fazemos essas considerações para romper com qualquer determinismo histórico. A
escrita da história não deixa de compreender o passado como um “retorno” de
possibilidades escondidas (RICOEUR, 2010: 392-393).
Falemos então do processo de deposição. O Papa representando a figura do bom
pastor deixava claro que destituiu o rei, visando apenas o bem do reino. Inocêncio IV
em sua missiva, julgava que o conde de Bolonha tinha grande utilidade para o reino
português, o que faltava em seu irmão deposto. Afonso foi nomeado curador, pois o
Sumo Pontífice não retirou a dignitas de Sancho II. O monarca não podia mais
governar, sendo acusado de não possuir talento algum para a administração. Logo, de
acordo com a exposição do Pontífice, essa tarefa tinha de ser confiada ao Conde seu
irmão devido às suas virtudes, que o tornava digno de apreço geral (BRANDÃO,
Escritura XXIII)4.
A dignidade régia era atestada pela ideia de dinastia, que garantia a sucessão de
um soberano através da primogenitura. A coroa dizia respeito à totalidade do corpo
coletivo do reino e dessa forma, a preservação da integridade da coroa tornava-se uma
questão que tocava a todos. A dignitas diferia em relação ao que caracterizava esse
corpo coletivo, porque estava relacionada principalmente à singularidade do encargo
régio. Entretanto, a dignidade não tocava apenas o rei com seus direitos e prerrogativas,
o monarca deveria mantê-la em respeito e benefício de todo o reino. Coincidia em larga
medida com o officium regis (KANTOROWICZ, 1998: 233-234). A dificuldade da bula
de deposição era separar uma coisa da outra. Em vista disso, Inocêncio IV nomeou um
curador, o que significava retirar de Sancho II a administração do reino, o ofício da

4 A bula de deposição foi inserida no Apêndice da crônica de Fr. António Brandão. Dessa maneira,
quando referirmos ao documento, destacamos o seu número naquela obra, respeitando a forma como
dispôs o autor. Optamos aqui, por fazer o comentário direto do texto da bula. Inserimos o documento
completo nos anexos de nossa dissertação de mestrado, referida em nota anterior.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


232
monarquia. O rei de Portugal manteria no nome o título de rex, mas a administratio era
confiada ao conde de Bolonha.
O reino era apresentado agora como um tecido vivo que precisava se renovar,
depois de dilacerações em seu corpo, causadas pela administração de um mau
governante. A argumentação pontifícia postulava o desejo de levantar o reino do abismo
e por isso, o território vivo deveria ser curado. Alguém competente para essa tarefa era
apresentado, um “herói” que segundo a argumentação, tinha todas as características
necessárias para bem administrar o reino português. A todos os vassalos de Sancho II, o
Papa orientava/ordenava prestar fidelidade ao conde de Bolonha quando este chegasse,
não deixando de lançar mão do recurso de censura eclesiástica para quem não seguisse a
advertência. Ao curador, era atribuída também a missão de velar pela vida de seu irmão,
porque a atitude de Inocêncio IV não podia gerar mais discórdias, mas tão somente
sanar as que existiam. O objetivo do discurso papal era o de uma entrega pacífica, para
que a justiça imperasse nas terras portuguesas como deveria ser. Até a remissão dos
pecados, o Papa oferecia àqueles que cumprissem com a ordem e obedecessem ao
Conde. Contudo, a imagem do regente da Igreja não poderia ser outra, senão a daquele
que estava zelando pelo bem comum de sua comunidade de fiéis. Por isso, ressaltou o
caráter de Afonso, no sentido de justificar a sua escolha para a função de curador,
porque este era devoto, probo e prudente. Pelo modelo comportamental elaborado
acerca de Sancho II na dita bula, as mesmas qualidades não poderiam ser atribuídas ao
rei (BRANDÃO, Escritura XXIII).
O Papa caracterizava sua ação como um mal necessário, um governante
precisava atuar com a justiça. Um rei que não era útil para o reino por ser insuficiente e
negligente, deveria ser privado do cargo. A função do governante estava representada
como um ofício, o de alguém que possuía a dignidade régia para trabalhar em prol do
bem comum em seu reino, este, considerado uma entidade coletiva.
Inocêncio IV usou como recurso uma vasta documentação. Nessa trama textual,
procurou referir às diversas queixas que os prelados portugueses levaram aos seus
antecessores, sobretudo Gregório IX, lembrando as constantes advertências feitas pelo
antigo Pontífice, que promulgou sentenças de interdito e excomunhão contra o rei e
contra o reino. Referia-se ainda, ao fato de que Sancho II comprometeu-se em
documento público a respeitar as liberdades eclesiásticas, mas tanto o monarca quanto

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


233
os funcionários de sua cúria, não deixaram de sobrecarregar as igrejas com impostos
(BRANDÃO, Escritura XXIII).
Não nos esqueçamos de que o rei enviava ao Papa, para confirmação, os acordos
estabelecidos com os bispos, quando procurava solucionar alguma espécie de desavença
que tinha alcançado grande proporção. Inocêncio IV reuniu toda a documentação de que
dispunha em sua cúria sobre Portugal e assim, se referia às promessas não cumpridas do
monarca, retomando aquilo que constava no registro escrito. Além do mais, enfatizava
que o reino era censual da Igreja, clara referência à bula Manifestis Probatum,
responsável por confirmar a independência de Portugal frente a Leão e Castela. Temos
na cúria pontifícia, uma espécie de inquérito em relação à monarquia portuguesa.
Encarregados pelo Papa de aconselharem o rei de Portugal a optar pelas
correções necessárias à sua governação, estavam os bispos do Porto, de Coimbra e o
prior dos dominicanos. No Concílio de Lyon, deveriam informar Inocêncio IV se o
monarca tinha corrigido as suas ações ou permanecera intratável (VARANDAS, 2003:
366). Ao que tudo indica, as doações de Sancho II ao bispo e cabido do Porto do fim de
abril de 1245, estavam ligadas às queixas da bula Inter alia desiderabilia, que antes da
deposição já tinha arrolado graves queixas contra o monarca, acusado de não respeitar
as liberdades eclesiásticas, oprimir clérigos e seculares, mesmo após as prescrições
regulamentares do Papa antecessor, Gregório IX. Nesta ocasião, já fora apontada a
negligência do rei português (RAYNALDI, ad. An 1245, nº 6).
É muito provável que foi pela advertência da bula Inter alia, que Sancho II
procurou aliciar o bispo do Porto, doando o castelo de Marachique no Algarve, além do
padroado de igrejas, como demonstram dois documentos de abril de 1245
(BERNARDINO, 2003: 355-356; 359). O problema entre a mencionada bula e a de
deposição, era justamente o tempo fornecido para correção, o que demonstra que nos
bastidores, os planos estavam bem avançados. No caso de Sancho II, o monarca tomou
conhecimento tardiamente sobre sua grave situação na cúria pontifícia.
A principal acusação contra o rei era a de ele ser negligente, e só esse fator per
si, seria o suficiente para o Papa agir de forma extraordinária conforme as prescrições
do direito canônico. A constatação da negligência permitia ao Sumo Pontífice intervir
como o representante de Cristo em toda a cristandade. Se o rei era imprevidente, a sua
jurisdição sobre o reino devia terminar, ainda mais quando se tratava de um reino

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


234
entregue por confirmação papal. O rei português não foi acusado de nenhum pecado,
apenas de ser ignorante e inadequado (VARANDAS, 2003: 375).
Mas, além da documentação existente na cúria sobre o reino português, em que
mais o Papa se fundamentou? Segundo Peters a fórmula está em Huguccio, autor que
elabora um modelo em que admite a inutilidade de Childerico III (714-754) quando este
último rei da dinastia merovíngia foi deposto pelo Papa Estêvão II (752-757)5. João
teutônico seguiu a interpretação de Huguccio ao tratar do caso de Childerico. Ao
analisarem o problema, em um primeiro momento associaram a inutilidade régia ao
governante considerado insuficiente, ou seja, mal preparado para exercer sua auctoritas.
O segundo modelo é o do negligente ou afeminado (PETERS, 1970: 121-122).
Huguccio, seguindo de perto muitos outros canonistas, considerava os
governantes temporais como equiparados em certo sentido com os prelados mais
elevados, não tanto teologicamente, mas em maior grau, em razões jurídicas. A analogia
do poder dos prelados com a autoridade régia tornou-se um lugar comum em tratados
dos séculos XI e XII que se preocupavam em sustentar a universalidade do direito
canônico. A abordagem de Huguccio sobre a inutilidade régia, reflete o caráter
científico e enciclopédico das obras de jurisprudência eclesiástica do século XII
(Ibidem: 122).
Ao prosseguir na análise, outras ideias ligadas à deposição podem ainda ser
encontradas nos comentários do decretista italiano. Um exemplo nesse sentido, é a
fundamentação que justifica a nomeação de um curador episcopal que administrasse os
assuntos de uma Sé, durante períodos em que a função estava nas mãos de um prelado
incapaz. Alguns glosadores ressaltavam que a inutilidade de um prelado não podia
redundar em dano para a Igreja. Sendo assim, um clérigo adequado e de capacidade era
nomeado como uma espécie de tutor ou reitor. A utilidade de um compensaria a
inutilidade do outro. Em tese, devia desempenhar a função em matéria de direito

5 A Vita Karoli Magni (Vida de Carlos Magno), referência na qual os canonistas buscam o caso de
Childerico, elucida que o último rei merovíngio foi deposto, tonsurado e confinado em um mosteiro pelo
Pontífice de Roma, Estevão II. A representação desse governante era a de alguém que apenas ostentava o
título de rei, sem exercer efetivamente o seu poder. A imagem atribuída a esse personagem é associada a
uma espécie de rei sombra ou rei fantasma, pois o poder no reino era exercido de fato por alguns
funcionários do palácio, verdadeiros detentores da autoridade. Na obra, o monarca estava contente com o
nome de rei, sentando-se no trono com seus cabelos longos, figurando a imagem do poder. Segundo
Eginhardo, o rei não era útil e toda a administração do reino era assumida pelo maior domus. Cf.
BARNWELL, P. S. Einhard, Louis the Pious and Childeric III. Historical Research, vol. 78, n. 200,
2005, p. 129.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


235
privado, o que normalmente seria direito exclusivo da pessoa em cujo lugar o curador
estava agindo. A inadequação nesse caso eclesiástico, podia estar ligada a motivos de
doença, idade avançada ou simplicidade (PETERS, 1970: 128-129; 132).
O direito canônico do século XII, principalmente com a contribuição de
Huguccio, serviu para ilustrar a prerrogativa papal de poder depor não apenas os
governantes tirânicos, mas também os incompetentes. O autor italiano abriu uma nova
linha de pensamento que embora não estivesse estritamente de acordo com a prática
política de sua época, era consistente com outras ideias do direito sobre a natureza da
autoridade pública. Entre 1190 e 1243, esta abordagem, no entanto, existia somente em
alguns comentários sobre o Decreto de Graciano. A oportunidade de testar as
alternativas de Huguccio surgiu pelo visto, no processo de deposição de Sancho II, no
qual Inocêncio IV aplicou aspetos dessa doutrina (Ibidem: 134).
A autoridade pontifícia para absolver súditos de seus juramentos permaneceu
com convicções ainda muito incipientes. Graciano tratou do assunto no Alius item do
Decretum, no qual sustentou o poder do Papa para libertar do juramento de fidelidade
aqueles que tinham sido forçados a prestar a homenagem a uma determinada autoridade.
A seguir, o autor abriu uma discussão com o intuito de demonstrar a extensão do poder
pontifício para dispensar homens do juramento e suas consequências sob certas
condições. Os tópicos que tratavam desse assunto em particular, sofreram certa
relutância dos canonistas para aplicação na teoria política elaborada no período (Ibidem:
119).
Alguns recursos teóricos utilizados na argumentação de Inocêncio IV ainda eram
esparsos. Não tinham uma base de apoio tão sólida, como era o caso da fundamentação
na sentença de Frederico II. Enfatizamos a característica de experimentação em relação
ao esforço legal empreendido. Era mais fácil elaborar a deposição de um tirano que
tentou conquistar Roma, além de atacar e capturar um grande número de dignitários
eclesiásticos.
Dessa forma, o papado não podia ter certeza se o seu novo esforço legal daria
certo. Sancho por diversas vezes, mostrou-se contumaz em relação a algumas sanções
eclesiásticas. Uma alternativa eficaz, foi a de enviar a bula para uma multiplicidade de
destinatários. A escolha era sintomática: os prelados pelo seu poder, o de excomunhão
sendo um deles; as ordens militares, por representarem a mais importante força em

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


236
armas do momento; os mendicantes, que possuíam grande proximidade e facilidade de
comunicação junto ao povo; as autoridades de concelhos e nobres, que podiam
representar um exemplo para a vilania; por último o infante D. Pedro, tio do rei, que
aparentemente não tinha interferido nos negócios do reino durante o governo de Sancho
II (MARQUES, 1997: 18).
Com o texto de deposição, Inocêncio IV articulou distintas temporalidades no
que dizia respeito à lei canônica, com vista a dar peso ao seu arcabouço retórico, mas o
fez também, ao historiar os problemas do reino português. Assim, construiu uma
narrativa em que apontava as falhas de Sancho II desde que assumiu o trono. Com o
discurso, o Pontífice selecionou estratos do passado para atingir seu intento e justificar a
sua postura ao anunciar um curador para o reino. Era preciso convencer seus múltiplos
destinatários, que aquela ação era necessária para o bem de todos. Esta foi ao menos,
sua expectativa e a dos altos dignitários de Portugal que pediram o documento.
Contudo, apesar de conter uma retórica convincente, não foi a bula Grandi que
fez Sancho II ser afastado de vez do governo. Foi o resultado da Guerra Civil travada
em Portugal entre os partidários régios e os do conde de Bolonha que definiu a
verdadeira destituição. A primeira batalha ocorreu no norte do reino, onde saiu vencedor
o representante régio, Martim Gil de Soverosa. Os apoiantes de Afonso de Bolonha,
dois nomes de peso (Rodrigo Sanches e Abril Peres de Lumiares), saíram do jogo cedo,
porque vieram a falecer naquele confronto.
Em outra lide situada em 1245 ou 1246, a chamada de Crasconho, morreu Pedro
Poiares e saiu vencedor seu tio Pero Rodrigues de Pereira. Aquele tentou se apoderar do
burgo do Porto, de que seu tio Martim Rodrigues, antigo bispo daquela cidade, fora
donatário. Considerado um homem muito violento, Poiares era classificado como
inimigo do trono por suas devastações no Riba-douro (VENTURA, 1996: 120).
O conde de Bolonha chegou a Portugal no fim de 1245, desembarcando em
Lisboa. A cidade tornava-se centro político, administrativo e logístico fundamental para
que o Conde cumprisse com os desígnios de sua missão. Outros locais como a cidade do
Porto ou a entrada pelo Mondego estavam fortemente defendidos pelos partidários de
Sancho II. Ademais, Afonso tinha consciência de que iria encontrar resistência,
necessitando entrar por uma região onde o monarca não poderia concentrar forças e com

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


237
proximidade às ordens militares, as quais no mínimo deveriam se manter neutras, pelas
ordens papais que trazia (VARANDAS, 2003: 394).
Em abril de 1246, o conde de Bolonha entrou em Leiria, segundo relato do bispo
D. Tibúrcio. Ao chegar nessa cidade, teria recebido forte apoio popular e do clero, que
desde o início teriam se declarado pelo infante. Apesar da adesão popular, o alcaide do
castelo de Leiria não se entregou de imediato. O Conde conquistou o castelo através do
uso de força militar e, decerto, depois das negociações dos delegados do infante com o
alcaide Martim Fernandes de Urgezes. Por conta da adesão de Leiria ao infante
português, o exército de Sancho II e Martim Gil fustigou os habitantes do concelho. No
entanto, num primeiro confronto, morreram ou foram feitos prisioneiros grandes
fidalgos que apoiavam o rei. O irmão do principal valido do monarca foi feito
prisioneiro (Vasco Gil de Soverosa) e morreram Soeiro Gomes de Tougues e Lourenço
Fernandes de Gundar (GOMES; VENTURA, 1993: 165-166). No mesmo mês, os
exércitos castelhanos terminaram a campanha em Jaén, momento em que o rei
português transmitia o pedido de ajuda, certamente levado a cabo pelo chanceler Durão
Forjaz6.
No final de 1246, o exército castelhano entrou em Portugal pela região da
Guarda, dirigindo-se a Coimbra. Entre os nobres que acompanhavam o príncipe,
estavam Diego Lopes de Haro, cunhado de Sancho II, os galegos Fernão Anes de Lima
e Rodrigo Gomes de Trastâmara, e os leoneses Ramiro e Rodrigo Forjaz. Combinando
força junto com tropas portuguesas, fizeram uma incursão a Leiria. Em abril de 1247,
Afonso de Castela já se encontrava em Burgos por conta dos problemas que estava
enfrentando na empresa à Portugal e pelo planejamento do cerco de Sevilha, propósito
para o qual seu pai o pressionava (OLIVEIRA, 2010: 260).
Apesar de algumas vitórias dos partidários do rei com o apoio da hoste
castelhana, Sancho II não conseguiu expulsar seu irmão do castelo de Leiria. José
Varandas sustenta que o monarca perdeu a guerra por conta do rapto da rainha D. Mécia
Lopes de Haro, feito por seu vassalo Raimundo Viegas de Portocarreiro, que a levou
para a fortaleza de Ourém. Aquele teria sido um duro golpe na guerra, porque com isso
o exército real teria perdido a iniciativa, fazendo o espírito de resistência das suas forças
esmorecerem. Nunca mais as forças do rei conseguiram impedir a progressão das tropas

6 Fazemos essa observação, pois o chanceler não estava entre os confirmantes de um diploma régio,
justamente de abril de 1246 (BERNARDINO, 2003: 360; doc. 86).

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


238
de Afonso, mesmo com a intervenção de Castela isso era feito de forma desesperada.
Afastado da rainha, Sancho II encaminhava-se para as fronteiras do reino, levando
consigo o restante do exército. A maneira como a rainha tinha sido raptada e os esforços
infrutíferos do rei para recuperá-la, teriam contribuído para aumentar o desprestígio de
Sancho II em situação de guerra (VARANDAS, 2003: 399-400).
Para Mattoso, o rapto foi executado provavelmente com a conivência da rainha,
só assim explicaria como ela tinha abandonado o rei e seu séquito no próprio paço de
Coimbra sem chamar a atenção de ninguém. Para confirmar esta tese, o autor se refere a
um documento em que D. Mécia doava a Paio Peres e sua mulher Maria Gonçalves, um
moinho em Torres Novas e outros no termo de Ourém. A doação era feita segundo esse
documento, por causa dos serviços prestados por Paio Peres à rainha, sujeito que
também tinha perdido seus bens situados em Leiria. Dentre os confirmantes daquele
diploma, estavam o capelão da rainha, seu chanceler, o juiz, o mordomo, o alcaide de
Ourém e o meio irmão de Mécia, Diogo Lopes de Salcedo, além de outras pessoas de
mais difícil identificação. Sobre os bens de Paio Peres, o autor conjetura que quem sabe
não foi o próprio rei que os destruiu em uma de suas incursões contra Leiria, quando
teve de regressar a Coimbra sem poder trazer sua rainha consigo. Como o Papa tinha
anulado o casamento do rei com D. Mécia, a rainha podia proceder com tranquilidade
de consciência a uma fuga. A opinião de Mattoso também foi a de que esse episódio foi
o mais duro golpe sofrido por Sancho II durante a guerra. Este evento fez o monarca
perder a iniciativa no confronto (MATTOSO, 1994: 284-285).
Seja como for, a derrota e a morte de Sancho II no exílio em Castela, permitiu
que Afonso fosse feito rei de fato. Mas, apesar do conflito entre os Dois Poderes e,
independentemente da retórica convincente dos detentores do poder espiritual naquele
período que, entre outras coisas, serviu para fundamentar a bula Grandi, existe uma
grande distância entre o discurso eclesiástico a respeito do seu horizonte de jurisdição,
suas prerrogativas e a realidade social do período. No mundo da vida, o discurso
institucional nem sempre atinge todas as camadas sociais. Quando atinge, isso pode
provocar um efeito negativo posteriormente. Sintomático disso, para além da Guerra
Civil, é um documento de 1254 de uma comunidade chamada Villa Bracaretia7. Com
Afonso III no trono português, essa comunidade procurou o papado para rogar o perdão

7 Trata-se do documento que segue em anexo no presente estudo.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


239
por ter cometido perjúrio e traição contra seu antigo monarca. Inocêncio IV isentava-os
em uma bula, de terem cometido o mal de felonia ao terem prestado obediência ao
conde de Bolonha, pois aquele, tinha sido o seu mandado. Anos depois da deposição e
da Guerra Civil, mesmo que a ação tenha partido do representante máximo da Igreja,
aquela situação ainda provocava mal estar em alguns portugueses. Nem todos, estavam
convencidos de que tinham agido da forma correta.
Com isso, podemos afirmar que é um pouco complicado deixarmos nos
convencer apenas pela destituição e comprarmos assim, o discurso que foi engendrado
na bula Grandi, reforçando como muitos fizeram, da mesma forma que a cronística, a
imagem do rex inutilis.

REFERÊNCIAS
Fontes
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Portugalensis: A Chancelaria de D. Sancho II (1223-1248). 2003. 425 f. (Dissertação
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XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


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Portuguesa: A família e o poder. Lisboa: Editorial Estampa, 4ª edição, 1994.
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PETERS, Edward M. The Shadow King. Rex inutilis in medieval law and literature
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VARANDAS, Bonus Rex ou Rex Inutilis, as periferias e o centro: Redes de poder no
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VENTURA, Leontina. A Crise de Meados do Século XIII. In: Nova História de
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coord. de Maria Helena da Cruz Coelho e Armando Luís Carvalho Homem. Editorial
Presença, Lisboa, 1996, pp. 104-123.

ANEXO
Publ.: BERGER, Élie. Les Registres d’Innocent IV: recueil des bulles de ce pape.
Paris: Fontemoing & Cie Éditeurs, Tomo 3, p. 369, doc. 7262.
MARQUES, Maria A. F. As Terras de Bragança na Crise Política do Século XIII.
Páginas da História da Diocese de Bragança-Miranda: Congresso Histórico.
Bragança, 07 a 10 de Outubro de 1996, Comissão de Arte Sacra de Bragança-Miranda,
Bragança, 1997, p. 25.

1254 Fevereiro 11, Latrão. Carta do Papa Inocêncio IV, na qual isenta a comunidade
Villa Bracaretia de ter cometido traição para com seu antigo rei.

Communitati ville Bracaretia, Bracharensis diocesis.


Petitio vestra nobis exposita continebat quod, cum olim carissimum in Christo filium
nostrum Alfonsum, illustrem regem Portugalie, tunc comitem Bolonie, regno Portugalie
deputaverimus custodem, quod vos primo quam aliqui de regno ipso, juxta formam
mandati nostri et executorum super hoc deputatorum a nobis, regi obedivistis eidem,
quidem asserentes id redundasse in prejudicium clare memorie Sanctii, regis Portugalie,
cui prestiteratis fidelitatis et homagii juramentum, vobis prejudicium et prodictionis
infamiam hujusmodi occasione imponunt. Nos itaque, vestris suplicationibus inclinati,
presentium tenore decernimus vos propter hoc aliqua nota perjurii vel proditionis
infamie non teneri. Nulli ergo, etc., nostre constitutionis etc.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


241
CARTOGRAFIA E VIAGENS NA BAIXA IDADE MÉDIA

Katiuscia Quirino Barbosa


Universidade Federal Fluminense
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Social

RESUMO: Entende-se que a expansão marítima portuguesa do século XV foi essencial


para a alteração das maneiras de conceber a geografia e o espaço, sobretudo o espaço
Atlântico, que passa a ser apreendido em uma dimensão humana, como um espaço
vivido. Essa dimensão cultural do espaço oceânico dá-se não somente pelas relações
que os navegadores estabeleciam entre si, mas principalmente, pelas interações com os
povos que habitavam a costa atlântica africana.
Note-se que o movimento expansionista trouxe notáveis contribuições técnicas no que
concerne às práticas de navegação, envolvendo conhecimentos dos mais variados. Nesse
sentido, destacamos as inovações na produção cartográfica que, embora ainda se
encontre muito vinculada às grandes “escolas” da cartografia mediterrânica, começa a
apresentar especificidades concernentes à realidade Atlântica e à navegação de longa
distância. Diante disso, esta comunicação tem como objetivo a análise de duas cartas
náuticas portuguesas da segunda metade do século XV, quais sejam, a Carta de Módena
e a Carta de Pedro Reinel, com o intuito de compreender os impactos das constatações
reais acerca do Oceano Atlântico e da África Ocidental na cartografia coeva.

Palavras-chave: Cartografia, Viagens, Expansão Marítima

ABSTRACT: The Portuguese maritime expansion of the fifteenth century was essential
in changing ways of thinking about space and geography, especially the Atlantic Area,
which happens to be seized in a human dimension. This cultural dimension of the ocean
space gives not only the relations that established browsers each other, but mainly by
interactions with the people who inhabited the African Atlantic coast.
The expansionist movement brought notable technical contributions with regard to
shipping practices involving knowledge of the most varied. In this sense, we highlight
innovations in cartographic production, although still find it very linked to the great
"schools" of the Mediterranean cartography, begins to show specifics concerning the
Atlantic reality and navigation of long distance. Therefore, this communication aims to
examine two Portuguese charts of the second half of the fifteenth century, namely, the
Charter of Modena and the Letter of Peter Reinel, in order to understand the impacts of
actual findings on the Atlantic Ocean and West Africa in cartography coeval.

Keywords: Cartography, Travel, Maritime Expansion

Introdução
Entende-se que a expansão marítima portuguesa do século XV foi essencial para
a alteração das maneiras de conceber a geografia e o espaço, sobretudo o espaço
Atlântico, que passa a ser apreendido em uma dimensão humana, como um espaço
vivido. Essa dimensão cultural do espaço oceânico dá-se não somente pelas relações

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que os navegadores estabeleciam entre si, mas principalmente, pelas interações com os
povos que habitavam a costa atlântica africana.
Note-se que o movimento expansionista trouxe notáveis contribuições técnicas
no que concerne às práticas de navegação, envolvendo conhecimentos dos mais
variados. Nesse sentido, destacamos as inovações na produção cartográfica que, embora
ainda se encontre muito vinculada às grandes “escolas” da cartografia mediterrânica,
começa a apresentar especificidades concernentes à realidade Atlântica e à navegação
de longa distância. Diante disso, esta comunicação tem como objetivo a análise de duas
cartas náuticas portuguesas da segunda metade do século XV, quais sejam, a Carta de
Módena e a Carta de Pedro Reinel, com o intuito de compreender os impactos das
constatações reais acerca do Oceano Atlântico e da África Ocidental na cartografia
coeva.

Navegação, Espaço e Cartografia na Baixa Idade Média.


Acerca das formas de apreensão do espaço na Idade Média, considera-se que a
despeito de todo o conhecimento geográfico adquirido na Antiguidade Clássica, a
organização e o funcionamento da Terra eram explicados por teóricos eclesiásticos. Em
um período de quase dez séculos as representações cosmográficas não sofreram
nenhuma transformação revolucionária (KAPPLER, s.d). Dentre as características da
cosmografia medieval, destaca-se a coexistência de sistemas muito diferentes e a
manutenção de teorias diversas. Trata-se de uma concepção cosmográfica que valoriza a
hierarquia da disposição dos elementos na natureza.
O espaço quer físico, social ou simbólico, na Idade Média Ocidental é
extremamente hierarquizado, refletindo o pensamento cristão, servindo de modelo
explicativo para todos os fenômenos da natureza, sustentando-se nas escrituras sagradas.
Jacques Le Goff aponta que os homens da Idade Média entram em contato com a
realidade física por intermédio de abstrações místicas e pseudocientíficas (LE GOFF,
1994.), entendendo a natureza como os quatro elementos que constituem o universo e o
homem.
As representações gráficas do espaço medieval também estão repletas de
elementos simbólicos, caros aos indivíduos deste período, evidenciando uma complexa
estrutura mental que reflete uma visão de mundo que mescla a natureza física com a

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


243
humana. O espaço medieval é o espaço do vivido, do empirismo. A capacidade de
abstração do homem ocidental neste período não se vincula a complexas fórmulas
matemáticas, a mensuração da realidade é fruto da experiência, das práticas cotidianas.
Os mapas-múndi medievais não eram necessariamente feitos por cartógrafos.
Por possuírem objetivos dos mais diversos, as dimensões de cada região variavam,
obedecendo aos interesses daqueles que elaboravam os mapas. Embora houvesse
conhecimento geométrico, esses não eram precisos e as formas nem sempre eram
espacialmente correspondentes. Atualmente temos o conhecimento de cerca de mil e
cem mapas do período medieval, dos quais, pelo menos novecentos encontram-se
inseridos em manuscritos. O simbolismo talvez fosse a característica mais marcante
destes mapas (ALEGRIA,1998: 26)
No que concerne à forma com a qual esses mapas eram apresentados, observa-se
a prevalência dos mapas T.O (Terrarum orbis), ainda no século XV. Neles, o Oceano
rodeia como um grande O os três continentes, Europa, Ásia e África, separados entre si
por duas faixas aquáticas (o Mediterrâneo e os rios Don e Nilo), que formam a letra T.
há quem associe esse formato à paixão de Cristo, a Santa Trindade, entre outros
elementos da simbologia cristã. Não se trata de uma representação fiel da realidade
espacial; ao contrário, está muito longe disso, figurando como a representação gráfica
das escrituras sagradas, apresentando no centro do mapa a cidade de Jerusalém, como
forma de demonstrar a sua importância no mundo cristão.
Essa concepção de mundo tripartido irá perdurar mesmo após a descoberta da
América. A concepção espacial do mundo enraizada na mentalidade cristã europeia não
fora totalmente superada no início da era moderna e nesse sentido vemos no século
XVI, cartógrafos bem constituídos e esclarecidos tentando explicar os dados objetivos
que lhes são postos, através de velhos mitos (ibidem: 31)

As navegações na Baixa Idade Média e seu impacto na representação do


mundo
No século XII a Europa expandiu-se para além das fronteiras continentais e
passou a aventurar-se no mar, seja o Mediterrâneo ou o Atlântico norte, que juntos
correspondiam a importantes rotas comerciais que se desenvolveram no período. Com a
expansão comercial, a necessidade de explorar novas rotas trouxe uma série de avanços

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


244
no que concerne às técnicas de navegação de longa distância e também em relação à
produção cartográfica que, doravante, torna-se mais realista e menos alegórica.
Nessa perspectiva, destaca-se o surgimento da carta portulano, em finais do
século XIII, apresentando uma apreensão geográfica-espacial pragmática. No portulano,
como bem aponta o historiador Eduardo Aznar Vallejo, o empirismo substitui o
conceitual (VALLEJO, 1994:62). Como o nome já nos informa, esta carta tem como
principal objetivo apontar os principais portos comerciais da Europa mediterrânica,
surgindo em um contexto de explosão urbana e de grandes intercâmbios comerciais. É
criado a partir da necessidade dos mercadores medievais saberem a localização exata
dos portos onde deveriam desembarcar as suas mercadorias, dotado, portanto, de um
caráter utilitário, o qual nunca foi a preocupação dos mapas-múndi até, pelo menos, o
século XV. Os portulanos constituíam-se em listas de localidades costeiras,
apresentando a distância entre elas e as direções de rota.
Uma nova postura frente à natureza e o seu funcionamento teve reflexos
importantes nos estudos geográficos e cartográficos do período (CORTESÃO,1987:
XIII). Doravante, as cartas náuticas tornam-se mais precisas e as navegações mais
seguras. Paulatinamente, vários instrumentos náuticos, a maioria de inspiração oriental,
vão sendo introduzidos no mundo ocidental, destacando-se dentre eles o astrolábio, a
bússola e a balhestilha.
A utilização do portulano era associada à bússola e juntos conferiram maior
precisão aos navegantes, como nunca antes na história da navegação ocidental. A
conjugação destes instrumentos funcionou muito bem, contudo, apenas nas navegações
mediterrânicas, mar sobre o qual os europeus possuíam um domínio de séculos. No
entanto, para aventurar-se no Atlântico, seria necessária uma evolução das técnicas
navais e cartográficas. Falamos, pois, de um longo processo que tem início com a
utilização da bússola e da carta portulano no século XIII e se concretiza com o
aperfeiçoamento das embarcações e com a criação na navegação astronômica, que
permitirá calcular a latitude e confeccionar cartas náuticas mais precisas, em meados do
século XV. Do mais, o Atlântico e suas representações cartográficas anteriores a
expansão marítima será pouco explorado.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


245
A navegação no Atlântico no século XV
A expansão marítima portuguesa deve muito aos avanços tecnológicos
observados a época. Destacamos, primeiramente, a grande contribuição que a
redescoberta dos estudos de Ptolomeu sobre cosmografia e geografia representou para
os horizontes geográficos do Ocidente.
Todas as referências técnicas e teóricas foram herdadas da navegação
mediterrânica e durante os primeiros anos da expansão portuguesa sobre o Atlântico
poucos foram os avanços. Nessa perspectiva, Luís J.S. de Matos assinala que o período
de 1419 até 1436 é verdadeiramente um período de aprendizagem onde se conjugaram
diversos aspectos concorrentes para o desenvolvimento da técnica que mais viria a ser
a efetiva ciência náutica (MATOS,1998: 74). Assim, os portugueses quatrocentistas
irão, conseguir, aos poucos e penosamente, superar os obstáculos naturais e desenvolver
novas tecnologias, conjugando o conhecimento empírico com a teoria da “escola” de
navegação mediterrânica.
Ao longo do século XV, os portugueses reuniram conhecimentos concretos
acerca da geografia da costa africana, dos ventos da região, bem como das correntes
marítimas que por ali passavam. A cartografia portuguesa quatrocentista possuía um
caráter muito pragmático, pois se erigiu a partir da experiência vivida pelos pilotos,
ultrapassando crenças clássicas, algumas das quais defendiam a existência de uma zona
tórrida intransponível (ALEGRIA, 1998: 38). No final do século XV a navegação
astronômica estava amplamente difundida entre os pilotos lusitanos. O seu
desenvolvimento e implantação se deu progressivamente devido à necessidade de
localizar-se em alto mar e a falta de conhecimento de pontos costeiros da parte dos
mareantes, obviamente por conta do ineditismo de suas navegações, permitindo um
cálculo mais preciso de localização e, igualmente, uma melhor carteação gráfica.

As Cartas Atlânticas Portuguesas


O conhecimento do espaço oceânico acumulado pelos portugueses ao longo do
século XV permitiu o desenvolvimento de uma cartografia mais refinada e precisa.
Desse período restaram três cartas náuticas a que os especialistas contemporâneos
atribuem “nacionalidade” portuguesa. São elas: a Carta de Módena, a Carta de Pedro
Reinel e a Carta de Jorge Aguiar.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


246
A Carta de Módena é a carta atlântica portuguesa mais antiga de que se tem
conhecimento, possuindo datação aproximada entre 1471 e 1482. Sua autoria é anônima
e sua existência e nacionalidade foram por séculos desconhecidas. Esta carta foi
roubada da casa ducal de Este no século XIX, sendo recolhida posteriormente e
conservada na Biblioteca Estense de Módena. Essa carta foi referida algumas vezes por
autores italianos e somente no início do século XX, Roberto Almagià a descreveu e a
reproduziu, vislumbrando a possibilidade da nacionalidade da carta ser portuguesa,
considerando que a toponímia encontrava-se em Português (MARQUES, 1987: 28).
A primeira vez em que se afirmou a nacionalidade portuguesa da Carta foi em
1940, quando A. Fontoura da Costa publicou um estudo da carta, com uma reprodução
colorida do padrão e texto em várias línguas. Costa havia tomado conhecimento da carta
em 1938, em um congresso de geografia em Amsterdã, através de Marcel Destombes. A
datação que Costa atribuiu à carta foi a de 1471. A motivação para tal deve-se ao fato de
que a toponímia e os espaços representados serem os reconhecidos pelos portugueses
após 1470, pois o Rio Lago aparece como o último dos topônimos, já na reentrância do
Golfo da Guiné . Estas paragens foram reconhecidas por navegadores a serviço do
mercador Fernão Gomes, no princípio de 1471 (ibidem: 30).
Trata-se de uma carta do Atlântico Oriental, mostrando as costas da Europa e
África, desde a Bretanha até a atual Nigéria. Representa, com bastante correção e
correta toponímia portuguesa, os arquipélagos atlânticos dos Açores, Madeira, Canárias
e Cabo Verde. Quanto à presença de Ilhas fantásticas, a carta apresenta a ilha de Mayda,
ao largo da Bretanha. Os espaços não portugueses que aparecem são a França e a
Bretanha, representadas com tamanha deformação, em contraste com o resto da carta, o
que, para Alfredo Pinheiro Marques, denota um desinteresse do cartógrafo por tais
regiões. Note-se também que o Mediterrâneo, nem sequer é representado. Quanto às
características estilísticas da carta, Marques assinala que embora elegante, o colorido e
o recorte do seu desenho são simples e parecem mostrar que estamos efetivamente
perante uma carta para fins hidrográficos. Conclui-se que se trata de uma carta cujo
objetivo era a navegação para novos espaços reconhecidos pelos portugueses
(ibidem:40).
A carta possui 617x732 mm de cumprimento, foi feita em pergaminho, não
apresentando a conformação integral do corpo do animal, sendo constituída por 16 rosas

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


247
dos ventos, agrupando-se à volta de uma grande rosa dos ventos central. Estão
desenhadas a central e seis das periféricas. No que concerne à sua tipologia, a carta é
similar aos modelos catalo-maiorquino, tratando-se de um exemplar de transição, pois
para além das características mediterrânicas já são vistas algumas das novas feituras
atlânticas portuguesas (CORTESÃO, 1984:61)
As sete rosas desenhadas têm já o Norte indicado pela flor-de-lis, à maneira
portuguesa; uma delas, no golfo da Guiné, tem uma outra flor de lis indicando o
Ocidente. Aparecem já os recortes “realistas” típicos da cartografia portuguesa que os
inaugurou (ibidem: 62)
Quanto à África, destacam-se as bandeiras muçulmanas no sul do Marrocos,
Cabo Bojador, Serra Leoa, Cabo das Palmas e perto do Rio do Lago. No rio Gambia há
uma bandeira com uma espada. Não há escudos em lado nenhum, nem na Europa, onde
só há a bandeira da Bretanha. Há bandeiras portuguesas em Arguim, o primeiro
entreposto português, já na época Henricina, e em Anima do Ouro, no centro do Golfo.
Não possui meridiano graduado, nem qualquer técnica que indique a navegação
astronômica. Tem dois troncos de légua na margem esquerda, posicionados no sentido
norte-sul, sem nenhum elemento que permita inferir que estejam presentes para a prática
do método de navegação astronômica (ibidem: 64)
A carta de Pedro Reinel é o documento cartográfico português mais antigo do
qual se tem conhecimento da autoria. Encontra-se em Bordeaux, na França e pouco se
sabe sobre a sua história. Tornou-se conhecido somente em 1960 em um colóquio de
História Marítima, em Portugal, realizado nas comemorações das descobertas
henriquinas (MARQUES, op. cit: 40). Por tal razão, não há nenhuma bibliografia sobre
o mapa anterior a década de 1960. Após tomar conhecimento de sua existência,
Armando Cortesão dedicou-se ao seu estudo.
Trata-se de um portulano atlântico que representa a Europa e a África desde as
ilhas britânicas até o Golfo da Guiné, dedicando uma seção ao Rio Zaire, possuindo,
portanto, uma amplitude maior do que a Carta de Módena, pois além de trazer mais
detalhes da Costa ocidental africana, nela também consta o Mediterrâneo Ocidental. Sua
toponímia é exata, sendo possível observar os arquipélagos atlânticos, além de duas
ilhas fantásticas, quais sejam: Mayda e Brasil. A toponímia bastante numerosa indica
uma exploração sistêmica da região (ibidem: 41).

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


248
Carta de Pedro
Reinel,C 1485.Portugaliae
Monumenta Cartográfica.

Há indícios de que seja uma carta hidrográfica, pois se observa em sua superfície
a existência de picadas de compasso nos troncos de léguas, denotando uma intensa
utilização. Ademais, os elementos de ornamentação são relativamente simples,
indicando o pragmatismo com o qual fora concebida. É uma carta em pergaminho,
apresentando a conformação completa do corpo do animal, inclusive o pescoço que
ocupa o lado norte do mapa, o qual possui 711mm x 948mm de dimensão. Seu sistema
de construção conta com uma rosa dos ventos central e dezesseis periféricas. Ressalta-
se, a partir da análise tipológica da rosa dos ventos, que assim como a Carta de Módena,
a Carta de Pedro Reinel ainda é considerada de transição, muito embora apresente
menos características mediterrânicas do que a de Módena (ibidem: 42)
No que tange às características decorativas da carta, esta possui duas grandes
figuras na África: uma grande leoa com a bandeira portuguesa, para além de Serra Leoa
como que defendendo essas paragens no Golfo da Guiné e da Costa da Mina e a
segunda é uma enorme cruz na foz do rio Zaire que parece marcar os limites das
explorações portuguesas à época. Além disso, a carta tem três escudos nas ilhas
britânicas e vinte e seis bandeiras, das quais quinze estão na África. Outro detalhe
interessante é a assinatura do cartógrafo, Pedro Reinel, que aparece em primeira pessoa.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


249
No que concerne aos limites, a carta ultrapassa a região do rio Lago avançando
para localidades bem ao sul do Equador, reconhecidas pela viagem de Diogo Cão na
década de 1480. Atenta-se para o fato de o mapa não apresentar dados de latitude,
contudo, já se tinha conhecimento da navegação astronômica àquela altura, todavia
alguns historiadores portugueses como Jaime e Armando Cortesão acreditam que a
ausência desses dados esteja relacionada à política de sigilo adotada durante o governo
de D. João II. Quanto a isso, ressalte-se que embora não haja a indicação de nenhum
meridiano, a correção do contorno na região do Golfo da Guiné denota uma correção de
latitude.(ibidem: 43)
Também chama atenção o fato de parte da costa está desenhada no interior do
mapa, suscitando algumas hipóteses, como a informação de novos dados em um
momento subsequente à elaboração do mapa, como quer Armando Cortesão ou a
necessidade de adequar a Carta a um padrão cartográfico antigo, aos moldes
mediterrânicos, que vai se tornando obsoleto com o avanço das navegações e com ele a
ampliação dos horizontes geográficos.
Ambas as cartas são documentos importantíssimos, pois revelam os avanços do
movimento expansionista português e também o elevado grau de desenvolvimento da
cartografia portuguesa que, gradativamente, vai desenvolvendo um estilo próprio,
desvinculando-se das escolas mediterrânicas, notadamente a catalã e a italiana.

Conclusão
Os avanços da tecnologia náutica e da cartografia permitiram que os portugueses
findassem o século XV com o completo domínio da navegação da costa ocidental
africana, alcançando o “maravilhoso” Oceano Índico e as riquezas do Oriente e
construindo um novo espaço oceânico e um “mundo-Atlântico”. A proeza lusa não se
deu ao acaso, sendo fomentada por questões de ordem política, econômica, ideológica e,
obviamente, tecnológicas, inseridas em um contexto de transformações do reino
português no final do século XIV e ao longo de todo o Quatrocentos.
Os feitos portugueses no século XV consistiram em ir além das fronteiras
conhecidas e imaginadas, pois como assinala da Luís Adão da Fonseca, “ o Atlântico
antes de ser descoberto foi imaginado” relativizando verdades que antes eram absolutas
e doravante passam a formar um espaço que mescla elementos reais com aqueles

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


250
presentes no imaginário, preenchendo o que não se conhece com aquilo que se imagina
ser. Tal construção do Atlântico, que deixa o limbo do imaginário e se insere o campo
das práticas e experiências humanas, deve ser analisado a partir da perspectiva do
espaço e das relações que os homens nele estabelecem, considerando também a relação
entre desenvolvimento tecnológico e a construção do espaço geográfico.

BIBLIOGRAFIA
ALEGRIA, Maria Fernanda; GARCIA, João Carlos; RELAÑO, Francesc. Cartografia e
viagens. In: BETHENCOURT Francisco e CHAUDHURI Kirti. História da Expansão
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São Paulo: Martins Fontes, s.d.
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Impressa Nacional, Casa da Moeda. 1987, v. 6
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VALLEJO, Eduardo Aznar. Viajes y descubrimientos en a Edad Media. Síntesis,
1994.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


251
AS RELAÇÕES ENTRE O PODER MONÁRQUICO E O PODER
ECLESIÁSTICO EM PORTUGAL AO TEMPO DE D. DINIS
(1279-1325)
Láisson Menezes Luiz
Universidade Federal de Goiás
Mestrando em História / Bolsista CNPq

RESUMO: Ao subir ao trono em 1279, uma das primeiras atitudes tomadas pelo
monarca português D. Dinis (1279-1325) foi resolver os conflitos existentes entre a
coroa, a nobreza e o clero que vinham se arrastando praticamente desde o reinado de D.
Afonso II (1211-1223), e que foram agravados posteriormente no reinado de D. Afonso
III (1245-1279). Somente depois de um prolongado período as negociações tiveram um
fim, resultando na promulgação das concordatas, o alvo principal dessa proposta de
pesquisa. Ao todo foram promulgadas três concordatas, duas no ano de 1289, uma com
40 e outra com 11 artigos, e uma terceira, em 1309, contendo 22 artigos. Por meio
destes documentos podemos perceber a complexa e conflituosa relação entre a coroa, a
nobreza e o clero na sociedade medieval portuguesa. Entendemos que, além da
pacificação, as concordatas também contribuíram, juntamente com outros mecanismos
implantados por D. Dinis, para diminuir a influência e o poder da nobreza e do clero e,
consequentemente, fortalecer e centralizar o poder nas mãos do monarca. Finalmente,
percebemos que as concordatas não puseram fim às intrigas que havia entre as diversas
ordens do reino, mas amenizaram essa relação, e já não era mais preciso recorrer à
Santa Sé para pôr fim às querelas entre a coroa, a nobreza e o clero no reino lusitano.

Palavras-chave: Concordatas, D. Dinis, Santa Sé

ABSTRACT: To the throne in 1279, one of the first actions taken by the Portuguese
King D. Dinis (1279-1325) was to resolve conflicts between the crown, the nobility and
the clergy that had been dragging virtually from the reign of Afonso II (1211-1223),
which were later aggravated in the reign of King Afonso III (1245-1279). Only after a
long time the negotiations were ended, resulting in the enactment of concordats, the
main target of this research proposal. In all three compositions were promulgated two
for the year 1289, and the other one with 40 to 11 items, and a third in 1309, containing
22 articles. Through these documents we can see the complex and conflicting
relationship between the crown, the nobility and the clergy in medieval portuguese
society. We understand that in addition to pacification, concordats also contributed,
along with other mechanisms deployed by D. Dinis, to reduce the influence and power
of the nobility and the clergy and hence strengthen and centralize power in the hands of
the monarch. Finally, we realized that the compositions do not put an end to the
intrigues which were among the diverse realm of orders, but eased this relationship, and
it was no longer necessary to resort to the Holy See to put an end to the quarrels
between the crown, the nobility and the clergy in lusitanian kingdom.

Keywords: Concordats, D. Dinis, Holy See

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


252
Em Portugal, o processo de pacificação nas relações entre o poder temporal, a
monarquia e o poder espiritual, o papado, foi obra de D. Dinis (1279-1325).
Analisaremos os fatores das discórdias e as estratégias políticas adotadas de ambos os
lados. Entre os problemas herdados do reinado de seu pai D. Afonso III (1248-1279), D.
Dinis encontrou o governo do reino desestruturado e com muita insegurança.
D. Dinis enfrentou graves problemas com o Clero, devido aos conflitos que
vinham se arrastando desde o reinado de seu avô D. Afonso II (1211-1223), e que foram
agravados posteriormente nos reinados do seu tio D. Sancho II (1223-1248) e do seu pai
D. Afonso III. O monarca se viu diante de uma relação conflituosa entre a Coroa e o
clero, pois o reino português estava sob interdito papal, o que causou grandes
transtornos à sociedade, pois as igrejas estavam fechadas e os cultos suspensos, e desde
o fim do reinado de D. Afonso III grande parte dos bispos portugueses encontravam-se
refugiados em Roma1.
Mas D. Dinis não teria conseguido diminuir as tensões existentes entre os dois
poderes se não obtivesse a colaboração de alguns personagens decisivos. Entre os quais
podemos destacar os franciscanos D. Frei Telo (1279-1291), que foi elevado a arcebispo
de Braga e Frei Jerônimo de Ascoli (1220-1292), eleito papa com o nome de Nicolau IV
(1227-1292), o qual resolveu a situação do reino português perante o poder eclesiástico.
Além destes, houve a influência pessoal de outros personagens que exerceram
importantes papéis no processo de pacificação, como foi o caso de D. Aymeric (1279-
1295), D. Frei Bartolomeu (1268-1292) e D. João (1285-1296), bispos respectivamente
de Coimbra, de Silves e Lamego, os quais durante as negociações foram os
procuradores do monarca em Roma. Até o bispo do Porto D. Vicente (1260-1296), que
havia criado muitos obstáculos durante o reinado de D. Afonso III, não encontrou
motivos para se opor a D. Dinis.
Com relação à organização eclesiástica medieval portuguesa deste período entre
os religiosos mais privilegiados no reino encontravam-se os bispos e os cônegos,
geralmente oriundos da nobreza. Inicialmente eram nomeados pelo rei passando pela
aprovação do clero, mas a partir da segunda metade do século XIII, as nomeações para
esse cargo passou a ser feita pelo próprio papa, devido, sobretudo à ingerência e

1 Encontravam-se na cúria romana os bispos D. Martinho de Braga, D. Egas de Coimbra, D. Mateus de


Viseu, D. Mateus de Lisboa, D. Vicente do Porto e D. Rodrigo da Guarda, bem como os procuradores dos
bispos de Lamego e Évora.

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discórdias existentes entre os monarcas e os eclesiásticos. Percebemos que essa
intromissão papal nas nomeações dos bispos, sem que houvesse qualquer consulta ao
monarca, foi frequente nos primeiros anos do reinado de D. Dinis, como nos casos da
transferência do Frei João Martins (1280-1301) para a diocese de Guarda, a nomeação
de D. Aymeric para Coimbra, que, como já mencionamos, foi importante para o
processo de pacificação e de D. Egas (1289-1313) para Viseu, com quem D. Dinis teve
vários conflitos.
Junto aos bispos, outro importante grupo que exerceu um papel importante no
clero português foram os cabidos, na qual havia uma grande interferência dos bispos,
dos reis e do próprio papa em sua nomeação. Os cabidos assim como os bispos eram
homens ligados à corte e consequentemente ligados ao poder político. Exerciam papel
muito importante junto aos bispos, pois eram eles que administravam a diocese quando
o bispo lá não se encontrava. Os seus membros eram o típico clero urbano, possuíam
propriedade e geralmente eram homens instruídos. Além dos bispos e dos cabidos, as
dioceses ainda eram compostas pelos priores e os presbíteros que desempenhavam papel
junto à população rural. (MARQUES, 1996:236).
Outro grupo era o clero paroquial, que estivera sujeito à dependência de uma
vasta rede de patronos e eclesiásticos. A questão do padroado, ou seja, o sistema que
dava sobretudo ao rei e ao nobres a possibilidade de indicar nomes para ocupar cargos
eclesiásticos mais importantes, foi uma das principais reclamações diante dos reis.
Como veremos mais adiante, uma vez que o clero paroquial era obrigado a dar diversas
contribuições, sobretudo aos bispos, como a visitação, as lutuosas e o sinodático2.
Sobre a organização administrativa e a composição social do clero medieval
português cabe a discussão de alguns pontos. Ele seguia a mesma linha da
administração civil. Assim, além das funções religiosas, exerceu importantes funções na
administração do reino. Entre elas podemos mencionar a guarda do selo real,
instrumento utilizado para validar os atos régios. Eram igualmente responsáveis pela
redação dos documentos e pela chancelaria régia, exercendo notadamente as funções de
notários e escrivães. Além desses cargos podíamos encontrar eclesiásticos nas funções

2 Visitação: Pagamento em gêneros, quando o prelado fazia a visita canônica. Também conhecida por
parada, jantar, procuração, censo, direito pontifical. Lutuosas: Pagamento por morte de abades, priores e
reitores de mosteiros e igrejas, em quantitativo variável, segundo os bens do defunto ou do benefício.
Sinodático: Pagamento em prova de sujeição ao bispo diocesano.

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254
de advogados, tesoureiros e conselheiros do rei. Devido a esse percurso na corte e a
aproximação com o rei, fez como que esses personagens percebessem a necessidade de
pôr fim às lutas entre o poder régio e o poder eclesiástico.
Sendo assim, percebemos que no reino português, a Igreja desfrutou de uma
situação privilegiada, resultante de uma época de profunda religiosidade, com a
ocupação de importantes cargos civis. Mas o que mais contribuiu para essa situação foi
sua capacidade de ligação com o sagrado, que deu suporte para a sua situação social e
política privilegiada, contribuindo para o alargamento do seu poderio político e até
econômico.

Antecedentes das relações dos monarcas portugueses com a Igreja


Os conflitos entre a Coroa portuguesa com a Igreja vinham de longa data. D.
Sancho I (1185-1211) enfrentou problemas com o poder eclesiástico, teve várias
contendas com o bispo de Braga, D. Martinho Pires. Mas a principal foi quando o
herdeiro do trono português, D. Afonso se casou com D. Urraca de Castela, e o bispo se
recusou a participar da cerimônia, o monarca reagiu, perseguiu os adeptos do bispo,
invadiu igrejas da diocese, mandando prender os eclesiásticos (SERRÃO, 1978:114).
A resposta foi imediata, o Papa Inocêncio III (1198-1216), mandou excomungar
o monarca e todos aqueles que o ajudaram, e caso os danos não fossem reparados todo o
reino seria excomungado. Este monarca também enfrentou problemas com o bispo de
Coimbra, D. Pedro Soares, que o acusou de interferir nos privilégios do clero. Ao ver a
morte se aproximar D. Sancho I, não teve outra saída a não ser curvar perante as
exigências do poder eclesiástico. Depois da morte de D. Sancho I, assume D. Afonso II
(1211-1223), que ficou conhecido como o Rei Legislador, pois foi defensor do
patrimônio régio, o primeiro a promulgar uma lei na qual se proibia que as igrejas
adquirissem por compra novos bens. Agiu principalmente sobre a propriedade
eclesiástica, prova disso foram as inquirições e confirmações, sistema que tinha como
objetivo verificar as propriedades irregulares e que estavam indevidamente na posse dos
clérigos.
Devido a esta atitude, D. Afonso II teve problemas com alguns clérigos, entre
esses podemos mencionar o arcebispo de Braga, D. Estevão Soares da Silva, que acusou
o rei não só da violência praticada contra a Igreja, mas até da vida escandalosa que o

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255
monarca levava, preferindo o adultério ao amor conjugal. Devido a essas acusações, o
monarca se irritou, passando a ameaçar o arcebispo, que em contrapartida excomungou
o monarca e lançou o interdito sobre o reino. O monarca reagiu, ordenando que se
destruíssem os bens patrimoniais de D. Estevão Soares. O pontífice Honório III (1216-
1227) interferiu tentando amenizar a situação, mas D. Afonso II não cedeu. Em 1222,
este mesmo Papa voltou a exigir satisfações do monarca, e como este não estava muito
bem de saúde devido à lepra, resolveu entrar em acordo com a Igreja, mas antes de
chegar a uma solução com a Igreja faleceu, deixando a cargo de seu filho, o futuro D.
Sancho II resolver esta situação em que se encontrava o reino lusitano.
Percebemos com isso, que a Igreja teve um papel atuante em Portugal. Mas este
fato não era exclusivo do reino português, em meados do século XII, os papas detinham
uma força política. Esse poder exercido pelos eclesiásticos foi largamente aceito pelos
monarcas e pela sociedade medieval europeia; somente era contestado quando algum
príncipe recebia alguma acusação, mas mesmo assim estes sempre estavam prontos a
servir a Igreja. Com isso, ao mesmo tempo que o monarca era o representante de Deus
nas questões políticas, sendo responsável por exercer a justiça e garantir a segurança da
população, inclusive da Igreja, devia também cumprir com suas obrigações como todo
cristão.
Para compreendermos melhor a relação entre o poder temporal e o poder
espiritual em Portugal durante o reinado de D. Dinis e o processo de pacificação entre
essas ordens, começamos a análise pelo reinado de D. Afonso III, pai de D. Dinis, pois
foi este que deu início ao processo de apaziguamento entre a coroa, o clero e a nobreza,
deixando assim as bases para que D. Dinis continuasse e pusesse fim àquela situação
conflituosa em que se encontrava o reino português.

D. Afonso III e sua relação com o Clero


D. Afonso III, assumiu o trono depois que seu irmão D. Sancho II foi deposto
pelo clero e pela nobreza, que sentiam seus interesses ameaçados pela instabilidade
social instalada no reino durante a administração de Sancho. O pontífice Inocêncio IV
(1243-1254), no concílio de Lyon realizado no ano de 1245, através das bulas Inter alia
desiderabilia e Grandi non emmerito, excomungou e depôs Sancho II, considerando-o
um rex innutilis, ou seja, um monarca incapaz de administrar o reino, reconhecendo

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256
mais tarde Afonso como o rei legítimo. Com base nesse acontecimento, percebemos o
papel que o pontífice exercia no reino português durante aquele período, pois o papa
podia perfeitamente punir e destituir o rei de seu trono e foi o que aconteceu com o
monarca D. Sancho II, que foi substituído por seu irmão (FERNANDES, 2000:17).
A Igreja depositava no novo monarca uma grande confiança, pois este já se
mostrava um defensor da Igreja. Mas a sua subida ao trono não foi fácil, ainda como
administrador do reino, teve de enfrentar uma forte resistência, que acabou ocasionando
uma guerra civil entre os anos de 1245 a 1248, mas tendo a Igreja como aliada, acabou
derrotando os defensores de D. Sancho II. Com isso D. Afonso deixou de ser apenas um
restaurador da ordem civil e consequentemente com a morte de D. Sancho II foi
coroado rei de Portugal.
Portanto percebemos que D. Afonso III encontrou um reino sob grande tensão,
devido aos conflitos envolvendo a coroa, o clero e a nobreza, por isso, um dos objetivos
iniciais deste monarca foi a restauração da estabilidade política. Pois, quando assumiu o
poder iniciou uma espécie de inspeção pelas principais regiões do reino, como Lisboa,
Coimbra, Guimarães, Braga, Ponte de Lima e Arouca, na qual buscou resolver os
problemas ali existentes e obter apoio para consolidar a sua autoridade (VELOSO,
1996:124).
E durante aquela visita por todo o reino, D. Afonso III verificou que algumas
partes do reino estavam em completa desordem. As inquirições de 1258 vieram revelar
imensos abusos de administração, com os quais sofria a autoridade real. Títulos falsos e
outras fraudes eram alguns desses abusos cometidos por parte do Clero, pelos nobres e
alguns integrantes da cúria régia. Esses fatos exigiram uma atitude mais severa de D.
Afonso III, com a finalidade de acabar com as desordens e regalias cometidas por essas
ordens em seu reinado.
Entretanto, a partir de 1267, as desavenças entre D. Afonso III e o clero se
agravaram, e os eclesiásticos passam a acusar o monarca de violências administrativas,
do confisco de bens e propriedades dos clérigos e dos nobres, da prisão, da eliminação
de alguns direitos dos eclesiásticos, do não pagamento de dízimos entre outras queixas.
O monarca reagiu às acusações, mas não obteve sucesso, já que suas ações não foram
suficientes para solucionar o conflito. Devido a este fato, todos os bispos, com exceção
do de Lisboa, decretaram interdito em suas dioceses.

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Ao ver a morte se aproximar, aquele monarca decidiu fazer as pazes com a
Igreja, não só para salvar a própria alma, mas para que o castigo divino não viesse a cair
sobre os seus herdeiros, por isso o monarca acatou as solicitações da Igreja e ordenou
que seus funcionários tomassem providência para corrigir as injustiças que ele cometeu
contra o clero e a nobreza. Mesmo com todo esse esforço, D. Afonso III não conseguiu
amenizar as relações com tais grupos, morreu excomungado e todo o reino encontrava-
se sob interdito papal. D. Afonso III deixou para o seu herdeiro D. Dinis, um reino em
desordem com relação à organização administrativa e a questão referente ao clero e a
nobreza a ser resolvido. Mas D. Afonso III foi quem deu inicio a esse processo de
pacificação, abrindo o caminho para que D. Dinis o viesse a concretizar posteriormente.

O reinado de D. Dinis e suas relações com o clero e a nobreza


O período do reinado de D. Dinis, ou seja, fins do século XIII e início do século
XIV, caracterizou-se por grande aumento do poder régio frente ao papado, isto ocorreu
principalmente devido às lacunas deixadas pelo poder eclesiástico, e também porque as
monarquias passaram cada vez mais a contar com juristas competentes e defensores do
poder régio. Apoiados no Direito Romano passaram a legitimar esse poder frente ao
poder eclesiástico, por isso podemos dizer que nos séculos XIII e XIV houve um
reajuste nas relações entre o poder temporal e o poder espiritual no Ocidente medieval
cristão.
Em Portugal compreendemos bem essa situação, pois foi um dos primeiros
reinos europeus a utilizar a prática legislativa. Entre os principais monarcas podemos
mencionar D. Afonso II, D. Afonso III e D. Dinis. O uso da legislação por esses
monarcas contribuiu para o processo de centralização do poder monárquico, para a
organização administrativa e a busca por uma identidade e independência para o reino
português dentro da Península Ibérica, além, é claro, de resolver as querelas com o
poder eclesiástico. Por parte de D. Dinis, houve o objetivo de diminuir a influência do
clero na sociedade portuguesa, como por exemplo, a fundação do Estudo Geral (1290),
na qual se percebe a preocupação deste monarca em dar formação para aqueles fora do
meio eclesiástico para o auxiliarem na administração do reino.
Sendo assim, a partir do reinado de D. Afonso II, os reis portugueses passaram a
se preocupar mais com a questão da legislação, o que no nosso entender foi onde

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começou a se agravar a relação dos reis portugueses com a Santa Sé e com a nobreza,
conflitos que não tiveram um fim imediato, mas um apaziguamento que ocorreu
somente com a promulgação das concordatas durante o reinado de D. Dinis.
Com base nessas informações, no reino português, nos séculos XIII e XIV, o
poder político estava dividido em várias esferas. Em particular o clero, devido à
concentração de terras e outras rendas. Assim, o monarca português elaborou leis para
acabar com tais situações, as quais ficaram conhecidas como “Leis de Desamortização
ou Leis Contra a Amortização”. Foi promulgada no ano de 1291, devido às várias
reclamações da nobreza com relação ao clero, pois seus parentes ao morrerem deixavam
todos os seus bens para as ordens eclesiásticas a que pertenciam, com o intuito de salvar
suas almas. Faziam doações para remir seus pecados, o que se tornava mais frequente
quando viam a morte se aproximar; entre os bens doados, davam-se, sobretudo, terras,
uma das fontes de riqueza e poder, e com essa concentração de terras nas mãos da
Igreja, observamos o exercício de uma política senhorial por parte das instituições
eclesiásticas. Devido a este fato, o patrimônio das famílias vinha diminuindo. E isso
também prejudicava o rei no que tange à defesa do reino, pois quem prestava o serviço
militar eram as pessoas pertencentes à média e pequena nobrezas, que estavam
empobrecendo. Com relação à lei, ficou decidido que os herdeiros poderiam vender um
terço de seus herdamentos, os quais não poderiam ser vendidos para as pessoas
pertencentes ao clero como os frades e os freis das ordens mendicantes e “donas
dordem”, isto é, religiosas, e o restante ficaria com os seus herdeiros, assim ordenava D.
Dinis para aqueles encarregados de fazer cumprir a justiça no reino, em 21 de Março de
1291.
Por isso, um fator que nos intriga no reinado de D. Dinis é justamente essa
relação com a Santa Sé, pois este monarca diferente dos seus antecessores, apesar de
exercer uma política de centralização do poder régio, tendo como princípio acabar com
a influência da Igreja sobre a sociedade medieval portuguesa mexendo principalmente
nas propriedades eclesiásticas e nos seus privilégios, não sofreu nenhuma pena mais
grave durante o tempo em que esteve à frente do reino.
Uma hipótese que levantamos sobre essa questão é a de que D. Dinis realizou
um grande esforço de conciliação durante o seu reinado, prova disso foi o
estabelecimento das concordatas, na qual o monarca utilizou o bom senso por

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


259
intermédio da diplomacia para resolver suas questões, ou seja, ao mesmo tempo que
acabou com alguns dos privilégios e abusos do clero, também aceitou algumas
condições impostas pela Santa Sé. Sobre a definição de concordata, diz tratar-se do

nome utilizado para designar as convenções solenes feitas entre as


autoridades, suprema e civil, tenha esta ou não representantes diplomáticos
habituais junto a Santa Sé, sobre determinados assuntos, geralmente
controversos, de interesses para ambas as partes, com aceitação de certos
deveres e reconhecimentos dos direitos da Igreja por parte do Estado e
concessão de privilégios da parte da Igreja (COSTA, 1971:143).

Durante o reinado de D. Dinis foram promulgadas três Concordatas, duas nos


anos de 1289, uma com 40 e outra com 11 artigos e uma terceira no ano de 1309,
contendo 22 artigos. (COSTA, 1971:143).
Outra hipótese que colocamos sobre a relação entre o rei e o clero no reinado de
D. Dinis foi o uso da legislação, em que Portugal foi um dos primeiros reinos europeus
a utilizar tal prática. Sobre os motivos da intriga envolvendo o rei e a Igreja durante esse
período foram diversos, mas alguns se destacaram mais, e entre esses podemos citar os
problemas relativos ao foro eclesiástico, aos abusos dos padroeiros, às questões
tributárias, às sanções eclesiásticas, às violências entre os clérigos, e o confisco dos bens
da Igreja.
Todos estes pontos de atrito que acabamos de citar estão presentes nos artigos
das concordatas, alguns em número maior e outros já nem tanto, entre os que mais são
evocados, destacamos os abusos cometidos pelo rei, seus funcionários e parte da
nobreza contra os clérigos, uma reclamação constante nas três concordatas. Por isso,
analisaremos agora os principais abusos cometidos pela coroa e a nobreza contra os
clérigos.

Abusos cometidos pela coroa e nobreza contra os clérigos em Portugal


Para uma melhor compreensão dos artigos tratados em nossas fontes em questão
decidimos separá-los por temática e discuti-los. O assunto mais abordado diz respeito
aos abusos cometidos pelo rei, seus funcionários e parte da nobreza contra os clérigos.
Esse é o assunto mais recorrente nas três concordatas e o principal motivo das
discórdias entre os grupos mencionados, na qual podemos verificar que ao longo do
tempo essa questão não foi resolvida. Esses abusos ocorriam principalmente por causa

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da reação dos monarcas e parte da população, devido, sobretudo, ao grande acúmulo de
terras por parte dos eclesiásticos, o que fez com os monarcas agissem no sentido de
impedir o alargamento exagerado dos senhorios eclesiásticos (CAETANO, 1992:292).
Com relação aos abusos cometidos contra os clérigos, ocorreram principalmente
por causa da usurpação dos bens e direitos do clero, isso se deu principalmente pela
tentativa de afirmação do poder régio frente ao poder eclesiástico. D. Dinis, com o
objetivo de diminuir as propriedades eclesiásticas e a sua influência e seu poder acaba
interferindo em alguns privilégios.
Partindo da analise da concordata de 40 artigos, considerada a mais completa,
não só pelo número de artigos, mas por abordar uma grande quantidade de assuntos,
percebemos como estava a situação entre a Coroa e o Clero, pois nos primeiros artigos
os bispos e os priores reclamavam que quando excomungavam algumas pessoas do
reino devido ao não pagamento dos dízimos “[...] ou os outros dereitos que lhis deuem
[...]” (Livro das Leis e Postura, 1971:343)3, ou quando estes põem interdito em algum
lugar do reino, o rei e seus funcionários reagiam saqueando os bens eclesiásticos. Não
satisfeitos em usurparem esses bens, o monarca juntamente com os seus funcionários
constrangiam os bispos e os abades “[...] per ameaças ou per spantos [...] pêra
reuogarem as semtenças que derom [...]” (LLP, 1971:343). Portanto, não se
contentando apenas com a apropriação indevida dos bens eclesiásticos, o monarca e
seus funcionários ameaçaram os religiosos, caso estes não retirassem o que tinha sido
imposto, ou seja, a excomunhão ou o interdito. Em resposta a estas acusações, os
procuradores do rei disseram que o rei não fez nada disso, dizendo que restituiria o que
foi saqueado. Na concordata de 1309, os eclesiásticos voltam a reclamar desse abuso
que estavam sofrendo, a diferença é que na concordata de 1289, o rei se comprometeu a
restituir os bens saqueados dos eclesiásticos, enquanto na concordata de 1309, o acordo
não fala em satisfazer os clérigos por esses bens.
Em outro artigo da concordata de 1289, o clero reclama que o rei, seus
meirinhos e juízes estavam prendendo, enforcando e em alguns casos até matando os
eclesiásticos. A resposta que os procuradores do monarca deram a essas acusações foi
que “[...] elRey nom fez taees cousas nem forom fectas no seu tempo” (LLP, 1971:347),
ou seja, tais agressões já vinham sendo praticadas a algum tempo pelos monarcas

3 Utilizaremos a seguinte sigla LLP – Livro das Leis e Posturas.

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antecessores a D. Dinis. Mas este monarca prometeu que a partir desse momento que tal
prática não iria acontecer mais, se tal fato acontecesse novamente o rei “[...] fora
comprimento de Justiça a quem lhes demandar. fazendo lhes satisfazer dos danos e dos
tortos e peando aqueles que os prenderom assy como forem peadyros”. (LLP,
1971:347). Se os eclesiásticos fossem presos injustamente o monarca repararia os danos
causados e puniria os responsáveis. Segundo estes últimos não eram somente o rei e
seus funcionários que os estavam constrangendo os eclesiásticos, os mouros e os judeus
constantemente faziam ameaças, principalmente aos bispos e arcebispos. Em resposta os
procuradores do rei disseram que tais coisas não eram verdade.
Além do monarca e dos seus funcionários, segundo as concordatas os
eclesiásticos também sofriam com a nobreza. Reclamam das ofensas verbais
perpetradas pelos ricos-homens4 e seus vassalos5. Em outros artigos os eclesiásticos
mencionam que os ricos-homens como outros constrangiam os clérigos, mandando-os
tirarem as roupas em público para desonrá-los. Reclamavam que quando os cavaleiros6
ao voltarem da guerra “[...] elles e os seus homeens filham pam e vinho e uacas e porcos
e as outra uiandas das eygreias e dos Bispos e dos clerigos” (LLP, 1971:350), faziam
isto e utilizavam a desculpa de estar em guerra, dizendo que pagariam, mas o que não
acabava acontecendo. Além de se alimentarem às custas dos eclesiásticos, os nobres e
os oficiais do rei buscavam estadia “[...] nas Casas dos bispos e das pessõas
ecclesiasticas e dos coonigos e dos outros clerigos contra ssa uoontade e contra a
liuredoe da eygreia [...]” (LLP, 1971:377). Além de se satisfazerem dos alimentos e das
acomodações dos eclesiásticos, os ricos-homens e os cavaleiros eram acusados de
“pegar”, “[...] todolos beens dos prelados da eygreias. Mosteiros e doutras quaesquer
pessõas das eygreias per ty [...]” (LLP, 1971:357). Segundo estes artigos, não era só o
rei que estava agindo dessa maneira, havia parte da nobreza, como os ricos-homens e os
cavaleiros que estavam tomando as propriedades eclesiásticas, por isso o clero exigia
que fossem tomadas providências e devolvidos os bens que foram saqueados e que
fossem reparados dos “[...] os danos e dos tortos que lhys foram fectos” (LLP,
1971:357).

4 Os “ricos-homens” compõem o grupo social mais alto da nobreza, seguida pelo escalão médio dos
cavaleiros ou infanções e o mais baixo dos escudeiros.
5 Já o vassalo no vocabulário feudal significou “fiel do rei”, aquele que lhe era fiel na guerra e em
contrapartida recebia segurança.
6 Cavaleiros era o nome que se dava aqueles pertencentes a média nobreza ou infanções.

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As acusações contra os abusos cometidos contra os eclesiásticos aparecem
também relativas às nomeações de pessoas para a ocupação de cargos eclesiásticos.
Segundo as concordatas o monarca perseguia os eclesiásticos, ameaçando-os caso estes
não recebessem as pessoas que foram escolhidas pelo rei para ocupar os cargos
eclesiásticos que estavam vagos. E quando os clérigos não aceitavam bem os escolhidos
do rei, este confiscava-lhes os bens. Como já mencionamos anteriormente, o direito de
escolher pessoas para ocupar os cargos religiosos foi alvo de diversos conflitos entre o
poder régio e o poder eclesiástico.
Por fim, podemos mencionar as reclamações do clero relativo às inquirições7
levadas a cabo por D. Dinis, sobre as terras eclesiásticas, na qual o rei incorporava essas
terras para si, dizendo que não pertenciam à Igreja. As inquirições realizadas por D.
Dinis tinha como objetivo controlar os abusos senhoriais, da nobreza, mas
principalmente do clero que detinha grande quantidade de terras em sua posse.
Além do mais, podemos perceber a inquietação dos eclesiásticos com os
crimes que eram cometidos contras os clérigos, estavam preocupados também com os
empréstimos de alimentos feitos pelos ricos-homens e cavaleiros, pois a comida neste
período era muito escassa, mal dava para os clérigos, além do mais os eclesiásticos
estavam inquietos com a repressão aos bens eclesiásticos.

Considerações finais
Nestes artigos, verificamos que a violência e os abusos cometidos contra os
eclesiásticos já vinham sendo praticados desde a fundação de Portugal como reino
independente, desde os tempos de D. Afonso Henriques, e que com o tempo só foram se
agravando, até chegar a um ponto em que a situação acabou se tornando insuportável
para os dois lados, tanto para o poder temporal como para o poder eclesiástico,
carecendo de uma solução.
Percebemos também que as violências e os abusos que eram cometidos pelo rei,
seus funcionários e membros da nobreza e que foram mencionados nos artigos aqui
analisados, grande parte não aconteceu durante o reinado de D. Dinis, eram queixas com
relação aos monarcas anteriores. Isso ocorreu provavelmente devido ao fato de o
monarca D. Dinis agir diplomaticamente e não bater de frente com a Igreja como

7 Ao todo D. Dinis promoveu diversas inquirições no reino português, ocorreram em 1284, 1288, 1301,
1303-1304 e 1307-1311, fato que demonstram a sua determinação, em controlar os abusos senhoriais.

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263
fizeram os monarcas antecessores, atitude que contribuiu para que aquele monarca
viesse a estabelecer uma relação de paz com a Igreja.

FONTE
LIVRO das Leis e Posturas, transcrição paleográfica de Maria Teresa C. Rodrigues,
Universidade de Lisboa. Faculdade de Direito. Lisboa: 1971.

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RESÍDUOS DO AMOR MEDIEVAL EM PEQUENO
ROMANCEIRO

Leonildo Cerqueira Miranda


(UFC/ MESTRADO EM LETRAS/ CAPES)
Elizabeth Dias Martins
(UFC/ DOUTORA EM LETRAS PUC-RIO)

RESUMO: A vassalagem amorosa durante a Idade Média, flagrante nos textos


artísticos, caracterizou-se por uma entrega completa do homem à figura de sua amada,
elevando-a a um patamar de plena adoração. Michel Pastoureau (1989) chama a atenção
para o fato de esse amor não ter passado de uma virtualidade, e, por isso, ter seu
correspondente apenas na literatura. O “amor cortês” não se restringiu ao medievo, mas
perpetuou-se na literatura e continuou servindo de matéria a poemas e a prosas. Nossa
pesquisa fará uma análise, com base na Teoria da Residualidade (PONTES, 1999), de
dois textos do Pequeno romanceiro, de Guilherme de Almeida, a saber, “Lenda” e
“Dona Tareja”, em que observamos a recorrência da matéria amorosa ao estilo
medieval, em textos produzidos em 1957, reiterando o caráter residual do amor cortês
na literatura brasileira.

Palavras-chave: Amor cortês, Pequeno romanceiro, Teoria da residualidade

ABSTRACT: The loving allegiance during the Middle Ages, as seen in artistic texts,
was characterized by a complete surrender from men towards their love done, elevating
her a plateau near full worshiping. Michel Pastoureau (1989) draws attention to the fact
that this love is virtual, and, therefore, has it's own counterpart only in literature. The
"courtly love" is not restricted to the Middle Ages, but perpetuated through out literature
and kept being used in poems and prose. Our research will analyze, based on the Teoria
da Residualidade (PONTES, 1999), two pieces from the Pequeno Romanceiro, by
Guilherme de Almeida, namely, "Lenda" and "Dona Tareja", in which we observe there
currence of love in medieval style, in texts from 1957, reiterating the residual
characteristic of "courtly love" in Brazilian literature.

Nas produções artísticas medievais, poucas não foram as vezes em que se falou
sobre a matéria amorosa. O assunto esteve de maneira tão presente nos textos e no
imaginário medieval que chegou a caracterizar todo um período, como o século XIII,
com as cantigas trovadorescas — as de amor e as de amigo. Por volta do século XV, o
tema ainda deu vazão a inúmeros textos como os do romanceiro oral da tradição, em
que encontramos evidências do sentimento amoroso ao modo trovadoresco,
caracterizado pela idealização e entrega do homem à mulher amada (cantigas de amor) e
pelo lamento saudoso da mulher que espera o retorno do amado (cantigas de amigo),
como esclarece Maleval (2002: 14-15).

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266
O historiador Michel Pastoureau, em No tempo dos cavaleiros da Távola
Redonda (1989), questiona abertamente a consistência real dessa forma cortês de amor,
classificando-a muito mais como idealização: “As obras literárias, de fato, oferecem ao
historiador a imagem mais completa e sedutora da vida afetiva. Mas será uma imagem
fiel?” (PASTOUREAU, 1989: 143). Mais adiante afirma ainda: “O amor cortês é um
tema literário destinado a um público restrito. De acordo com os próprios poetas,
consiste numa expressão da afetividade reservada a uma elite. Portanto, é difícil admitir,
como se fez muitas vezes, que ele tenha sido realmente vivido.” (PASTOUREAU,
1989: 150).
Do mesmo modo, para Huizinga (2010), a expressão desse sentimento através
dos textos artísticos não condizia com a realidade, mas com um ideal. Assim, não
podemos encarar os textos como relatos do que ocorria de fato, mas como o desejo, ou,
para usarmos expressão do referido historiador, como o “anseio por uma vida mais
bela” (HUIZINGA, 2010: 47). A ostentação que permeava a vida nos palácios, a rotina
dos reis e de seus agregados e a busca pela glória presente no universo cavaleiresco são
exemplos de uma sociedade fascinada por construir o “embelezamento da vida”
(HUIZINGA, 2012: 57). Huizinga complementa: “o brilho da felicidade do final da
Idade Média também não passou despercebido: ele sobreviveu na canção popular, na
música, nos horizontes quietos da pintura de paisagem e nos rostos sóbrios dos
retratos.” (HUIZINGA, 2010: 47). Apesar de não ter uma relação direta para com os
fatos reais e cotidianos da vida medieval, essa idealização era possível justamente
porque a vida estava arraigada no imaginário literário e vice-versa. As fronteiras entre a
fábula e a realidade ainda não eram muito claras para o homem medieval.
Dessa maneira se deu com o tema do amor. As relações de afeto flagradas nos
textos artísticos eram moldadas pela idealização. A matéria amorosa, entretanto, não se
restringiu ao medievo, pois é possível notar seus resíduos ao longo dos séculos
seguintes, como no Romantismo do século XIX, momento em que a entrega apaixonada
do amante é retomada sob a forma do derramamento lírico, do mergulho na
subjetividade.
Porém, é na metade do século XX que nos deteremos, pois Guilherme de
Almeida (1890 – 1969), poeta da geração modernista brasileira, em seu Pequeno
romanceiro (1957), retomou o romance da tradição medieval. Dentre os textos presentes

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na obra, encontramos alguns que tratam do tema amoroso, a exemplo de “Lenda” e de
“Dona Tareja”.
Pequeno romanceiro (1957) é composto por quatorze romances, forma medieval típica
da Península Ibérica do século XV, narrativas orais de tradição medieval, nascidas do povo, nas
quais encontramos as histórias contadas para o divertimento, para a distração do trabalho e para
preservar a memória histórica. Isso porque muitas delas teriam vindo, segundo estudiosos da
área, do filão das canções de gesta, cujo objetivo inicial era difundir por meio de textos cantados
os feitos de reis e cavaleiros em guerras travadas.
Sobre a definição de romance, Pinto-Correia afirma:

o romance tradicional é uma composição de manifestação linguístico-


discursiva, de natureza poética (algumas vezes acompanhada de música),
com uma organização semântica narrativo-dramática, altamente variável
(versões e variantes) em ambas as suas componentes textuais (na expressão
e no conteúdo), e que, situada na literatura oral tradicional, se insere no
extracontexto da vida social quotidiana de uma comunidade popular (nos
momentos de trabalho ou de lazer). De acrescentar que o romanceiro se
apresenta como um conjunto de composições geralmente muito curtas nas
suas concretizações-ocorrências. (PINTO-CORREIA, 1986: 8-9)

Essas narrativas receberam esse nome, antes de tudo, porque eram vazadas na língua
vulgar, uma variação do latim culto. Com o tempo, devido à presença do recurso rímico, surge a
denominação “rimance”, uma explícita aglutinação entre os dois termos. Para Faria Júnior
(2009), isso teria acontecido por volta do século XV: “Ao que parece, é apenas com a entrada de
cantos assonantados, de matiz popular, na Corte castelhana, na segunda metade do século XV,
que o vocábulo ‘romance’ passa a denominar um tipo relativamente específico de texto
literário.” (FARIA JÚNIOR, 2009: p. 8).
Voltando-nos, portanto, para Guilherme de Almeida, encontraremos o resgate desse
modo poemático, que é o romance oral da tradição, a fim de constatar a remanescência do amor
ao modo trovadoresco nos textos selecionados para a análise. O primeiro deles é “Lenda”:

Vêm ali dois cavaleiros


cavalgando devagar:
ginete com xairel de aço,
corcel com seu alfabar;
loriga de ouro do sol,
arnês de prata do luar,
no morrião, pluma de céu,
no elmo, pluma cor de mar;
cinco lises no broquel,
pendão de escarlata no ar;
um montante na manopla,
no alto lança de lidar.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


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Vão alem dois cavaleiros,
lado a lado, a galopar.
A um mesmo alcácer vão eles
a mesma dama salvar:
a dos olhos de alcaçuz
que um rei mouro quer matar.
O que livrar a princesa
com ela se há de casar;
o que por ela morrer
esse a donzela há de amar.

Vem ai um cavaleiro
solitário a cavalgar:
traz a viseira descida
sobre a tristeza do olhar,
e a cabeça do rei mouro
na lança em riste, a sangrar.
(ALMEIDA, 1957: 19-21)

No romance, comparecem temas propriamente medievais, como o mouro e a cavalaria,


no entanto, ambos giram em torno do tema central, que é o do amor, afinal, o poema fala da
salvação de uma princesa, a qual se encontra em um cárcere, sob o poder tirano de algum rei
mouro. Esta princesa deve ser resgatada por dois cavaleiros, apresentados logo de início.
O poema é dividido em três estrofes. Na primeira, destacam-se as figuras dos
cavaleiros, havendo uma descrição de toda a indumentária tipicamente mediévica e própria de
cavaleiros de alta estirpe. É possível notar a idealização e o tratamento elevado da figura
cavaleiresca nessa primeira parte, em que as armaduras são evidenciadas e, notamos, concorrem
como representação da bravura e coragem dos cavaleiros. O primeiro verso “Vêm ali dois
cavaleiros” (ALMEIDA, 1957: 19) serve para apresentar as duas figuras e abrir a sequência
descritiva de elementos componentes das armaduras. A imponência dos soldados é própria da
literatura cavaleiresca e necessária ao imaginário amoroso dessa época, como Pastoureau
explica:

De resto, toda uma literatura o alimenta. Uma literatura exaltante, que


descreve combates heróicos, em que cavaleiros magníficos, em armaduras
brilhantes, realizam feitos de guerra inumeráveis, antes de encontrar uma
morte sublime ou de conquistar a mais gloriosa das vitórias.
(PASTOUREAU, 1989: 101)

O herói deve estar a serviço dos fracos, dos indefesos e dos injustiçados, por isso, de
acordo com seu código de honra, devem prezar pelas donzelas, como é o caso do romance em
análise. Por elas, arriscam-se às várias situações, dispostos a matar ou morrer. A imponência em
que aparecem, bem vestidos e reluzentes, é reflexo da glória em que os cavaleiros viviam e
desejavam morrer. Assim, na segunda estrofe, devidamente caracterizados em suas armaduras,

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269
os heróis partem em busca do cativeiro, onde a princesa está: “Vão alem dois cavaleiros”
(ALMEIDA, 1957: 20).
Interessante observarmos que, apesar de a figura feminina ser a causa da batalha a que
os cavaleiros submeter-se-ão, bem como ser objeto de interesse do rei mouro, o qual a capturou,
a referência feita a ela é muito rápida. A única expressão qualificativa dispensada à donzela é
direcionada aos seus doces olhos no verso: “a dos olhos de alcaçuz” (ALMEIDA, 1957: 20).
Ainda assim, os cavaleiros surgem e seguem para a batalha com o rei mouro, por conta
da donzela, portanto, ela possui importância central em “Lenda”, afinal, o perigo no qual a moça
se encontra deve constituir-se o elemento motivador do enfrentamento guerreiro. Na Idade
Média, encarar os medos em nome do ideal amoroso era espécie de cláusula inquestionável
entre os jovens. Era preciso nutrir o amor por uma dama e, por ela, demonstrar bravura. No caso
de “Lenda”, tudo gira em torno do cumprimento dessa cláusula:

O cavaleiro e a amada, o herói em nome do amor, são o motivo mais


primário e imutável que em toda parte renasce, e sempre renascerá. [...] Ele
nasce diretamente da necessidade do homem de demonstrar a sua coragem
para conquistar uma mulher, para correr perigos e ser forte, sofrer e
sangrar; a aspiração de todo jovem de dezesseis anos. [...] O feito heroico
deve constituir-se na libertação ou no resgate da própria mulher do perigo
mais ameaçador. (HUIZINGA, 2010: 116)

Movidos, então, pelo desejo de resgatar a donzela das mãos do rei mouro, os cavaleiros
seguem para a lida. Entretanto, há um detalhe para o qual o narrador atenta, não podendo passar
despercebido de nossa análise, afinal, ele justifica o final do poema. Trata-se da sequência dos
últimos quatro versos da segunda estrofe: “O que livrar a princêsa/ com ela se há de casar;/ o
que por ela morrer,/ esse a donzela há de amar” (ALMEIDA, 1957: 20). Nesse trecho
apresentam-se as condições amorosas aos pretendentes. A ideia do sacrifício mais extremo pelo
amor era encarada de maneira muito sublime, pois, mais nobre que a ideia de salvar a donzela
era a de morrer por lutar em seu favor. Isso se configura de tal maneira a colocar aquele que
morresse na condição privilegiada de angariar o amor da mulher cortejada, enquanto o outro
desfrutaria apenas do matrimônio.
Como Pastoureau (1989) explica, durante a época medieval, casamento e amor não
estavam necessariamente atrelados. Inúmeras vezes casava-se por convenção social ou por
interesses políticos, ainda que não descartemos a motivação amorosa em outros casos:

Por um lado, vários indícios tendem a demonstrar que não existe afeição
conjugal: diferenças de idade entre os cônjuges; papel dos pais no arranjo
do casamento; papel do dinheiro nos contratos; desinteresse pelos filhos;
frequência da viuvez e das segundas ou terceiras núpcias. Mas, por outro,
documentos nos mostram que os casamentos clandestinos, sem o

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


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consentimento dos pais, da família ou do senhor, contam-se às centenas por
toda parte. [...] Se há muitos casamentos por interesse, há também por amor.
(PASTOUREAU, 1989: 151)

A terceira estrofe do romance inicia-se com um terceiro movimento: a volta de um dos


cavaleiros, solitário. Subtende-se, portanto, que o outro jovem morreu na aventura a que se
lançaram. Na estrofe em referência há dois versos centrais e de profunda significação, ao qual
associamos aos últimos versos da estrofe anterior, em que se estabelece o merecimento do amor
da princesa àquele que morrer no combate e ao sobrevivente a mão dela em casamento. Assim,
temos este cavaleiro sobrevivente descrito da seguinte forma: “traz a viseira descida/ sôbre a
tristeza do olhar” (ALMEIDA, 1957: 21). Ao contrário do que poderíamos esperar, o guerreiro
não está feliz com o resultado do resgate, pois, se ele se manteve vivo significa não gozar do
amor de sua dama, mas apenas casar com ela. É para o outro, morto no campo de batalha, que
os sentimentos e a estima maiores serão direcionados.
O cavaleiro que retorna deve contentar-se com o casamento e com a sua glória pela
vitória sobre o mouro, exibindo a cabeça do pagão como prova do cumprimento do ato heroico:
“e a cabeça do rei mouro,/ na lança em riste, a sangrar.” (ALMEIDA, 1957: 21). A plena
satisfação está garantida para aquele que morreu, pois, conforme Huizinga explicita, ao falar
sobre o desejo dos jovens guerreiros de correr perigos, encontrando na morte a realização mais
sublime, a demonstração mais profunda de dedicação à amada:

Expressar e satisfazer esse desejo, algo que parece inalcançável, é


substituído e elevado pelo ato heroico praticado por amor. Com isso, a morte
passa a ser imediatamente uma alternativa para tornar plena a satisfação
que, por assim dizer, fica garantida de ambos os lados. (HUIZINGA, 2010:
116)

Fica, portanto, evidente que, em “Lenda”, a figura central feminina é cortejada por dois
jovens cavaleiros, os quais cumprem todos os preceitos do amor cortês, próprio do imaginário
amoroso medieval encontrado nas cantigas trovadorescas: o objetivo é servir à dama da forma
mais elevada possível, a fim de conquistar o seu amor.
Guilherme de Almeida também imprimiu as notas desse amor cortês ao romance “Dona
Tareja”. Nesse texto, contrário ao de “Lenda”, a figura feminina aparece com maior destaque,
pois há a confissão direta do amante a sua dama. O poema é composto em discurso direto, desde
o primeiro verso, excetuando-se a última estrofe, em que a voz poética direciona-se à dona
Tareja em terceira pessoa:

— “Senhora Dona Tareja,


digades-me que vos praz!
Ca não sei do que eu não seja

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


271
por vosso grado capaz.
Em andanças andaria
por terras de aca e alhur,
de arrraiais da mouraria
à corte do Rei Artur;

em barcas que o vento leva


por mares que grandes são,
té que mergulhem na treva
sem timoneiro ao timão;

por o mandares, Senhora,


partirei, e não por al;
e se impiedade não fora,
vos eu filhara o Graal.

O sol, que me demandásseis,


e a lua, com seu luar,
presas seriam fáceis
que o não poder vô-los dar.

Senhora Dona Tareja,


estê vossa fiúza em paz,
ca tudo o que ela deseja
muito me praz, pois vos praz”.

Pediu que nada lhe desse.


Mal de mim por o pensar
que do que lhe eu dar pudesse
só nada não posso eu dar!
(ALMEIDA, 1957: 79 – 81)

A vassalagem amorosa é flagrante nesse romance, pois o homem dedica-se


completamente a servir sua Senhora. Por ela, o amante é capaz de qualquer ato, bastando
ordenar-lhe, constituindo-se como única condição tratar-se de algo que seja do agrado dela. A
abordagem inicial deixa isso em evidência, ao dizer: “— Senhora Dona Tareja/ digades-me que
vos praz!” (ALMEIDA, 1957: 79). Na sequência, o vassalo entrega-se totalmente ao serviço,
revelando não saber de que proeza ele não seria capaz de realizar em favor da senhora: “Ca não
sei do que eu não seja/ por vosso grado capaz.” (ALMEIDA, 1957: 79).
Dessa maneira, tentando provar sua capacidade de enfrentar os maiores perigos ou
realizar o impossível, o amante dá início a uma sequência de atos que ele poderia cometer para
conquistar a amada. Como vimos ao longo da análise de “Lenda”, a cavalaria estava repleta
desse desejo de perigo, de sacrifício extremo e de enfrentamento dos medos como demonstração
amorosa. É isso também o que ocorre em “Dona Tareja”.
Na segunda estrofe, o amante cogita andar longas distâncias, enfrentando mouros e
estando entre aqueles da corte do Rei Artur; novamente o ideal cavaleiresco permeia o
imaginário amoroso medieval. Notemos ser esta a primeira alternativa apresentada pelo jovem

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


272
amante; ele se tornaria um cavaleiro para, entre os perigos da guerra, honrar o nome da sua
senhora.
Não sendo isso suficiente, o servo apresenta outra prova de coragem: lançar-se em
aventuras marítimas. No imaginário medieval, o mar era o lugar do perigo, do mistério, dos
grandes monstros e do fim do mundo. Avançar mar a dentro significava entregar-se a todas as
possíveis adversidades conhecidas e não. Portanto, aqueles que se aventuravam à exploração
marítima davam mostra de sua inestimável bravura.
A literatura de viagens, através de diários de bordo, está eivada de relatos maravilhosos
e de peripécias vividas pelos marinheiros. Em Diários da descoberta da América, de Cristóvão
Colombo, ainda é perceptível o temor diante do mar. Àquela época, o homem acreditava que,
quanto mais longe se distanciasse da terra, mais próximo estava do fim do mundo, pois o mar
acabava em um infinito abismo. Por esse motivo, quando Cristóvão Colombo empreendia as
viagens à América pela primeira vez, ordenava que seu escrivão registrasse em seus cadernos
cifra inferior às correspondentes às léguas percorridas em cada jornada. Colombo procedia
assim para minimizar o medo da tripulação, que estava sempre mais longe do que pensava estar,
sem o saber:

Segunda, 10 de setembro — Entre o dia e a noite, percorreu sessenta léguas,


a dez milhas por hora, o que vem a dar duas léguas e meia; mas só
registrava quarenta e oito, para que ninguém se assustasse se a viagem fosse
longa.
Terça, 11 de setembro — Nesse dia se mantiveram na rota, que era para o
oeste, e percorreram mais de vinte léguas [...]. À noite percorreram cerca de
vinte léguas, mas registrou apenas dezesseis, pelo motivo já apontado.
(COLOMBO, 1998: 34-35)

Relatos de ordem sobrenatural também constam na historiografia medieval, como


encontramos em Luís Weckmann, em seu La herencia medieval del Brasil (1993), em que o
autor mostra como a ideia de seres marinhos monstruosos era presente no imaginário medieval,
chegando a configurar nos mapas da época, sob a forma de ilustrações ao redor do continente,
em regiões afastadas do mar desconhecido.
Além disso, encontramos nos registros de Colombo um exemplo de como o Atlântico
era o lugar do desconhecido e do sobrenatural, quando se relata a agitação súbita do oceano,
comparando o fenômeno ao milagre do Mar Vermelho do Antigo Testamento:

[...] E, como o mar estivesse manso e liso, a tripulação murmurava, dizendo


que não havia dúvida de que ali o mar não era grande e que nunca ventaria
o suficiente para voltar para a Espanha; mas depois o mar encrespou-se
muito, e sem vento, o que os assombrou, e por isso diz aqui o Almirante: De
modo que me foi bem providencial o mar alto, que não aparecia, a não ser no

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


273
tempo dos hebreus, quando fugiram do Egito liderados por Moisés, que os
tirou do cativeiro. (COLOMBO, 1998: 38-39)

Numa época repleta de superstições, imperava o medo do mar. Para a


população, que em sua maioria vivia da exploração da terra, o oceano era
um lugar aterrador. Mesmo os navegadores acostumados aos rios, aos
“mares interiores” e ao Mediterrâneo, temiam o Atlântico. Na imensidão de
águas desconhecidas, repleta de monstros — pensavam —, o homem não
poderia subsistir. (SCOTT, 2012: 94-95)

Seguida à proposta de lançar-se às águas, o vassalo enfatiza a sua Senhora que somente
por ela é capaz de fazer tudo aquilo, ao ponto de cogitar roubar para ela o Santo Graal, se isto
não fosse um pecado imperdoável. Entretanto, enquanto ele não lhe pode dar o Cálice sagrado,
facilmente poderia alcançar o sol ou a lua, se assim lhe fosse ordenado.
O esforço por agradar sua senhora, servindo-a inteiramente é imensurável, tendo por
limite apenas o dar “nada”. Na última estrofe, o eu lírico finaliza: “só nada não posso eu dar!”
(ALMEIDA, 1957: 81).
A entrega plena do amante à mulher amada é evidente no romance de Guilherme de
Almeida, como o é nas cantigas de amor medievais, fazendo-nos entender que o sentimento
amoroso, em que a figura feminina é colocada em posição de plena adoração é um elemento que
subsiste desde então até a modernidade.
Se lermos o trecho a seguir da cantiga “Assi and’eu por serviço que fiz”, de Gil Peres
Conde, notamos como o vassalo se mostra desolado por, apesar de servir sua Senhora em tudo,
ainda assim ela não lhe correspondeu:

Assi and'eu por serviço que fiz


a senhor que me nom quer fazer bem;
pero senhor é que tod'aquel bem
do mundo [há e] sabe que [lh]i fiz
serviç'e nom poss'haver seu amor.
Assi and'eu cada dia peor,
porque mi nom faz amor nem mi o diz.1

No final do romance “Dona Tareja”, o tom é de lamento, pois o que a Senhora


deseja de seu vassalo é “nada”, contudo, isso é justamente a única coisa que ele não
pode oferecer. Assim, não atender ao pedido de sua dama é motivo de tristeza, pois o
amor dela torna-se mais inalcançável.
Pelos textos almeidinos cotejados com textos historiográficos e literários,
consideramos haver em Guilherme de Almeida a presença de elementos do amor
trovadoresco, típicos do século XIII, através da vassalagem amorosa, que inclui o

1
Cantiga retirada do site da Universidade Nova de Lisboa, www.cantigas.fsch.unl.pt. Referência completa
ao final do artigo.

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274
serviço e a entrega total do amante à amada — “Dona Tareja” —, e a demonstração da
bravura cavaleiresca com seus códigos de honra e juramentos de proteção às damas,
sempre frágeis e indefesas, por quem morrer em batalha seria motivo de glória e
significaria o almejado alcance do amor da “Senhor”.
Portanto, Pequeno romanceiro (1957) é uma obra poética em que a Idade Média
se presentifica por meio de referências como as observadas em nossa análise. Seria
lícito dizer, assim, que o amor medieval trovadoresco subsiste de maneira residual em
literatura tão próxima a nós, como a do Modernismo brasileiro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Guilherme de. Pequeno romanceiro. São Paulo: Livraria Martins Editora,
1957.
CANTIGAS MEDIEVAIS GALEGO-PORTUGUESAS. Disponível em:
www.cantigas.fcsh.unl.pt. Acesso em 24 de junho de 2015.
COLOMBO, Cristóvão. Diários da descoberta da América. Porto Alegre: L&PM,
1998.
HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. Poesia medieval no Brasil. Rio de Janeiro:
Ágora da Ilha, 2002.
PASTOUREAU, Michel. No tempo dos cavaleiros da Távola Redonda. São Paulo:
Companhia das Letras; Círculo do Livro, 1989.
PINTO-CORREIA, João David. O essencial sobre o romanceiro tradicional. Lisboa:
Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1986.
SCOTT, Ana Silvia. Os portugueses. São Paulo: Contexto, 2012.
WECKMANN, Luis. La herencia medieval del Brasil. México: Fondo de Cultura,
1993.

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CASAMENTO, FAMÍLIA E SOCIEDADE NA IV PARTIDA DE
AFONSO X DE CASTELA E LEÃO (1252-1284)

Luísa Tollendal Prudente


Universidade Federal Fluminense
Mestre

RESUMO: A comunicação a ser apresentada analisará as normas matrimoniais das


Siete Partidas do rei Afonso X de Castela e Leão (1252-1284). A maior parte daquelas
normas encontra-se reunida no quarto volume do referido código, cujas leis constróem
um quadro destinado a dar significado e legitimidade específicos ao casamento e aos
diferentes tipos de relações pessoais que dele resultariam. A principal contribuição para
o desvendamento do tema decorrente de minha abordagem consiste em demonstrar a
construção, na fonte em questão, de um modelo de sociedade fundamentada em relações
hierarquizadas e movidas por uma lógica retributiva de serviço e de benefício, que
corresponderia à ordem natural dos homens. O casamento seria capaz de manter essa
ordem por causa da filiação legítima que derivaria dele. Os resultados desenvolvidos na
comunicação correspondem àqueles que foram obtidos na dissertação de mestrado
aprovada em março de 2015.

Palavras-chave: Casamento, Siete Partidas, Hierarquização

ABSTRACT: The following presentation will analyze the matrimonial rules of


the Siete Partidas of Alfonso X of Castile and Leon (1252-1284). Most of these rules
were gathered together in the fourth book of the aforementioned code. Its laws build a
picture destined to give special meaning and legitimacy to marriage and to the different
types of personal relations that would result from matrimony. The main contribution
due to my approach of the theme is the demonstration of the construction, in the
concerned source, of a model of society founded on hierarchized relations impelled by a
retributive logic of service and recompense, which would correspond to the natural
order of men. Marriage would be capable of maintaining this order because of the
legitimate filiation that would derive from it. The results developed in this presentation
meet those obtained in the course of the master’s research accomplished and approved
in March 2015.

Keywords: Marriage, Siete Partidas, Hierarchy

Apresentarei aqui os resultados obtidos na pesquisa efetuada ao longo do biênio


2013-2015, para a realização da dissertação de mestrado aprovada em março de 2015 no
Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, sob a orientação do
prof. Dr. Mário Jorge da Motta Bastos. O meu objetivo inicial era entender o discurso
afonsino quanto às dinâmicas de sustentação e reprodução da aristocracia castelhana.
Concentrei-me, para tanto, no código jurídico das Siete Partidas, e, depois de uma
análise inicial do seu conteúdo, julguei pertinente ao viés que eu desejava dar à pesquisa

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276
o estudo da normatização do casamento e das diferentes relações hierárquicas que se
considerava que resultavam dele. Debrucei-me sobre o quarto livro (IV Partida) do
código jurídico atribuído a Afonso X, o Sábio (1252-1284), cujas leis versam sobre o
direito matrimonial.
As leis desse livro – como, aliás, em todo o conjunto das Siete Partidas – não se
resumem à enunciação normativa do seu conteúdo, mas possuem características
doutrinárias e são ricas tanto em passagens expositivas e em conceituações, como em
diversas digressões explicativas e argumentativas. Dessa maneira, criou-se ali um
quadro destinado a dar significado e legitimidade específicos ao casamento e aos
diferentes tipos de relações originadas nele.
Além de conceituarem o casamento, as leis da IV Partida também desenvolvem
um modelo de sociedade, elaborado a partir dos significados que conferiam
primeiramente ao matrimônio e, em seguida, aos diferentes laços de parentesco que
resultariam dele. Ao casamento, porque estaria em conformidade com a ordem divina da
criação do mundo, atribuía-se a capacidade de manter a ordem hierarquizada da
sociedade, que então se organizaria através de laços originados naturalmente em débitos
pessoais. Os frutos gerados por tais dívidas – através de variados e sucessivos serviços e
benefícios – possuiriam a capacidade de preservar os laços de obrigação pessoal entre
os diferentes tipos de senhores e seus dependentes. Os vínculos recíprocos derivados da
correta observância das regras dessa obrigação pessoal seriam capazes de preservar
aquelas relações. Em última instância, ao casamento se conferia a capacidade de
preservar a sociedade porque perpetuaria os laços entre senhores e seus dependentes.
No prólogo geral da IV Partida (CUARTA PARTIDA, 1843:465-466), o
casamento é apresentado e definido a partir da metáfora bíblica do Gênesis. A criação
do mundo, com o homem nele, obedeceria a objetivos hierarquizantes. O Homem
ocuparia o lugar mais alto em toda a Criação. Os outros seres vivos estariam destinados
ao seu serviço, da mesma forma como ele mesmo estaria destinado ao serviço do seu
Criador (idem). Essa seria a ordem natural do mundo: hierarquizada, com o homem
acima dos outros animais, e Deus mesmo acima do homem, no lugar de Senhor
máximo, pois teria dado forma a tudo o que existe. Para que o propósito divino se
cumprisse seria necessário que a espécie humana crescesse e se desenvolvesse. O sexo
feminino teria sido então criado e entregue ao masculino (idem).

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


277
O objetivo principal da criação do homem e da mulher estaria na linhagem
(idem), na filiação através da qual o mundo pudesse ser povoado e o serviço a Deus
(idem) garantido. Para ordenar – no sentido de dar ordem, organizar – essa linhagem dos
homens que deveria se estabelecer, Deus realizaria ainda no Paraíso o primeiro
casamento ao colocar “lei ordenada” (idem) entre o homem e a mulher, de forma que se
tornassem um só (idem). A linhagem era o objetivo maior do casamento, representando
(no Prólogo) a própria espécie humana. A procriação permitiria que a humanidade se
espalhasse pelo mundo, enquanto que o casamento garantiria que ela servisse
corretamente a Deus. Com a Criação se estabelecia a primeira dívida, a do homem com
relação ao seu Criador. A dívida existente com o plano divino, por se remeter ao
momento em que o mundo fora criado, era considerada a primeira pela qual a
humanidade seria regida. Seria a primeira dívida, e a maior de todas, pois uniria o
homem a Deus no serviço que lhe rendia, configurando uma dívida natural ou, para
utilizar o termo da IV Partida, uma dívida de natura.
A ideia de natureza é explicada em uma lei da I Partida (PRIMERA PARTIDA,
1843:69) onde é definida como todo o conjunto da criação divina, da qual Deus seria o
senhor. Isso significaria que toda a Criação, estaria subordinada ao poder divino, pois a
ele deveria a sua existência. Essa criação, sujeita à vontade divina, funcionaria segundo
uma ordem fixa, correspondente às determinações que lhe haviam sido impostas pelo
Criador. Seria então imutável, pois nada poderia obrar contra sua disposição e
funcionamento, exceto o próprio poder que lhe dera origem. O ser humano, sendo parte
constituinte da natureza, teria com a divindade uma dívida perene que o ataria à ordem
do mundo. Ao ocupar o posto mais alto de toda a Criação, assumiria com Deus uma
dívida ainda maior, que derivaria da sua própria existência, e por ter recebido, através
de um ato de graça, o senhorio sobre todo o restante da Criação.
A noção da natureza como a criação de algum deus, era já antiga no momento de
composição da Siete Partidas. Remonta a uma longa tradição interpretativa,
desenvolvida ao longo da Alta Idade Média no interior de uma concepção cristã de
mundo, oriunda, no entanto, de tempos muito mais remotos. Mais singular é a conexão,
feita já no prólogo, entre senhorio e divindade, entre a natureza e a benesse recebida
pelo homem, em troca da qual ele devia serviço. Certamente não era fortuita a utilização
dessas palavras para se referir à relação do ser humano com a divindade e para

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278
caracterizar os termos sobre os quais se estabeleceria a correta organização do mundo,
derivada da vontade criadora de Deus. Além do termo natura – que é a palavra latina
que designa a natureza – há um outro vocábulo muito utilizado nas obras afonsinas e,
notadamente, na IV Partida. Trata-se da naturaleza. O prólogo da IV Partida, ao listar
os assuntos que serão tratados no livro, anuncia: “E sobre todo mostraremos, del debdo
que los omes han entre si por naturaleza” (CUARTA PARTIDA,1843:466), ressaltando
a importância dessa ideia no discurso normativo que se seguirá. O Título XXIV
(CUARTA PARTIDA,1843: 614) está inteiramente dedicado às relações existentes
entre os homens e seus senhores por razão da dívida de “naturaleza” que os uniria. Esse
conceito é determinado a partir da noção de natureza.
A naturaleza, embora se assemelhasse à natura – pois, assim como ela,
derivaria de uma ordem corretamente hierarquizada - tangeria apenas ao mundo dos
homens. No entanto, estabeleceria nesse mundo a dívida maior pela qual a humanidade
se uniria e cujas regras, quando respeitadas, garantiriam que a ordem divina da natura
fosse cumprida. O termo naturaleza, corruptela castelhana do vocábulo latino natura,
pode ser traduzido como “naturalidade” (MARTIN, 2010 / MARTIN, 2008 / NIETO
SORIA, 2007). A naturalidade seria uma forma de débito semelhante à natureza, e seria
também uma das ligações fundamentais entre os homens, pois possuiria a capacidade de
manter a ordem hierarquizada da sociedade estabelecida pela natura.
O casamento figurava entre as dívidas de naturaleza (CUARTA PARTIDA,
1843: 614-615). Por ter sido criado primeiramente por Deus no Paraíso, configurar-se-ia
como a segunda dívida a existir e seria a primeira contraída entre os homens. A dívida
do casamento também daria raiz às outras dívidas de naturalidade entre os homens, as
quais incluíam tanto aquela gerada pela filiação quanto as dívidas com os senhores
naturais. Seria então a partir da primeira que a sociedade se desenvolveria e, assim,
quando fosse respeitada, ou seja, quando o casamento fosse realizado corretamente, a
sociedade também se desenvolveria corretamente segundo as determinações divinas.
Por isso o matrimônio seria “manutenção do mundo”1 (CUARTA PARTIDA,1843:
465): o laço gerado pela dívida matrimonial garantiria que a ordem natural
hierarquizada se mantivesse, pois os homens se relacionariam de acordo com essa
mesma ordem através das dívidas de naturaleza que os uniriam.

1 “mantenimiento del mundo, que faze a los omes bevir vida ordenada naturalmente, e sin pecado, e sin
el qual los otros seys Sacramentos non podrian ser mantenidos, nin guardados.”

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279
Nas três primeiras leis o redator da IV Partida se concentrara em definir
conceitualmente o casamento. Nas leis seguintes ele se esmera em determinar as
diversas condições que poderiam interferir nas escolhas matrimoniais. Versa sobre a
natureza, as qualidades e as condições de realização de um divórcio ou outra forma de
separação matrimonial, nas quais se destacam o impedimento matrimonial por razão de
incesto e por razão de adultério.
De forma geral, o conjunto de motivos apresentados na IV Partida para a
proibição do incesto e do adultério gira em torno da manutenção da coesão ou da
continuidade linhagísticas. O incesto era ameaçador porque separaria os homens
(CUARTA PARTIDA, 1843: 502), fosse no interior do seu próprio grupo de
consanguíneos, fosse com relação aos demais que não pertencessem à sua linhagem.
Pode-se dizer que seria como uma antítese do casamento, porque causaria a cisão ao
passo que o casamento deveria provocar a união. Havendo disputa no interior do círculo
familiar pelas mulheres e pela herança que lhes correspondia, o resultado seria a
desunião dos consanguíneos e a dissolução da linhagem. Ao se considerar que o
casamento consumado pudesse unir os sangues do marido e da esposa - de tal maneira
que a aliança criada entre cada um deles e os consanguíneos de seu esposo tomava a
forma de laços de parentesco - o incesto causaria o exato oposto do que se pretendia
com o casamento, criando inimizades que maculariam esses mesmos laços. Consistiria,
por fim, em uma ameaça ao desenvolvimento da ordem social tal como havia sido
formulada no prólogo geral da IV Partida, onde se entendia que do casamento
derivariam as linhagens humanas que formariam a sociedade.
A lei definia como uma “inimizade” o pecado de adultério que um homem
cometia contra outro (CUARTA PARTIDA, 1843: 490). A definição jurídica de
inimigo exigia um motivo muito grave para classificar alguém segundo essa categoria.
Um homem se tornaria inimigo de outro ao atingi-lo através do assassinato de um de
seus consanguíneos ou danificando o seu corpo (SEPTIMA PARTIDA, 1843: 541). A
inimizade no caso do assassinato dos consanguíneos seria uma afronta à linhagem
daquele que havia sido atingido. Seria também, de certa forma, uma afronta ao seu
corpo, pois o sangue compartilhado unia os membros da linhagem como se fossem um
só (CUARTA PARTIDA, 1843: 502). O inimigo era entendido, então, como aquele que
interferia negativamente na linhagem de outro homem através de um ato de traição.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


280
A esposa, por si só, não era considerada possuidora de honra ou dignidade
próprias, assumindo-as de seu marido e se tornando, até certa medida, uma extensão da
sua persona. O seu enlace matrimonial transformava-a na garantidora da descendência
de seu marido e da continuação de sua linhagem. Assim, aquele que praticasse um
adultério com ela, ao mesclar seu sangue ao dela, interferiria na linhagem do marido e
promoveria contra ele uma traição e uma inimizade. A esposa funcionaria como ponto
de interseção entre os dois, e o seu pecado transmitiria ao seu marido a desonra que o
seu inimigo lhe fazia (LIMA, 2010).
O objetivo final da prevenção do adultério feminino residia na preocupação em
controlar os corpos e as gestações das mulheres – em especial daquelas que por seus
matrimônios ocupassem lugares proeminentes na estratégia linhagística – a fim de
garantir a legitimidade dos filhos gerados por elas e prevenir que um rebento de outro
sangue viesse a herdar os bens. O adultério masculino, embora reprovável de um ponto
de vista moral, não ofereceria esse risco, já que qualquer filho que nascesse desse enlace
já seria – com relação ao homem que praticara o adultério e à sua linhagem –
automaticamente reconhecido como ilegítimo.
No sétimo livro das Siete Partidas, há uma lei consagrada à definição de
algumas palavras, entre as quais se encontra o termo “família”. Essa lei está dedicada ao
“entendimento, e significado de outras palavras escuras” (SEPTIMA PARTIDA, 1843:
540), ou seja, se empenha em definir vocábulos cujo significado poderia não estar claro,
talvez pela variedade de significados atribuídos a eles. O empenho em definir essas
palavras “escuras” mostra que o conhecimento do seu significado e a correta utilização
dos vocábulos eram importantes. De qualquer forma, o termo “família” não era
desconhecido, e a noção que se escolheu transmitir com ele nessa lei está relacionada a
ideias de parentesco e de domínio da forma como eram entendidas no momento de
composição do texto. Os membros da família se ligavam por laços de consanguinidade
ou por outros laços de parentesco, mas principalmente por laços de dependência com
relação ao pater familias, palavra latina utilizada segundo o que se considerava que era
a sua tradução romance e que ali corresponde à noção muito medieval e ibérica de
“senhor”2 (SEPTIMA PARTIDA, 1843: 540-541). Uma família compreendia, assim, de

2 “por esta palabra, Familia, se entiende el señor della, e su muger, e todos los que biuen so el, sobre
quien ha mandamiento, assi como los fijos, e los siruientes, e los otros criados. Ca Familia es dicha
aquella, en que biuen mas de dos omes al mandamiento del señor, e dende en adelante; e no seria família

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


281
preferência alguns parentes próximos, mas não se restringia a isso, e compreendia na
realidade todos aqueles que vivessem juntos sob o mandamento do mesmo senhor, e
que possuíssem com ele laços de dependência pessoal. Uma família seria um senhorio,
que deveria ser exercido por um homem sobre os seus.
Na IV Partida, o casamento – geralmente apresentado em concordância com os
moldes estabelecidos pelo direito canônico – é a unidade fundamental a partir da qual a
reprodução humana se desenvolveria corretamente, de forma que seria por isso o
elemento estruturador da correta ordem social. Essa ordem deveria ser hierarquizada, e
as relações de domínio e dependência que a caracterizariam derivariam originalmente
das dívidas geradas pelo enlace matrimonial. No interior do casamento haveria uma
primeira dívida, entre marido e esposa, que era também a primeira dívida existente entre
os seres humanos, porque teria sido estabelecida ainda no momento da Criação do
mundo, quando Deus fizera o primeiro homem e a primeira mulher, e estabelecera entre
eles a lei do casamento. Entre os filhos e seus pais haveria também uma dívida natural
derivada da dádiva da vida, e, se essa dívida se estabelecesse no interior de um
casamento legítimo, estaria em conformidade com a ordem correta.
Como os laços de paternidade e filiação eram entendidos sob o prisma da dívida
natural, a sua existência deveria se fundamentar numa dinâmica de obrigações mútuas
entre pais e filhos. A contrapartida ao benefício da vida e da educação, recebido pelos
filhos por parte de seus pais, deveria ser o amor e a lealdade para com eles, de maneira
que os servissem corretamente, observando a hierarquia que haveria entre eles e que
permitiria a existência da dívida. A vida era o benefício fundamental dado pelos pais. A
obrigação que tinham de criar os filhos também se tornava um benefício se fosse
cumprida. A essas benesses corresponderia o serviço que os filhos deveriam dar em
troca, na sua obrigação de amar, honrar e proteger os pais dos possíveis malefícios que
lhes poderiam sobrevir. A relação de paternidade e filiação, fundamentada numa dívida,
constituía-se então como uma relação na qual a paternidade era entendida como uma
forma de senhorio beneficiário e a filiação como uma forma de dependência retributiva.

fazia suso. E aquel es dicho, Paterfamilias, que es señor de la casa, maguer que non aya fijos. E
Materfamilias es dicha la muger, que biue honestamente en su casa, o es de buenas maneras. Otrosi son
llamados Domesticos tales como estos; e demas, los labradores, que labran sus heredades, e los
aforrados”.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


282
Existe uma defesa da necessidade da dívida e das relações que obedeceriam a
uma dinâmica de serviço e de benefício. O papel de cada uma das partes é idealizado
nessas relações, e essa idealização serve à defesa de um modelo de sociedade
hierarquizada e fundamentada em relações beneficiárias. Entende-se sob essa ótica
todas as relações humanas, e é segundo essa lógica que se constrói discursivamente o
modelo principal a ser reconhecido. É interessante notar como as qualidades e os
sentimentos exigidos dos filhos com relação aos pais, e dos pais com relação aos filhos
(CUARTA PARTIDA, 1843: 616), na IV Partida, correspondem aos mesmos exigidos
de todos os outros tipos de senhores e dependentes unidos por uma dívida, tal como é o
caso do laço entre marido e mulher, e também entre senhores e vassalos (CUARTA
PARTIDA, 1843: 621-622), e entre senhores e servos (CUARTA PARTIDA, 1843:
602)3. Isso se aplica também, em última instância, à relação entre os homens e Deus
(CUARTA PARTIDA, 1843: 465-466).
O poder paterno se configurava como um senhorio (CUARTA PARTIDA, 1843:
618-619) do pai sobre o filho, que se estabeleceria na dívida que os unia. A dívida
existiria justamente porque essa relação era entendida como desigual. Embora se
considerasse o poder paterno um elemento inerente à relação de filiação, derivado da
dívida do nascimento e da criação, a sua existência também estava sujeita a certos
limites, e a rigor nenhum filho deveria permanecer a vida inteira sujeito ao poder de seu
pai (CUARTA PARTIDA, 1843: 585). Embora o poder efetivo não fosse eterno, o laço
beneficiário e retributivo que ele criava deveria ser, de forma que ainda restariam
algumas obrigações mútuas entre pai e filho mesmo quando o filho já não estivesse
mais sob o poder de seu pai. A única coisa que poderia acarretar a total dissolução
dessas obrigações era a ingratidão (CUARTA PARTIDA,1843: 596), justamente porque
subvertia a própria lógica das obrigações ao se voltar contra elas, contra o seu
reconhecimento e a dinâmica de manutenção através da retribuição, movida pela
gratidão.
A partir do que foi exposto acima, vê-se que o discurso da IV Partida, ao legislar
sobre o casamento e sobre as relações pessoais derivadas dele, em especial sobre
aquelas que poderiam receber o qualificativo de “familiares”, transmitia uma ideia
segundo a qual o funcionamento da sociedade humana dependeria dessas relações,

3 O único sentimento que não está presente na relação retributiva entre senhores e servos, mas que está
presente nas demais, é o “amor”.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


283
porque, em última instância, se originaria nelas. Por isso era importante o seu correto
funcionamento, a fim de que a sociedade se desenvolvesse corretamente. Esse
funcionamento correspondia a um modelo essencialmente hierarquizado da divisão
social, constituída por senhorios e dependências que se manteriam, cada qual em seu
lugar, entrelaçados através de dívidas. Tais dívidas seriam perpetuadas pela necessidade
de retribuição gerada por variados serviços e benefícios. As primeiras relações de
senhorio e de dependência eram as do casamento e da relação entre pais e filhos. Uma
vez que o correto cumprimento das dívidas nessas relações levaria ao correto
cumprimento de todas as dívidas da ordem social, então o modelo beneficiário e
retributivo dessas relações serviria de molde aos demais. No final das contas, os
modelos de relação, presentes no texto jurídico que se analisou, serviam não apenas à
descrição dessas relações, mas também à defesa de um modelo de exercício do poder e
da sujeição a esse poder.

FONTES E BIBLIOGRAFIA

Fontes
PRIMERA PARTIDA. In: ALFONSO X. Las Siete Partidas (Glosadas por el
Licenciado Gregório López). Madrid: Compañía General de Impresores y Libreros del
Reyno, 1843
CUARTA PARTIDA. In: ALFONSO X. Las Siete Partidas (Glosadas por el
Licenciado Gregório López). Madrid: Compañía General de Impresores y Libreros del
Reyno, 1843.
SEPTIMA PARTIDA. In: ALFONSO X. Las Siete Partidas (Glosadas por el
Licenciado Gregório López). Madrid: Compañía General de Impresores y Libreros del
Reyno, 1843.

Bibliografia
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O “FIEL, HONROSO E... MÁRTIR” SIMÃO DE MONTFORT
(1209-1218): A IMAGEM DO LÍDER CRUZADO ESTAMPADA NA
HISTORIA ALBIGENSIS
Magda Rita Ribeiro de Almeida Duarte
Universidade de Brasília / IFTM
Mestrado / Doutorado em andamento no PPGHIS/UnB
Agência de Fomento: CNPq

RESUMO: A Historia Albigensis corresponde a uma das mais importantes fontes, de


matriz francesa, da Cruzada Albigense. O cronista, Pierre des Vaux-de-Cernay, valeu-se
de vários documentos, e do seu próprio testemunho, para narrar os primeiros anos do
movimento que resultou em expressivas mudanças nas disputas senhoriais na
denominada Occitânia. Partidário das ações cruzadas naquela região, o monge
cisterciense e sua narrativa ainda são passíveis de críticas não somente pela parcialidade
monacal, mas também por ser uma fonte que serve bem à versão nacionalista da
construção histórica de uma França unificada. Entre as personagens enfatizadas no texto
figura Simão de Montfort, de quem o cronista desenha a imagem de um cavaleiro de
moral e fé inabaláveis. O nome de Montfort aparece na crônica, na maioria das vezes,
ornado pelos melhores adjetivos que se pode atribuir a um homem cristão naquela
época. Considerando, assim, toda essa deferência do cronista ao líder cruzado, este
trabalho se propõe a compreender a elaboração desse perfil de Simão de Montfort na
crônica Historia Albigensis que, em vez de ser apresentado como um cruento guerreiro
cumpridor da ordem “matem todos”, proferida pelo legado papal, Arnaud Amalric,
ganhou espaço como alguém que doou sua vida pela defesa da fé, tal qual um
verdadeiro mártir.

Palavras-chave: Historia Albigensis, Simão de Montfort, Cruzada

ABSTRAC: Historia Albigensis is one of the most important French sources of the
Albigensian Crusade. Its author, Pierre des Vaux-de-Cernay, had access to many
official documents, and based on them and on his own testimony made a report of the
first years of that enterprise which caused several changes in Occitania's lords
relationships. Seen as a supporter of the crusades’ acts on that region, the Cistercian
monk and his narrative suffered severe critics for his monastic partiality, and also to
contribute to a nationalist version on the historical construction of the ideal of a unified
France. Among the actors of the Crusade, the chronist presents Simon de Montfort as a
knight of strong faith and moral virtuous. In the chronicle, De Montfort’s name is
followed by the best qualities for a Christian in those days. Considering that deference
that Pierre had for the crusade’s military leader, this work intends to analyse the image's
elaboration of Simon de Montfort as a martyr instead of a cruel warrior.

Keywords: Historia Albigensis, Simon de Montfort, Crusade

Era 25 de junho de 1218, um dia depois da festa de São João Batista e havia
nove meses que o Conde de Montfort estava engajado no sítio de Toulouse. Como era

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de costume, o cavaleiro de Jesus Cristo rezava as Matinas quando um mensageiro o
avisou da ofensiva inimiga. Depois de colocar sua armadura, verdadeiro cristão que era,
dirigiu-se rapidamente à capela para participar da missa. A cerimônia eucarística já
tinha começado e o Conde estava devotamente em oração quando lhe foi anunciado que
o ataque se fortalecia e que sua presença era fundamental para liderar seus homens no
rechaço ao inimigo. O homem de tão grande devoção apenas respondeu que, antes de
tudo, precisava participar dos mistérios divinos e ver a imagem do seu Salvador. Estava
ainda a falar quando nova mensagem pedindo pressa chegava – os soldados não
segurariam o ataque por muito tempo. Montfort insistia: não iria sem ter visto seu
Redentor. Quando o padre levantou a hóstia, o Conde se ajoelhou e elevou seus braços
aos céus, enquanto pronunciava devotamente o cântico do velho Simeão (LUCAS 2, 29-
30): “agora, Senhor, despede em paz o teu servo, segundo a tua palavra, pois meus
olhos já viram a tua salvação.” E continuava, bem piedoso, a dizer: “Vamos e, se
necessário, morramos por Ele que se dignou a morrer por nós”. Depois disso, sua
participação encorajou e fortaleceu duplamente os que lutavam pela verdadeira fé.
Todavia, uma pedra proveniente de uma manganela do inimigo atingiu mortalmente o
cavaleiro de Cristo na cabeça, tal como acontecera com Santo Estevão (apedrejado até a
morte). Antes de receber o ferimento letal, o bravo cavaleiro do Senhor, seu mais
glorioso mártir, havia sido cinco vezes ferido pelos arqueiros adversários, como o
Salvador, de quem ele aceitou pacientemente a morte, e em cujo lado ele agora vive em
sublime paz (HA, §§608-612).
Esses são os principais trechos da dramática narrativa da morte de Simão de
Montfort na Historia Albigensis de Pierre des Vaux-de-Cernay, o qual, notário e
cronista oficial da cruzada, exalta a figura de alguns cruzados que se puseram em
marcha rumo ao Sul da Gália para extirpar a heresia cátara. Muitos são os autores que se
dedicam a estudar os personagens da Cruzada dita Albigense, notadamente o Conde de
Montfort, mas apreciar essa dimensão de representação do seu martírio – principalmente
quando se lembra da sua condição de homem da guerra que morreu num campo de
batalha, com espada em punho – ainda é um instigante exercício de pesquisa.
Não é o caso de duvidar da fé do líder militar da Cruzada. Mas recortar a
narrativa da sua morte sem levar em conta sua trajetória de, aproximadamente, uma
década, liderando em nome de Deus e da Igreja os sítios às castra na região conhecida

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como Occitânia, o massacre de pessoas, a queima de hereges, é desconsiderar uma parte
relevante da história – não somente aquela trazida pelos relatos de Pierre de Vaux-de-
Cernay e de outros cronistas, mas também a que deixou seus vestígios nos documentos
oficiais. A piedade e a fé do Conde, na verdade, apenas o direcionaram à carnificina que
significou aquele movimento iniciado em 1209 e que se alongou por mais de uma
década, depois de sua morte. Cavaleiro de Cristo, mártir, fiel, honroso, contudo, não são
os únicos atributos dirigidos a Simão de Montfort, e a historiografia nacionalista trata de
acrescentar mais alguns entre os quais figura um dos mais instigantes: ele teria sido,
como asseverou, há alguns anos, Yves Dossat (1969:300), um “artesão da unidade
francesa”. Considerem-se, então, alguns pontos dessa trajetória para reflexão.
A primeira questão que se coloca é o motivo de Simão de Montfort atender ao
chamado pontifício para a Cruzada. Ele já havia participado de outro movimento dessa
natureza, no início do século XIII. Sua atuação militar parece ter sido de destaque contra
os muçulmanos no Oriente. Na ocasião, seu irmão Guy casou-se com a senhora de
Sidon, filha de Balian de Ibelin, e ele voltou para a França e retomou suas terras em
1206, aproximadamente. Não obstante possuísse alguns legados familiares, como o
Condado de Montfort, e por parte de um tio materno, o de Leicester, deste último só
herdou o título – o rei João Sem Terra havia confiscado todas as posses dos senhores
franceses na Inglaterra. Outra possibilidade de recursos seria o casamento com a filha
do Conde de Montmorency, Alice, grande referência na Île-de-France, embora o enlace
não tenha rendido muito do ponto de vista material. Pode-se afirmar, desse modo, que
Simão de Montfort, quando abraçou a cruz de Cristo e seguiu rumo ao Sul, não
integrava a alta nobreza francesa, não era um grande nem poderoso senhor feudal, e,
portanto, talvez as razões que o impulsionaram à cruzada não estivessem unicamente
inspiradas pela fé e a devoção. Porventura, sua avidez, a possibilidade de ampliação de
recursos, possa ter sido um dos principais motivos da sua participação na “Cruzada
Albigense”. (DOSSAT, 1969: 282-283; MACEDO, 2000:19; MARVIN, 2008:55).
Relevante é também a sua ascensão no comando da Cruzada. Não foi certamente
pelo seu poder e por seu grau de nobreza que alcançou o título de líder militar do
movimento e com isso o domínio sobre os viscondados de Béziers e Carcassone,
expropriados a Raimundo Rogério Trencavel, em meados de 1209, no primeiro grande
ataque cruzado. O próprio cronista descreve essa escolha realizada por alguns prelados

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(um communi consilio de sete), entre os quais se encontrava o legado-mor do Papa,
Arnaud Amalric: a posse das terras dos Trencavel havia sido oferecida, primeiro, ao
Conde de Nevers e, depois, ao Duque de Borgonha. Há outros registros na Canso (I, 34-
36)1 que também trazem o nome do Conde de Saint-Pol, como um daqueles que
receberam a oferta, mas que a recusaram. Escolheram, então, “um homem verdadeiro
para a fé católica, honrado em seu modo de vida e forte na batalha – Simão, Conde de
Montfort”. O escolhido teria se recusado a aceitar, não obstante os argumentos e as
súplicas (aos seus pés!) do Abade de Cîteaux e legado, Arnaldo Amalric, e de outros
importantes cruzados. Pierre narra que diante da negativa, o representante pontifício
viu-se obrigado a “usar de sua autoridade como legado papal e firmemente instruí-lo
pela virtude do dever da obediência a fazer o que eles pediam. Então, esse nobre homem
encarregou-se do domínio sobre o território pela glória de Deus, a honra da Igreja e a
supressão da heresia”. (HA, §§101-102; SIBLY & SIBLY, 2002:55; DOSSAT,
1969:284-285).
A análise que Yves Dossat (1969:285) faz sobre o tema destaca que apesar do
espírito de iniciativa e da coragem de Simão de Montfort, demonstrados ao longo do
sítio de Carcassone - especialmente quando salvou a vida de um cavaleiro que jazia
ferido num fosso, sob uma saraivada de pedras e flechas -, seu protagonismo não seria
tão grande não fosse a influência do Abade Guy des Vaux-de-Cernay (por acaso, tio do
cronista da Historia Albigensis) sobre o legado e o duque Eudes III, da Borgonha, onde
o abade havia pregado a cruzada. Além disso, Dossat defende que a escolha agradava ao
rei Filipe Augusto, uma vez que Montfort era genro do Senhor de Montmorency e
também porque já havia dado provas de fidelidade.
Essa proximidade do tio abade com o Conde de Montfort promoveu também a
aproximação do monge cronista, provavelmente. Ele menciona que, algumas vezes,
esteve com Simão de Montfort. Sua admiração por ele aparece diversas vezes, mas são
dedicados dois parágrafos (de tamanho significativo) para enumerar as qualidades
morais e físicas do líder militar da cruzada. Pierre des Vaux-de-Cernay reivindica a

1 Corresponde a uma narrativa poética, escrita em provençal por Guilherme de Tudela e seu sucessor
anônimo, sobre a empresa cruzadista na região do Languedoc. O texto completo da Canso é traduzido
para o francês como Chanson de la croisade albigeoise. Foi utilizada neste trabalho a edição mais recente
da obra, traduzida para o inglês por Janet Shirley, conforme citada nas referências bibliográficas.

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autoridade do seu testemunho: não ouvira ninguém dizer – ele conhecia “pessoalmente
o nobre Conde de Montfort”. (HA, §§104 e 106). Continua:

(...) Ele era de ilustre nascimento, de notável coragem e extremamente


experiente na guerra. Além disso – voltando para sua aparência física – ele
era alto, com uma esplêndida cabeleira e finos traços; de bela aparência,
ombros largos com braços musculosos, mãos e pés ligeiros, rápido e ativo;
certamente não havia o menor defeito que mesmo um inimigo ou uma pessoa
invejosa pudesse apontar. (...) Ele era eloquente no discurso, altamente
acessível, o mais adequado companheiro de combate, de impecável castidade,
notável em humildade, sábio, de firme propósito, prudente em conselho, justo
no julgamento, diligente na busca de deveres militares, cauteloso nas suas
ações, ávido para começar uma tarefa, incansável para completá-la, e
totalmente dedicado ao serviço de Deus. (HA, §104)

Antes de continuar tecendo mais elogios ao Conde e praticamente ignorar que


Simão de Montfort fora escolhido porque as opções mais interessantes politicamente
eram inviáveis, Pierre des Vaux-de-Cernay expressa com grande admiração e
entusiasmo a escolha do líder:

Quão sábia a escolha dos líderes do exército, quão sensata a aclamação dos
cruzados! Por ter escolhido um homem de tão grande fé como defensor da
verdadeira fé; por ter elegido um homem tão em sintonia com todo o mundo
cristão para assumir o comando do sagrado serviço de Jesus Cristo na luta
contra a contaminação da heresia! (HA, §105)

A narrativa das qualidades e grandes feitos ganha uma solenidade tão enfática
que o cronista consegue fazê-la obscurecendo o caráter atroz de quaisquer ações
impiedosas que precise relatar. Os atos são justificados por conta de uma traição, ou
como uma desforra igual à afronta, ou pela resistência à fé verdadeira. Todos os sítios, a
destruição de muros, a queima de centenas de hereges, parecem lugar comum para
Pierre des Vaux-de-Cernay que defende, constantemente, que Simão de Montfort não
agia de modo violento por prazer, mas compelido pela força da necessidade.
Diversos relatos chamam a atenção ao longo da narrativa, como a captura de
traidores e seu enforcamento no castrum de Montlaur, logo após a chegada da Condessa
Alice de Montfort ao Sul. O Conde não dera o mesmo fim a todos os habitantes porque
parte deles tinha conseguido fugir. Entre as alusões mais cruentas, todavia, está o
ocorrido em Bram – um castrum localizado na planície Lauragais, entre Carcassone e
Castelnaudary. O lugar foi, de acordo com o relato, sitiado e capturado em três dias, por

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ataque direto e sem uso de quaisquer armas de cerco (como a manganela); arrancaram
os olhos e cortaram o nariz de mais de cem pessoas entre os defensores de Bram. De um
deles foi poupado um olho para conduzir os outros, como afirma Pierre des Vaux-de-
Cernay, para que fosse exemplo do desprezo dos cruzados pelos seus inimigos.
(HA,§141; SIBLY & SIBLY, 2002:78). O cronista continua em defesa do julgamento e
condenação feita pelo Senhor de Montfort:

O Conde realizou essa punição não porque a mutilação dava a ele algum
prazer, mas porque seus oponentes tinham sido os primeiros a se perderem
em atrocidades e, algozes como eram, massacravam qualquer de nossos
homens que eles pudessem capturar para mutilá-los. (...) O Conde nunca teve
prazer na crueldade ou na tortura de seus inimigos. Ele era o mais gentil dos
homens e as palavras do poeta cabem-lhe mais competentemente: ‘um
príncipe lento para punir, rápido para recompensar, que sofre quando é
levado a ser duro’. (HA. §142)

Na crônica, todas as atrocidades são justificáveis e nem de longe convertem


aquele cavaleiro em um sevo e desumano guerreiro. Para o honroso defensor da fé, era
com grande consternação que empregava a violência para punir os que lhe eram hostis.
Embora Pierre des Vaux-de-Cernay não seja reconhecido como o cronista particular de
Montfort, mas do seu tio, o abade Guy des Vaux-de-Cernay e da Cruzada, essa maneira
de descrever o cruzado parece constituir tentativa de erigir uma memória virtuosa do
cruzado.
Curioso é que a Historia Albigensis não trata, contudo, com o mesmo zelo a
figura do líder espiritual do movimento. Arnaud Amalric teria sido um dos grandes
protagonistas da empresa contra os cátaros no Languedoc e estava entre aqueles que
deram a Montfort o comando da Cruzada, mas não recebeu muito mais que um
respeitoso adjetivo – “venerável” – antes do seu nome, na maior parte das vezes que foi
mencionado ao longo da crônica. E apesar de o nome de Montfort estar envolvido com
os atos cruéis do movimento cruzadista e de ser lembrado, algumas vezes, pela
historiografia como “o diabo daquela época” (DOSSAT, 1969:281), foi o nome de
Arnaud Amalric que ficou marcado à brasa pela culpa do derramamento de sangue,
principalmente no saque a Béziers.
A possível ordem do Abade de Cister ao exército cruzado naquele sítio, “matem
todos, que Deus escolherá os seus”, é reproduzida há séculos desde a obra Dialogus
Miraculorum, de Pedro Cesário de Heirsterbach. Entre os relatos da época, o trabalho

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do monge cisterciense da Germânia foi a única fonte a trazer a reprodução da ordem que
teria sido proferida momentos antes do Viscondado dos Trencavel sucumbir à ação
cruzada. Os estudos posteriores trataram de canonizar o trecho da obra, não havendo
tantos argumentos que contrariassem a afirmativa do cronista que escrevera pouco
depois de Guilherme Puylaurens (Chronica).2 Das restritas exceções, há a contestação
de Philipe Tamizey de Larroque3, historiador católico, em meados século XIX, talvez
seja a mais famosa, cujos argumentos de tão débeis são facilmente refutáveis, segundo
estudiosos da cruzada. Entre as pesquisas dos últimos vinte anos está o trabalho de
Jacques Berlioz (1994:100) em que o autor conclui que “quanto à palavra terrível do
legado, ela permanece um enigma histórico uma vez que, embora verossímil, não se
pode demonstrar sua autenticidade, [mas] ela testemunha inequivocamente a brutalidade
da repressão”. As cidades que fossem sitiadas e não capitulassem seriam trucidadas pela
ação cruzada. Se aquelas terríveis palavras saíram ou não da boca do abade, isso não
tem grande relevância – mas seu sentido nos faz ter uma ideia dos instrumentos
espirituais motivadores da ação cruzada. (ROQUEBERT I, 2006:365-367; BERLIOZ,
1994:100; MACEDO, 2000:22). Portanto, a marca militar, sanguinária, temporal está
muito mais presente na figura de Arnaud Amalric que na memória de Simão de
Montfort talvez pelo fato de a História Albigensis ter prestado a este último um bom
serviço pela maneira que elaborou sua trajetória cruzadística.
Outro ponto que pode ter contribuído para a imagem do Abade de Cister foi a
disputa pelo ducado de Narbona. Quando Arnaud Amalric tomou posse naquela
arquidiocese (março, 1212) reivindicou também o título de duque, desde o século XI
pertencente aos Condes de Toulouse. O resultado dessa reivindicação foi uma disputa
pelo ducado contra Simão de Montfort que acabou sendo excomungado pelo prelado.
Embora a excomunhão não tenha causado grande efeito na época, o assunto chegou aos
ouvidos do Papa Inocêncio III que escreveu a Montfort pedindo que parasse de
perseguir o Abade de Cister. A demanda atingiu até as discussões que tiveram lugar no
IV Concílio de Latrão, todavia, Simão de Montfort, naquele momento com a posse do

2 Uma pequena divergência quanto à data de escrita da obra Dialogus Miraculorum: Roquebert afirma
que a terrível frase teria sido relatada pelo monge de Heisterbach pouco depois da data em que Guilherme
de Puylaurens escreveu sua Chronica e que teria sido uns quarentas anos depois do início da cruzada.
(ROQUEBERT I, 2006:366). Enquanto, Jacques Berlioz fala dos escritos de Pedro Cesário no período
que compreende os anos de 1219 e 1223. (BERLIOZ, 1994:06).
3 Presente na obra Mémoire sur Le Sac de Béziers dans la guerre des Albigeois et sur le mot “Tuez-les
tous” attribué au légat Du pape Innocent III (Paris, 1862). ROQUEBERT I, 2006:366, 743-744.

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292
título de Conde de Toulouse, prestou homenagem a Felipe Augusto e, mais tarde,
Amaury, seu filho, foi saudado como Duque de Narbona. (SIBLY & SIBLY, 2002:251;
DOSSAT, 1969:296-297; ROQUEBERT II, 1977:319-321; 327-331; 389-393).
Nessa disputa, a imagem dos dois líderes cruzados aparece, novamente, de
forma bem antagônica na Historia Albigensis. As palavras do cronista cisterciense
parecem intentar a legitimação do direito de Simão de Montfort e não do seu superior, o
Abade do Capítulo Geral de Cister. Mais uma vez, Pierre des Vaux-de-Cernay deixa
clara a sua simpatia pelo líder militar da cruzada, de quem Amalric havia “usurpado” o
título de Duque de Narbona. Para ele, tanto o prelado quanto aqueles que a ele se
submeteram “tinha se levantado como oponentes a Deus, à Cristandade e ao Conde de
Montfort” e que o “Arcebispo [Arnaud Amalric] estava agindo contra os interesses da
Igreja” e que por isso e por outras razões que não vinham ao caso enumerar, “um grau
de discórdia crescera entre o Arcebispo e o Conde”, por isso muitos duvidavam do
empenho de Amalric em servir à fé cristã. (HA,§561).
Naquela mesma época, chegava ao sul da Gália, o Príncipe Louís, filho de Filipe
Augusto, que havia abraçado a cruz e tomado o rumo do Midi para cumprir seu período
penitencial de quarenta dias como cruzado. Acompanhava-o, ninguém menos que Guy
des-Vaux-de-Cernay, que havia tomado posse da arquidiocese de Carcassone. Na
ocasião, o Príncipe rejeitou quaisquer pretensões temporais de Amalric e convocou o
Visconde Aimeri – que havia prestado homenagem anteriormente ao prelado – a rendê-
la a Simão de Montfort considerando este último como Duque de Narbona. Como Yves
Dossat afirmou, a perda do título temporal por Arnaud Amalric apresentou uma situação
paradoxal: era como se o Abade de Cister e Bispo de Narbona estivesse sendo ultrajado,
“em sua pátria occitana” (DOSSAT, 1969:297-298; ROQUEBERT II, 1977:330).
A imagem de usurpador que paira sobre Arnaud Amalric também contribui,
certamente, para que sua memória seja recheada de adjetivos mundanos, pouco cristãos.
Na verdade, a reivindicação daquele ducado, era legítima, de acordo com a teoria da
exposition en proie aos cruzados laicos. Amalric foi privado da teoria pontifícia pelo
fato de ser prelado e criticado largamente por suas pretensões. Na prática, no entanto, os
direitos senhoriais sobre aquela região já eram, há muito, divididos entres senhores
eclesiásticos e temporais. (SIBLY & SIBLY, 2002:250). Quando os interesses de
Montfort ficaram em jogo, a crítica por reivindicar bens materiais recai fortemente

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


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sobre o Abade de Cister, que acaba perdendo também a vassalagem do Visconde de
Aimeri.
A influência do Abade des Vaux-de-Cernay e Bispo de Carcassone, Guy, sobre
ações que favoreceram materialmente a Simão de Montfort aparecem na Historia
Albigensis com alguma frequência. E foram aquisições significativas, como o posto de
líder militar da cruzada e, junto a isto, as terras expropriadas aos Trencavel e também,
mais tarde, o ducado de Narbona e, com esse título, a vassalagem do Visconde Aimeri.
A aproximação do pregador cisterciense do Conde não se deu, na verdade, na cruzada
contra os cátaros. Guy e Simão de Montfort estiveram juntos na Quarta Cruzada de
onde saíram, para alguns relatos da época, como desertores. (VILLEHARDOUIN,
1872). Pierre des-Vaux-de-Cernay, contudo, caracteriza a saída dos dois daquela
empresa por obediência a uma determinação papal, para se livrarem de uma
excomunhão. Tanto o Abade des Vaux-de-Cernay quanto o Conde de Montfort haviam
se negado a se juntar “à multidão para fazer o mal” contra a cidade cristã de Zara. O
Conde tinha conseguido voltar para a casa, com honra, “enquanto os barões franceses
que ele deixou em Zara tinham enfrentado muitos perigos e quase todos haviam
perecido”. (HA,§106; MARVIN, 2008:55). O cronista, portanto, falava de alguém
próximo ao tio, cuja imagem também fazia questão de exaltar. Se Arnaud Amalric não
teve um cronista particular, Pierre des Vaux-de-Cernay fez esse papel a dois: a Simão
de Montfort e a Guy, Abade des Vaux-de-Cernay.
Há, além disso, um momento consagrado pela historiografia que não pode
passar despercebido: a batalha de Muret contra o rei de Aragão, Pedro II, e a vitória de
Montfort, mesmo com forças inferiores, que conferiu ao Conde um novo adjetivo, o de
estrategista. A descrição dos momentos antes da batalha, por Pierre des Vaux-de-
Cernay, não foge à regra da narração da Historia Albigensis ao enfatizar o caráter
pientíssimo de Simão de Montfort. Teria ele, naquele dia, entrado na capela e, enquanto
o Bispo Raimundo de Uzès celebrava a missa, entre o e a leitura do Evangelho e o
ofertório, se ajoelhado diante do prelado, de quem tomou as mãos dizendo: “hoje eu
ofereço minha alma e meu corpo a Deus e ao Senhor”. “Que magnífica devoção!”,
admira-se o cronista que passa a descrever o desenrolar do conflito e como teriam
derrotado a hoste oponente que se encontrava bastante confiante de sua vitória em razão
do número menor dos cruzados. Montfort teria se aproveitado de certa falta de

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organização e da divergência entre os inimigos, atacando-os, o que resultou na morte
Pedro de Aragão, líder das tropas adversárias. A morte do rei enfraquecera moralmente
os inimigos, facilitando outro ataque dos cruzados pelo flanco esquerdo, espalhando
pânico e provocando a fuga de vários oponentes. (HA,§458-463; DOSSAT, 1969:287-
288; SIBLY & SIBLY, 2002:213; SMITH, 2010:17-18)
O momento áureo de exaltação do Conde de Montfort, pelo cronista, foi quando
relatou o seu encontro com o rei morto, no campo de batalha: “o Conde pediu a alguns
de seus seguidores para levá-lo ao lugar onde o Rei de Aragão tinha sido morto – ele
não tinha conhecimento do lugar, ou mesmo da hora, da morte do rei”. E a narrativa do
encontro se desenrola cheia de piedade:

Ele foi ao lugar e encontrou o corpo do rei, deitado nu no meio do campo de


batalha; ele havia sido despido por alguns de nossos soldados de infantaria
que tinham saído de Muret quando souberam que éramos vitoriosos, e
matado alguns dos inimigos que eles encontraram ainda vivos. Sempre um
homem de grande piedade, o Conde apeou e lamentou sobre o corpo – um
segundo Davi sobre um segundo Saul. (HA, §465)

O desejo do Conde de honrar o corpo do rei inimigo, expresso na crônica, o faz


ainda mais fiel aos princípios da fé. A construção dessa figura contribuiu ao mesmo
tempo para emergência de um líder com uma autoridade legítima sobre bases
fortemente religiosas e políticas. Para o cronista da Historia Albigensis, alguém com
todos os atributos de Simão de Montfort caminhava certamente para a santidade, mesmo
que o seu caminhar fosse marcado por sangue e violência. Na verdade, o sangue
derramado era justificado por um fim maior que era livrar a cristandade dos inimigos da
fé, da Igreja, do próprio Cristo. O escopo do emprego dos diversos predicados pela
narrativa parecia ser legitimar a ação cruzada no sul da Gália. Mais que isso, a crônica
foi usada como ferramenta de legitimação do martírio de Montfort – um guerreiro, um
cavaleiro mentor de muitos sítios violentos e de enorme destruição que morreu
empunhando uma espada, como mártir, como, nas palavras de Delaruelle (1969:128)
um “herói da fé”.

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acompanhado por uma tradução de M. Natalis de Wailly. Paris: Librairie de Firmin
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WILLIAM, de Tudela. The song of the cathars wars: a history of Albigensian
Crusade. Traduzido por Janet Shirley. Ashgate Publishing Company, 2011.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


296
CHRISTINE DE PIZAN E A DEFESA DA MULHER NA
LITERATURA MEDIEVAL: IMAGENS E NARRATIVAS

Márcia Maria de Melo Araújo


UEG/Doutora
Pedro Carlos Louzada Fonseca
UFG/Doutor/FAPEG

RESUMO: Esta comunicação apresenta como proposta um estudo sobre Le Livre de la


Cité des Dames (ca. 1405), de Christine de Pizan (1365-ca. 1430), com o objetivo deste
trabalho de apresentar imagens e narrativas que tenham por fundamento a apologia da
mulher, a exemplo do que faz Pizan em resposta a um número relativamente amplo de
textos misóginos. Ao construir seus argumentos, Christine de Pizan tenta desconstruir a
ideia de que todo o comportamento feminino é cheio de vícios, dirigindo-se a filósofos,
poetas e oradores, depreciadores das mulheres e incentivadores do topos da imperfeição
feminina. Este trabalho é produto parcial da pesquisa intitulada “Mulher difamada e
mulher defendida no pensamento medieval: textos fundadores”, que integra a Rede
Goiana de Pesquisa sobre a Mulher na Cultura e na Literatura Ocidental, apoiada pela
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás, sob coordenação do Prof. Dr.
Pedro Carlos Louzada Fonseca, para o período 2013/2016. É também produto de plano
de trabalho relacionado ao tema e intitulado “Fontes e influências disseminadoras da
representação da mulher na literatura medieval: em defesa da mulher”, desenvolvido
como estágio no Programa de Pós-Doutorado da Universidade Federal de Goiás, sob a
supervisão do supramencionado professor.

Palavras-chave: Christine de Pizan, Literatura Medieval, Apologia da mulher

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


297
ABSTRACT: This paper presents as proposal a study of Le Livre de la Cité des Dames
(ca. 1405), Christine de Pizan (1365-ca. 1430), with the objective work to present
images and narratives that have as their basis the apology of woman, just as it does
Pizan in response to a relatively large number of misogynistic texts. By building their
arguments, Christine de Pizan tries to deconstruct the idea that all female behavior is
full of vices, turning to philosophers, poets and speakers, detractors and supporters of
women's tops of female imperfection. This work is part of a research entitled "Mulher
difamada e mulher defendida no pensamento medieval: textos fundadores", which
integrates the Rede Goiana de Pesquisa sobre a Mulher na Cultura e na Literatura
Ocidental, supported by the Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás,
coordinated by Prof. Dr. Pedro Carlos Louzada Fonseca for the period 2013/2016. It is
also a program of product related to the theme and entitled "Fontes e influências
disseminadoras da representação da mulher na literatura medieval: em defesa da
mulher", developed as a stage in the Post-Doctoral Program of the Universidade Federal
de Goiás, under the supervision of above professor.

Keywords: Christine de Pizan, Medieval literature, woman’s apology

Esta comunicação apresenta como proposta um estudo sobre Le Livre de la Cité


des Dames (ca. 1405), da qual usamos a versão La Cité des Dames (2000), de Christine
de Pizan (1365-ca. 1430), uma das mais significativas vozes de defesa da mulher no
tradicional pensamento masculino de base misógina
antiga e medieval. Esse campo de investigação, focado
na abordagem da história intelectual da mulher, tem
como principal interesse a documentação textual de
natureza científica e literária, embora não
desconsiderando registros textuais de outras áreas do
saber. Sua orientação consiste em abordagens teóricas e
críticas acerca não só dos recursos técnico-formais,
expressivos e temáticos, como também dos fatores
condicionantes culturais e ideológicos que influenciaram
os juízos de valor sobre a realidade feminina na Idade
Média e sua produção intelectual. O nosso objetivo é o
de apresentar imagens e narrativas que tenham por
fundamento a apologia da mulher, a exemplo do que faz

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


298
Pizan em resposta a um número relativamente amplo de textos misóginos, entre os quais
o famoso poema autobiográfico em latim intitulado Liber lamentationum Matheoluli (c.
1295) de Mathieu de Bologne.
Les Lamentations de Matheolus são uma tradução de um sutil poema, em que
Mathieu alega que a sua experiência de casamento com uma viúva lhe havia custado o
sucesso na carreira de advogado e clérigo. Daí suas reservas acerca das esposas e das
mulheres em geral. O livro não obteve uma circulação muito grande, embora fosse lido
junto com o Theophrastus por Deschamps e por seus amigos no final do século XIV.
Talvez ele tenha também interessado Le Fèvre, devido ao fato de ele já haver traduzido
De vetula, do pseudo-Ovídio, que era sobre uma velha alcoviteira (prostituta), do tipo
intermitentemente satirizado por Mathieu. De qualquer modo, a versão de Le Fèvre
provou ser uma eficaz propagação da tradição satírica contra a mulher, garantindo que o
nome de Matheolus continuasse a ser um nome a acompanhar o de Jean de Meun, em
seu brutal antifeminismo, na querela contra as mulheres no século XV (FONSECA,
2011).
É provavelmente ao texto de Le Févre que Christine de Pizan se refere no
começo de sua narrativa no Livro Cidade das Damas. Christine olha com desaprovação
o livro de Le Fèvre por ser um livro que trata o seu assunto de maneira frívola (en
manière de trufferie), não possuindo, alegadamente, uma boa reputação. Assim,
propositalmente, ela o coloca de lado, a fim de se concentrar, conforme diz, em assuntos
mais sérios. Afinal, Pizan está comprometida com a defesa das mulheres e questiona o
porquê de escritos como esses de Le Fèvre e de Mathieu e a sistemática refutação das
alegações dos autores sobre as mulheres.
Sobre as alegações da malícia feminina que Christine de Pizan deseja construir
seus argumentos, com a finalidade de desconstruir a ideia de que todo o comportamento
feminino é cheio de vícios. Para tanto, ela se dirige a filósofos, poetas e oradores,
depreciadores das mulheres e incentivadores do topos da imperfeição feminina,
questionando o motivo de tal ataque por vezes tão irônicos a respeito da natureza das
mulheres.
É notório que o tema da imperfeição da mulher foi fortemente influenciado pela
formula mentis da tradição medieval e reflete fundamentos sancionados pela autoridade
de Aristóteles em De generatione animalium, ao qual seguiu de perto Galeno em De usu

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


299
partium corporis humani. Para figurar o simbólico sentido destruidor do corpo
feminino, uma concepção básica é aproveitada: o antigo medo da vagina dentata,
significando o portão do Inferno do imaginário religioso medieval, imagem associada
ao arcano medo psicossexual da castração. Em termos do registro de fonte de
conhecimento aberto na Idade Média, nenhuma mulher, antes de Christine de Pizan,
tratou textualmente de apontar os pensamentos derrogatórios da natureza feminina. Se
houve, lamentavelmente seus textos não chegaram até nossos dias.
Para vários estudiosos da Idade Média, entre os quais destacamos Georges Duby
(2011), a obra de Pizan tem um caráter proeminente no que diz respeito às primeiras
expressões de um discurso feminino. Para o estudioso, as fontes escritas até pouco antes
do século XII vêm de documentos feitos por homens, de forma que se estabeleceu uma
sociedade essencialmente masculina em que a mulher é a sua parte oculta. Entretanto,
segundo o historiador francês, é preciso estudar conjuntamente os dois sexos para se
entender a história das mulheres e a coerência entre a condição masculina e feminina no
seio da organização familiar. Desse modo, o discurso de Pizan colabora para a formação
do pensamento feminino escrito por uma mulher, mesmo que esse discurso esteja
permeado pela cultura androcêntrica que a cercava.
Luciana Eleonora de Freitas Calado (2006), em sua tese de doutorado que
resultou em uma tradução acadêmica para o português do livro da Cidade das Damas,
afirma que Christine de Pizan seria a primeira mulher a ocupar o ofício de escritora
como profissão e a viver dessa renda. Para Calado (2006), a escritora francesa é uma
das primeiras vozes femininas na apologia da mulher que tratou textualmente de apontar
muitos pensamentos derrogatórios da natureza feminina, diacronizados em formações
essencializantes sobre a índole da mulher e sua função social.
Assim, nesta comunicação, damos ênfase ao primeiro dos três livros que
compõem a Cidade das Damas, em que Pizan narra como e com qual propósito o livro
foi escrito. Uma das imagens que chamou a atenção logo no início da narrativa foi o
fato de as três damas (Razão, Retidão e Justiça) revelarem a Pizan que ela foi a
escolhida para erigir uma cidade fortificada, com excelentes fundamentos, onde
habitarão todas as damas de renome e mulheres louváveis, uma vez que os muros da
fortaleza seriam fechados a todas aquelas desprovidas de virtudes. Esse tratamento dado
às mulheres que não se encaixam na categoria eleita por Pizan, parece colocá-la no

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


300
mesmo patamar daqueles que, misoginamente, impigiam à mulher uma posição
sobredeterminada e comprometida com os sentidos. Assim é de se notar certa presença
de um discurso dominante, cuja retórica, baseada num complexo sistema binário de
hierarquia, parece, inadvertidamente, ser reproduzida pela escritora.
Entretanto essa retórica faz parte de um longo processo cultural que acaba por
envolver as concepções sobre a configuração do gênero na mentalidade e na cultura do
mundo ocidental, a partir de diferenças naturais e institucionais entre os sexos. A
configuração dessa retórica contribui para o estudo da literatura e da poética na
definição dos gêneros sexuais no Ocidente, ao mesmo tempo promove uma ligação
entre os escritos patrísticos e a literatura dos séculos XII e seguintes.
Para Bloch (1995:18-19), a “relação dos discursos concorrentes sobre o feminino
– o misógino e o cortês – é bem mais complicada do que a de uma simples oposição”.
Enquanto estudioso da Idade Média, Bloch explica que a imitação ventríloca da voz de
alguém pode se revelar tanto uma estratégia de sedução quanto uma usurpação do poder
daquela pessoa. Conforme o autor,

o fato de se passar facilmente do “falar como uma mulher” para a suposição


de que apenas uma mulher pode falar sobre as mulheres, para uma noção
essencializada da mulher como verdade [...] coloca tal gesto seguramente
entre uma das grandes correntes da misoginia ocidental desde Platão até
Nietzsche, pelo menos (BLOCH, 1995: 10, grifo do autor).

Em outras palavras, Bloch (1995), com sua análise das imagens ambivalentes
entre o antifeminismo e a cortesania, considera os vários aspectos críticos relativos à
representação do feminino pela mentalidade e pela visão de mundo da época. Ainda
segundo o autor, a articulação patrística dos sexos é construída a partir da analogia entre
o mundo da inteligência e o mundo dos sentidos, de fundas raízes platônicas. Por esse
viés, o homem é associado à racionalidade, à inteligência e à mente, e a mulher, ao
corpo, ao apetite e às faculdades animais. Nessa distinção entre mente e corpo, a mulher
assume a projeção do medo ligado à incontrolabilidade do corpo, de seus membros e
impulsos. Daí o fato de os escritos dos primeiros padres da Igreja depositarem na
mulher uma desconfiança, em parte, atribuída a um desejo de distanciamento ou
refreamento contra a presença contumaz do corpo feminino, seja ele o corpo da mulher
ou a mulher no corpo de cada homem (BLOCH, 1995: 40). De certo modo, é esse o
mundo de Pizan, que a faz partilhar a mesma visão do feminino que seus opositores. Por
XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS
301
natureza, a mulher só poderia ocupar um lugar secundário na sociedade medieval.
Segundo Christiane Klapisch-Zuber (2006: 137),

O medievalista que se questiona sobre as categorias e as relações sociais dos


sexos, não pode ignorar o antifeminismo da época. Se quiser compreender
como a sociedade medieval articulou o masculino com o feminino, deve
considerar estes comentários sobre a inferioridade das mulheres e sobre a
natureza da mulher, a ladainha de seus defeitos, os argumentos que os
corroboram, os exemplos dados.

Para Klapisch-Zuber (2006), o discurso medieval misógino atua pela separação,


pela diferenciação do feminino em oposição ao masculino, este percebido como
plenitude e totalidade. Entretanto, o corpo feminino teve seus defeitos expostos e
reunidos em torno de um discurso desrealizante da mulher. Acreditamos que Pizan
utiliza-se do estatuto masculinista para se elevar e ser colocada no mesmo patamar de
grandes escritores como Dante Alighieri e Giovanni Boccaccio, seus conterrâneos. O
fato de ser a escolhida para erigir uma fortaleza, faz com que Pizan seja uma pessoa
com os requisitos necessários para vencer tal propósito. A recomendação que ela recebe
das três damas é para que ela tirasse proveito de escritos misóginos como Lamentações
de Mateolo, o Romance da Rosa entre outros e os usasse a seu favor.
Para atingir seu objetivo, Pizan utiliza uma das principais características da
literatura clássica que é ter como princípio de criação poética a apropriação intencional
de textos precedentes, sejam eles muito anteriores ou da mesma época dos que os toma
como matéria exemplar. Ao compor sob esse princípio, a escritora francesa faz
reconhecer seus predecessores, empregando fórmulas e técnicas que caracterizam o
gênero da obra e tomando por empréstimo textos ou partes deles, temas e conteúdos
conhecidos de um determinado público, reproduzidos em um novo arranjo e em um
novo contexto.
Igualmente, Christine de Pizan se vale dos exempla para construir seu texto. O
exemplum possui uma estrutura que só adquire significação em virtude de uma
correlação estabelecida entre os elementos narrativos e os princípios morais que o
pregador (narrador) quer expressar. É nesse sentido que o exemplum se define como
meio dinâmico e reproduz, por meio de imagem ou de uma sequência de imagens, a
conduta e o comportamento desejado pela autora.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


302
Pizan apresenta em seu texto uma série com mais de cem exemplos de histórias
vividas por mulheres dignas de serem imitadas: rainhas como Nicole, Fredegunda,
Artemisa; poetisas como Safo; personagens da mitologia e da antiguidade pagã como
Semiramis, Sinope, Hipólita, Menalipe, Lampeto, Pentesileia, Tomiris; mulheres
bíblicas como Ester, Judite e Jael; representantes da cristandade católica a exemplo de
santa Helena, santa Brigite e santa Elisabet; outras pagãs como Lucrécia, Veturia e
Virgínia; entre outras. Ainda com relação ao exemplum, a escritora francesa convoca
elementos discursivos de fôlego para erguer sua cidadela. Assim, dentre os meios que
demanda estão: univocidade, brevidade, autenticidade, verossimilhança, memorização,
prazer e metáfora, recursos expressivos que a escritora usa para construir sua cidade, o
lugar de um progresso das condições de vida feminina.
Fator a ser considerado, para uma análise de La Cité des Dames, é o contexto
sócio-histórico que envolve Christine de Pizan em seu labor. Na época em que Pizan
escreve, o escritor passa a ser um servidor do rei e do Estado, um empregado que tem a
missão de contar a história de seu tempo. Além disso há uma preocupação com a
edificação espiritual e com o comportamento feminino. Assim, o livro de Christine de
Pizan tem uma função especular com o comportamento e a ética das damas do seu
século, tendo, de certa forma, um teor moralizante conforme os preceitos da época para
as mulheres.
Por meio de figuras exemplares, Christine de Pizan ressignifica a defesa da
mulher, erigindo a cidade que na verdade é o próprio espelho e metáfora de sua obra
maior: O livro cidade das damas. Como estratégia, a escritora reelabora o conhecimento
acumulado e proporcionado por seu pai, Thomas Pizanno, por seu marido, Etienne
Castel, e pelo rei Carlos V, que acolheu sua família na corte. A presença dessas figuras
masculinas, valorizadas por suas virtudes, parecem balancear e colocar harmonia no
desejo de uma sociedade mais justa para as mulheres. Ela, em sua educação humanista,
organiza de maneira proveitosa e sólida personas da sua vida pessoal e os mescla com a
história contada por uma mulher.
Esse recurso, a grosso modo visto como estratégia, corrobora a nossa maneira de
entender a escritora francesa que, ao retratar vida pessoal e afetiva na construção de
uma identidade feminina, fortalece seus alicerces. E essa é a base de sua cidade, o

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


303
cimento que funde os ideais de um lugar das mulheres, em que seja habilitado um
espaço para o feminino, com a participação do masculino.
Pensando na correlação entre os elementos narrativos, temos a cidade com sua
base, com a edificação dos muros, pórticos, torres e casas como uma metáfora do ato de
escrever e a própria escritura do livro. Desse modo, Christine de Pizan se mostra
autoconsciente do seu papel de escritora e talvez seja esse o estímulo que deseja deixar
como legado para outras mulheres que não viveram e, portanto, não presenciaram a
visão de seu tempo. Ao construir uma cidade com a ajuda das três damas, uma alegoria
às musas, Pizan estabelece ligação entre vida e arte, no processo imaginário do contar a
história.

REFERÊNCIAS
BLOCH, R. Howard. Misoginia medieval e a invenção do amor romântico ocidental.
Trad. Claudia Moraes. Rio de Janeiro: 34 Literatura, 1995.
CALADO, Luciana Eleonora de Freitas. A cidade das damas: a construção da
memória feminina no imaginário utópico de Christine de Pizan. [Tese de Doutorado]
Recife, 2006.
DUBY, Georges. Idade Média, idade dos homens: do amor e outros ensaios. Tradução
Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
FONSECA, Pedro Carlos Louzada. Bestiário e discurso do gênero no descobrimento
da América e na colonização do Brasil. São Paulo: Edusc, 2011.
KLAPISCH-ZUBER, Christiane. Masculino/feminino. In: LE GOFF, Jacques;
SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP:
Edusc, 2006, p. 137-149.
PIZAN, Christine de. La Cité des Dames. Texte traduit et presenté par Thérèse Moreau
et Eric Hicks. 4.ed. Paris: Stock, 2000.

Ilustrações sobre Christine de Pizan: http://takebackhalloween.org (1240 × 800)

APOIO: FAPEG, UEG e UFG.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


304
AS BEM-AVENTURANÇAS FREQUENTAM A CORTE: A
EDUCAÇÃO CRISTÃ DA PRINCESA N'O LIVRO DAS TRÊS
VIRTUDES, DE CHRISTINE DE PISAN
Maria Ascenção Ferreira Apolonia
Doutora em Literatura Portuguesa pela FFLCH/USP
Membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo

Maria Elizabeth Santo Matar


FFLCH/USP

RESUMO: Como desdobramento do casamento monogâmico e indissolúvel, fez-se


relevante a participação da mulher no espaço político e cultural da Corte, o que exigiu
da princesa um “saber de experiências feito” sobre as regras protocolares, as gestões
diplomáticas, o relacionamento social e os conflitos de poder, ao lado de uma particular
prudência para conviver e sobreviver num universo permeado de acordos e intrigas,
ódios e simpatias, ao ritmo das tensões políticas e da tomada de decisões que
caracterizaram a Corte do século XV. Em resposta à demanda de uma educação cristã
da princesa, adequada ao momento histórico e ao mundo laical, a primeira parte d’O
livro das três virtudes, cerca de vinte e cinco capítulos, é dedicada à formação da
princesa, mais complexa e abrangente do que a de outras damas e mulheres do povo, a
que igualmente Christine de Pisan se dirige nas duas outras partes da obra. É nosso
intuito analisar a inserção da educação da princesa no patrimônio cultural da Baixa
Idade Média: a original adaptação, efetuada por Christine, das bem-aventuranças e das
virtudes cristãs à vida palaciana. O livro da três virtudes constitui um exercício de
releitura dos preceitos do Evangelho e da vida contemplativa à altura das circunstâncias
da vida ativa, deles extraindo as diretrizes para nortear o dia a dia da princesa, desde a
organização do tempo e dos gastos, o relacionamento com o marido, filhos e cortesãos
até o cultivo das virtudes, em particular, da sabedoria para discernir os riscos a que está
exposta no ambiente mundano e no jogo de interesses da Corte.

Palavras-chave: Corte do século XV, Cristianismo, Baixa Idade Média

ABSTRACT: As a consequence of the indissoluble monogamous marriage, women´s


participation became relevant in the political and cultural scene of the Court, which
required “the mastering of experiences” of the princess in several aspects: protocol
rules, diplomatic management, social relationships and conflicts related to power,
besides some particular prudence to survive and get along with a universe dominated by
deals and intrigues, hate and sympathy, all of them moving to the rhythm of political
tension and decision taking that characterized the XVth-century Court. To fulfil the
demand for a Christian education for the princess, an education appropriate to the
historical time and the secular world, the first part of The book of the three virtues
focuses on the princess´s education, which was more complex and embracing than that
of other ladies and peasant women. The education of the latter two ones is dealt with in
the two other parts of the book. It is our aim to analyze the insertion of the princess´s
education in the cultural heritage of the Late Middle Ages: Christine de Pisan´s original
adaptation of the beatitudes and Christian virtues to the palace life. The book of the
three virtues constitutes an exercise of rereading the precepts of both the Gospel and the

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


305
contemplative life at the level of the circumstances of the active life. The guidelines for
the princess´s daily life are derived from the precepts referred to above, and they cover
from the organization of her time and expenditure, the relationship with her husband,
children and courtiers, to the cultivation of the virtues, particularly the virtue of
wisdom, to discern the risks she is exposed to in the mundane environment and interests
of the Court.

Keywords: The XVth-century Court, Christianity, Late Middle Ages.

É nosso intuito analisar a inserção da educação da princesa no contexto


histórico-cultural da Baixa Idade Média, para aferirmos a original adaptação das bem-
aventuranças e das virtudes cristãs à vida palaciana, inclusive, em sua dimensão
política. O livro das três virtudes vem a público num período em que se acentua a
inclusão do leigo na espiritualidade cristã, mediante a publicação de livros de cunho
moral e religioso e das imagens de príncipes (FERNANDES, 1995), de que o livro de
Christine é um bom exemplo. A obra constitui um exercício de releitura dos preceitos
do Evangelho e da vida contemplativa à medida das circunstâncias da vida ativa, deles
extraindo-se as diretrizes para nortear o dia a dia da princesa, desde a organização do
tempo e dos gastos, o relacionamento com o marido, filhos e cortesãos até o cultivo das
virtudes, em particular, da sabedoria e da prudência, para discernir os riscos a que está
exposta no ambiente mundano da Corte.
Desde muito jovem, Christine de Pisan frequentou a Corte de Paris e presenciou,
com consequências para a vida pessoal, os desdobramentos da crise política
desencadeada pela morte de Carlos V, cujo herdeiro tinha apenas 12 anos quando
faleceu o pai (WILLARD, 2005). A luta dos tutores pelo poder dividiu os parentes em
dois partidos: o da rainha Dona Isabel da Baviera, ao lado de Luís d’Orléans, contra
Jean sans Peur. Ambições financeiras e vingança geraram uma guerra civil em que cada
parte buscou a adesão dos ingleses (ROUX, 1986). Contemporânea da Guerra de Cem
Anos entre a França e a Inglaterra, a autora também acompanhou a crise por que passou
o Ocidente cristão de 1378 a 1380, resultante de tensões sociais internas, da recessão
econômica, do peso das guerras e da crise religiosa (ROUX, 1986). Em síntese, mais do
que outros autores de imagens de príncipes, Christine reunia um “saber de experiências
feito” sobre a Corte, que frequentou desde pequena, além de gozar da prerrogativa de
ser uma mulher que escreve a outras mulheres, para traçar as normas de comportamento
da princesa, imersa num ambiente de alegria e entretenimento, mas sujeito a disputas e

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306
às turbulências políticas. A notável experiência e erudição de Christine legitimou-a
perante o público medievale explica o êxito da recepção d’O livro das três virtudes
(WILLARD, 1966): três edições na França (1497,1503,1536); uma edição antiga de
Madri: O livro das três vertudes a insinança das damas, de que se originou a primeira
versão em português de meados do século XV, e a segunda, já impressa, em 1518, com
o título de O espelho de Cristina (CRISPIM, 2002).
A primeira parte da obra, dedicada às princesas e rainhas, inicia com uma
saudação às leitoras, com o status de ouvintes, remetendo às cartas coletivas do
medievo lidas em público. De fato, em 1406, o acesso aos manuscritos era restrito; o
que nos permite inferir a probabilidade de leitura conjunta sob a forma de
entretenimento literário: “A todas princesas,[scilicet], imperatrizes, Reinhas, duquesas
e altas Senhoras que reinam em senhorio sobre a terra dos cristããos, desi em jeeral a
todo o jenero feminino, saúde e amor” (p. 79). Nesse colóquio e nos contínuos diálogos
e cartas que constituem O livro das três virtudes, reconhecemos o vínculo da prosa com
a oralidade, marcante nos gêneros literários medievais (BAUMGARTNER, 2002).
A bem-aventurança a que Christine faz referência explícita para predispor a
princesa à escuta é: “Bem-aventurados os que têm um coração de pobre,/ porque deles
é o Reino dos Céus!” (Mt 5, 3). Tal como Santo Agostinho e São Tomás, a autora não
relaciona as palavras de Cristo apenas ao desapego dos bens materiais, mas também à
virtude da humildade, que requer o desprendimento de si mesmo. Em consonância com
a Suma teológica, O livro das três virtudes considera a humildade, condição sine qua
non para o crescimento moral: remove os obstáculos à edificação das virtudes e expulsa
a soberba, abrindo caminho à graça de Deus (AQUINO VI, q. 161, a.5).
Antes de preconizar normas e bons hábitos, Christine estimula a princesa à
contrição e ao convencimento de ser, também ela, criatura a serviço do Criador e dos
súditos. A autora instaura um autêntico exercício de retiro espiritual que prima pela
evocação do conteúdo escatológico do Evangelho e pela cuidadosa análise das
disposições interiores, a exemplo das pregações nas abadias e conventos. Em evidência,
a profundidade teológica e o cultivo da vida interior do leigo, capaz de dirigir as almas
rumo à conversão e à santidade (ROPS, 1993). A convicção de que o cristão comum
pode se santificar, graças ao cumprimento dos seus deveres de estado e de sua
exemplaridade, ganha a Corte e outros núcleos de cultura. E O livro das três virtudes é

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


307
um flagrante desse dinamismo eclesial que abre novas e diferentes vertentes de
santificação na vida civil, alinhadas com uma sociedade laical cada vez mais atuante e
diversificada. Christine menciona especificamente o rei São Luís da França e Santa
Isabel da Hungria, que ela apresenta como paradigmas de vida cristã autêntica no
exercício da atuação política.
O livro das três virtudes tem ainda o méritode nos revelar pormenores da vida
palaciana, à proporção em que Christine empresta à personagem as palavras que deve
“dizer contra si” para crescer em humildade: - Ooneicia, sandia, mal avisada!Em
pouca d’hora esqueeceste o conhecimento de si mesma! Que pensaste tu ?Nom sabes
que tu és hu(u)a miserável persoa, criatura sojeita a todas enfermidades e passiõões
que corpo mortal pode sofrer !Que avantagem hás tu? (p. 84). E nesse colóquio em que
o eu se duplica, contemplando-se como tu, emerge a interioridade da princesa,
transfigurada em frases exclamativas cheias de tensão e dramaticidade: _ Soberva, rainz
de todos los males! [...], per causa de ti soomente, eu som muitas vezes metida em ira,
desejando vingança, e me fazes pensar que eu devo de seer temida e preçada sobre
todas. E meter todos sob meus pees (p. 85-6). À sombra dessa interlocução, que culmina
no autoconhecimento, entrevemos uma realeza que se distancia de sua identidade cristã
num movimento de dessacralização ede exacerbação dos interesses individuais.
Fica bem claro às leitoras que o prestígio, o poder e a riqueza não garantem o
êxito moral e a salvação. Ao contrário, pressupõem maior risco e responsabilidade no
plano humano e sobrenatural. Na perspectiva cristã, a autoridade emana de Deus e se
constitui como serviço aos que dela dependem. Reinar é servir (Mt 20, 26-8). Na
contramão das inclinações humanas e das monarquias absolutistas em formação, os
princípios cristãos têm a força de um contrapoder, de um antídoto contra a tirania no
âmbito da interioridade.
Como consequência do desprendimento pessoal, a princesa não deve se entregar
à ociosidade. Eis o lema: ora et labora que transborda dos claustros para fecundar a
administração do tempo no mundo laical (HAUSER, 2000). De preferência deve ter, a
princesa, o bom hábito de acordar cedo, bastar-se nas tarefas íntimas, ouvir missa,
distribuir esmolas, frequentar com assiduidade a câmara dos filhos, além de acompanhá-
los na formação espiritual e humana que lhes é facultada. É recomendável ainda seguir
de perto os gastos de sua renda, as contas dos devedores e despenseiros. Mesmo nos

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


308
intervalos de folgança, deve buscar algo a fazer em companhia das filhas e donzelas da
Corte, às quais legará o bom exemplo. Em destaque, o valor do trabalho em sua
significação originária, como contraponto à representação que dele fizeram as
civilizações antigas, considerando-o ocupação de escravos. Antes do pecado original,
Deus já incumbira, a Adão e Eva, o cultivo e a guarda do Éden (Gn 2,15) na qualidade
de colaboradores no projeto da criação.
Por outro lado, é extremamente rica de significações a fórmula matemática que
a autora propõe à princesa para bem administrar seus rendimentos e ter um coração de
pobre:

Ela partirá [suas rendas] em cimquo maneiras- a primeira parte será pera os
pobres; e a segunda pera despesa em sua casa[...]; a terceira pera pagar seus
oficiaaes e suas molheres; a quarta será pera dõões d’estranjeiros e doutros
que o merecem, fora de suas ordenanças; a quinta será posta em tesouro; e se
mais sobejar, será pera seu prazer, assi como roupas e joias e corregimentos
(p. 152).

Quando a autoridade segue os moldes cristãos, o particular não se sobrepõe ao


bem comum. As decisões financeiras da princesa assumem uma conotação político-
social e religiosa que transcende os caprichos e a exaltação pessoal para privilegiar o
serviço ao povo: assistir os pobres, retribuir com justiça os serviçais e conceder dons
aos estrangeiros (p. 152). A autora, no entanto, não se exime de legitimar as despesas
adequadas ao estado de dama da mais alta linhagemdentro dos limites pré-estabelecidos.
Demarca-se, deste modo, a fronteira entre a vida consagrada e a condição laical graças à
experiência da mulher-escritora que conviveu com reis e rainhas e ao mesmo tempo
conhecia a Patrística e os doutores da Igreja. Nota-se o esforço de Christine para
alcançar o ponto de equilíbrio entre o condizente com o estado da princesa e o
supérfluo, representado pela excessiva ostentação.
Como natural desdobramento da pobreza, também a misericórdia compõe a
educação da princesa. “Bem-aventurados os misericordiosos,/ porque alcançarão
misericórdia” (Mt 5, 7), que Cristo complementa no próprio Sermão da Montanha,
desvelando-nos um pouco do coração de Deus: “Sede misericordiosos como o vosso
Pai é misericordioso” (Lc 6,36). Christine vê na misericórdia a pedra de toque da
caridade:“[a princesa] desejará d’haver em si esta fremosa vertude, em tal maneira que
será tam piadosa que o mal alheo lhe doerá como o seu próprio (p. 105). A seguir,

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309
numa explanação em que repercute o frescor da pregação oral, quase ouvimos, à
distância de séculos, fragmentos de homilias sobre as obras de misericórdia espirituais:
“[...] caridade se estende em muitas maneiras e nom soomente em dar dinheiro da
bolsa, mas ajudar, e confortar de palavra e de conselho e de todo outro bem que
homem pode fazer” (loc.cit.). E em outro trecho: “E a booa princesa deve seer bem
avisada que compra as obras de misericórdia [...] havendo boos servidores acerca de si
e, isso mesmo, boos conselheiros, pera a bem conselharem e darem aa eixucaçom seus
boos propósitos” (p. 111). É de tal relevância que a princesa pratique a caridade que
outros devem alertá-la sobre as oportunidades que surjam em sua rotina diária.
Sublinhemos que a honra e a boa nomeada, ou seja, a percepção que o povo tem da
princesa, afiança-lhe a autoridade real, que mais se consolida, quanto mais reproduz,
sem distorções,as ações misericordiosas de Deus em favor de seus filhos.
A misericórdia da princesa transpõe a fronteira da santificação pessoal para
definir-lhe a precípua função política na rede de relações entre o príncipe e o povo: “E
será esta Senhora, per pura, benina e santa caridade, vogada e medeaneira antre o
príncipe, seu marido ou seu filho, se for viúva, e seus povoos e toda sua jente, em todo
bem que ela poder ajudar”(p. 105). Os traços com que a escritora constrói a imagem da
princesa revelam-nos a projeção da figura da Virgem Maria no paradigma de cunho
moral e político preconizado à princesa: pura, benina, vogada e medeaneira. A
misericórdia da rainha contribui para garantir o exercício político de intermediação
entre o príncipe e sua gente de quem, a exemplo da mãe de Deus (theotókos)1,
igualmente rainha da corte celestial2, ela será advogada e medianeira. N’A cidade das
mulheres, Maria é convidada a habitar aquela povoação na condição de rainha da corte
angelical (PISAN, 2006). Presenciamos, assim, um flagrante de como a inserção de
Maria na liturgia cristã colaborou para a valorização da mulher também na esfera
política.
Ter um coração misericordioso implica ainda saber compreender os erros e
defeitos das pessoas com as quais se convive. E para validar prescrição tão exigente e
sobrenatural, Christine cita São Gregório: “‘[...] aquele que nom sabe soportar

1 O culto mariano temseu marco inicial no Concílio de Éfeso em 431(PELIKAN, Jaroslav, 2000),
consolidando-se, a partir do século XII, com as catedrais a ela dedicadas.
2 A Retidão preparou um palácio na cidade das damas para morada de Maria. Todas as mulheres devem,
à sua entrada, saudá-la como Rainha do Céu (p. 126).

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


310
d´outrem sua impaciencia mostra e testemunha que ele é longe da abastança das
virtudes’ ” (p. 104). O recurso à autoridade dos santos e de filósofos da Antiguidade é
uma constante n’O livro das três virtudes; o que não só atesta a erudição da autora,
como revela a necessidade que sente Christine de uma argumentação sólida,
indispensável a quem se situa no contrafluxo das tendências neopagãs que invadem a
Corte de Paris, tão bem descritas na Epístola ao deus do amor (1399), com a qual
Christine inaugurou sua produção literária.
Associada à misericórdia, detectamos outra bem-aventurança que integra a
educação da princesa: “Bem-aventurados os mansos,/ porque possuirão a terra” (Mt
5,5), que se pode completar e esclarecer com alguns versículos do Salmo 36, de Davi:
“Espera no Senhor, e faze o bem; habitarás a terra em plena segurança” (v. 3); o que
permite interpretar “terra” em duas acepções: Jerusalém Celeste, em nível eterno; e
espaço no mundo no plano temporal. Tanto Christine quanto São Tomás referem-se à
exemplaridade de Cristo que se autodenomina: “manso e humilde de coração”, para
acentuar a necessária presença da mansidão na vida dos cristãos. Para o doutor angélico,
a mansidão consiste em conter a ira, subordinando-aao domínio da reta razão (Suma
teológica, q.157, a. 2). A paratopia3 da escritora, o seu status, está em interpretar
fielmente os doutores da Igreja, constituindo-se como voz feminina que do templo se
estende ao universo cortês, dirigindo-seà interioridade das leitoras: “[...] a nobre
Senhora será tam paciente que... por cousa que lhe aconteça nom será movida a
impaciencia” (p. 103). Desde dentro, ela alinha os ensinamentos cristãos à maneira de
ser da princesa, orientando-a na conquista da mansidão e da cordialidade no trato com o
marido, os serviçais e os desafetos, não deixando de sublinhar a razão desse
procedimento: “[a persoa] a todos soporta injurias e doestos, com muita paciencia, por
amor de Nosso Senhor” (p. 96).
Importa não confundir a mansidão com passividade, apatia ou fraqueza; o que as
palavras de Christine mostram bem: “ Esta nobre Senhora, assi desposta per grande
constância e per força de coraçom, non fará grande conta dos dardos dos envejosos
(...)” (p. 104). Não buscará vingar-se pessoalmente dos que agem mal, antes os perdoará

3 Empregamos o termo paratopia no sentido que Dominique Mainguenau lhe dá: a perspectiva
adotadapelo escritor.Neste caso Christine propicia a extensão dos ensinamentos religiosos à sociedade
civil.

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311
graças à valentia de sua vida interior, o que requer um forte amadurecimento humano e
espiritual.
Convém enfatizar que a mansidão encerra uma amorosa esperança, uma
sabedoria em gestação, um olhar prudente que conta com o desenrolar do tempo,
resultado de uma abertura cheia de confiança na ação providente de Deus. Nessa
perspectiva, as injúrias, a inveja e a maledicência nunca têm a última palavra: a verdade
virá à tona, pois é Deus quem vela pela vida dos justos. Nas palavras do salmista:
“Confia ao Senhor a tua sorte, espera nele, e ele agirá./ Como a luz, fará brilhar a tua
justiça;/ e como o sol do meio-dia, o teu direito” (Sl 36, 5-6). Tal como enfatiza Le
Goff, “ [...] a esperança permanece a principal herança da Idade Média à humanidade”
(2011, p. 217).

Porém, ao longo dos capítulos, sobressai um norte para o qual convergem as


demais bem-aventuranças, as advertências e as indicações práticas: “Bem-aventurados
os que promovem a paz,/ porque serão chamados filhos de Deus”(Mt 5, 9). Construir a
paz é o pleno cumprimento das proposições d’O livro das três virtudes. E Christine
atribui à mulher o protagonismo na luta por instaurar a unidade, denominando-a
procuradora da paz. Em consonância com a visão de mundo medieval, Christine vê, na
natureza da mulher, maior inclinação à doçura e à paz, pois o homem é mais impulsivo,
menos piedoso, mais propenso à vingança e menos atento aos perigos e danos que as
guerras podem causar (p.109).A autora vai ao encontro do que afirma São Tomás: a paz
pressupõe a vitória sobre as paixões e resulta de uma caridade que costuma estar
impregnada de doçura (q.29, a.4). Igualmente n’ O livro das três virtudes, a mulher que
promove a concórdia aparece imbuída de caridade e não há maior bem do que
estabelecer a paz entre inimigos, por isso suas obras “[...] som de tanto merecimento
que nom pode seer mais” (Loc. cit.).
Nessa linha de pensamento, Christine mostra ser a diplomacia a gestão política
em que a mulher tem maior êxito. Para argumentar, alude à História da França,“ [...]
assi como era a Rainha Branca, madre de Sam Luís, a qual sempre trabalhou de poer
paz entre el Rei e o povoo [...] a qual cousa é dereito ofício das Rainhas e princesas”
(p. 108). E dá a entender que a mulher tem os olhos voltados para os súditos, a maior
vítima da guerra: “... e a booa Senhora, esguardando estas cousas e havendo piedade

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312
da destruiçom do povoo, se trabalhará de meter paz” (loc.cit.). Christine sugere
indicações práticas na articulação com o príncipe, os adversários e os conselheiros,
emprestando à princesa as palavras que deve usar para garantir a paz: “ ‘ [...] e
esguardem bem sobr’esto, ante que comecem oolhando ao mal que se pode seguir’; e
como ‘boom príncepe deve escusar espargimento de sangue e, em especial, sobre seos
sojeitos’”(loc. cit.). Com essas advertências, a autora, também procuradora da paz,
constrói, por meio da atuação política da princesa, caminhos de representatividade dos
anseios do povo junto às instâncias do poder, das quais depende a paz.
Para evitar conflitos interpessoais ou políticos, O livro das três virtudes chega a
sugerir o direito que tem a princesa de, sem mentir, ocultar o que sabe sobre o inimigo:
“E assi usará desto, descreta desimulaçom e prudente cautela, a qual nom crea alguém
que seja vicio, ante é vertude, quando é feita a causa de bem e de paz [...]” (p. 140).
Com essas palavras Christine antecipa a interlocução com aqueles leitores que a
criticariam por isso. Se recorrermos à Suma teológica, fica mais fácil defendê-la na
prática da simulação, pois nem toda representação é má (q.111 a.1), uma vez que não há
a necessidade moral de revelar toda a verdade a todos e em todas as circunstâncias; e o
doutor angélico legitima explicitamente a dissimulação nas estratégias bélicas e no
relacionamento com os inimigos (q. 111 a. 1.1). Nos dias atuais, compreendemos
melhor os benefícios do sigilo nas relações diplomáticas para evitar conflitos e preservar
a soberania nacional. Ora, até os relacionamentos da princesa com o marido e seus
parentes se revestiam de uma coloração política, na medida em que a segurança do
Reino dependia de uma estrutura familiar sólida, sem discórdias internas que pudessem
deflagrar guerras civis e causar a destruição do Reino.
Percebemos que a instituição familiar nos moldes cristãos serviu de base para a
representação do poder real na Idade Média (MACEDO, 1995)4, assentado na fidelidade
do casamento monogâmico e indissolúvel5 com herdeiros legítimos, desenhando-se, a
partir da mesma lógica, a relação de lealdade entre o príncipe e seus súditos, pois a
sociedade nos reinos cristãos é representada como a grande família dos filhos de Deus
(BASQUET, 2006), que o rei deve governar e da qual deve ser o guardião. Para tanto,

4 Jorge Borges de Macedo ressalta a importância política do casamento cristãoem “Mulheres e política no
século XV português: considerações críticas”, Oceanos: Mulheres no Mar Salgado, nº 21.
5 A respeito das ressonâncias do sacramento do matrimônio, leia-se o capítulo “O Cristianismo libertou
as mulheres”, extraído de Uma longa Idade Média, de Le Goff.

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313
cumpre aos investidos de autoridade promover as condições que garantama justiça e a
paz, isto é, a necessária estabilidade para que os súditos alcancem a plena realização
terrena e sobrenatural (ROPS, 1993). E o vínculo entre o temporal e o eterno no âmbito
político vem à tona nas admoestações de Christine em favor da paz: “[a princesa]
trabalhará quanto bem poder [...] como tal guerra seja esquivada [...] chamando Deus
em sua ajuda [...] tanto fará, se poder, que hi seja achado caminho de paz” (p. 107).
Deus é o príncipe da paz (JACQUES PHILIPE, 2006), ao qual ela recorre e de quem se
faz embaixadora.

Se lançarmos um olhar ao conjunto da análise, algumas considerações finais se


nos impõem na tentativa de sintetizar o pensamento e a função da autora no contexto
cultural que ela enriquece e sobre o qual intenta agir. Impressiona-nos, em particular, o
conhecimento dos clássicos da Antiguidade: oradores e filósofos;e a profundidade
teológica de Christine, granjeada com a leitura das Sagradas Escrituras e dos doutores
da Igreja, mas também resultante da pregação oral nas abadias e conventos que
frequentava. A partir desses dados, inferimos, por um lado, a eficácia e a criatividade da
comunicação eclesial, suficientemente flexível para adaptar-se às necessidades dos
religiosos e dos leigos, interpretando o Evangelho e a Tradição numa perspectiva
universalista que a todos inclui com matizes distintos, porém sem perder a unidade da
essência doutrinal. Por isso, foi possível encontrar n’O livro das três virtudes a
ressonância e a vitalidade das Bem-aventuranças em sua versão cortês, quer na
concepção das relações de poder, quer na perfeição moral a que está convidada a
princesa.
A partir de outro ângulo, acompanhamos o surgimento e a autonomia do saber
leigo, que se fez evidente não só na criação das primeiras universidades ainda sob o
estímulo da Igreja, mas também no amadurecimento humano e espiritual do cristão
comum no espaço familiar, social e político. E Christine não é uma exceção. Tanto na
França quanto em Portugal, deparamo-nos com reis e rainhas santas ou com obras, por
outros, escritas sobre temas doutrinários (LOPES VIEIRA,1995). É notória a primazia
de uma elite leiga na publicação de manuscritos religiosos ou de espelhos de príncipe
com poucos exemplares e, portanto, de difícil acesso a todos os extratos sociais. Porém,
a exemplaridade da Corte na Baixa Idade Média (BAUMGARTNER, 2002), como

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314
núcleo de cultura e civilização, estenderia seu raio de influência para outros segmentos
da sociedade. E, nesse sentido, O livro das três virtudes já inaugura veredas mais
abrangentes de espiritualidade a serem percorridas por mulheres de todos os âmbitos e
ofícios: burguesas, senhoras feudais, artesãs, comerciantes e campesinas.
Christine soube aproveitar o legado do pai: uma educação privilegiada e
avançada para a época (MARGOLIS, 2011), que ela aprimorou após a morte do marido
e de que se valeu para escrever uma obra extensa, de cerca de 40 volumes. Soube tirar
partido de sua condição de viúva para detectar a urgência de uma educação completa da
mulher _ teórica e prática, com base nas virtudes cristãs _ com a qual pudessese defender
dos aproveitadores e administrar de forma consciente a vida familiar, os bens e o
orçamento. À princesa, Christine propôs também uma aguda percepção das relações de
poder e apontou, a partir de sua experiência e de seu conhecimento histórico, a
colaboração específica que a mulher poderia dar à sociedade nas gestões políticas e
diplomáticas em razão das qualidades femininas e da singular sensibilidade para os
dilemas humanos. E a contribuição inegável d’O livro das três virtudes _ que Christine
_
não teceu somente com palavras, mas com a vida está no alto conceito das
virtualidades do cristianismo; na apreciação da liberdade que detém a pessoa para
melhorar o mundo; eno reconhecimento dos dotes intelectuais da mulher, capaz defazer
a História, e de agir como protagonista na resolução dos desafios morais, sociais e
políticos de todos os tempos.

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317
IMAGENS EM DESFILE NA ESCULTURA E NO TEATRO
MEDIEVAL.
O ORDO PROFHETARUM E O ORDO VIRTUTUM1

Maria do Amparo Tavares Maleval


(UFF-UERJ-CNPq)

RESUMO: Há poucos anos, em Santiago de Compostela, publicaram-se estudos e uma


reconstituição do Ordo Prophetarum, ressaltando-se a relação da iconografia do
magnífico Pórtico da Glória, da basílica jacobeia, com o drama litúrgico medieval: seria
uma representação em pedra do mesmo desfile, fato recorrente em outras igrejas do
medievo.
O Ordo Prophetarum, cujos documentos escritos mais tardios remontam aos séculos
XI-XII (Limoges), XIII (Laon) e XIV (Rouen), parte da célebre homilia Contra
Iudaeos, atribuída a Santo Agostinho durante toda a Idade Média, mas que seria na
verdade de outro bispo cartaginês, Quoduuldeus, do século V. Descreve as profecias
sobre a vinda do Messias feitas pelos profetas do Antigo Testamento, bem como por
pagãos. Representado nas matinas da festa do Natal, tinha por objetivo não só
embelezar e tornar agradável a liturgia, mas ensinar de forma concreta e explícita os
mistérios da Encarnação. Essa dupla função, estética e devocional, acarretaria o seu
aproveitamento nas esculturas das igrejas, cujas imagens não só servem de adorno, mas
também ensinam ao público, de forma didática, os dogmas da fé.
Pretendemos estudá-lo comparativamente a outra obra, o Ordo Virtutum, também de
análoga estrutura. Trata-se de peça singular no contexto do chamado “Renascimento”
do século XII. Primeiramente, por não se subordinar a um episódio bíblico ou à liturgia
das festas cíclicas religiosas, como o Natal e a Páscoa, ou de algum santo. E,
principalmente, por possuir autoria, feminina: a mística Hildegarde de Bingen a
escreveu e compôs-lhe a música para possivelmente inaugurar o mosteiro de
Rupertsberg em 1152.
Trata-se de peça independente e única, não existindo dela nenhuma outra versão, como
era comum acontecer no medievo. Desenvolve a temática moralizadora do combate
entre as virtudes e os vícios, bastante corrente no medievo, colocando a Humildade
como rainha das demais virtudes.
Consideramos que estudar tais peças comparativamente pode levar-nos a descobrir ou
reafirmar importantes conclusões sobre o docere cum delectare praticado pela Igreja e
pelos religiosos no medievo, tornando-as verdadeiros sermões em cena, direcionados ao
movere que se intenta alcançar no auditório.

Palavras-chave: Teatro medieval, liturgia, escultura, Santiago de Compostela

ABSTRACT: A few years ago, in Santiago de Compostela, studies were published and
a reconstitution of the Ordo Prophetarum, highlighting the relationship of the

1 Esta comunicação retoma estudos por mim anteriormente desenvolvidos, como o que apresentei no
Congresso Internacional “Teatro y Fiesta popular y religiosa”, realizado em Cusco pela Universidad del
Pacífico / GRISO - Universidad de Granada de 4 a 7 de junho de 2012, intitulada“Teatro medieval ibérico
e(m) festividades religiosas”.

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318
iconography of the magnificent Portico of Glory, Jacobean’s basilica, with the medieval
liturgical drama: it would be a stone representation of the same show, a recurrent fact in
other churches of the Middle Ages.
The Ordo Prophetarum whose later writings documents date back to the XI-XII
(Limoges), XIII (Laon) and XIV (Rouen), part of the famous homily Contra Iudaeos,
attributed to St. Augustine throughout the Middle Ages, but it would be in truth of
another bishop the Carthaginian Quoduuldeus, of the V century. It describes the
prophecies about the coming of the Messiah made by the prophets of the Old
Testament, as well as by pagans. Represented in the Christmas party matins, it aimed
not only beautify and make the liturgy pleasant, but teach in a concrete and explicit way
the mystery of the Incarnation. This dual function, aesthetics and devotional, would
entail its use in sculptures of the churches, whose images not only serve as adornment
but also teach the public the dogmas of faith, in a didactic way.
We intend to study it compared to other work, the Ordo Virtutum, with the same
structure. It is a singular piece in the context of the "Renaissance" of the twelfth
century. First, because it is not subordinated to a biblical episode or the liturgy of
religious cyclical festivals such as Christmas and Easter, or of some other saint. And
above all, for having a female author: the mystic Hildegard of Bingen wrote and
composed its music to possibly open the Rupertsberg monastery in 1152.
It is an independent and unique piece, and there is no other version of it, as it was often
the case in the Middle Ages. It develops a moralizing theme of the struggle between the
virtues and vices, which was widespread in the Middle Ages, putting Humility as queen
of the other virtues.
We believe that studying and comparing these parts, it could lead us to discover or
reaffirm important conclusions about the docere cum delectare practiced by the Church
and religious in the Middle Ages, making them true sermons on the scene, directed to
movere that tries to reach the audience.

Keywords: Medieval theatre, liturgy, sculpture, Saint James of Compostela.

Sabe-se que o teatro surgiu ligado a cultos religiosos. Se nos reportarmos à


Grécia antiga, vemos que o termo ‘comédia’, que atravessou os séculos com
conotações variáveis, procede etimologicamente do grego komedia, canção entoada
nos cortejos em honra de Dionísio nos rituais de fertilidade2.
Na Idade Média europeia – o que evidentemente se perpetuou –, nos ritos e
ofícios litúrgicos franco-romanos do cristianismo os sacerdotes já se aparentavam com
atores, através de perguntas e respostas se comunicando entre si, o coro e/ou com os
fiéis, que dessa forma participavam das encenações rituais.
Assim é que, no interior dos templos, bem como nas procissões, avultavam
representações relacionadas aos principais ciclos religiosos  o pascoalino e o natalino

2 No século V a. C. constituía uma sátira violenta, lançando mão amiudemente do grotesco e do obsceno,
como podemos constatar em um dos seus mais famosos cultores, Aristófanes.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


319
, desenvolvidas a partir ou a par dos ‘tropos’ do rito romano. A gestualística ritual,
bem como a mistura de música e palavras no culto, teriam evidentemente intenção
didática, de docere cum delectare, buscando a comoção e a conversão dos assistentes
para uma vida virtuosa.
Não se pode esquecer, como frisa Henrique Harguindey Banet 3, que nessa época
de nascimento das línguas românicas as reuniões de cunho profano seriam menos
abundantes que as religiosas, como missas, festas de santos padroeiros, peregrinações,
etc. E especialistas como Javier Huerta Calvo 4 frisam que, ao lado dessa dramaturgia
‘séria’, ocorreria também a eclosão de um teatro carnavalesco, tradição que seria
largamente cultivada no “teatro populista del siglo XVI”5. Por ora deixaremos este de
lado para voltarmos a nossa atenção para o ‘drama litúrgico’ – termo que surgiu apenas
em meados do século XIX para denominar peças devocionais procedentes do medievo.
Eva Castro6 destaca que o primeiro deles, e o mais difundido na Europa, foi a
Visitatio sepulchri, representada nas matinas do domingo de Páscoa. Teve como base a
composição Quem queritis in sepulchro, que também era utilizada como tropo da missa
pascoalina nos séculos X-XI, como atestam códices monásticos beneditinos7, não se
podendo saber ao certo se dita composição surgiu originariamente como texto do tropo
ou do drama.
O drama litúrgico é descrito por ela como “una ceremonia cantada, cuyo modo
de narración se realizó a través de um texto preexistente y de unos actuantes, que
prestabansu voz y su cuerpo para los diálogos”8. Com relação à encenação, era feita em
um espaço determinado e inclusive decorado em certas ocasiões, e “estaba destinado a
uma comunidad, que no solo asistía de forma pasiva, sino que incluso participaba
activamente”9. Dessa forma, já apresentava os componentes que hoje conhecemos do
teatro, tais sejam o libreto, os atores, o espaço do cenário, a decoração e o público
participante. Mas, como acentua a especialista, tudo parece indicar que nem os
‘autores’, nem os ‘atores’ nem o ‘público’ do drama litúrgico “percibían en el una

3 HARGUINDEY BANET, H. Introducción a Trespezas cómicas medievais. A Coruña: Biblioteca-


Arquivo Teatral “Francisco Pillado Mayor”, 1999, p. 7.
4 HUERTA CALVO, J. El teatro medieval y renascentista. Madrid: Editorial Playor, 1984, p. 14.
5 Idem, ibidem, p. 14.
6 CASTRO, Eva. Teatro medieval. 1 – El drama litúrgico. Barcelona: Crítica, 1997, p. 15.
7 Idem, ibidem, p. 15-16.
8 Idem, ibidem, p. 27.
9 Loc. cit.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


320
manifestación teatral ajena a la dramaticidad propia de la liturgia, sino que lo entendían
y sentían como una ceremonia más, engastada em el ritual romano oficial”10.
O êxito dessas peças deu ensejo à criação de verdadeiras obras de arte literário-
musicais em ambientes escolares e eruditos, como as de Hilário ou as anônimas
encontráveis por exemplo nos Carmina Burana, onde os elementos litúrgicos podem se
apresentar conjugados aos de cunho profano, inclusive de origem trovadoresca. Os
autores das peças escolares do chamado Renascimento do século XII até mesmo
atualizaram a mímesis dramática nos parâmetros dos tratadistas greco-romanos, como
Aristóteles e Horácio11.
Interessa-nos por agora observar o drama litúrgico em suas ocorrências
compostelanas. Procede de Santiago de Compostela uma versão fragmentária, do século
XII, da Visitatio sepulchri, arrolada por Eva Castro entre as demais documentações
primeiras – junto às de Vichi e Silos – do drama litúrgico em suas origens12. E,
acrescentamos, o Liber Sancti Jacobi, Códice Calixtino também do século XII, está
repleto de documentos litúrgicos com tropos e ‘farsas’ em honra do Apóstolo padroeiro
de Galiza e Espanha, como vimos em estudos anteriores13.
Nesse contexto, chegamos ao centro de nossas cogitações, em torno do Ordo,
termo usado para designar representações em que se apresentavam sucessivamente
personagens de um mesmo grupo. Em 1988, Serafín Moralejo aventou pela primeira
vez a possibilidade de que o conjunto de estátuas dos Profetas do Pórtico da Glória,
obra-prima do mestre Mateo na entrada da catedral de Santiago de Compostela,
tivessem sido inspiradas no Ordo Prophetarum ou Procissão dos Apóstolos, drama
litúrgico natalino do século XII. Já antes especialistas como É. Mâle vinham
assinalando “as influências da representação do drama litúrgico na iconografia dos
grandes portais das igrejas medievais”14, bem como das cerimônias cantadas, que no
medievo ocorriam nas igrejas e mosteiros durante os ciclos do Natal e da Páscoa.

10 Idem, ibidem, p. 27-28.


11 Idem, ibidem, p. 29-30.
12 Idem, ibidem, p. 165.
13 Desenvolvemos esta questão em estudos anteriores, como MALEVAL, Maria do Amparo T. O
poligrafismo do Codex Calixtinus. In: CAGLIARI, Gladis M. et alii. (Orgs.). Estudos medievais 2 –
Fontes. Araraquara, GT da ANPOLL, 2009.
14 CASTIÑEIRAS, Manuel. “Serafín Moralejo e a procesión dos profetas no Pórtico da glória” Ordo
Prophetarum. Drama litúrgico do século XII. Santiago de Compostela: Conselho da Cultura Galega,
2006, p. 13.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


321
O Ordo Prophetarum descreve as profecias sobre a vinda do Messias feitas
pelos profetas do Antigo Testamento, bem como por pagãos. Era representado nas
matinas da festa do Natal, com o objetivo de não só embelezar e tornar agradável a
liturgia, mas ensinar de forma concreta e explícita os mistérios da Encarnação. Essa
dupla função, estética e devocional, acarretaria o seu aproveitamento nas esculturas das
igrejas, cujas imagens não só servem de adorno, mas também ensinam ao público, de
forma didática, os dogmas da fé15.
As peças escritas sobre essa cerimônia hoje existentes são três: a mais antiga
(séculos XI-XII) pertence ao mosteiro de São Marcial de Limoges; em seguida, a da
catedral de Laon (século XIII) e a da catedral de Rouen (século XIV). Têm em comum
o fato de terem sido desenvolvidas a partir “de um sermão, e não de um tropo, antífona,
responsório ou poema lírico, como era habitual em outras composições dramáticas”16.
Partem da célebre homilia Contra Iudaeos17, atribuída a Santo Agostinho durante toda a
Idade Média mas que seria na verdade de outro bispo cartaginês, Quoduuldeus, do
século V18.
Essa homilia, muito divulgada em breviários e lecionários, era lida no ofício das
matinas do Natal, e incluía o apocalíptico Canto da Sibila. Serviu de base à composição
das citadas peças francesas, constituídas por um diálogo cantado com indubitáveis
elementos dramáticos. Sob a forma de um julgamento, apresenta Santo Agostinho
invocando as testemunhas para convencer o povo judeu, representado por Israel, de que
Jesus Cristo era o Messias, o filho de Deus.
Essa pequena ópera medieval foi recuperada e representada nos finais do ano
Xacobeo de 2004 em várias localidades galegas (Centro Galego de Arte Contemporânea
de Santiago de Compostela, catedral de Ourense, igreja de S. Pedro em Lugo, basílica
de Santa Maria em Pontevedra, concatedral de Ferrol, igreja de Santiago na Corunha e
novamente em Compostela, na sua sé, em 22 de dezembro. Tal representação foi
documentada em DVD pelo Conselho da Cultura Galega, com os objetivos de
“homenagear o mais importante artista plástico dentre os que trabalharam em Galícia

15 Estas informações são dadas por CASTIÑEIRAS, 2006, p. 14.


16 CASTIÑEIRAS, 2006, p. 14.
17 Ou Desymbolo.
18 CASTIÑEIRAS, 2006, p. 14.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


322
(Mateo) e um dos mais agudos investigadores da sua obra (Serafín Moralejo), assim
como aproximar o teatro e a música antiga aos públicos atuais” 19.
Tal re(a)presentação partiu do documento musicado mais antigo, o de Limoges
como vimos20. Isto porque “nele S. Moralejo percebeu uma ordenação muito
semelhante à da série estatutária do Pórtico. De fato, a procissão inicia-se com o
legislador Moisés, que abre caminho para Isaías, Geremias e Daniel, todos eles profetas
maiores figurados na beira esquerda do arco central do pórtico compostelano”21. Esses
personagens apresentam suas falas proféticas – sobre o nascimento do Salvador através
da Virgem - sob o olhar de um Anjo. Outros personagens são também comuns a ambos:
S. João Batista, Virgílio e a Sibila Eritreia – estes, mesmo pagãos, também prefiguraram
a vinda do Messias. Outra personagem seria o rei Nabucodonosor.
Além desses personagens presentes no drama limosino, o Pórtico apresenta
Balaam, que consta dos documentos de Laon e Rouen, e a Rainha de Sabá, ausente
desses textos medievos mas que Mateus (12, 42) coloca como testemunha de Cristo no
dia do Juízo Final. O Canto da Sibila é, então, recuperado através da versão galega
presente nas Cantigas de Santa Maria de Afonso X – De como Santa Maria rogue por
nós a seu filho eno dia do Juízo. “Deste jeito, os mudos personagens do pórtico voltam
a falar e cantar graças àquela ideia de Moralejo”22. E o concerto imaginado por Rosalía
de Castro no século XIX se realiza: nos sempre citados versos dessa poetisa maior
galega (1973: 98), descreve-se a vida e a poesia que anima as suas figuras:
.........................................................
Santos e apostoles, ! Védeos!, parece
qu’os lábios moven, que falan quedo
os uns c’os outros, e alón-altura,
d’o céu a música vai dar comenzo,
pois os groriosos concertadores
tempran risoños os instrumentos.23
...........................................................

Gostaríamos de nos deter, mesmo que sucintamente como convém ao momento,


em outra obra de análoga estrutura, o Ordo Virtutum, que apresenta elementos originais

19 Alfonso Zulueta de Haz, presidente do CCG, in Ordo Prophetarum. Drama litúrgico do século XII.
Santiago de Compostela: Conselho da Cultura Galega, 2006, p. 12.
20 Paris, Biliotèque Nationale, Ms. Lat. 1139, fols. 55v-58r).
21 CASTIÑEIRAS, 2006, p. 15.
22 CASTIÑEIRAS, 2006, p. 16.
23 CASTRO, Rosalía. Obra poética. 8. ed. Madrid: Espasa-Calpe, 1975, p. 98.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


323
em relação aos tradicionais. Trata-se de peça independente e única, não existindo dela
versões, como era comum acontecer no medievo. Difere-se dos demais por possuir
autoria, e feminina: a mística Hildegarde de Bingen (1098-1179)24 a escreveu e compôs-
lhe a música para possivelmente inaugurar o mosteiro de Rupertsberg em 1152.
Destacou-se ela não só como autora de extensa e variada obra, escrita a partir de 1141,
pouco depois de assumir o cargo de abadessa do mosteiro beneditino de S. Disíbodo;
mas como pregadora (de 1158 a 1170) e até exorcista (1169), papéis que na Idade
Média (mas não só) eram prerrogativas dos homens.
Singular no contexto do chamado “Renascimento” do século XII, dentre as suas
especificidades está o fato de não se subordinar a nenhum episódio bíblico ou de
alguma vida de santos. E não constitui simplesmente um desfile de Virtudes, como o
título faz-nos supor. Apresenta, sim, o drama da Queda adâmica e a Redenção,
alcançada após a contrição e penitência do pecador, graças à Paixão do Cristo.
Observamos nela mais um dado importante a favor do feminismo: o destaque da Queda
não é dado a Eva, mas a Adão; e a Alma decaída assume o gênero masculino, do
pecador arrependido, sendo ressaltado positivamente o papel feminino não só através
das Virtudes hegemônicas, mas de Maria, a Virgem Mãe. O Diabo é o grande opositor,
derrotado.
A peça compõe-se de um breve prólogo e quatro cenas. Aquele se distingue destas
por colocar em cena patriarcas e profetas, que não mais voltam a aparecer nas partes
subsequentes. Não se refere diretamente à história da Alma peregrina neste mundo, que
é o Núcleo dramático da peça, mas para conceituar as Virtudes e sua relação com os
santos do passado. Estas se apresentam como nuvens, interpretadas por alguns
especialistas25 como atenuadoras da luz do Cristo, que cegaria os que vieram antes dele,
como os patriarcas e profetas, ou como tapolhos ou marcas da cegueira dos que viveram
antes da Encarnação26. De qualquer modo, estão ligadas à presença de Crsto no mundo,
ao Novo Testamento.
A primeira cena trata principalmente da caída de Adão e do sofrimento que isto
acarretou à sua descendência, apresentando um coro de almas que se definem como

24 Considerada santa e cultuada, não há no entanto comprovação de que tenha sido canonizada (Cf. PAZ,
Xosé Carlos Santo, 1999: 17)
25 Cf. DRONK, Peter, p. 181.”Ordo Virtutum. The Play of the Virtues, by Hildegard of Bingen”. In Nine
medieval latin plays. Cambridge University Press, p. 147-184.
26 Cf. PAZ, Xosé Carlos Santo, 1999, p.30.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


324
peregrinas e imersas em sombra, diversa da dos patriarcas e profetas, já que provocada
pelo pecado. Desse coro se destaca a Alma protagonista, doente de humor melancólico e
seus derivados, como a depressão ou desânimo e a tristeza, derivado do afastamento do
estado harmonioso original. Disso nasce o temor, que abre brechas para a atuação do
Diabo.
Na segunda cena Amor Celeste e Misericórdia, colocados como virtudes, referem-
se à petulância e à dureza da Alma, ambas qualificadas como amargas, como o fora
também a melancolia. Sua regeneração só é possível mediante a penitência, que a torna
apta ao alcance do perdão. Como acentua Xosé Carlos Paz (p. 36), para Hidegard todo
pecado do homem é comparável à desobediência de Adão; não fora esta, a expulsão do
Paraíso não teria ocorrido e Cristo não teria sofrido a crucificação.
A terceira cena se inicia com o lamento das Virtudes contrastante com a incitação
à alegria da Humildade, rainha de todas elas, que são apresentadas uma a uma. A Alma,
ferida penitente, invoca-lhes a ajuda, dado que, como a ovelha perdida (Lucas, 15, 1-7)
já distingue o “bom pastor” (o Bem) do “lobo rapaz”, como se chama ao Diabo desde a
cena anterior.
Na quarta e última cena, o Diabo luta para a perdição da Alma, ajudada pelas
Virtudes, através de um discurso racional e sofístico. Nesta luta se destaca, em prol da
Alma, a Castidade, que se pode identificar simbolicamente com a Virgem Maria, que no
Gênesis aparece como a que derrotou a Serpente (Cf. PAZ: 38). As virtudes em coro
frisam a perpetuidade da vitória sobre o Diabo e invocam o Pai Onipotente para a
(re)condução das almas à Jerusalém Celeste através de um mar tranquilo. E um último
coro27, composto segundo especialistas pelas virtudes e almas do princípio, encerra o
drama, a modo de peroratio falando da Caída e da restauração do vigor original por
meio da Paixão de Cristo.
Propriamente falando, a segunda cena é que corresponderia a um “desfile de
virtudes”, correspondendo a um parêntese na história da Alma decaída e sua
regeneração. Em número de dezesseis, se autoapresentam. E nos remetem à peça
anteriormente comentada, o Ordo Prophetarum, que era possivelmente o mais famoso
Ordo representado na Idade Média, encenado no Natal e no qual profetas bíblicos e
outros recitavam os seus vaticínios sobre a Encarnação de Cristo.

27 Certamente que os papéis de Alma e das Virtudes foram interpretados pelas freiras de Ruperstberg,
dirigido por Hildegard, segundo PAZ, Xosé Carlos Santo, 1999, p. 29.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


325
Hildegard de Bingen demonstra a sua originalidade no reaproveitamento da
tradição, e através do manejo de recursos poéticos e de uma forte dramaticidade, nos
remete para futuros dramaturgos, como o português Gil Vicente 28, que no Auto da
Alma, por exemplo, atualiza o mesmo drama da Alma peregrina que sucumbe à tentação
mas é salva pela Paixão de Cristo, ajudada pelo Anjo custódio e pela “Santa
Estalajadeira, Igreja Madre”; ou, no Auto dos Mistérios da Virgem, acentua a
importância de Maria no embate contra a vanidade dos valores mundanos, dando
especial destaque às virtudes teologais e à Humildade, à qual beneditinos e franciscanos
deram especial destaque. Trata-se de assunto que estamos desenvolvendo para
publicação em outra instância.
Enfim, tais peças, analisadas comparativamente, podem nos levar a descobrir ou
reafirmar elementos de originalidade nas obras medievais, como também,
evidentemente, importantes conclusões sobre o docere cum delectare praticado pela
Igreja e pelos religiosos, tornando-as verdadeiros sermões em cena, direcionados ao
movere que se intentava alcançar no auditório.

28 Cf. VICENTE, Gil. As obras de Gil Vicente .vol. I. Ed. por José Camões. Lisboa: IN-CM, 2002.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


326
IMAGENS DA CULTURA MEDIEVAL REVELADAS EM
RITUAIS RELIGIOSOS DA BAHIA COLONIAL

Norma Suely da Silva Pereira


Doutora em Letras – UFBA

RESUMO: O estudo das práticas culturais descritas em testamentos da Bahia colonial,


a exemplo dos rituais “da boa morte”, que incluem orações, observância dos
sacramentos e vultosas doações a entidades religiosas, itens obrigatórios nessa
preparação espiritual, demonstra como a mentalidade medieval está preservada na
conduta dos indivíduos naquela sociedade, como forma de garantir que a morte,
chegando de surpresa, não colhesse a alma desprevenida. Fundamentado na
Diplomática, ciência que fornece métodos para o estabelecimento das características e
autenticidade dos documentos, e na História Cultural ou História das mentalidades,
corrente da História que propõe a inclusão de novos objetos de estudo, a exemplo das
atitudes do homem perante a vida e a morte, suas crenças e comportamentos religiosos e
sociais, busca-se ampliar a compreensão acerca das relações estabelecidas na sociedade
baiana no período compreendido entre os séculos XVI e XVII em seu aspecto religioso
e seu contexto sócio-histórico. Para tanto, parte-se do exame dos planos de texto de
quatro testamentos trasladados no Livro Velho do Tombo do Mosteiro de São Bento da
Bahia, observando-se a correlação entre tais práticas sociais e o pensamento medieval.

Palavras-chave: Cultura medieval, Práticas culturais, Rituais “da boa morte”

ABSTRACT: The study of cultural practices described in wills of the colonial Bahia,
like the ritual of "good death", which includes prayers, observance of the sacraments
and bulky donations to religious organizations, which are mandatory items in this
spiritual preparation, shows how the medieval mentality is preserved in individuals’
attitude in that society, in order to ensure that the death does not reap the unsuspecting
soul, when coming by surprise. Based on Diplomatics, type of science that provides
methods for establishing the characteristics and authenticity of documents, and on the
Cultural history or History of mentalities, which is a kind of history that proposes the
inclusion of new study objects, such as man's attitudes towards life and death, their
beliefs, their religious and social behavior, this article aims to expand the understanding
of the relationships established in Bahia’s society in the period between the sixteenth
and seventeenth centuries, in its religious aspect and its socio-historical context.
Therefore, four testament text plans translated from the Livro Velho do Tombo of São
Bento’s Monastery in Bahia will be examined, observing the correlation between such
social practices and medieval thought.

Keywords: Medieval culture, Cultural practices, Rituals of "good death."

INTRODUÇÃO
A leitura de testamentos escritos entre os séculos XVI e XVII revela a
recorrência de práticas culturais descritas no chamado “testamento espiritual” a exemplo

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


327
dos rituais “da boa morte”, que documentam a manutenção de traços da mentalidade
medieval no imaginário da sociedade da Bahia colonial: a preocupação com a perfeição
espiritual para “escapar às tentações” e alcançar a salvação da alma estimulou nos fiéis a
prática de ritos privados e públicos para expressão da fé.
Desenvolvido a partir dos estudos filológicos, na perspectiva da Filologia
Textual, o presente estudo, toma como corpus quatro testamentos, datados entre os
séculos XVI e XVII, já previamente transcritos, alguns já editados por outros
pesquisadores sob a coordenação da Dra. Célia Marques Telles, os quais integram a
Coleção de Livros do Tombo do Mosteiro de São Bento da Bahia. A Coleção inclui
outros tipos de documentos notariais, que se referem aos bens patrimoniais do Mosteiro,
os quais registram e atestam tradição medieval de doação de bens para a Igreja por parte
das famílias locais, conforme assinalam Oliveira e Lose (2010).
Tais documentos têm sido editados e estudados por pesquisadores de várias
áreas do conhecimento, revelando importantes informações para a sócio-história da
Bahia e do Brasil. Através das edições de textos, que aproximam o leitor
contemporâneo de realidades distantes, têm-se observado como em muitos dos referidos
documentos é possível flagrar vestígios da tradição medieval, seja na constituição e
manutenção das instituições de caráter religioso, seja nos registros de práticas culturais
e atitudes dos indivíduos daquela sociedade.
Fundamentado na Diplomática, que é a ciência dos documentos, pois fornece
métodos para estabelecer as características e autenticidade dos mesmos, e na História
Cultural, corrente da História que privilegia novos objetos de estudo para um melhor
conhecimento da vida e cultura dos indivíduos, a exemplo das atitudes do homem
perante a vida e a morte, suas crenças e comportamentos religiosos e sociais, pretende-
se aqui proceder à análise de quatro testamentos, trasladados no Livro Velho do Tombo,
examinando os planos do texto desses documentos, para observar como algumas
práticas culturais medievais, a exemplo dos rituais da “boa morte”, permanecem ativas
como prática cultural, principalmente entre os mais abastados, na Bahia colonial,
documentando a vontade de cristãos sobre o que desejam que seja feito depois de sua
morte, na pretensão de angariar um lugar o Reino dos Céus.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


328
A TRADIÇÃO MEDIEVAL REVELADA NOS RITUAIS DA “BOA
MORTE”
Os rituais da “boa morte” inserem-se no campo dos ritos de passagem,
representações culturais de caráter solene, que assinalam transições importantes no
desenvolvimento do indivíduo, demarcando uma mudança de estatuto social. A
construção dos ritos envolve várias dimensões, comportando, ao mesmo tempo aspectos
gestuais, textuais, uso de vestimentas e sinais específicos, além da utilização de objetos
simbólicos. No período em destaque, a preparação para “bem morrer” incluía a redação
de um testamento, no qual ficava expressa a vontade do cristão de “entrar no reino dos
céus” após a morte, comprometendo-se em realizar o que se fizesse necessário para
demonstrar seu arrependimento pelas faltas cometidas, de modo a estar em condições de
alcançar a salvação (PEREIRA, 2014a).
As práticas que visam ao reconhecimento do sujeito como bom cristão e à
salvação da sua alma que constituem os rituais que se caracterizam como o ideal da
“boa morte” também revelam o lugar social do testador e o ethos por ele construído
(PEREIRA, 2014b). O medo das penas do purgatório e do inferno fazia com que os
homens observassem as práticas do “bem morrer” que eram iniciadas ainda em vida,
com as obras de caridade e a redação do testamento e se completavam com o
cumprimento dos últimos desejos do falecido por seus familiares e demais herdeiros, o
que, para além da religiosidade, demonstrava também o lugar de prestígio do morto
naquela sociedade, suas posições e valores. Tal comportamento era ditado pela Igreja
que, para manter o controle dos colonos no contexto de dispersão da América
portuguesa, determinava as práticas sociais e religiosas adequadas ao bom cristão
(PEREIRA, 2014a).

Demonstrações públicas e privadas da contrição


Como destaca Mott (1977), dada a extensão territorial da colônia, era grande o
risco de dispersão e afrouxamento dos costumes, e, além disso, a Igreja precisava
garantir a contribuição financeira dos fiéis. Assim, através de documentos oficiais como
as “Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia” e ainda por intermédio das várias
cartilhas de inspiração medieval que circulavam na colônia, os cristãos eram orientados
a manter atitudes de devoção e demonstração pública de fé por meio de práticas como

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


329
os sacramentos, as confissões e as penitências para garantir que a morte, chegando de
surpresa, não colhesse a alma desprevenida.
As orações diárias, contemplando a disciplina quanto aos ofícios divinos, assim
como a observância dos sacramentos e a filiação às Irmandades e Ordens terceiras eram
outros itens obrigatórios nessa capacitação espiritual, que além de preparação para a
“boa morte”, preveniam contra as diversas tentações e contra os castigos terrestres,
como pestes, fome, pragas, tempestades, entre outras catástrofes. Conforme a tradição
medieval, o dia estava dividido em oito momentos especiais para orações, momento em
que os sinos das igrejas dobravam, lembrando aos fiéis as horas canônicas ou horas do
Serviço Divino ou ainda do Ofício divino: as matinas ou vigília (à meia noite), as
laudes, rezadas no período do dia, às três, prima, às seis da manhã ou hora do ângelus,
terça, às nove, sexta, ao meio dia, noa, às três da tarde; e no período da noite as
vésperas, ao anoitecer, hora das ave-marias, e completas, às oito horas (antes de
dormir). Pelo menos as três principais, o ângelus, a sexta e a ave-maria, deveriam ser
observadas com rigor, mesmo no ambiente doméstico (MOTT, 1977).
As fontes documentais revelam que a doença era considerada um castigo de
Deus, por faltas cometidas. Era, portanto, necessário cuidar não só do corpo como do
espírito, pois este podia ser a fonte de todos os males. Pela pedagogia do medo,
difundida pela Igreja, sabia-se que uma vez no Inferno não era possível escapar. Desse
modo, ao doente era mais urgente cuidar da alma que tentar a cura do corpo. A
confissão e os sacramentos eram, portanto, os primeiros e mais importantes cuidados
com um doente (PRIORE, 1977). Como demonstração de observância aos princípios
cristãos, os chamados “homens-bons”, que eram os membros da elite da colônia,
associavam-se a confrarias e eram benfeitores de entidades religiosas e assistenciais
como hospitais, igrejas e mosteiros.
As confrarias são associações que reúnem leigos para a promoção de práticas
religiosas católicas (organização de procissões, festas, entre outras formas de culto) e
prática da caridade voltada para os sócios e para as pessoas menos favorecidas.
Subdividem-se em Irmandades e Ordens terceiras. Sua determinante importância na
sociedade baiana do período é outro traço da cultura medieval na sociedade colonial.
Tais agremiações existiram em Portugal desde o século XIII, pelo menos. As primeiras
surgem como uma forma de continuação das antigas corporações de ofício do final da

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


330
Idade Média, oficinas de arte e ofício que reuniam artesãos de um mesmo ofício sob a
égide de um santo protetor com o objetivo principal de viabilizar as condições para a
formação profissional, o desenvolvimento do trabalho e a comercialização dos produtos,
além de prover recursos para os períodos de adversidades. Algumas tinham também
caráter político. As Irmandades por vezes mantiveram o caráter profissional,
funcionando mesmo como órgão de classe, ou tinham caráter social, congregando
pessoas da mesma cor: irmandades de brancos e de negros, independente da profissão.
Eram regidas por um estatuto, que definia quem podia participar, além dos direitos e
deveres dos associados. Esse estatuto, ou compromisso devia ser submetido às
autoridades eclesiásticas, para confirmação (QUINTÃO, 2002; REIS, 1991).
As Ordens terceiras, também de caráter social, estão vinculadas às tradicionais
ordens religiosas medievais, especialmente aos franciscanos, carmelitas e dominicanos.
Seus propósitos eram também de caráter religioso, na devoção a um patrono, e social,
na assistência aos confrades, atendendo às suas necessidades na vida e na morte, além
do trabalho de caridade dirigido a doentes, presos e órfãos. As confrarias funcionavam
nas igrejas e um mesmo templo podia acomodar várias irmandades, em altares laterais.
As agremiações de maior recurso erigiam seus próprios templos. Existiam ainda
agremiações diferentes com devoção a um mesmo patrono.
Os sócios dessas agremiações possuíam direitos e deveres. Entre os
compromissos deviam manter um bom comportamento e observar a devoção católica,
além de contribuir financeiramente com o dízimo, esmolas, rendas das propriedades e
destinação em testamento de legados para a manutenção das obras de caridade,
instituições associadas (hospitais, asilos, igrejas, mosteiros e cemitérios) e para as
despesas com os funerais e a compra de objetos, imagens e bandeiras para o culto e os
diversos rituais, festas e procissões. O cumprimento dos deveres assegurava aos
confrades alguns benefícios como assistência médica, jurídica e financeira em
momentos de crise, apoio para a alforria, no caso das confrarias que aceitavam negros
escravos e a garantia de um enterro decente, principal objetivo das irmandades. O
acesso às confrarias se fazia por critérios econômicos, ocupacionais e étnicos-socais e
um mesmo cristão poderia pertencer a várias confrarias (REIS, 1991).
Outro costume decorrente das práticas de perfeição espiritual para “escapar às
tentações” era o adequado recato das mulheres. As donzelas, especialmente, quando os

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


331
pais não possuíam o suficiente para lhes compor o dote do casamento, deveriam
permanecer em recolhimento, fosse em conventos ou mosteiros, ou na própria
residência, em reclusão piedosa, na ausência ou insuficiência de vagas nas instituições
religiosas. Na clausura, em geral observavam ao extremo a prática das penitências e
mortificações para purificação da alma. Porém, para além das questões financeiras, da
busca pela perfeição e pureza espiritual, ter na família um religioso era motivo de
prestígio social. Era sinal de distinção enviar os filhos para a vida religiosa: os rapazes
para os mosteiros e as moças para os conventos ou recolhimentos. E se o ente beato ou
penitente permanecia em casa, a família muitas vezes tratava de tirar proveito da
devoção através do recebimento de esmolas dos fiéis (MOTT,1977; PRIORE, 1977).

Os rituais fúnebres e a “piedade barroca”


Uma das características de destaque nos rituais religiosos católicos do período
colonial é a influência do estilo barroco, que se faz notar pincipalmente pela
necessidade de demonstração externa da fé caracterizada sobretudo pelo exagero nos
vários aspectos dos rituais. Conforme analisa Reis (1991), era comum que as missas
fossem celebradas por dezenas de padres e acompanhadas por orquestras. Nos ritos
fúnebres, as procissões eram acompanhadas por centenas de pessoas. Em um dos
testamentos que compõem o corpus, é possível observar a grandiosidade proposta para
os funerais, desde que a situação socioeconômica do testador o permitisse.
Conforme analisado por Pereira (2014a, 2014b), o fidalgo Gabriel Soares de
Souza, declarando pertencer a várias ordens e confrarias, lembra o seu direito à
adequada preparação do funeral, conforme a tradição: o planejamento do ritual fúnebre,
registrado em seu testamento inclui oferendas (de alimentos e vinho), a procissão
acompanhada por grande número de confrades, religiosos que conduzirão as orações e
de pobres, convocados para carregar as tochas ou círios, todos devidamente
recompensados com fartas esmolas. Deixa ainda expressos os seus desejos de ser
sepultado com o hábito de São Bento ou o de São Francisco, e de ser sepultado na
Capela mor de São Bento, em Salvador, caso o falecimento se desse em terra, pedidos
que eram comuns entre os mais abastados, pois, ser enterrado com o hábito de São
Bento ou o de São Francisco era considerado uma demonstração de humildade, aspecto
importante na construção do ethos de bom cristão, o que é ratificado no texto definido

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


332
para a inscrição na campa: “aqui jas hum pecador”. Quanto ao local proposto para a
sepultura, acreditava-se que quanto mais próxima estivesse de altar, mais próxima a
alma estaria de Deus:

[...] fui creado; Jtem donde quer que eu falleser me imterrarão no habito de Sam Bem
to hauendo ahi Mosteiro de Sua Ordem, onde me imterraram, e não hauendo Ma
neira deste habito, e hauendo Mosteiro de Sam Francisco, me emterarram no Seu
habito, e os Relligiozos dambas estas ordens me acompanharam e a cada hum darão
de Esmolla Sinco mil Reis, e pello habito des Cruzados; Jtem se Deus for serui
do que eu falesa nesta Cidade e Capitania meu Corpo sera emterrado em sam [...]
(TESTAMENTO DE GABRIEL SOARES DE SOUZA 1584: 164r, L. 42-47).

Bento da dita Cidade na Capella Mor, onde se me pora huma Campa com
hum Letreiro que diga aqui jas hum pecador, o qual estara no meio de hum Escudo que
[...] (TESTAMENTO DE GABRIEL SOARES DE SOUZA 1584: 164v, L. 1-2).

Contrastando com toda a pompa planejada para o cortejo fúnebre, o Tratadista


pede “que não dobrem os sinos, pois deseja ser conduzido como se conduz um pobre”:

[...] zados / Jtem acompanharmeão dous pobres com cada hum sua tocha ou Cirios na
maos e daram daluger a comfraria donde forem hum cruzado de cada huma e a cada
pobre pellas leuarem dous Tostoins/ Jtem não dobraram os signos por mim
e somente se fararão os signais que se fazem por hum pobre quando morre / Jtem [...]
(TESTAMENTO DE GABRIEL SOARES DE SOUZA 1584: 164v, L. 08-11).

Deste modo, os rituais exemplificam toda a contradição presente na tensão posta entre a
vivência dos gozos mundanos e a necessidade de garantir o perdão divino
experimentada pelo homem barroco, que volta aos valores da religiosidade medieval
para reconciliar-se com o sagrado e assim assegurar os ideais de vida eterna.

Os testamentos
Os documentos notariais constituem-se em fontes privilegiadas para um melhor
conhecimento das práticas e representações culturais do passado, permitindo, entre
outras coisas, uma melhor compreensão da situação linguística de cada período e uma
maior percepção acerca das práticas culturais e do contexto sócio-histórico no qual os
documentos foram produzidos.
Conforme analisa o jurista Gouvea Pinto (1844:3) “A origem dos testamentos se
perde na escuridão dos tempos”. Afirmam os estudiosos que a arte de testar foi

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


333
conhecida e praticada pelos hebreus antes mesmo do advento da Lei mosaica, quando os
patriarcas determinavam o que deveria ser feito do seu legado, repartindo-o muitas
vezes ainda em vida. Os egípcios teriam conhecido o testamento a partir dos hebreus,
seja enquanto antepassados, visto que Caim herdara de seu pai, Noé, a África, seja
posteriormente, quando os hebreus estiveram no Egito por muitos anos e acabaram
escravizados. Através de viagens ao Egito os Gregos teriam tomado conhecimento de
tal uso e assim teriam aprimorado suas próprias regras (PINTO, 1844).
Os romanos estabeleceram maior complexidade ao ato de testar, utilizando
regras diversas em tempos de guerra ou de paz e realizando ritos públicos para sua
validação. Na Península Ibérica os testamentos foram conhecidos pelo estudo do direito
romano e sua prática foi disseminada sobretudo a partir do reinado de Afonso V, que
estabeleceu a forma escrita e deu-lhe nova estrutura com outros aspectos adaptados do
direito romano. Inicialmente foi utilizado apenas entre os nobres, difundindo-se depois
entre os plebeus (PINTO, 1844; ANGELO, 2013).
Embora a preocupação com o mundo do além já fosse percebida ao longo de
toda a Idade Média, como apontam os estudiosos do período, ao referir-se, por exemplo
às orações e preparativos fúnebres, é somente com o registro escrito dos testamentos,
por volta do século XIV, que se pode atestar a preocupação do cristão para com a
salvação da alma após a morte. Analisando 278 testamentos portugueses escritos entre
os séculos XIV e XV, Vilar e Silva (1992) traçam um perfil dos testadores, que são em
sua maioria de indivíduos do sexo masculino e pertencentes à nobreza e ao clero e
relacionam como principais herdeiros dos legados as instituições religiosas como igrejas
e mosteiros, seguidos dos legados pios, entre os quais os hospitais, os pobres, as
confrarias e os presos.
De acordo com as concepções católicas medievais, ainda vigentes no Brasil
colonial, acredita-se que, após o falecimento, uma vez separada do corpo, a alma é
levada a prestar contas diante do juízo de Deus, recebendo então uma sentença
irrevogável: as almas dos justos entrarão no Paraíso, já os pecadores, poderão ir
diretamente ao Inferno ou poderão ter o direito de expiar seus pecados no Purgatório,
conforme a gravidade de suas faltas, as quais poderão ser ainda atenuadas, de acordo
com a caridade praticada e com o arrependimento do fiel.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


334
Assim, uma vez que uma vida contrita, de conduta ilibada e piedosa era-lhes
muito mais difícil de alcançar, diante das inúmeras possibilidades de tentação e desvios
que a vida na colônia oferecia, restava-lhes apostar na devoção, que era manifestada
sobretudo no âmbito das confrarias, cumprindo suas determinações, especialmente as
obrigações de cunho material, e acompanhando os seus rituais, além de sacramentar as
boas intenções num testamento.
No período em destaque neste estudo, assim como fora observado em
documentos medievais europeus, o testamento, uma das práticas do “bem morrer”, mais
do que um ato de direito privado para a transmissão de uma herança, era uma expressão
do pensamento, cultura e convicções do testador, constituindo-se, principalmente, em
documento de caráter espiritual, utilizado para expressar a devoção (LEBRUN, 2009),
conforme recomendado pelos autores espirituais, a exemplo do Breve aparelho e modo
fácil para ajudar a bem morrer um cristão (CASTRO, 1627).
O testamento era, assim, uma forma de dar conhecimento das decisões tomadas,
das últimas vontades do morto, tornando-se, nesse sentido, um instrumento importante
numa última tentativa de remissão dos pecados, e que competia aos herdeiros observar
com rigor, tanto para assegurar a salvação da alma do falecido, quanto para garantir a
sua própria recepção no momento de sua morte. Através desse documento o cristão
podia registrar atos de caridade, expressar arrependimento e fé, além de firmar um meio
estratégico de barganhas para com os santos e demais autoridades religiosas da terra e
do céu.
O testamento permite conhecer, além dos dados pessoais do testador, a sua
condição econômico-social, estado civil, número da prole, condição econômica, bens a
serem deixados, a sua religiosidade, os santos de devoção e as relações com as
instituições religiosas, igrejas, mosteiros e confrarias, por exemplo. Além disso o
documento explicita as razões do testador, e as suas decisões a respeito da cerimônia
fúnebre e do sepultamento que deseja (PEREIRA, 2014). De acordo com Sant’Anna
(2006), que estudou o percurso das Irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte
erigidas em Minas Gerais entre 1721 e 1822, tais princípios ainda regem a vida dos
indivíduos no Brasil até o século XIX, o que é corroborado por outros autores.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


335
Características do testamento na Bahia colonial
O testador, seguindo o que recomendavam os autores espirituais, em geral inicia
o texto indicando a motivação para o testamento e após invocar a Trindade declara seu
arrependimento. As motivações para a redação de um testamento eram diversas, pois o
momento da morte era incerto. No corpus analisado observa-se que Manuel Nunes
Paiva, estando doente, de moléstia grave, manda redigir o seu testamento, em 25 de
janeiro de 1622. O fidalgo Gabriel Soares de Souza estava de viagem marcada para a
Europa e diante dos perigos e das incertezas que tais viagens representavam, resolve
expressar suas últimas vontades, caso o pior aconteça:

estando Eu Gabriel Soares de SouZa de Caminho pera Espanha Sam e bem


disposto em todo o meu Entendimento e prefeito Juizo asim e da maneira que
o Deos em mim pos pondo o pensamento em meus pecados temendo a
Estreita Comta que dellas hei de dar a noso Senhor[...] (TESTAMENTO DE
GABRIEL SOARES DE SOUZA fº 163v, L: 28-31).

Já a senhora Maria Ro(dr)i(gue)z de Oliveira, que em 1645, manda escrever o


seu testamento, pois não era alfabetizada, estava bem de saúde e sem maiores
perspectivas de um perigo iminente, mas temia a morte e declara então o seu desejo:
“por minha alma no Cam(inh)o da saluação por não saber o que noso senhor quer de
mim fazer quando seja seruido Leuar me para si” (fº 78v, L. 4-6).
Para respaldar seus pedidos, convoca a intercessão de anjos e santos pela
salvação de sua alma, lista argumentos em sua defesa e lembra os seus merecimentos
em função de sua associação a confrarias e pela caridade praticada em favor de
entidades pias. Os pedidos em relação ao tipo e características do sepultamento e com
relação ao cortejo fúnebre vão variar conforme o poder de barganha do testador: a
pompa do cortejo fúnebre, a vestimenta, o epitáfio e o local em que o corpo será
depositado estão de acordo com a condição econômica do testador, aquilo que ele pode
determinar como seu “legado piedoso”. Os atos de caridade, a exemplo das doações
para entidades religiosas, para os pobres, sejam viúvas, órfãs, ou mesmo os pobres que
serão convocados a acompanhar o cortejo, constituem-se em provas da obediência às
orientações religiosas, assim como as demonstrações de bom caráter, através o
reconhecimento de dívidas e de filhos bastardos ou da alforria de escravos mais antigos.
Por fim, é indicada a quantidade e periodicidade de missas que deverão ser rezadas pela

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


336
sua própria alma bem como pelas almas de seus parentes próximos e pelos pobres, para
que possa ser reduzido o seu tempo no purgatório (PEREIRA, 2014a).
PALAVRAS FINAIS
Cada cultura atribui lugares e cenas diferentes para os mortos. A partir de suas
crenças e seus conhecimentos religiosos, as sociedades criam as configurações para o
mundo do além, projetando para o desconhecido aspectos do que conhecem e
vivenciam. No período colonial, observa-se que grande parte das crenças e
representações com relação à vida pós túmulo têm origem na tradição medieval,
algumas, inclusive, que remontam à antiguidade pagã e que foram ressignificadas com o
advento do cristianismo.
Os estudos filológicos, ao oferecerem ao leitor textos fidedignos, favorecem a
investigação em outras áreas do saber, possibilitando aos estudiosos do presente o
contato com a língua e a realidade de outros contextos históricos. Nesse contexto, os
testamentos constituem-se como uma forma de assegurar que as intenções do testador
sejam cumpridas após a sua morte, garantindo uma passagem adequada ao morto, bem
como tranquilizando aos vivos quanto à transição de seus mortos e quanto à própria
recepção destes, quando lhes for chegado o momento da partida. Os documentos
revelam que os ritos de passagem de origem medieval permanecem ativos nas atitudes
da sociedade colonial, a exemplo da preocupação em evitar a condenação eterna na
passagem para o mundo dos mortos.
As marcas de construção do ethos de bom cristão, que visavam garantir que a
alma não fosse entregue às “penas infernais”, além de refletir uma demonstração de
religiosidade, sinal de pertencimento à comunidade católica e da crença na sua doutrina,
mostram também um conjunto de estratégias para demarcação de uma posição
hierárquica social. Os argumentos e práticas utilizados nos rituais com o objetivo de
“abreviar” o tempo a passar no Purgatório, revelam, na verdade, ostentação e poder,
evidenciando o lugar de quem efetivamente podia “comprar” a salvação.

REFERÊNCIAS
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séculos XVI e XVII do Livro I do Tombo do Mosteiro de São Bento da Bahia. 2010.
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XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


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XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


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de 1645: f. 78r - 79v.
VILAR; Hermínia Vasconcelos; SILVA, Maria João Marques da. Morrer e testar na
Idade Média: alguns aspectos da testamentaria dos séculos XIV e XV, Lusitânia Sacra,
2. série, n. 4, 1992, p. 39-60.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


339
A ATUAÇÃO DE ALFONSO X NA COLONIZAÇÃO CRISTÃ DA
ANDALUZIA (1252-1284)

Paula de Souza Valle Justen


Mestranda (PPGH-UFF∕TranslatioStudii - CNPq)

RESUMO: A formação dos reinos cristãos ibéricos durante a Idade Média está
intimamente ligada à chamada Reconquista, a retomada pelos cristãos dos territórios
sob domínio islâmico, estabelecido desde o século VIII. Durante este processo de
conquista territorial, dentre a participação dos diversos reinos ibéricos, a hegemonia do
reino de Castela na península se pronunciou a partir do século XII, mas foi no século
XIII que se tornou o maior em extensão territorial, graças à atuação de Fernando III, que
conseguiu unificar definitivamente os reinos de Leão e Castela e realizou o maior
avanço sobre o sul da península. No entanto, conquistar e efetivamente dominar são
processos distintos, e coube a Alfonso X a tarefa de integrar os antigos territórios
islâmicos ao reino cristão de Castela. Não por menos, Alfonso X foi notadamente
reconhecido como rei ordenador pela historiografia, por ter empreendido um vasto
projeto de reorganização territorial, especialmente da recém-conquistada Andaluzia. O
presente trabalho pretende analisar a atuação deste monarca no processo de colonização
e reordenação da Andaluzia através das cartas de doação de propriedades, contidas no
Diplomatario Andaluz de Alfonso X, tendo em perspectiva o caráter centralizador de seu
reinado e de seu esforço em integrar as distintas partes do reino, assim como os entraves
impostos a esse projeto político.

Palavras-chave: Reconquista, Andaluzia, doações régias

ABSTRACT: The formation of the Christian kingdoms in the Iberian Peninsula during
the Middle Ages is closely linked to the called Reconquest, the resumption by
Christians of territories under Islamic control, established since the eighth century.
However, since that century Castile managed to impose its hegemony in the peninslula,
and became the largest in area in the thirteenth century. It was thanks to Fernando III’s
acting, who managed to definitely unify the kingdoms of Leon and Castile and made the
biggest advance on the southern peninsula. Nevertheless, conquering and effectively
dominate territories are distinct processes, and fell to Alfonso X the task of integrating
former Islamic territories to the Christian kingdom of Castile. Not least, Alfonso X was
ably recognized as an ordenador king by the historiography, having undertaken a vast
project of territorial reorganization, especially in the newly conquered Andalusia. This
paper aims to analyze the acting of this monarch in the process of colonization and
reordering of Andalusia through the properties donation diplomas, contained in
Diplomatario Andaluz de Alfonso X, taking into perspective the centralizing character of
his reign and his efforts to integrate the different parts of the kingdom, as well as the
obstacles imposed on this political project.

Keywords: Reconquest, Andalusia, Royal donations

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


340
Neste breve artigo, fruto das primeiras considerações acerca da pesquisa recém-
iniciada de mestrado, abordarei alguns aspectos da atuação do rei Alfonso X de Castela
e Leão na colonização do último território conquistado por seu pai, Fernando III: a
Andaluzia. Em especial, darei mais atenção ao caso do reino de Sevilha, ao qual me
dedico para a dissertação.
Tendo em perspectiva o longo processo de Reconquista da Península Ibérica,
iniciado já no século VIII pelos reinos cristãos, desde o século XII o reino de Castela
conseguiu estabelecer sua hegemonia entre os demais reinos, realizando os avanços
territoriais mais notáveis desde a conquista de Toledo em 1085 pelo rei Alfonso VI. No
entanto, o período de maior expansão foi o século XIII, durante o reinado de Fernando
III, o rei santo. Além de ter conseguido unificar definitivamente os reinos de Leão e
Castela, foi capaz de manter em curso um gigantesco empreendimento militar que,
avançando progressivamente rumo ao sul da península, conseguiu chegar ao vale do rio
Guadalquivir. Simultaneamente às conquistas realizadas pela Coroa de Aragão durante
a primeira metade do século XIII, no fim do reinado de Fernando III só restava o reino
de Granada a ser conquistado pelos cristãos, e ainda assim o rei de Granada já tinha se
submetido à vassalagem de Fernando III. A partir de então, a configuração territorial
dos reinos cristãos ibéricos estaria mais ou menos estabelecida até quando da conquista
do reino de Granada pelos Reis Católicos em 1492.
Muito já foi dito sobre os contrastes entre as políticas empregadas por Fernando
III e Alfonso X, entre o rei santo e o rei sábio (GONZÁLEZ, 2002: 86). No entanto, a
maioria destas perspectivas dualistas tinham por base o fracasso político do reinado de
Alfonso: além do insucesso tanto do fecho de allende e do fecho del imperio, o projeto
de implementação das Siete Partidas foi completamente rejeitado pelas forças que
favoreciam os direitos locais, conseguindo postergá-lo até o reinado de Alfonso XI, já
no século XIV. Coroando o quadro geral de crise política no final do reinado, em 1281
o infante Sancho se subleva juntamente com a as forças senhoriais contra seu pai,
isolando politicamente o rei. Numa produção historiográfica em que a concepção de
História estava vinculada à exemplaridade, a glória do reinado de Fernando III deixava
em relevo a suposta incapacidade política de Alfonso X.
No entanto, a historiografia mais recente tem operado uma recuperação da
trajetória política do rei sábio. Nesse sentido, não se trata mais de habilidade no manejo

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


341
do jogo político na arte de governar: o projeto centralizador de Alfonso X, afinado com
as novas concepções de poder gestadas no século XIII, ia de encontro às forças
senhoriais, interessadas na manutenção de seus poderes locais (KLEINE, 2013: 20-21).
Há de se lembrar também que a alcunha de “rei guerreiro” de Fernando era
completamente compatível com o ethos nobiliárquico, favorecendo a interpretação do
rei como um primus inter pares, o oposto do projeto monárquico de Alfonso. Trata-se,
portanto, da não conformidade do projeto de Alfonso X ao conjunto das forças políticas
senhoriais de sua época (SOUZA, 2009: 153)
Em contraposição às leituras dualistas entre esses dois reinados, sigo a
interpretação de Manuel González Jiménez, que prefere relevar as continuidades entre o
rei guerreiro e o rei sábio. Já é famoso o extrato da Primera Crónica General, onde, em
seu leito de morte, Fernando III exorta seu herdeiro a continuar sua obra e torná-la ainda
maior chave pela qual podemos entender os projetos do fecho de allende e do fecho
delimperio:
Et dixolmas: “Ssennor te dexo de toda la tierra da la mar aca, que los moros
del rey Rodrigo de Espanna ganado ouieron; et en tu sennorio finca toda: la
una conquerida, la otra tributada. Sy la en este estado en que te la yo dexo la
sopieres guardar, eres tan buen rey commo yo; et sy ganares por ti mas, eres
meior que yo; et si desto menguas, non eres tan bueno commo yo.
(MENÉNDEZ PIDAL, 1955: 772-773)

Mas, antes de expandir, Alfonso X tratou de continuar. Assim, nos primeiros


anos de seu reinado cuidou zelosamente da repartição dos últimos territórios
conquistados por seu pai, que, em seus últimos anos de vida, não conseguira repartir.
Foi um longo e complicado processo, que conseguimos vislumbrar graças à vasta
produção documental da época - característica, aliás, de todo o reinado de Alfonso X.
Temos assim uma série de livros de repartições das cidades conquistadas no vale do rio
Guadalquivir, como os de Sevilha, Carmona, Ecija, Jerez, Cádiz-Puerto de Santa Maria
e Vejer de la Frontera, todas elas localizadas no reino de Sevilha (GONZÁLEZ, 1987:
105). A partir delas podemos vislumbrar um aspecto do rei sábio salientado por
González Jiménez: o do rei repoblador. Esses primeiros anos foram de uma atividade
constante no sentido de repovoar com cristãos as conquistas, a fim de garantir o seu
domínio. Afinal, não podemos esquecer que o reino de Sevilha se encontrava na
fronteira com o reino de Granada, sendo, portanto, ao mesmo tempo um território
estratégico para eventuais empreendimentos bélicos e um local exposto a novos ataques

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


342
(GONZÁLEZ, 1989: 208). Fixar uma população cristã significava efetivar a sua
integração a Castela e Leão.
Essa preocupação em colonizar era especial para a cidade de Sevilha. Última
conquista de Fernando III, era a principal cidade do califado almôada – e também a
maior. Temos como principal conjunto documental produzido neste contexto o Libro
del Repartimiento de Sevilla, editado por Julio González. No entanto, trata-se de um
conjunto que documenta muito mais a repartição do termo da cidade, portanto uma
realidade rural, que especificamente o contexto urbano.
No entanto, a atuação de Alfonso X na distribuição de propriedades em Sevilha
extrapolou e muito o contexto da repartição da cidade. Até o fim de seu reinado ele
atuou diretamente na divisão do termo da cidade, seja beneficiando indivíduos ou
grupos, trocando ou retomando propriedades como punição de acordo com o jogo
político em curso. Esse tipo de flutuação na configuração do alfoz de Sevilha podemos
vislumbrar através das cartas de doação emitidas pela chancelaria do monarca, reunidas
e compiladas por González Jiménez no Diplomatario Andaluz de Alfonso X.
Enquanto bolsista de iniciação científica do CNPq, pude catalogar no conjunto
documental do Diplomatario Andaluz um total de 236 cartas de doação de propriedade
dentre um total de 539 diplomas régios de naturezas diversas. Destas 236 cartas de
doação, 91 delas foram feitas somente para o âmbito de Sevilha e seu termo,
representando 38,55% de todas as doações realizadas na Andaluzia. Nenhuma outra
cidade recebeu tal atenção na distribuição de propriedades, nem mesmo Córdoba, a
segunda em importância.
Foi possível, a partir de então, discriminar os principais grupos beneficiários das
doações régias em Sevilha. Dentre todos eles, a instituição que mais recebeu doações
por parte do rei foi, sem nenhuma concorrência, a Igreja. Dentre as 91 doações feitas
para a cidade, 34 foram somente para a Igreja de Sevilha, os membros do cabido
catedralício e o arcebispo da sede hispalense. Em contrapartida, o concelho da cidade, a
instituição urbana mais importante, foi beneficiário de cinco cartas de doação1. As
Ordens Militares, colaboradoras constantes da monarquia nas campanhas militares,
receberam, por sua parte, somente cinco cartas de doação2. As ordens monásticas foram

1 GONZÁLEZ JIMENEZ, Manuel (ed.). Diplomatario Andaluz de Alfonso X. Sevilha, 1991, doc. 38,
42, 81, 121, 501 e 524.
2 Idem, doc. 24, 185, 206, 230, 369.

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343
beneficiadas com seis doações de propriedades3, enquanto bispos de outras dioceses
castelhano-leonesas receberam quatro doações em seu favor4. Por fim, a Ordem dos
Predicadores, também conhecidos como dominicanos, receberam somente uma carta de
doação na cidade5. Somente o conjunto de doações realizadas em favor de indivíduos
supera o conjunto de doações feitas à Igreja por Alfonso X, sendo no total 35 delas6.
Colonizar Sevilha era um desafio que demandava um cuidado constante de
Alfonso X, obrigando-o a criar mecanismos que garantissem a ocupação do território.
Dessa forma podemos entender as sete cartas régias de confirmação de troca e venda,
indicando que era necessário obter a autorização do rei para validar qualquer tipo de
contrato de transação de propriedade, uma forma de controlar a permanência dos novos
habitantes.
Mesmo assim, não era o suficiente. Tanto que, poucos anos após a repartição da
cidade, em 1255, Alfonso X enviava aos alcaides de Sevilha uma carta ordenando que
repartissem as propriedades abandonadas pelos povoadores originais entre aqueles
novos que fossem chegando à cidade7.
A própria forma como foi feita a repartição do termo de Sevilha reflete essa
preocupação. Para ela, a experiência do repovoamento da Extremadura, realizada
durante o reinado de Fernando III, fora crucial: favorecendo as Ordens Militares com
doações de extensos senhorios contíguos, o projeto de colonização dessas terras fora um
fracasso. A lição foi aprendida, e as Ordens em conjunto (Calatrava, Santiago,
Alcântara), como já foi dito, foram contempladas com cinco cartas de doação de
propriedades, quatro delas se tratando de pequenas parcelas de propriedade, não se
caracterizando como senhorio. A única Ordem que recebeu uma doação significativa em
Sevilha foi a Ordem de Santiago, a aldeia de Villanueva de Aliscar, porém sem direitos
sobre os moinhos de azeite, que pertenciam ao rei8.
A não contiguidade das propriedades foi um elemento importantíssimo da
divisão das terras. Mesmo os donadíos mayores do Libro del Repartimiento, ou seja, as
grandes doações realizadas principalmenteem favor de membros da família real, do alto

3 Diplomatario Andaluz de Alfonso X, doc. 33, 64, 71, 90, 104, 105.
4 Idem, doc. 19, 29, 44, 46.
5 Idem, doc. 148.
6 Idem, doc. 20, 21, 22, 23, 35, 47, 48, 65, 66, 69, 78, 84, 94, 95, 98, 101, 109, 109bis, 159, 160, 161,
172, 175, 178, 226, 232, 235, 251, 270, 277, 282, 288, 331, 395, 504.
7 Idem, doc. 155.
8 Idem, doc. 12.

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344
clero, ou de monastérios (GONZÁLEZ, 1987: 104), eram dispersos pelo termo
extensíssimo da cidade. Esse projeto de pulverização das propriedades valia igualmente
para os donadíos menores, concedidos aos conquistadores e povoadores de Sevilha.
É importante também relevar que a Igreja secular foi a grande beneficiária do
conjunto de doações. Não no contexto da repartição da cidade, onde apenas os membros
do cabido paroquial da catedral de Santa Maria foram beneficiados com pequenas
propriedades, mas no da dotação da sede hispalense, quando don Remondo assumiu o
cargo de arcebispo de Sevilha. No total, a Igreja de Sevilha tinha jurisdição sobre uma
série de alquerias, vilas e castelos: a vila e castelo de Alcalá Guadaira9; a vila e castelo
de Cazalla, a vila de Brenes, a aldeia de Tercio e a alqueria de Umbrete10; a alqueria de
Sanlúcar Albaida11; a alqueria de Gelves12; as alquerias de Ayelo, Acoçuldinar e
Puslena13; a Torre de Malheni14; Cambrillón, a Torre de Alpechín e Las Chozas15; e, por
fim, o castelo e vila de Almonaster e Zalamea 16.
Como bem coloca Isabel Montes Romero Camacho, para garantir a povoação do
reino de Sevilha, houve uma intenção expressa de priorizar doações a instituições que
fossem capazes de garantir a fixação dos novos povoadores (MONTES, 1988: 83). Por
isso o concelho, assim como a Igreja de Sevilha, recebeu uma série de núcleos
populacionais, que podemos identificar como vilas, castelos, aldeias, alquerias e
lugares. O concelho, enquanto principal instituição urbana, tinha jurisdição sobre:
Petronina, Martín Paulín, Alconeyçar, Parcina, Dulchnelas, Alcadidi, Lobanina,
Balarchi Lobet, Porçunes, Sobuerual, Barananiz, Cazalla, Triana, Goles, Dorbaniçale,
Quinicite Talme, Veres, Çaudín17, Almonaster e Zalamea18, Montemolín19 e San Juan
de Aznalfarache20.

9 Diplomatario Andaluz de Alfonso X, doc. 213.


10 Idem, doc. 233.
11 Idem, doc. 234.
12 Idem, doc. 392.
13 Idem, doc. 411.
14 Idem, doc. 412.
15 Idem, doc. 434.
16 Idem, doc. 455.
17 Idem, doc. 42.
18 Idem, doc.462.
19 Idem, doc. 501.
20 Idem, doc. 524.

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345
Já no final do reinado, o próprio Alfonso X toma para a si a responsabilidade de
povoar alguns núcleos, como o concelho manifesta numa carta aprovada pelo monarca
em 11 de janeiro de 1280:

E estos herendamientos nos dieron a nos porapoblarlos e darlo a pobladores


de Alcalá de Guadayra, que agora Puebla nuestro sennor el rey, por tirarnos
de la lazería, e de la coyta, del trabajo e de la costa por a siempre jamás de la
guarda de Alcalá de Guadayra, e del destaio, e de las eschuchas ascusannas
que nos auíamos de pagar cada anno. 21

Esta atitude de Alfonso X aponta para a própria limitação da colonização de


Sevilha: tarefa custosa, era difícil manter esses lugares protegidos e, ao mesmo tempo,
propícios para os colonizadores que chegassem. Território de fronteira, era de suma
importância garantir um mínimo de segurança nas franjas do reino.
Como bem pontua Angus Mackay, era essencial que os territórios conquistados
fossem atrativos aos povoadores, chave pela qual podemos entender a série de
privilégios concedidos às cidades de fronteira, como isenções fiscais e privilégios
militares (GONZÁLEZ, 1989: 211-217). O processo de expansão dos reinos cristãos
ibéricos não se deu por uma pressão demográfica sobre a fronteira com al-Andalus, e
um dos grandes problemas da expansão foi a ausência de contingentes populacionais
que dessem conta do constante avanço territorial (MACKAY, 1995: 52).
No que toca a Andaluzia, há também o problema de como interpretar essa
colonização. Uma perspectiva antiga via na repartição das terras da Andaluzia a origem
do latifúndio andaluz, assim como todo o seu atraso em relação ao resto da Espanha
(VICENS VIVES, 1972: 66-68). Mas, como vimos, na própria repartição houve uma
preocupação de se evitar a formação de grandes propriedades rurais, fracionando-as.
Mesmo Manuel González Jiménez não deixou de sublinhar o suposto caráter de exceção
do repovoamento da Andaluzia, afirmando que o que se deu ali foi um feudalismo
incompleto, pois a economia andaluza seria pré-moderna ou até mesmo pré-capitalista.
O que teria se estabelecido na Andaluzia foi uma sociedade de tipo contratual, baseado
na liberdade jurídica negociada, impedindo a formação de redes de dependência
tipicamente feudais (GONZÁLEZ, 1987: 117-120).

21 Diplomatario Andaluz de Alfonso X, doc. 462.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


346
Thomas Glick, retomando a discussão sobre o caráter das transformações das
paisagens rurais operadas em territórios da antiga al-Andalus após as conquistas cristãs,
defende um “carácter ‘suave’ de lar e organización” levada a cabo pela iniciativa
monárquica na Andaluzia (GLICK, 2007: 208), afirmando o mesmo que González
Jiménez: elas não desencadearam necessariamente um processo de senhorialização.
De fato, esta é uma limitação das fontes com as quais trabalho: através delas,
apenas podemos inferir sobre os regimes de posse de propriedades na Andaluzia, mas
nenhuma delas faz menção às formas de trabalho que operavam ali. Sabemos os donos,
não conhecemos os camponeses.
Porém, não se pode negar a política integradora de Alfonso X. Assim como sua
obra jurídica buscava implementar uma única legislação válida para todos os reinos sob
o seu poder, o seu empenho em colonizar os novos territórios também pode ser
interpretado como uma tentativa de dar um novo sentido a um espaço que era islâmico,
mas que passou a ser cristão. As escolhas realizadas quando da repartição não eram
aleatórias: buscavam integrar os novos espaços à lógica que operava em Castela e Leão,
a dizer, feudal.
Agora, se a colonização da Andaluzia, e portanto de Sevilha, não foi fruto de
uma agressão feudal, como postulam Manuel González Jiménez e Thomas Glick, como
podemos caracterizá-la? É verdade que não podemos afirmar o avanço das forças
senhoriais sobre a Andaluzia neste século XIII, mas isso significa afirmar que ela não é
feudal? Ou se trata, em outros termos de uma castelhanização da Andaluzia? Uma
política de integração estava em curso, e ela significou o desmantelamento do sistema
islâmico anterior. Como, então, tratar o sistema a ser implementado, onde a colonização
por cristãos era de primeira importância?

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VICENS VIVES, Jaime. Historia de España y América. Barcelona: Editorial Vicens-
Vives, tomo 2, 1972.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


348
MISOGINIA NO PENSAMENTO E NA LITERATURA DA IDADE
MÉDIA: ASPECTOS TEMÁTICOS E DISCURSIVOS*

Pedro Carlos Louzada Fonseca


Universidade Federal de Goiás
Ph. D. em Línguas e Literaturas Românicas
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás - FAPEG

RESUMO: A representação da mulher no pensamento e na literatura da Idade Média,


examinada à luz das formações históricas e ideológicas da cultura ocidental, apresenta-
se essencialmente constituída por uma forte disposição misógina a respeito da realidade
feminina. Tendo em vista os pressupostos dessa afirmação, o objetivo do presente
trabalho consiste no exame de significativos textos do pensamento e da literatura
medievais que podem ser considerados como fundamentais para a formação do ideário
dessa peculiar misoginia cultivada na Idade Média, desde as suas raízes fincadas na
antiguidade clássica, passando pela tradição judaico-cristã, literatura patrística e seu
legado medieval, até a formação não só de um tipo especial de literatura satírica do
feminino escrita no latim medieval mas também de significativos escritos vernaculares
de postura antimulher do tardio período medieval. No exame dessas fontes literárias e
intelectuais misóginas, o seu ideário e imaginário sobre a mulher são analisados no
trabalho numa perspectiva crítico-analítica e teórica com a finalidade de privilegiar
aspectos conteudísticos e temáticos vis-à-vis recursos formais e técnico-expressivos do
discurso da misoginia. Dessa forma, vozes representativas dessa misoginia medieval
serão referidas, desde um Tertuliano até um Chaucer.

Palavras-chave: Idade Média, Misoginia, Fontes literárias e intelectuais

ABSTRACT: The representation of woman in the thought and literature of the Middle
Ages, examined in the light of the historical and ideological formations of Western
culture, presents essentially formed by a strong misogynist disposition about the female
reality. Given the assumptions of that statement, the objective of this work is the
examination of significant texts of the medieval thought and literature that can be
considered as fundamental for the formation of the ideas of this peculiar misogyny
cultivated in the Middle Ages, from its roots planted in classical antiquity, through the
Judeo-Christian tradition, patristic and its medieval legacy literature, until the formation
of not only a special kind of satirical literature about woman written in medieval Latin
but also significant vernacular writings of anti-woman stance of the late medieval
period. In the examination of those misogynist literary and intellectual sources, their
ideas and imagination about women are analyzed in the work in a critical-analytical and
theoretical perspective in order to privilege content and thematic aspects vis-à-vis
formal and technical-expressive resourcers of misogyny discourse. Thus, representative
voices of that medieval misogyny will be referred, from a Tertullian to a Chaucer.

* Este trabalho apresenta-se como produto parcial do projeto de pesquisa intitulado Mulher Difamada e
Mulher Defendida no Pensamento Medieval: Textos Fundadores, que integrando a Rede Goiana de
Pesquisa sobre a Mulher na Cultura e na Literatura Ocidental, é coordenado pelo Prof. Dr. Pedro Carlos
Louzada Fonseca, com apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás
(FAPEG) para o período de 2014-2016.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


349
Keywords: Middle Ages, Misogyny, Literary and intellectual sources

Acerca da justificativa do estudo que o trabalho realiza, é de se partir da


verificação preliminar de que os infelizes e ultrajantes pronunciamentos misóginos
constantes no pensamento e na literatura da Idade Média consideraram, enquanto
marcada vertente da mentalidade tradicional da cultura ocidental, a mulher de forma
visivelmente preconceituosa e derrogatória, principalmente negando o fato de ela ser
relevada como portadora de faculdades superiores.
Da imensa quantidade de textos misóginos produzidos na Idade Média, parece
ser de referência e influência clássicas, dada a sua adquirida aura de auctoritas, o
antimatrimonial tratado Liber de nuptiis [Livro sobre o casamento], de Teofrasto (c.
372-288), com invocada autoridade citado por São Jerônimo (c. 342-420) em seu
tratado Adversus Jovinianum [Contra Joviniano] (c. 393), no qual o santo dissuade os
verdadeiros cristãos do casamento. Seguidamente à obra de Teofrasto, comparecem a
não menos virulenta obra antimatrimonial de Walter Map (1140-c. 1209) intitulada A
Carta de Valério a Rufino, contra o casamento (c. 1180) e o mais triste dos livros de
sabedoria da Bíblia medieval, o Eclesiástico. Para esses autores e obras, como para
tantos outros escritos misóginos surgidos na sua esteira, o celibato representava não só a
superação da desgraçada vida de casado como também a verdadeira condição de uma
vida de excelências morais, intelectuais e espirituais.
Entretanto, se tais obras e autores constituíram-se como distinta referência para o
pensamento e para a literatura medievais de natureza misógina, é de se considerar que a
sua tradição encontrava-se já iniciada em textos e autores anteriores, os quais se
representavam como verdadeiras raízes da misoginia medieval, quais sejam, a antiga lei
judaica; Hesíodo (c. 750 a. C.), que já dizia do mal introduzido no mundo através da
mulher; Ovídio (43 a. C.-18 d. C.); Juvenal (princípio do século II); os antigos estudos
de fisiologia de Aristóteles (384-322 a. C.) e de Galeno (131-201), os quais
subestimaram o corpo feminino como deformado e impuro frente à perfeição do corpo
masculino, com as suas eficazes propriedades gerativas e intelectivas.
Por uma espécie de habilidosa correspondência analógica, as condenações da
natureza e da fisiologia femininas correspondiam a pronunciamentos misóginos
instruídos pelo entendimento teológico medieval. Por exemplo, e para se citar aqui

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350
talvez o mais influente enciclopedista da Idade Média, Santo Isidoro de Sevilha (c. 570-
636), em sua obra Etymologiae [Etimologias], comenta sobre o poder destrutivo e
maléfico do mênstruo, evidenciando assim o perigo da realidade ginecológica. Na
patrística medieval, Santo Agostinho (354-430) é um exemplo ilustrativo da
preconceituosa corporeidade da mulher. Apesar de ter levado em consideração o que
Gálatas 3: 26-28 diz acerca da equivalência teológica dos dois sexos, ainda assim
Agostinho considerava a maior predisposição feminina para as solicitudes materiais e
sensoriais, tidas como perturbadoras da serenidade e da espiritualidade da mente
masculina.
Uma das mais urgentes preocupações, especialmente problemática para os
Padres da Igreja, foi a questão de a mulher ser considerada apropriada ou não para a
companhia dos homens. São Paulo, refletindo sobre o assunto, comenta sobre o
empecilho que o casamento e a família poderiam representar não só para a consolidação
institucional do cristianismo, mas também para o alcance da excelência mental e
espiritual do homem. Se essa distração matrimonial e familiar podia ser teoricamente
evitada, principalmente entre os mais devotos seguidores religiosos, o que, entretanto,
não deixava de os inquietar era o consenso de a mulher ser um repositório de vícios e
um lascivo convite ao homem para os descaminhos do pecado. Desse modo, nessa visão
essencialmente ultrajante, a mulher, devido ao fato de meramente existir ou cultivar a
sua aparência, foi recorrentemente metaforizada como uma mortífera espada
desembainhada e um perigoso poço destapado. Essa terrível imagística misógina pode
ser conferida, entre outras fontes, em Tertuliano (c. 160-c. 225), em seu livro De cultu
feminarum [Sobre a aparência das mulheres] que trata da aparência das mulheres, e em
The Ancrene Riwle [Regras para as reclusas], um tratado anônimo em forma de manual
para religiosas reclusas, datado do século XIII ou antes.
Como consequência dessa existência feminina pecaminosa, o tema do impuro e
embusteiro olhar da mulher foi frequentemente glosado pelos Padres da Igreja, a
exemplo das advertências de São João Crisóstomo (c. 347-407). Marbod de Rennes
(c.1035-1123) começa o seu tratado sobre a prostituta De meretrice [Sobre a meretriz]
partindo desse tema do perverso olhar da mulher. Enfim, a mulher era para essa tradição
misógina medieval um recurso infeliz, uma perpétua fonte de desavenças e de
discórdias, conforme pode ser lido no tratado antimatrimonial Adversus Jovinianum, de

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


351
São Jerônimo, fiel herdeiro dessa e de outras ideias expostas por Ovídio, em seu livro
Amores, e por Juvenal, em sua glosada Sátira VI. Desse modo, a visão dessa disposição
embusteira da mulher, não raras vezes considerada agenciada pelo diabo, embasava,
entre outras ideias acerca da sua impropriedade para misteres mais responsáveis, a
política do monopólio masculino no exercício das atividades religiosas mais
representantes da fé e da espiritualidade cristãs.
Outro topos da misoginia medieval, que pode ser situado ao lado do traiçoeiro
olhar da mulher, era-lhe a atribuição do defeito de ser detentora de uma copiosa e
extravagante compulsão para falar, a exemplo do que expõe o livro The Wife of Bath [A
esposa de Bath], de Geoffrey Chaucer (c. 1343-1400). Curioso, mas intrinsecamente
explicável dentro das premissas do androcentrismo, é o fato notado de que, associada a
essa incontinência verbal, encontrava-se outra compulsão pela qual o feminino era
acerbamente censurado e controlado, qual seja, a sua imputada prodigalidade erótica.
Entretanto, a ascética obsessão de condenar as mulheres de verem e de serem vistas
constituiu um intrigante paradoxo bastante em voga no século XII, qual seja, a prática
de uma adoração cortês e ideal da mulher concomitante à acerba denegação da sua
realidade material. Nesse caso, é de se considerar se esse medo do poder de erotização e
de prodigalidade sexual da mulher não se relacionava com um complexo de
inferioridade do homem, sendo para a sua autoimagem masculinista simplesmente mais
conveniente degradar as mulheres ao nível das mais indecentes criaturas libidinosas.
Ideias desse tipo, e de que a luxúria do amor efeminava os homens, comparecem com
incrível insistência no pensamento medieval, a exemplo, do que dizem Santo Isidoro de
Sevilha, em Etymologiae; Jehan Le Fèvre (séculos XIV-XV), em Les Lamentations de
Matheolus [As lamentações de Mateolo] (c. 1371-72) e André Capelão (séculos XII-
XIII), em De amore [Sobre o amor].
Esse equacionamento aristotélico da mulher ao corpóreo fazia dela, segundo a
ordem política masculinista, apenas suficiente para pequenos bons conselhos e tomadas
de decisão imediata. Entretanto, essa opinião nem sempre foi indiscutível e plenamente
acatada, conforme pode ser conferido em um dos mais radicais misóginos da tradição
satírica no latim medieval, Jehan Le Fèvre, que acabou por ser de opinião, em seu livro
intitulado Le Livre de Leesce [O livro de Leesce], que, talvez, as mulheres fossem

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


352
mantidas fora das profissões legais precisamente porque os homens temiam os seus
talentos marcados por distinta tenacidade e sutileza.
No início deste trabalho, foram mencionadas algumas obras e autores sempre
lembrados, em primeira mão, quando se discute a misoginia medieval. Entretanto, a
tradição literária nesse terreno era o que se pode chamar de bastante enredada, baseada
naquilo que pode ser chamado de auctoritas. Entre os Padres da Igreja dos seis
primeiros séculos depois de Cristo, auctoritas era um extenso conjunto de citações
bíblicas que se emparelhavam com citações provindas da literatura romana. Entre os
escritores de textos misóginos do século XI em diante, auctoritas significou extratos da
primeira onda de textos misóginos como, por exemplo, o tratado antimatrimonial
Adversus Jovinianum, de São Jerônimo, o qual foi como que reliberado no século XII; A
carta de Valério a Rufino, contra o casamento, de Walter Map; e o tratado De amore,
de André Capelão.
Além disso, para o contexto da misoginia medieval, esse conceito de auctoritas
podia ainda significar, entre outras fontes menos citadas, (1) nefastos pronunciamentos
bíblicos antimulher, principalmente oriundos de Provérbios, Eclesiastes e Eclesiástico;
(2) a segunda das narrativas gêmeas da Criação tratada no Gênesis, junto com o relato
da Queda e da punição de Eva; (3) certas histórias de celebrados heróis bíblicos que se
consentiram no pecado do sexo; (4) as epístolas de São Paulo; (5) máximas ou
aforismos de Ovídio, Juvenal, Virgílio e outros; e (6) afirmações extraídas, com o correr
dos tempos, de escritos de Padres da Igreja.
Uma das peculiaridades retóricas do uso desse corpus misógino era a recorrência
homogênea e ad nauseam de seus exemplos, tornando essa tradição misógina uma
intrincada rede de absorventes relações entre textos que tratavam do tema. Não
raramente, as citações eram tomadas fora de seu contexto original, aproveitando-se
apenas o que interessava do ponto de vista misógino como, por exemplo, as do livro de
Provérbios, onde uma citação condenatória de uma mulher má ou estranha era escolhida
sem se levar em conta que uma passagem a ela adjacente poderia ser muito bem
entendida como um elogio a uma boa mulher. Entretanto, muito mais desconcertante do
que essa descontextualização era a manipulação de uma citação inteira de forma a
extrapolar o seu sentido no contexto original, ocasionando a difamação da figura
feminina. É o caso da parcialidade na condenação de Betsabá, uma vez que a Bíblia não

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


353
dá a entender que ela propositadamente seduzira o rei Davi, com ele cometendo o
pecado do adultério.
Devido a essas corrupções de leituras tomadas à sua fonte original, não é de se
estranhar que a misoginia na literatura medieval dá a impressão de ser constituída de um
verdadeiro arsenal miscelânico de provérbios e de imprecações bíblicas contra as
mulheres, dando a impressão de que os textos que utilizam esse material são
excessivamente formulaicos, repetindo vozes ressoantes de incansáveis lugares-comuns.
Além das condenações anteriormente apontadas, era ainda imputado às mulheres
o compulsório vício de sempre resmungar, associado a uma incontinência verbal
abusiva e licenciosa, própria de uma língua trocista. A ênfase nessas características,
além das indicações bíblicas, remonta a São João Crisóstomo que, na sua Homilia IX,
acerca da Carta de São Paulo a Timóteo, culpou Eva por arruinar tudo, no minuto em
que ela abriu a boca no Paraíso.
Comentou-se anteriormente neste trabalho acerca da manipulação das fontes
originais da misoginia medieval para fins política e ideologicamente construídos.
Entretanto, a recorrência mais consistente a certos termos, motivos e estratégias
narrativas não parece fazer do discurso da misoginia medieval um sistema, com
princípios e padrões estruturais presidindo a sua expressão. Não obstante isso, pelo
menos uma característica básica pode ser apontada a respeito dos escritos e dos tratados
misóginos da Idade Média, a saber, que eles, a exemplo do Les Lamentations de
Maheolus, de Jehan Le Fèvre, foram estruturados de forma extremamente solta, sendo
as denúncias e invectivas contra a mulher colocadas numa organização sem coerência
lógica dos seus argumentos.
Apesar dessa falta de estruturação, alguns modelos tradicionais de escrita foram
apropriados pela misoginia medieval. O mais simples deles, derivado provavelmente de
Ovídio, foi o modelo de catálogo de exemplos ilustrativos. Esse modelo incluía também
a forma de panegírico, em que as boas e virtuosas mulheres bíblicas serviam como
contraste, de efeito retórico negativo, para denegrir as más. Outro modelo derivava de
Juvenal, da sua conhecida Sátira VI que, desaconselhando o casamento, cataloga um rol
de mulheres romanas satirizadas por sua inconveniência para o matrimônio. Outro
modelo, de forte poder de auctoritas, dada a sua severidade ancestral, foi o suposto
libelo de Teofrasto acerca da ferrenha e persuasiva dissuasão dos pretendentes ao

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


354
casamento. Incorporado ao tratado Adversus Jovinianum, de São Jerônimo, tecia
ardilosos comentários misóginos. Ainda outro modelo consistia no recurso expressivo
de reclamação em primeira pessoa utilizado pela linguagem feminina, podendo ser
encontrado em partes do livro intitulado La veuve [A viúva] (século XIII), de Gautier Le
Leu; em Les Lamentations de Matheolus, de Jehan Le Fèvre; e em Il Corbaccio [O
Corbacho] (c. 1355), de Giovanni Boccaccio (1313-1375). A seleção de referências
feitas neste trabalho a propósito da misoginia na Idade Média representa, na realidade,
apenas uma sucinta mostra da enorme quantidade de material sobre o assunto.
Um aspecto interessante, que pode ser considerado quando se estuda a prática da
misoginia no pensamento e na literatura medievais, é aquele que leva em conta que
muitas vezes essa postura antimulher quis ser reconhecida como um mero jogo que se
jogava apenas pelo simples costume ou gosto da denúncia, levando-se à suposição de
que a intelectualidade masculinista da Idade Média considerou as fórmulas retóricas da
misoginia como uma maneira apropriada para mostrar os seus dotes literários e
desportivos. Talvez nenhum escritor da época tenha chegado tão perto dessa conclusão
como Jehan Le Fèvre que, após declarar que havia esgotado os seus argumentos lógicos
acerca da mulher, ainda assim não conseguiu se isentar de lugares-comuns e símiles
cunhados, desde longa tradição, para representar a sua figura. O que vem ainda
demonstrar que a prática da misoginia medieval poderia tratar-se de um jogo foram as
atitudes de Marbod de Rennes e de Jehan Le Fèvre, os quais, parecendo se exercitarem
retoricamente dialéticos, emparelharam argumentos ofensivos e defensivos acerca da
mulher.
O caso da misoginia praticada na Idade Média não passar simplesmente de um
jogo para o exercício de habilidades retóricas, inocentando assim os seus cultores,
apresenta, entretanto, o risco de se subestimar a questão. Embora não se possa negar que
existiu, no tratamento da misoginia medieval, um elemento de paixão pelo debate per
se, também existiu muito de provocação tendenciosa e política nesse debate, para que
ele seja considerado como uma coisa não séria ou simplesmente inocente ou jocosa.
Nesse caso, basta ser lembrado que, como saldo desse debate antimulher, resultou, entre
outras coisas, a incriminação da responsabilidade feminina na Queda e no Pecado
Original e, daí, a continuação da exclusão da mulher do serviço e da vida pública.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


355
O que se comentou até aqui neste trabalho, fazendo jus ao que o seu título
propõe, pode dar a impressão de que o pensamento medieval, em se tratando da mulher,
primou-se exclusivamente por uma monolítica postura misógina. Pelo contrário, se não
perfeitamente concomitante, pelo menos ao lado de uma literatura radicalmente
misógina, existiu uma sua contraparte, acorrendo em defesa da mulher, constituindo
como que respostas àquele tipo de literatura. Portanto, foi a partir de ultrajantes
pronunciamentos dos misóginos medievais que uma reação contrária se haveria de se
enraizar. Finalmente, dado o fato de a misoginia medieval parecer ter sido um fenômeno
que, intimamente ligado a valores culturais, constituiu, desafortunadamente, a própria
mentalidade da Idade Média, o presente trabalho começará por preencher os objetivos
do seu autor se ele ajudar a equipar os seus ouvintes para julgarem, por si mesmos, tal
assunto.

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357
SI TE OLVIDAS DE QUIEN ERES/ NO ME OLVIDO DE
QUIEN SOY: O ETHOS DO REI NA COMÉDIA DE DIU, DE SIMÃO
MACHADO

Renata Brito dos Reis


Universidade Federal da Bahia (UFBA) – Mestranda do PPGLitCult/UFBA
Márcio Ricardo Coelho Muniz
Universidade Federal da Bahia (UFBA )/PPgLitCult/CNPq

RESUMO: Desde a Grécia antiga até os tempos modernos, diversos pensadores têm
despendido esforços para descrever as características de um “bom governante”. Nesse
sentido, o rei aparece como uma figura emblemática por ser considerado um ser de
exceção, capaz de agenciar uma série de valores caros para a organização em sociedade.
Ao escrever a Comédia de Diu, Simão Machado, poeta e dramaturgo do século XVI,
lança mão de um argumento histórico/épico no qual a construção das características
morais, ou seja, o Ethos da personagem do rei Bandur nos possibilita pensar na tensão
entre o “ser” e o “parecer ser”, segundo, sobretudo, a ótica das ideias de Nicolau
Maquiavel, no livro O príncipe. Dessa maneira, o presente trabalho pretende analisar de
que forma o Ethos do rei se configura na Comédia de Diu, perpassando, para tanto, pelo
exame da própria ideia de virtude que, via de regra, está associada a um governante de
um povo.

PALAVRAS-CHAVES: Simão Machado, Comédia de Diu, Ethos do rei

RESUMEN: Desde Grecia antigua hasta los tiempos modernos, diversos pensadores
han desprendido esfuerzos para describir las características de un “buen gobernante”. En
este sentido, el rey aparece como una figura emblemática por ser considerado un ser de
excepción capaz de agenciar una serie de valores bastante caros para la organización en
sociedad. Al escribir la Comedia de Diu, Simão Machado, poeta y dramaturgo del siglo
XVI, lanza mano de un argumento histórico/épico en el cual la construcción de las
características morales (o sea, Ethos) de la personaje del rey Bandur nos posibilita
pensar en la tensión entre ser/parecer ser, según, sobretodo, la óptica de las ideas de
Nicolau Maquiavel, en el libro El Príncipe. De esa manera, el presente trabajo pretende
analizar de qué forma el Ethos del rey se configura en la Comedia de Diu, pasando, para
tanto, por el examen de la propia idea de virtud que, normalmente, está asociada a un
gobernante de un pueblo.

PALABRAS CLAVE: Simão Machado, Comédia de Diu, Ethos del rey

Em estudo intitulado Greek Popular Morality (1974), Kenneth James Dover se


preocupa em distinguir, a priori, o que é moralidade e como ela não deve ser
confundida com filosofia moral. Por moralidade de uma cultura, Dover compreende “os
princípios, critérios e valores” que fundamentam nossas respostas a uma dada
experiência. A filosofia moral, no entanto, se configura como “um pensamento racional,

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358
sistemático sobre a relação entre moralidade e razão”1. Com isso, esse estudioso do
mundo helênico nos mostra que independentemente da cultura, antiga ou moderna,
poucas pessoas são filósofos morais de fato, pois não é costume pensar-se de maneira
sistemática sobre as nossas escolhas morais.
No entanto, ainda que não de forma sistemática do modo que Dover define o
campo da filosofia moral, é inegável que há uma série de princípios que norteiam essas
inumeráveis escolhas morais que temos de fazer ao longo da vida. Nesse sentido, Dover
(1974) nos chama a atenção para o fato de que, embora a maioria das pessoas possa
passar a vida sem ter um pensamento sistemático sobre a moralidade, é corriqueiro
encontrar situações em que precisamos expressar juízos morais. Visto que não é raro
proferirmos as seguintes afirmações: “isso é justo!”, “isso não é justo!”, “ele é um
homem bom.”, “ele é um homem belo” etc.
Ao transpor o estudo de Dover sobre a moralidade antiga para o contexto do
medievo, nota-se que o rei aparece como uma figura emblemática por ser considerado
um ser de exceção, capaz de agenciar uma série de valores caros para a organização em
sociedade. Na Idade Média, por exemplo, a ideia de “dois corpos do Rei”
(KANTOROWICZ, 1998) era amplamente difundida em documentos jurídicos e
literários. Considerava-se, então, a existência de um corpo político e de um corpo
natural quando se pensava na figura do rei.
De acordo com Kantorowicz, tornar-se rei equivalia a ser consagrado, recém-
batizado e destituído dos seus pecados, pois o corpo político “remove a imperfeição”
que é inerente à natureza humana. Assim, um corpo místico/político e um corpo natural
atribuem ao rei um estatuto que o distingue do homem comum. Dessa forma, a difusão
da ideia dos dois corpos do rei serve para amplificar a importância que a persona do rei
tinha para sociedade. Isso é evidente na quantidade de textos literários e não literários
que abordam o assunto, revelando que, desde a Grécia antiga até os tempos modernos,
existia um horizonte de expectativas para as características morais (o ethos) de um
governante.
Ao escrever a Comédia de Diu, Simão Machado, poeta e dramaturgo
quinhentista português, lança mão de um argumento histórico/épico no qual a

1
“By the ‘morality’ of a culture I mean the principles, criteria and values which underlie its responses to
this familiar experience. By ‘moral philosophy’ or ‘ethics’ I mean rational, systematic thinking about the
relationship between morality and reason […]” (DOVER, 1974, p.1)

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


359
construção das características morais das personagens, em especial, o ethos da
personagem do rei Bandur nos possibilita examinar como o discurso prudencial, sob a
ótica das ideias maquiavélicas, é construído a partir da tensão entre as personagens que
se antagonizam na comédia machadiana tomada para análise, deixando entrever, desse
modo, um projeto político expresso pelo texto.
Antes de adentrar no objetivo central deste trabalho, convém informar que,
embora a carência de dados sobre a vida de Simão Machado também acompanhe os
seus escritos, sabe-se que Simão Machado se fez Frade num convento franciscano de
Barcelona logo após ter criado as suas duas comédias (a saber: Comédia de Diu e
Comédia da Pastora Alfea), sendo ambas divididas em primeira e segunda parte,
conforme explica a breve exposição bibliográfica feita por Claude-Henri Frèches
(1971).
Na Comédia de Diu, considerada a mais inventiva de suas peças, vale-se do
argumento histórico-épico do primeiro cerco que os mouros puseram à fortaleza da
cidade de Diu no ano de 1538, com o governo de D. Antônio da Silveira. Mesclam-se,
nessa obra, artifícios retóricos e características das tragicomédias latinas principalmente.
Segundo Jean-Pierre Ryngaert, a escolha do título por si só já anuncia “um
projeto de acordo com a tradição cultural ou, pelo contrário, manifesta uma ruptura”
(1995: 37-38). Visto que o título, além de ser o primeiro contato da relação autor-obra-
leitor, deixa entrever a “intenção de obedecer ou não às tradições históricas”, sendo a
titulação que a obra recebe um “jogo inicial com um conteúdo a ser revelado do qual ele
é a vitrine ou anúncio [...]”. Assim, na Comédia de Diu, percebe-se, a começar pelo
título, uma necessidade de recorrer ao material histórico de que Simão Machado se
apropriou para elaborar o que chamou de comédia, revelando, dessa maneira, o que
Ryngaert chama de “projeto do autor”.
Com base nessas características gerais do autor e da sua obra, além de pensar
acerca de algumas ideias maquiavélicas que permeiam as ações das personagens
machadianas, nos interessa também refletir sobre as motivações que influenciaram na
criação de uma peça que revive a história gloriosa de resistência da guarnição
portuguesa no cerco de Diu, nos meses do verão e do outono de 1538. Para tanto, nos
deteremos na análise dos heróis de Simão Machado a partir do tratamento da tópica da
prudência conforme proposto por Nicolau Maquiavel, em seu livro O príncipe.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


360
Desde as primeiras cenas da Comédia de Diu, destaca-se a utilização de duas
estratégias para a economia narrativa da peça. A primeira diz respeito ao uso do teatro
bilíngue, o que era muito comum no teatro penisular. No entanto, o uso que Simão
Machado faz desse teatro bilíngue se torna peculiar no momento em que distingue os
inimigos dos amigos por meio do tipo de fala das personagens. Assim, há uma
recrudescência da tensão entre as personagens através da linguagem, visto que, na peça,
enquanto os portugueses falam em língua portuguesa, os mouros falam em língua
espanhola, possibilitando, desse modo, a interceptação do inimigo no momento em que
a língua estrangeira é utilizada.
O segundo artifício, por sua vez, diz respeito ao uso do diálogo entre os
personagens de baixa patente para descrever os eventos importantes da narrativa. O que
alude ao personagem rústico frequentemente encontrado nas obras vicentinas. Através
da linguagem rústica dos soldados, por exemplo, Simão Machado tanto garante a
comicidade da peça como descortina um potente artifício de representação das
qualidades morais das personagens, valendo-se do discurso de outrem.
Nesse contexto, conforme explica Décio de Almeida Prado, em seu texto A
personagem no teatro, observa-se que Simão Machado atribui aos soldados Pero Gil,
João Brás, Moreira e Andrade “um grau de consciência crítica que em circunstâncias
diversas elas não teriam ou não precisariam ter” (PRADO, 2014: 95) com objetivos que
vão além do tornar conhecível o ethos das personagens principais, pois, de acordo com
José Camões (2009: 23),
[...] as situações protagonizadas pelos soldados são funcionais para a
dramatização do argumento, quer por suprirem, mediante o relato ou a
informação, aspectos e segmentos da acção que não vão ser representados,
quer por servirem para destacar e interpretar o simbolismo visual do cenário.

Dessa maneira, os espectadores tomam conhecimento da situação precária em


que se encontrava a guarnição portuguesa ameaçada pela crescente hostilidade da
população maometana da cidade e pela atitude suspeita do próprio soberano, o rei
Bandur, que se aconselha com o velho Cojosofar, com intuito de “encontrar um meio
dissimulado de desalojar os lusitanos, após lhes ter permitido edificar o castelo em paga
dos serviços prestados no passado” (CAMÕES, 2009: 12).
Além disso, no desenrolar da trama da peça, o ethos das personagens principais é
construído não apenas pelo discurso das personagens secundárias, mas também pelas
suas próprias ações. Por um lado, o rei Bandur é caracterizado como tirano, dissimulado
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361
e cruel por planejar o assassinato do capitão dos portugueses, Manuel de Sousa. Por
outro lado, possibilita, para o próprio Manuel de Sousa, o momento propício para a
realização do ato de coragem que o eleva à condição de herói nacional dotado de astúcia
e de prudência.
Ao comparar essa ação de Manuel com os princípios maquiavélicos, podemos
dizer que tal ação foi bem sucedida, porque o capitão soube escolher, de forma
prudente, a melhor maneira de agir contra o inimigo com base no cálculo analítico das
circunstâncias. Visto que, ao ser alertado pelo leal Rau sobre as verdadeiras intenções
do rei Bandur, o capitão dos portugueses explica que é necessário certa dissimulação no
trato com os inimigos (no caso em questão, os mouros).
Essa dissimulação, porém, ganha uma conotação distinta da condenável
dissimulação do rei Bandur por causa dos fins que Sousa pretende alcançar ao traçar o
seu curso de ação. Com isso, em detrimento da sua segurança, o capitão decide aceitar o
convite para visitar o rei Bandur, ainda que estivesse ciente de que o rei almejava matá-
lo e, em seguida, anunciar, de forma enganosa, que o assassinato aconteceria por
legítima defesa.
Secretário Deu algum aviso que importe
o mouro?
Sousa O que vos direi:
que amanhã me chama el rei
diz que pera dar-me a morte.
Secretário Por que causa?
Sousa Eu não sei.
Secretário Foi Felice aviso.
Sousa Em quê?
Secretário Não irás a seu chamado.
Sousa Já estou deliberado
em ir.
Secretário Quanto a mi não é
esse conselho acertado.

Senhor vê que as vidas nossas


estão da tua pendendo.
Sousa Porque eu isso estou vendo
por assegurar as vossas
a minha arriscar pretendo.
Se a el rei não se obedece
sou seu discoberto imigo
fica ele sem o castigo
que sua treição merece
nós todos em mor perigo.

Vendo em mi desconfiança
entenderá que o entendo
porá em si mor segurança.

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362
Sair em vão estou vendo
a desejada vingança.
Logo aqui nos há de vir
cercar e não nos podemos
defender, que água não temos,
Eu não me ganho em não ir
antes todos nos perdemos.
(I, 1780-1809)

Nesse sentido, não obstante o secretário aconselhar o capitão dos portugueses a


não atender ao convite do rei, tendo em vista que seria “um chamado para morte”, o ato
heroico de Sousa não consiste apenas na prudente deliberação de ir ao encontro do rei
Bandur, mas na construção de um caráter (ou ehos) irretocável através da união entre
retórica e prudência, em consonância com o que o historiador e crítico literário Felipe
Charbel (2008) chama de “preceitos ético-retórico-poéticos”, em sua tese de
doutoramento intitulada Timoneiros: retórica, prudência e história em Maquiavel e
Guicciardini.
Depois de fazer uma análise acurada da realidade precária dos portugueses,
Souza percebe que poderia escapar com vida da armadilha do rei Bandur caso fosse
desacompanhado da sua guarda, demonstrando, assim, grande coragem e astúcia, pois
tal medida revelou-se necessária tanto para não levantar suspeita em relação à
sinceridade da sua amizade para com o rei quanto para constranger o seu oponente que
não poderia abater, de maneira honrada, um “amigo” desarmado.
Ademais, a escassez de água serve para ratificar o quanto sua deliberação foi
acertada, pois, ao colocar sua própria vida em risco, consegue assegurar a vida de todos
os portugueses. Isso porque, caso escolhesse recusar o convite do rei ou ir acompanhado
de uma ostensiva armada, daria motivos para que o rei Bandur atacasse aos portugueses
e esses pereceriam, pois seriam incapazes de resistir sem água. Com base nisso,
podemos perceber que, na dramaturgia de Simão Machado, o contraste entre os
personagens antagônicos é fundamental para dar relevo ao ethos tanto das personagens
protagonistas (os portugueses) quantos das antagonistas (os mouros).
Na perspectiva da importância da figura do antagonista para construção do ethos
das personagens, Prado chama atenção para o fato de que alguns teóricos definirem o
teatro como “a arte do conflito porque somente o choque entre dois temperamentos,
duas ambições, duas concepções de vida, empenhando a fundo a sensibilidade e o

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


363
caráter, obrigaria todas as personalidades submetidas ao confronto a se determinarem
totalmente” (PRADO, 2014: 92).
Ainda dentro dessa perspectiva, para José Camões, Glaura, esposa fiel do leal
governador Rau injustamente assassinado pelo rei Bandur, se configura como uma
personagem que influi, sobremaneira, na qualificação moral de Bandur ao longo da
peça:
A peripécia utilizada em torno da figura fictícia de Glaura é caracterizada
pela sua estreita imbricação com o argumento principal da comédia. Do
ponto de vista quantitativo, entrelaça-se com a matéria histórica em todas as
sequências da primeira parte protagonizadas pelos antagonistas orientais [...].
Em termos qualitativos, matiza de modo decisivo a elaboração dramática
desse material histórico, no que tange à caracterização das personagens não
portuguesas (CAMÕES, 2009: 18).

A partir dessa intriga amorosa, na qual tanto o rei quanto o seu conselheiro
Cojosofar estão apaixonados pela esposa do leal vassalo Rau, a construção do ethos do
rei ganha, aos olhos do espectador, os sentidos mais ignóbeis em decorrência da “pouca
virtude” com que o monarca pauta suas ações, já que o rei Bandur é “arrastado por uma
paixão sexual incapaz de dominar que o impede de respeitar as conveniências”
(CAMÕES, 2009: 19). Isso fica evidente num diálogo no qual Bandur assedia Glaura,
que recusa, com honradez, as investidas amorosas do seu rei:
Bandur [...]
Dexa tocar Glaura hermosa
mi boca tus manos belas
ya que com tan fácil cosa
como el tocamiento delas
las puedes hacer dichosa
Glaura Señor, bien tiengo entendido
que las honras que en ti hallo
son hechas a mi marido
que por tu leal vassalo
te las tiene merecido.
[...]
Bandur No huyas com tal presteza
de uma alma que a tu beleza
dexas de todo rendida.
Espera, por qué no quieres
ver cuán rendido te estoy?
Glaura Si te olvidas de quien eres
No me olvido de quien soy.
(I, v. 596-615)

Numa perspectiva comparativista, no capítulo XV, de O príncipe, Maquiavel


afirma que o príncipe “necessita ser suficientemente prudente para evitar a infâmia
daqueles vícios que lhe tirariam o estado [no contexto da dramaturgia machadiana, o

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


364
reino] e guardar-se, na medida do possível, daqueles que lhe fariam perdê-lo”
(MAQUIAVEL, 1996).
Quando diz que “como me tengan por justo/ muy poco me importa sello” (I,
449-450), o rei Bandur apresenta um discurso maquiavélico, mas não é dotado de
atitude prudencial em decorrência dos motivos que norteiam as suas ações. Dessa
maneira, demonstrar “fingida amizade” seria um caminho plausível para alcançar seus
fins – fazer com que a cidade de Diu “vuelva aquella libertad que tenía antiguamente”
(I, v 459-460). O rei Bandur, porém, não logra êxito em seus objetivos, porque eles se
misturam com os seus vícios condenáveis: luxúria, egoísmo, deslealdade etc.
Simão Machado estava inserido num cenário político que o aproxima de uma
tradição literária que privilegia os jogos retóricos da qual Nicolau Maquiavel é singular
representante. Sendo assim, é necessário levar em conta que o foco de Maquiavel era,
segundo Felipe Charbel, diferenciado dos humanistas dos séculos XV e XVI, o seu
interesse se voltava para
[...] a compreensão do presente, a dinâmica das coisas do mundo, como
diziam os florentinos do século XVI, os movimentos intricados do tabuleiro
da política, as motivações ocultas de reis, príncipes e embaixadores, as causas
de declínio de repúblicas e principados italianos. Para ele, em pé de igualdade
do estudo continuo das coisas antigas, estava a longa experiência das coisas
modernas. Isoladas, a primeira era apenas erudição fútil. A segunda,
2
diagnóstico sem fundamentos.

Ao criar a Comédia de Diu, Machado não perdeu de vista o princípio


maquiavélico que embaralha as fronteiras do “ser” e “parecer ser”, pois, de acordo com
a visão de Maquiavel, o importante não é ser bom e justo de fato, mas o parecer ser.
Assim, as palavras de Glaura, Si te olvidas de quien eres/No me olvido de quien soy,
além de marcar qual deve ser a conduta conveniente para um rei, servem para denunciar
os traços morais da personagem do rei Bandur, o qual não é e nem consegue “parecer
ser” justo. Com isso, ao destoar do que se espera do ethos de um rei, o desenrolar da
dramaturgia machadiana justifica a morte trágica do rei Bandur, colocando em relevo o
poder da Providência.

2
Informação verbal, proferida 8º Ciclo de conferências: “Visões da História” – Academia Brasileira de
Letras, setembro de 2012. Disponível em:<https://www.youtube.com/watch?v=JKCI37rahpI>. Acesso
em: 10 abr. 2015.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


365
Além disso, no capítulo XXII, Maquiavel alerta para o perigo que um príncipe
incorre ao manter perto de si alguém que não age de forma competente e fiel, mas
baseado em interesses próprios. Visto que, para Maquiavel,
a primeira conjectura que faz a respeito da inteligência de um senhor baseia-
se na observação dos homens que mantém torno de si. Se estes forem
competentes e fiéis, o príncipe sempre poderá ser reputado sábio, porque
soube reconhecê-los como competentes e mantê-los fiéis (1996: 111).

Em consonância com essas ideias de Maquiavel, é possível inferir, ainda, que o


rei Bandur, além de agir de forma imprudente em diversas situações, também não soube
reconhecer o caráter traiçoeiro do seu conselheiro Cojosofar. Na primeira parte da peça,
quando o rei Bandur informa a Cojosofar sobre os seus planos de viajar para Diu, o
público toma conhecimento dos interesses vis de Cojosofar através de sua fala
supostamente em aparte:
Bandur [...]
El primer lunes se hará
Este viajen que digo.
Bien sabes que has de ir comigo.
[acredita-se que o fragmento a seguir é proferido em aparte]
Cojosofar Si el alma me queda acá
cómo el cuerpo ha de ir contigo?
Ay mi Glaura, mas yo haré
que también a Diu vaya
o el que soy no seré
que no estando yo em Cambaya
no es razón que ella lo este.
(I, 461-470)

Nesse sentido, Felipe Charbel explica que, de acordo com a ótica maquiavélica,
não basta ser prudente, mas considerar a análise das circunstâncias com base nos
ensinamentos dos antigos e na experiência particular do presente. Sendo assim, é
forçoso que o rei esteja familiarizado com os jogos retóricos, para que não se deixe
enganar por conselheiros de má-fé, a exemplo do Cojosofar, em Cerco de Diu.
Muito distante disso, é imperativo que o rei consiga criar mecanismos que
sirvam para acentuar suas qualidades, favorecendo, assim, a pintura de uma boa imagem
perante seu povo. Ao entrelaçar as ideias de Maquiavel e o contexto da dramaturgia
machadiana, observa-se que esses mecanismos se dão, principalmente, através dos
movimentos retóricos que constroem o caráter da personagem por meio da linguagem.
Quer seja pelo bem narrar das ações gloriosas quer seja por tornar conhecível a
“competência” e “fidelidade” dos subordinados do rei Bandur.

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366
Diferentemente das deliberações prudentes que encontramos na construção do
ethos do capitão português Souza, as razões da ruína do rei Bandur podem ser
relacionadas com a falta de prudência nas ações desenvolvidas dentro dos limites
retórico-discursivos do gênero dramático. Nesse sentido, ao aproximar os preceitos
maquiavélicos das ações das personagens, nota-se que, enquanto todos os elementos da
narrativa dramática de Simão Machado convergem para captar a benevolência do
espectador em relação ao heroísmo épico das personagens portuguesas, o rei Bandur, o
antagonista dos portugueses, é derrotado por descumprir o que preconiza Maquiavel.
Em outras palavras, o fim trágico do rei Bandur é um exemplo nítido de como é
imprescindível uma análise atenta dos fatos passados e presentes para evitar o emprego
de ações desprovidas de prudência.
Portanto, ao analisar a tensão existente entre as personagens antagônicas, é
possível refletir sobre as motivações que fizeram o dramaturgo quinhentista português
lançar mão dos dados historiográficos acerca do Cerco de Diu de 1538 para compor a
sua peça de teatro. Nesse sentido, a construção do ethos das personagens principais
corrobora para um projeto político do autor que extrapola os limites da relação entre
ficção e história. Isso porque, no contexto de decadência em que se encontrava Portugal
quando a peça foi provavelmente criada na segunda metade do século XVI e impressa
(1601), a história recuperada através do texto dramático não é apenas repetida, mas
experimentada no “aqui e agora” inerente ao drama.

REFERÊNCIAS

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GIL Vicente 500 anos depois. Lisboa: Imprensa Nacona-Casa da Moeda, 2003. pp.
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em:<http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=
&co_obra=112234>. Acesso em: 13 abr. 2015.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


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A CARNE E O MICROCOSMOS ALIMENTAR MEDIEVAL:
VIRILIDADE, FORÇA E PODER

Renato Toledo Silva Amatuzzi


(PPGH-UEPG/NEMED)

RESUMO: A carne possui um papel central na dieta da nobreza medieval. O grande


destaque que os homens desse tempo conferem à carne deve-se à mítica de que esta foi
por muito tempo cercada. Assada, temperada, sangrenta, suculenta e farta, a carne é,
desde muito tempo, um símbolo de poder, força, riqueza, potência sexual, virilidade,
energia vital e uma das principais manifestações de alegria - a de comê-la fartamente ao
redor da mesa. Numa sociedade dirigida por guerreiros e cavalheiros, a carne ajuda a
reforçar a lenda que relaciona sua ingestão à força física e aos poderes duradouros.

Palavras-chave: Carne, alimentação medieval, Arnaldo de Vilanova

ABSTRACT: Meat plays a central role in the diet of medieval nobility. The highlight
men of that time give the meat should be the mythical that it has long been surrounded.
Roasted, seasoned, bloody juicy and plentiful, the meat is from a long time, a symbol of
power, strength, wealth, sexual potency, virility, vital energy and a major manifestation
of joy - to eat it abundantly around of the table. In a society ruled by warriors and
gentlemen, the meat helps to reinforce the legend that relates to their intake physical
strength and lasting power.

Keywords: Meat, Medieval food, Arnaldo de Vilanova

A Catalunha no século XIII era uma região espanhola rica e de grande


diversidade cultural, pois coexistiam no mesmo espaço geográfico três culturas bastante
distintas: a judaica, a cristã e a islâmica. O convívio direto durante séculos destes três
povos contribuiu para uma intensa produção intelectual, inclusive no campo do saber
médico. Havia neste território a presença de califados muçulmanos nas cidades de Al-
Andaluz, Córdoba e Toledo que se tornaram famosos pela preservação, tradução e
difusão de textos cânones da medicina arábica na Península Ibérica.
Neste meio marcado pelo grande dinamismo de novas ideias, presenciou-se o
esforço de vários intelectuais em traduzir, preservar, compreender e, inclusive, aplicar
os estudos de clássicos da medicina islâmica no ofício e profissão dos mesmos. No caso
da Medicina podemos citar os principais nomes que passaram a ser traduzidos entre os
séculos XII e XIV, como por exemplo: Costa Bem Luca, Al Buzale, Al-kindi, Al
Benzoar, Avicena, Averróis e IbnIsqha. Vale a pena ressaltar que nestes centros

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


369
catalães de ensino eram utilizados dois idiomas: o latim, nas esferas teológicas e
filosóficas, e o árabe, predominante nos saberes da natureza. (GOLDFARB, 1991:34).
Um exemplo de tradutor e pensador inserido neste contexto foi o médico catalão
Arnaldo de Vilanova. Arnaldo iniciou seus estudos na Espanha, seguindo para Salerno
(Itália) e posteriormente lecionando em Montepelier (França) e residindo nas cortes
onde seus serviços eram convocados, por exemplo, para tratar de problemas de saúde de
papas e reis. Arnaldo era também um tradutor de textos originais árabes para o,
dominando os dois idiomas, permitindo assim a utilização dos conhecimentos
adquiridos nestes autores na sua formação como médico prático (CARRERAS I
ARTAU, 1954). O método prático praticado por Vilanova era uma corrente médica que
se formava lentamente entre os séculos XII e XIII, fruto da sobreposição da Medicina
popular europeia à atividade médica monástica que valorizava a experiência e
observação como habilidades essenciais do bom médico (CROSSETI,2009: 42).
Arnau foi um dos precursores da medicina que coloca a experiência e a razão em
um lugarde destaque, como características importantes no exercício da cura e do
tratamento salutar. Integrando as análises primárias do paciente, incorpora em seus
escritos estudos médicos o diálogo aos diversos campos do conhecimento, sobretudo às
Ciências Ocultas, à Astrologia, Quiromancia e à Dietética.
Apesar das constantes ajudas aos mais diferenciados e inusitados saberes, a
medicina medieval possui um forte vínculo com a Teologia, pois esta se encarrega dos
cuidados com a alma, a alma habita dentro do corpo e é objeto dos cuidados de Deus.
“O médico é um servo de Deus, devendo invocar a Ele quando não houver mais solução
plausível ao alcance da Ciência e da Razão” (1947).
No prólogo de “As Regras de Saúde a Jaime II”, Sariera, responsável pela
tradução da obra no século XIII, ressaltou a relação entre Deus,o conhecimento, a
Medicina e o ofício da cura:

“Como Deus Todo-Poderoso, cheio de misericórdia, criou o homem, que não


tem nenhuma possibilidade de fazer algo nem qualquer razão a não ser pelo
poder, e o poder não é nada sem a saúde, e a saúde não é nada sem a
igualdade de compleição, e a igualdade de compleição não é nada sem o
temperamento dos humores, por isso, Nosso Senhor Deus, ao criar o homem,
quis amá-lo e inspirá-lo com a graça acima de todos os animais, e o fez à Sua
semelhança, dando-lhe remédio para que pudesse ter o temperamento dos
humores para a conservação da saúde iluminada pelo desejo dos sábios
médicos, e, dentre os demais filósofos e mestres da Medicina, o mui sábio
Arnau de Vilanova, acima de todos os mestres, pois conhece e ordena

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


370
quantas maneiras a saúde é conservada.” (REGIMEN SANITATIS, 2011:
99-101).

Entretanto, neste trabalho delimitar-me-ei à análise das relações que Arnau de


Vilanova estabeleceu entre a alimentação e a da busca de equilíbrio dos humores. O
Regime de Saúde possui dezoito capítulos. Disposto ao longo de cem páginas, o autor
preocupa-se em aconselhar o rei sobre a importância da manutenção da saúde e o
equilíbrio dos humores corporais, através de exercícios, banhos, descanso, a pureza do
ar e, principalmente, da dietética.
A preocupação dietética de Arnau ao rei Jaime II de Aragão provém do pedido
do rei ao médico para um tratamento de suas hemorroidas; o regimento foi tão bem
aceito e detalhado que passou a ser divulgado por todo o reino de Aragão e, em seguida,
pelo território catalão, omitindo porém o capítulo XVIII “Das hemorroidas” para tornar-
se universal.
Embora se inicie no capítulo VIII a parte referente à nutrição, ao longo dos
capítulos introdutórios, o alimento sempre se relaciona com todas as atividades
cotidianas, dos repousos, banhos até os exercícios físicos, sendo indicadas e restritas
diversas comidas em cada uma das situações. No capítulo IV, destaca-se a importância
de como se alimentar, reforçando as medidas e as porções ideais, assim como os
períodos do dia e o que beber durante as refeições para uma melhor aceitação do
alimento no corpo. Não somente a mastigação e a apreciação do sabor eram
importantes, mas também a bebida, sobretudo o vinho e o pigmentum,1 consumidos em
doses abundantes, chegando a ultrapassar os 270 litros per capita por ano entre as
camadas populares, sendo este valor dobrado entre a elite palaciana (CORTONESI,
1998:417).
IV.VII- Do beber: (...) A esse respeito, deve-se evitar que o vinho seja
rascante, ou ardente, ou espesso e doce. No verão deve-se preferir o vinho
branco, e no inverno o rosado e tinto. Em relação à substancia, deve ser
sempre clara e suave, sabor simples,, agradável e de odor suavíssimos (...)
Assim, convém sempre evitar vinhos mesclados com gesso ou cal, e aqueles
que são conservados em vasilhas e fechados com pez.” (REGIMEN
SANITATIS, 2011: 54).

Embora o vinho não fosse restrito somente à nobreza, ele recebia uma série de
critérios antes de ser consumido, iniciando com a escolha das uvas, as técnicas de retirar

1 Vinho suavizado com mel, pimenta e canela.

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371
seu suco, passando pela fermentação, armazenagem e as adegas onde seriam guardadas.
Na Itália, as regiões da Borgonha e Gênova destacavam-se pela alta qualidade da
produção vinícola, e na França, a região de Champagne e Bordeaux. Por mais distante
que possa parecer a Idade Média, estes mesmos critérios da escolha de um bom vinho –
incluindo a região de sua produção - são seguidos até hoje para os paladares mais
apurados e conhecedores desta bebida tão antiga.
Este consumo excessivo de vinho pode ser explicado sob uma segunda ótica,a
insalubridade das águas, lodosas, provenientes de rios e córregos da região,sendo
necessária a mistura constante do vinho, ou vinagre, para tratá-la e torná-la consumível.
Havia várias técnicas, das mais simples às mais complexas e elaboradas para se
identificar a potabilidade da água ou sua viscosidade.
Em um segundo Regimento de Saúde, o Regimen Castra Sequentium (1310),
Arnau destaca a importância de identificar a água potável sugerindo técnicas durante o
colhimento de cisternas e de poços artesianos:

Se for numa cisterna, não utilize a água, mas, se for num poço, você deve
esvaziá-lo e drená-lo primeiro. Se você não pode fazer tal exame, então
umedeça completamente um pano fino e de linho branco na água e dobre-o
livremente sem apertar; após dobrá-lo, deve amarrá-lo com uma corda,
suspendê-lo ao sol ou no ar, e , quando secar, desdobrá-lo. Se aparecer
manchas nele, independentemente da cor, com certeza a água deve estar
contaminada, mas, se não tiver manchada, a água é saudável (VILANOVA,
1992: 132-133).

Além do equilíbrio de humores e a saúde do rei, quais os motivos de tanta


preocupação com a alimentação e aquilo que se bebe? Ao contrário do que é apregoado,
o homem medieval via com maus olhos a figura do glutão. O homem extremamente
gordo rompia com os padrões da estética medieval, ingressava num universo moral de
culpa, era inapto para guerra e a batalha, tinha pouca mobilidade, era grotesco (gros).
Ao longo do regimento percebe-se também a preocupação constante do médico
com a obesidade, contrariando um pensamento moderno de que o homem medieval
valorizava os glutões e as formas desproporcionais como símbolo de poder e riqueza:

“a comida que é recebida sem o desejo da natureza é conduzida pelo ventre e


pelos outros membros como um fardo e se corrompe mais que se transforma,
já que, quando é recebida, não há esforço do corpo em alterar sua substância
em caso haja, o faz muito tibiamente.” (REGIMEN SANITATIS, 2011:117).

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372
Mais adiante, Vilanova alerta sobre os perigos do excesso de refeições diárias,
com consequências tanto biológicas quanto religiosas, pois a gula é um dos pecados
capitais e a Igreja Católica estimulava o jejum constantemente conforme o calendário
litúrgico, além do mais, comer em excesso era um “comportamento tipicamente pagão”
o que preocupava a instituição católica (FREEDMAN, 2011:164-165):
Novamente o autor volta a reforçar sobre a obesidade, tratada como “excesso de
superfluidades e inflamação entre a carne e a pele” (idem: 115) e com um tom de
alerta em relação ao excesso de peso, “Por isso, os glutões frequentemente ficam
doentes e não chegam a uma velhice natural” (REGIMEN SANITATIS, 2011:118-
119). E mais:

“Por isso, os que se alimentam de poucas refeições chegam a uma velhice


avançada e saudável, enquanto que os que se afanam a engolir uma miríade
de refeições, ou bem morrerão antes da velhice, ou bem sua velhice será
prematura e imundíssima, como acontece, muito frequentemente, com os
habitantes do norte.” (idem: 120).

Neste período, circulavam nas cidades as Ordens Mendicantes, sobretudo a


franciscana, que defendia um estilo de vida frugal, ascético e moderado, difundido
através das regras que atacavam a secularização que o Clero passou com o
enriquecimento das abadias e monastérios. Esta brandura das regras ocorreu também na
alimentação, que deixou de ser moderada e passou a ser excessiva (VIGARELLO,
2012:41). Desta forma, no século XIII, as pressões sobre o corpo obeso provêm de
diferentes campos: o moral religioso, da cavalaria e da saúde preventiva, como pode ser
visto acima nas citações de Arnau de Vilanova.
Os capítulos VIII ao XVII dedicam-se especialmente à alimentação, porém, não
somente ao simples ato de comer, mas também às técnicas, condimentos, modos de
preparo, temperos, armazenamento e mesclas de carnes, massas, frutas, legumes e
bebidas. Encontramos então, a seguinte divisão nos capítulos: VIII – Grãos; IX –
Legumes; X – Frutas; XI – Hortaliças; XII – Raízes; XIII – Carnes; XIV – Derivados de
animais; XV – Peixes; XVI – Condimentos e por último o capítulo XVII – Do ato de
beber.
Dentro de cada capítulo há uma série de subdivisões, detalhando todos os tipos e
espécies frutíferas, tipos de carnes, legumes etc., proporcionando uma visão mais ampla

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


373
sobre a riqueza e variedade alimentar, além das sofisticadas técnicas de preparo e
combinações da Idade Média.
Partindo do pressuposto que as indicações alimentares feitas por Arnau eram
feitas com base na disponibilidade alimentícia do reino de Aragão e da Catalunha, as
subdivisões capitulares de “As Regras de Saúde a Jaime II” ofertam ao historiador um
panorama detalhado da cultura alimentar e da arte culinária medieval, pois o ato de
comer vem acompanhado de uma série de rituais, normas, hierarquias e aparatos
técnicos que tornaram a mesa uma eficaz forma de analisar o comportamento do homem
de outrora (MONTANARI, 2008:386).
A cultura alimentar medieval, assim como em todos os períodos históricos,
possui o alimento como um objeto de distinção social. Na Idade Média, com o
surgimento de uma burguesia citadina enriquecida, cresceu no interior das cidades a
necessidade urgente de se diferenciar das origens campesinas; uma destas maneiras foi
através da culinária (CORTONESI, 1998:410).
O primeiro alimento que determina a dieta dos nobres, ricos e reis é a carne, mas
não qualquer carne, e sim a carne vermelha, de carneiro, cordeiro, cervo e corça,
seguido das carnes brancas de faisão, ganso, capão e alguns peixes, sendo estes
limitados às datas religiosas. No capítulo XIII, Arnau subdivide o mesmo em 19
tópicos: 1- das carnes que podem ser utilizadas em todas as épocas do ano; 2- das carnes
mais convenientes no verão; 3- das carnes mais convenientes no inverno; 4- do cervo e
da corça; 5- do galeirão-comum e dos patos; 6- das aves domésticas; 7- das aves
domésticas, de como se devem preparar as outras carnes, quando devem estar mortas
antes que sejam comidas, e como devem ser comidas; 8- do leitão; 9- do assado com
fígado de porco e especiarias; 10- das carnes brancas; 11- do coração e de outros
membros. 12- do fígado; 13- do fígado de cabrito; 14- do cérebro do cabrito; 15- do
coração do cervo; 16- do ventre da galinha e do ganso; 17- das orelhas, da cabeça e dos
pés; 18- dos pulmões e 19- dos peitos.
Da Idade Média até a modernidade, havia leis que limitavam a caça somente aos
membros da nobreza, permitindo que determinados tipos de animais fossem consumidos
por um grupo seleto da população. Além do mais, a caça era um dos esportes e
atividades de lazer mais famoso e praticado entre os nobres.

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374
Este grande destaque à carne, deve-se à mítica atribuída à mesma pois, assada,
temperada, sangrenta, suculenta e farta é um símbolo de poder, força, riqueza, potência
sexual, energia vital e uma das principais manifestações de alegria, a de comê-la
fartamente ao redor da mesa. Por ser uma sociedade dirigida por guerreiros e
cavalheiros, homens de guerra e de honra aos superiores e a Deus, a carne ajuda a
reforçar a lenda que relaciona sua ingestão à força física e aos poderes duradouros
(RIERA-MELIS, 1998:407).
Ao longo do regimento de saúde, Arnau fala sobre os grãos – capítulo VIII – que
se relaciona com o modo de preparar os pães – capítulo XVI, subitem V. Os grãos
devem ser todos colhidos frescos da terra e são de grande proveito a cevada, centeio,
milho, aveia, joio, sêmola, amido e aletria (REGIMEN SANITATIS, 2011:134-139).
Neste caso, o pão também é um símbolo de distinção social e consumido pela nobreza
um tipo específico: o pão branco, com sal, misturado em sua massa legumes, milhete,
cevada, ervilhas e pedaços de carne para deixá-lo mais saboroso e nutritivo.
A prescrição para o consumo do pão é que o mesmo seja fabricado com pouca
levedura, pouco sal e sem muita farinha, não devendo ser consumido quente ou duro
(idem:138-139). Estas indicações, provavelmente foram dadas ao rei para evitar a prisão
de ventre e o ressecamento do bolo fecal,o que tornaria o processo de evacuação
doloroso e difícil e agravaria o estado de suas hemorroidas.
Para isso, Arnau faz outra indicação, a substituição da levedura – mais pesada e
fermentada – pela cevada (Capítulo VIII, subitem VI):

Mais proveitosa ainda é a comida feita de cevada, cozida até que se quebre, e
que depois seja lavada com muita água fria e cozida e amassada com muito
leite de amêndoas até que seja indistintamente encorpada. Tal comida é muito
conveniente àqueles que têm hemorroidas pulsantes. (idem: 136).

Neste momento, percebe-se o quão importante é o papel do cozinheiro, pois


ambos possuem a mesma sistemática, o domínio da técnica, da experiência do preparo e
visão referencial de mundo, marcados pela ideia que prazer e saúde seguem juntos
(MONTANARI, 2008:13-14).
No capítulo IXos legumes que mereceram destaque para o físico catalão são o
feijão e o grão-de-bico, descrevendo longamente sobre suas técnicas de preparo e

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temperos; logo no primeiro sub-item do capítulo há uma receita de preparo destes grãos,
para serem melhores aproveitados e ficarem mais saborosos.

IX.I – Dos feijões e dos grãos-de-bico: Dentre os legumes menos danosos aos
corpos, estão os feijões redondos, os grãos-de-bico e as favas, e dentre esses
três, os feijões redondos e brancos, são os menos danosos. Esta deve ser a
regra geral: quando forem preparados os legumes, isto é, sem carne, deve-se
fritar uma cebola redonda e branca, cortada bem picadinha e frita com muito
azeite doce, e só depois acrescentar o legume. No fim, deve-se colocar leite
de amêndoas. Isso é especialmente necessário caso se comam favas,
sobretudo favas frescas. (REGIMEN SANITATIS, 2011:101).

Há também a recomendação de ingerir o caldo do feijão e grão-de-bico


todas as noites, pois “limpa as veias chamadas capilares (as quais estão no fígado e
nas vias urinárias).” (idem:104). A ingestão deste caldo aquece o corpo por dentro, os
órgãos vitais e o prepara para dormir, além de ser “a água louvada pelos sábios”.
Adiante, Arnau passa a discorrer sobre as frutas, o capítulo mais longo de seu
Regime, com 37 subitens, que citam uma ampla variedade frutífera, assim como suas
combinações, limpeza, escolhas, mesclas com outros alimentos e, principalmente, os
cuidados da ingestão, pois como adverte, “não é proveitoso ao corpo temperado
substituir a comida pela fruta, a não ser medicinalmente” (idem:106).
Antes de ingerir frutas, o Regimento estabelece algumas regras ao longo do
capítulo X, por exemplo, as frutas devem ser consumidas moderada e ordenadamente,
com o conhecimento devido sobre elas, maduras, sem vermes, nunca comer diversos
tipos de fruta ao mesmo tempo e observar sempre o seu aspecto. Caso não respeite estas
regras e as consumam em excesso elas causarão sérios danos ao corpo, como é
exemplificado abaixo no caso das amoras:

X.IV- Das amoras: Exceptuando as amoras, as quais não devem ser


consumidas até que sejam bem maduras a ponta de estarem negras, porque
são alimentos de aranhas, sujam a apodrecem o sangue, engendram e
multiplicam bubos, carbúnculos e também bubos negros. Por isso, nas
regiões quentes e úmidas, no ano de época de amoras reinas a epidemia, isto
é, a pestilência, caso o fluxo do ventre não seja embargado (idem:107).

Nos próximos sub-itens do capítulo X, Arnau mostra as combinações que são


danosas, por exemplo, ameixas e cerejas, figos e uvas, pêssegos e damascos, pepinos,
melões e melancias, pêssegos e romãs doces e os frutos das sorvas com nêsperas não

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podem ser comidos juntos, pois causam prisão de ventre, flatulência, febres, sudorese e
aumenta a cólera.
Algumas frutas eram indicadas como refrescantes; vale ressaltar que a região da
Catalunha é banhada pelo Mar Mediterrâneo, o verão é quente e seco, com altas
temperaturas, por isso o Regimento indica várias frutas capazes de amenizar as
temperaturas, por exemplo, os pêssegos, cerejas, peras, laranjas, nêsperas.
A boa alimentação na Idade Média estava relacionada à quantidade ingerida de
carne, ou seja, era uma dieta mais voltada ao consumo de proteínas em detrimento das
frutas, legumes, hortaliças e verduras. Devido ao desconhecimento das vitaminas,
nutrientes e benefícios fisiológicos – uma descoberta muito recente – para o corpo, não
havia como estabelecer estes paralelos, portanto, as frutas eram indicadas, ou
advertidas, somente em casos de prisão de ventre, quer seja para soltá-lo ou evitar
constipações.
Todo o ato de comer e beber, para Arnau, exige da pessoa um conjunto de regras
básicas a serem memorizadas e seguidas, para que o corpo aproveite o que há de melhor
do alimento, estabilize os humores e previna o corpo das pestilências. Por primeiro,
iniciam as advertências sobre se alimentar além daquilo que o corpo consegue suportar:

Capítulo IV. I: Qual hora é conveniente para comer: Uma coisa é o corpo que
sente a necessidade de comer, pois manifestadamente tem fome. Por isso, é
mais necessário àqueles que têm o corpo temperado e abundante de sangue
que somente comam quando tem fome, já que a natureza do corpo não recebe
o que não deseja, pelo contrário, a recusa e, por isso, a comida que é recebida
sem o desejo da natureza é conduzida pelo ventre e pelos outros membros
como um fardo e se corrompe mais do que se transforma (...)”.(idem: 67).

Arnau também adverte sobre o ato de se alimentar apressadamente por dois


motivos: ao mastigar vagarosamente, o alimento será triturado corretamente para evitar
injurias à natureza e que o ato de comer apressadamente, sem degustar, apreciar e
mastigar calmamente assemelha-se à imagem de “loucos”e de pessoas que se
comportam “de modo indiscreto”. (idem: 67).
Pêssegos, melancias, melões, nozes, avelãs, figos secos, uvas de videiras,
amoras, ameixas, cerejas, sêmola, pães brancos com grãos, legumes, hortaliças, vinhos
brancos, tintos e rosados, cebolas, cenouras, carnes de leitão, cabrito, cervo, corça,
galeirão, ganso, peixes, enfim, uma infinidade de alimentos das mais diversas categorias
compõe uma mesa com múltiplas possibilidades de cardápios, combinações e técnicas

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377
de armazenamento, mostrando ao leitor a riqueza alimentar da Idade Média central, que
se afastava dos longos tempos de penúria dos séculos X e XI e presenciava um período
de estabilidade e consolidação das instituições.
Este regimento nada mais é do que uma das formas de cuidar da saúde para uma
velhice saudável, a esperança no amanhã. As regras indicam ao rei Jaime II uma
refeição rica, variada e saudável, que previne doenças, equilibra os humores, aquece os
órgãos e dão longa vida àquele que rege e governa o seu povo, pois, a saúde do rei é a
saúde do povo.

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RIERA-MELIS, Antoni. Sociedade Feudal e alimentação (séculos XII-XIII). In:
FLANDRIN, Jean-Louis e MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São
Paulo: Estação Liberdade, 1998, p. 387-408.
VIGARELLO, Georges. As metamorfoses do gordo: História da Obesidade.
Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2012.

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OS INSTRUMENTOS SIMBÓLICOS DE CASTIGOS E TORTURAS
NO IMAGINÁRIO DO INFERNO MEDIEVAL

Solange Pereira Oliveira


Doutoranda PPGH/ UFF- CAPES

RESUMO: Esta comunicação propõe-se a abordar o imaginário sobre os instrumentos


simbólicos e suas respectivas aplicabilidades nos castigos das almas pecadoras no
espaço do Inferno do Além medieval na versão portuguesa do manuscrito (cód. 244)
Visão de Túndalo. Nessa obra, o cavaleiro Túndalo tem sua alma elevada,
temporariamente, ao Além para vivenciar e experimentar os tormentos espirituais no
Inferno destinadas às almas que não seguiram os ensinamentos dos clérigos recebendo,
portanto, no mundo dos mortos, várias punições. Desse modo, são apresentados nessa
narrativa os objetos de penalidades utilizados pelos diabos nos castigos espirituais
desferidos sobre as almas que morreram em pecado, de fundamental importância para a
realidade das penas infernais, bem como para o processo de salvação intermediada pela
Igreja medieval.

Palavras-chave: Penas infernais, Instrumentos de tortura, Visão de Túndalo

ABSTRACT: This communication sets out to address the imagery of the symbolic
instruments and their applicability in the punishment of sin souls in the medieval Hell
space in the Portuguese version of the manuscript Tnugdal Vision (code 244). In this
work, Túndalo has its soul elevated, temporarily, to the beyond to live and experience
the spiritual torments destined to the souls who did not follow the teachings of clerics
getting thus in death several punishments. Thus, we present in this narrative the
penalties objects used by the devils in the spiritual punishments upon the souls who
died. This is of fundamental importance to the reality of infernal punishments and for
the salvation process mediated by the medieval Church.

Keywords: Hell punishments, Instruments of torture, Tnugdal Vision

A descrição do mundo dos mortos é essencial para o processo de salvação


intermediada pelos eclesiásticos que se “esforçavam” no sentido de mostrar a
importância das ações realizadas pelos indivíduos aqui embaixo para a determinação da
alocação de suas almas no pós-morte. Dessa maneira, os pregadores enfatizavam em
seus discursos os cuidados que os medievos deveriam ter para com as suas almas, pois
quando chegasse o momento do trespasse as atitudes comportamentais no plano terreno
implicavam as alocações de suas almas nos três lugares do Além: Inferno, Purgatório e
Paraíso.
As narrativas de relatos de visões se constituem em um bom exemplo das
revelações feitas pelos clérigos sobre as características dessa tripartição do mundo do

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Além apresentando uma estruturação desses ambientes onde se realizam as distribuições
de alocações dos mortos de acordo com as condutas enquanto viviam em seus corpos.
Essas visões do Além se davam através de um personagem que fazia essa
viagem e, portanto, tinha momentaneamente a separação do espírito de seu corpo. De
forma geral, a sua alma é elevada ao plano superior dando início a uma viagem pelos
espaços do Inferno, Purgatório e Paraíso sendo submetida a várias experiências no
mundo dos mortos; retornando ao corpo, dava o seu testemunho do que viu e ouviu
transmitindo suas visões aos vivos.
Já explicava Jérôme Baschet que as visões do Além contam como “as almas,
provisoriamente separadas do corpo no decorrer de uma doença ou durante um
momento de morte aparente, atravessam o mundo dos defuntos, terminando por trazer
um testemunho para os vivos.” (BASCHET, 2006: 391).
A Visão de Túndalo, exemplo de narrativa de visão, mostra o imaginário da
sociedade medieval sobre os espaços do Além. O texto dessa narrativa é de autoria
anônima, produzido no ano de 1149 por um monge de origem irlandesa. São poucas as
informações de quem é realmente o autor dessa obra, o que sabemos é que certo monge
irlandês denominado Marcos, do qual também não se tem muitas informações, traduziu
para o latim esse manuscrito. Então, se credita a ele apenas a tradução já que a Visão de
Túndalo é de autoria anônima.
Utilizamos aqui a versão desse manuscrito de tradução portuguesa do século XV
(códice 244) que foi traduzida por Frei Zacarias de Payopelle, depositada na Biblioteca
Nacional de Lisboa. Informamos que além dessa, existe mais uma versão portuguesa
(cód. 266), traduzida por Frei Hilário de Lourinha localizada no Arquivo Nacional da
Torre do Tombo. Ambos os tradutores são monges do Real Mosteiro de Alcobaça.
Nesse relato, o cavaleiro Túndalo é o personagem principal, um nobre de boa
linhagem que vivia nas vaidades do mundo e não cuidava da sua alma. Fica como se
estivesse morto por um espaço de três dias, enquanto seu espírito é conduzido por um
ente celestial para conhecer e vivenciar os tormentos do Inferno, Purgatório e as alegrias
do Paraíso. Ao passar por essas experiências no Além o cavaleiro volta ao seu corpo
regenerado e torna-se um modelo de bom cristão, de acordo com os preceitos da Igreja.
O objetivo ao contar a experiência de Túndalo, experiência esta tida como verídica por

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quem escutava ou lia o relato servia de exemplo para que outras pessoas seguissem os
passos do cavaleiro regenerado.
Desse modo, a apropriação dessa narrativa, contada pelos clérigos, serviam aos
interesses dos eclesiásticos, texto que divulgava os seus ensinamentos, como um manual
pedagógico de comportamento para os medievos alcançarem a sua salvação evitando os
caminhos do pecado.
Através dessa narrativa que os mistérios infernais são revelados em seus
mínimos detalhes pelo fato de conter nesse relato toda a trajetória feita pelas almas
pecadores em uma paisagem repleta de elementos que suscitam o mal e as tribulações
dos condenados aos sofrimentos eternos. Abordaremos neste trabalho os elementos que
constituem o Inferno na Visão de Túndalo, como parte da pesquisa que está sendo
desenvolvida no doutorado cujo objetivo é discutir a funcionalidade simbólica dos
objetos do cotidiano medieval no Além cristão.
Propomos, então, para essa comunicação a análise dos instrumentos simbólicos
de castigos e torturas utilizados pelos Diabos para aplicar as penalidades nas almas
pecadoras, tal enfoque se deve às várias passagens desses elementos nessa narrativa de
importância fundamental para o processo de salvação intermediada pela Igreja
medieval.
Como um local destinado às almas que morreram em pecado, o Inferno nos
discursos da Igreja funciona como um importante instrumento pedagógico dirigido
principalmente para aqueles que não cumpriam com as obrigações cristãs instituídas
pelos oratores.Segundo Jacques Le Goff “a peça essencial do sistema não foi o Paraíso,
mas o Inferno. A Igreja Católica para incitar os fiéis a trabalhar por sua salvação,
apresenta-lhes mais o medo do inferno do que o desejo do Paraíso.” (LE GOFF, 2002:
30).
A Visão de Túndalo é um exemplo dessa tentativa de os clérigos chamar a
atenção dos medievos, pois oferece uma descrição minuciosa desse mundo do Além
com detalhes geográficos que suscitam impactos aos ouvintes e leitores desse
manuscrito. Assim, essa obra permite observar todas as características simbólicas desse
lugar, tão divulgado pelas palavras cristãs, que lembrava o destino dos pecadores no
pós- morte.

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O cavaleiro Túndalo é apresentado nesse manuscrito como exemplo de
indivíduo que tinha maus comportamentos, de acordo com os preceitos cristãos, isto é,
“era pecador e não cuidava da sua alma e vivia nas vaidades do mundo, não frequentava
a Igreja e nem fazia oração” (VT, 1895: 101. Tradução nossa) e, portanto, não tinha
uma boa conduta que permitisse a salvação de sua alma. Devido a essas qualidades, esse
personagem será conduzido ao espaço do Inferno onde terá a oportunidade de redimir-se
de seus pecados observando e sofrendo os diversos castigos destinados as almas
pecadoras.
A propagação dos discursos cristãos sobre a crença que as almas experimentam
e sofrem tormentos físicos no Além em consequência dos pecados cometidos enquanto
a alma vivia no corpo foi de grande importância para a instituição eclesial elaborar
modelos de condutas que justificam as penas no pós-morte. Na Visão de Túndalo são
apresentados os castigos espirituais destinados às almas das pessoas que escolheram
viver os prazeres mundanos em detrimento dos cuidados espirituais que permitem
livrar-se dos sofrimentos eternos.
À medida que o cavaleiro vai percorrendo o Inferno, ele vai se deparando com
um cenário horrível e angustiante de almas sendo torturadas pelos seres responsáveis
pela aplicação dos castigos no Além, os Diabos, que desferem toda a sua maldade sobre
os danados que são atormentados pelas ações de terrores praticados por eles. Tais seres
cumprem um papel de grande importância para a realidade dos castigos no Além, pois
como agente punidores das almas que se desviaram dos caminhos de Deus cumprem sua
função de castigar os maus cristãos no Além.
Além do mais, “o Diabo sempre foi tido como inspirador dos inimigos da Igreja
e da Cristandade”. (BASCHET, 2002: 328). Sendo, portanto, uma das maiores
preocupações dos eclesiásticos em revelar aos medievos as maldades feitas por ele (e
seus auxiliares) tanto no plano terreno como no plano espiritual. E assim apresentava o
Diabo como o maior inimigo das virtudes e do Bem e contra os princípios de Deus,
sendo os responsáveis pelas torturas e sofrimentos eternos das almas no Inferno.
O manuscrito nos permite visualizar minuciosamente a sistematização religiosa
cristã através desse agente punidor dotado de acessórios que auxiliam na construção da
realidade do lugar infernal destinado aos pecadores que transgrediram a lei divina,

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crença difundida pelos clérigos visando causar na consciência dos fiéis um efeito
amedrontador para incitá-los à busca pela sua salvação.
Desse modo, é mencionada a existência de seres malignos que possuem vários
instrumentos de tortura que castigam as almas dos pecadores, conforme o relato:

[...] staua todo cheo de muitos demoes que stauan prestes e aparelhados
pera atormentar almas. E estes diaboos tynham en suas mâaos gadanhos de
ferro muyto agudos e outros aparelhamentos con que enpesauan as almas.
E dauan com ellas dentro no fogo. E desiertirauannas do fogo. (VT, 1895:
103). (grifo nosso).

Como observamos nessa citação do manuscrito, os Diabos possuem objetos


como gadanho de ferro, como exemplificado acima, com o qual atormenta as almas.
Ainda, nessa passagem é possível percebermos que aquele instrumento trata-se de um
elemento utilizado no plano terreno e que faz parte do cotidiano dos medievos.
Pensar na lógica desse material presente no Além é essencial para
compreendermos os discursos dos clérigos sobre a realidade dos castigos destinados às
almas pecadoras no pós-morte, pois acreditamos que havia a necessidade de revelar um
quadro de crueldade dos Diabos auxiliados por instrumentos reconhecíveis. Tais
acessórios com os quais esses seres são munidos não são apenas um detalhe nas
descrições da narrativa e sim operam como mais um elemento, que se faz importante
mostrar, para reforçar o quanto é real o sofrimento espiritual.
Tanto que evidenciamos nas descrições dos castigos dos pecadores na Visão de
Túndalo a recorrência em várias passagens desse manuscrito de demônios munidos de
acessórios punitivos descritos como objetos da realidade do plano terreno, o que nos faz
pensar como elementos cruciais para compreendermos a visão amedrontadora da
punição dos pecadores. E mais do que isso, a lógica do uso desses objetos são essenciais
para o processo de salvação intermediada pela Igreja Católica que veementemente
reforçava em seus discursos para com a comunidade de fiéis os castigos que as almas
pecadoras são submetidas no além-túmulo.
É importante ressaltarmos que mesmo os indivíduos não possuindo mais a
materialidade do corpo no Além, as suas almas continuavam tendo a sensibilidade de
sentir todas as dores do Inferno, tanto que não foi por acaso que os pregadores
enfatizavam os sofrimentos espirituais com as chamas do calor do fogo que queima os

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danados como as sensações de dores dos instrumentos torturantes utilizados pelos seres
malignos.
“Mesmo as “almas separadas” passavam por ser dotadas, no Além, de uma
forma de passividade quase corporal [...]. Mesmo quando se reconhecia a imaterialidade
da alma, se obstinava-se em querer localizar sua sede no corpo [...].” (SCHMITT, 2002:
258). E as descrições das almas na narrativa evidenciam essa questão pelo fato de o
visionário sentir e ouvir todos os gemidos, quentura, frio, choros e gritos dos pecadores
sendo castigados pelos demônios com seus instrumentos de tortura no mundo do
Inferno, conforme em algumas passagens do manuscrito:

 “[...] e a alma ouuia grandes braados. E graudes gimidos das almas


que iaziam em aquel ryo [...].” (VT, 1895: 103);
 “E sayam per aquela boca muy grandes braados de chantos. E de
choros muy dooridos de muytas almas que dentro jaziam. Que padeciam
muytos tormentos sem piedade nenhuma.” (VT, 1895: 104);
 “[...] muytos demoes em semelhança de carniceyros que tynham
segures e cuytelos nas mãos pera esfolar e desfazer [...] e padeciam aly muy
grandes penas e tormentos.” (VT, 1895: 106);
 “[...]. Ca elle padeceo aly muyto fumo muyto frio muyta caentura. e
muitos açoutes e muito fedor. E outros muitos tormentos [...].”(VT, 1895:
107).

Como podemos constatar, temos claros indícios da preocupação dos pregadores


em mostrar através dessa narrativa como os pecadores, mesmo após a morte, podem
experimentar tormentos físicos pelas suas faltas para com os deveres cristãos,tanto que
as ameaças dos castigos eternos são bem enfatizadas com efeitos convincentes que
suscitam a realidade do sofrimento espiritual, como estão presentes nessa obra.
No quadro, abaixo, estão relacionados os instrumentos de tortura e suas
respectivas aplicabilidades nas penas das almas pecadoras no Inferno conforme a Visão
de Túndalo.

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Quadro 1. Instrumentos simbólicos de Castigo e Tortura e Aplicabilidade
no Inferno segundo a Visão de Túndalo.1

Instrumentos de Castigo e Tortura Aplicabilidade no Inferno


Ganchos de ferro Espetar queimar as almas.

Gadanhos Empurrar as almas no fogo.

Cutelos Cortar e espedaçar as almas.

Foles Manter o fogo aceso para queimar os


danados.
Martelo Prender as almas num leito de ferro.
Grelha de ferro Prender Lúcifer.
Ponte com pregos Castigar os pés das almas que
furtaram.
Forjas de ferro Prender as almas

Através dessa relação de instrumentos utilizados pelos Diabos para castigar os


pecadores, constatamos pelo quadro acima que são objetos que estão presentes no
cotidiano do medievo; ao serem transportado para o Além ganham um sentido
simbólico que diferem de sua utilidade no plano terreno. Se aqui embaixo são
inofensivos e ajudam nas tarefas diárias dos medievos, no mundo dos mortos, pelo
contrário, auxiliam nos suplícios dos danados que são atacados pelos seres diabólicos
que executam as sentenças penais sobre aqueles que não obedeceram às normas
comportamentais de um bom cristão.
Esses objetos no Além são “revestidos de função simbólica e por isso mesmo
evocam, representam ou significam outra coisa além do que pretendem se mostrar.”
(PASTOREAU, 2002: 497). Como observamos na descrição da narrativa, a Igreja
utilizaa representação de instrumentos do plano terreno e a transfere para o mundo
transcendental com outras inversões de funções no lugar infernal do Além.

1 O quadro 1 possui semelhança com a dissertação de mestrado defendida em 2014 pela autora, p. 90:
Imaginário e ideologia cristã uma versão portuguesa do Além medieval na Visão de Túndalo.

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Eis aqui, então, a finalidade essencial dessa evocação de objetos do cotidiano
revestido de um sentido negativo nas mãos dos demônios que desferem toda a sua fúria
sobre as almas que consentiram com os seus vícios, crença propagada pelos religiosos
para a comunidade de fiéis. Nesse sentido os pregadores mostravam a realidade desses
castigos através dessa lógica da materialidade dos instrumentos de punição aos
pecadores no Além, revestido de um sentido simbólico de claras intenções moralizantes,
ou seja, se as ações comportamentais não seguem os ensinamentos cristãos no mundo
do Além a sentença é feita através de punições com aqueles instrumentos nas mãos dos
agentes punidores, os demônios.
Aliás, os símbolos tinham uma importância fundamental para a sociedade cristã,
pois estavam presentes no cotidiano da população, principalmente nas questões
sobrenaturais que faziam parte da cultura dos medievos. Então, pelo uso simbólico, a
Igreja mostra a realidade das punições apropriando-se de signos do contexto dos
medievos “para estabelecer um vínculo entre alguma coisa aparente e alguma coisa
oculta; e mais particularmente ainda, entre o que está presente no mundo terreno e o que
tem seu lugar entre as verdades eternas.” (PASTOUREAU, 2002: 497).
E como já informamos aqui, nada mais convincente para incitar os medievos a
buscarem a sua salvação do que mostrar a realidade dessas penas através de
instrumentos conhecidos que enfatizam a lógica das sensações espirituais dolorosas que
são submetidas às almas no pós-morte.
“As representações cristãs devem, ao contrário, assegurar, para além da morte,
uma forte continuidade da pessoa, a fim de que a retribuição no Além seja aplicada
exatamente ao ser, que aqui embaixo mereceu seus rigores ou alegrias.” (BASCHET,
2006: 413). No manuscrito, a eficácia desses acessórios nas mãos dos demônios sem
dúvida mostra os rigores das penas das almas pecadoras que são constantemente, ou
melhor, eternamente atormentadas pelas desobediências de seus corpos para com as
tarefas cristãs, enquanto viviam aqui embaixo.
Assim, no espaço do Inferno na Visão de Túndalo, esses elementos são
apresentados como objetos que desferem várias ações sobre os pecadores,
exemplificados no quadro 1, como esfolar, cortar, empurrar e prender, evidenciando a
sua importância para os propósitos doutrinais dos clérigos em revelar todas as

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tribulações para os indivíduos que não seguem os seus ensinamentos, e portanto não
alcançam a salvação eterna.
Essa questão vem enfatizar o quanto esses instrumentos deixam mais
insuportáveis as penas executadas pelo Inimigo do Bem, pois é através deles que as
ações sobre as almas se tornam mais intensas e exageradamente cruéis denotando um
repertório de instrumentos do plano terreno presentes no lugar infernal.
É importante ressaltarmos que cada instrumento de penalidades apresentado na
Visão de Túndalo parece ter uma importante relação com as categorias de pecados
cometidos pelas almas nesse mundo, pois é possível identificarmos nesse manuscrito
mesmo não sendo tão claros nas descrições apresentadas em sua escrita, essa associação
de adaptação das torturas ao tipo de infração cometido pelos danados.
Essa nossa inferência se deve ao fato de alguns dos instrumentos, já citados,
servirem de punição específica para algumas categorias de pecadores, pois Túndalo, ao
observar as almas serem punidas, indaga ao ente celestial quem sofre esse tormento, ou
seja, que tipos de pecados praticaram os danados para merecerem tais castigos. Abaixo
indicaremos os instrumentos relacionados com essas categorias de pecadores no quadro
2, como pudemos constatar nos exemplosapresentados no manuscrito:
Quadro 2. Categorias de pecadores e identificação dos instrumentos penais
utilizados.2

Categorias de pecadores Instrumentos Penais


Gargantões e fornicadores Cutelos

Ladrões Ponte com pregos


Assassinos Grelha de ferro

Identificamos apenas essas três categorias de pecadores associados aos


instrumentos penais no manuscrito, pois para os outros objetos que já foram citados no
quadro 1, não são nomeados as categorias das infrações cometidas pelas almas para
serem punidas com tais instrumentos. Por sua vez, apenas aparecem as descrições dos
Diabos munidos de acessórios torturando os danados sem mencionar explicitamente o
que aqueles fizeram .

2 As aplicabilidades desses instrumentos sobre os pecadores já foram citadas no quadro 1.

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É importante destacar que Túndalo ao mesmo tempo observava as punições com
esses instrumentos de torturas citadas no quadro acima, como também padecia de
algumas penas para se redimir de seus pecados. Como exemplo, temos a punição desse
cavaleiro que teve de passar por uma ponte clavada de pregos com o objeto de furto –
uma vaca – que havia roubado do seu compadre, como exemplificado no relato:

[...] E a alma quando uiu que auia de passar pola ponte disse ao angeo. Esta
ponte e estas penas son daqueles que furtaron [...] e tu merecias de entrar en
elas [...] Mais conuen que ora passes per Ella sem my e passaras contego
huma ua cabra ua que tu furtaste a huun teu conpadre. (VT, 1895: 105).

Enfim, como podemos observar o Inferno estava cheio de instrumentos de


tortura que constituíam um arsenal de crueldade nas mãos dos seres malignos que
tinham a função de torturar as almas condenadas ao sofrimento eterno no pós-morte.
Pensamos, neste caso, que a eficácia simbólica desses objetos na fala dos eclesiásticos é
chocar os ouvintes e consequentemente fazer sentir medo ao enfatizar as aplicabilidades
desses instrumentos. E através disso, induzir os medievos a reflexão sobre as suas ações
na terra, para evitar após o trespasse os castigos e dores infernais.
Essa é a ideia que nos permite compreender a relevância dessa nova significação
dos instrumentos de castigos e tortura mostrada pelos eclesiásticos, na medida em que
confere sentido ao modo como os Diabos executam as sentenças com aqueles objetos
sobre as almas. Ora, essas questões têm de fato uma importância relevante para o
processo de conversão cristã intermediada pela representante de Deus na terra, a Igreja
Católica, pois é altamente significativo exprimir as sensações das dores causadas pelos
instrumentos de tortura, lógica eficaz para um exame de consciência para quem ignora
os mandamentos cristãos e repudiam os valores espirituais que elevam à salvação
eterna.

FONTES E REFERÊNCIAS
FONTES
Visão de Túndalo (VT). Ed. de F.H. Esteves Pereira, Revista Lusitana, 3, 1895, p. 97-
120.
ESTUDOS
BASCHET, Jérôme. Diabo In: Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São
Paulo: EDUSC/Imprensa Oficial do Estado, v. I, 2002, p.319-331.

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__________________. A civilização Feudal: do ano 1000 à colonização da América.
São Paulo: Globo, 2006.
LE GOFF. Além. In: Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo:
EDUSC/Imprensa Oficial do Estado, v. I, 2002, p.21-33.
PASTOREAU, Michel. Símbolo. In: Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São
Paulo: EDUSC/Imprensa Oficial do Estado, vol II, 2002, p.495- 510.
SCHMITT, Jean-Claude. Corpo e alma. In: Dicionário Temático do Ocidente
Medieval. São Paulo:E DUSC/Imprensa Oficial do Estado, v. I, 2002, p.253-266.

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AS COMPANHIAS DE SANTOS REIS E SUAS PEREGRINAÇÕES
PELO MUNICÍPIO DE PIRENÓPOLIS, GOIÁS1

Tereza Caroline Lôbo


Doutora em Geografia IESA/UFG – Fapeg/Seduce

Aline Santana Lôbo


Mestranda TECCER/UEG – Fapeg
Ciranda da Arte/Seduce

RESUMO: Com ramificações por toda Europa durante a Idade Média, a folia de Reis é
uma herança cultural que ao transformar e desdobrar se fez presente em várias regiões
do Brasil. Trata-se de uma prática do catolicismo popular que adquiriu especificidades e
singularidades em cada localidade. Em Pirenópolis, esta manifestação cultural é
representativa da vida social, não sendo possível precisar o início dos giros pelo
município surgido da mineração do ouro. Contudo, a persistência dessa tradição sobre o
tempo é resultante dos ensinamentos passados de geração para geração, da influência
das migrações e do entendimento daqueles que lideram a peregrinação. O presente
trabalho parte da fenomenologia percebendo as Folias como um fenômeno passível de
descrição, compreensão e interpretação, apesar de sua subjetividade e das dificuldades
da apreensão de uma manifestação que adquire sentidos e significados diversos para
quem o vivencia. Os apontamentos aqui apresentados foram colhidos por meio de
observações realizadas nas folias de Reis do município de Pirenópolis desde 2013.

Palavras-chave: Folia de Reis, Pirenópolis, Catolicismo Popular

ABSTRACT: With ramifications throughout Europe during the Middle Ages, the kings
revelry (Folia de Reis) is a cultural inheritance that, when transformed and unfolded was
present in several regions of Brazil. It is a practice of popular catolicism that acquired
its own specificities and singularities in each locality. In Pirenópolis, county emerged
from the gold mining, this cultural manifestation is representative of the social life, not
being possible to determine its beggining. However, the persistence of this tradition
over time is the result of past teachings from generation to generation, the influence of
migration and understanding of those who lead the pilgrimage. The present dissertation
starts from the phenomenology perceiving the revelries as a phenomenon subject to
description, comprehention and interpretation, despite its subjectivity and the dificulties
of seizure of a manifestation that acquires different senses and meanings to those who
live it. The notes presented here were collected by means of observations on the kings’
revelries in the city of Pirenópolis since 2013.

Keywords: Folia de Reis, Pirenópolis, Popular Catolicism

1 As percepções aqui apresentadas são resultantes das observações realizadas nas folias de Reis do
município de Pirenópolis para compor o projeto vinculado que conta com o apoio da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás — FAPEG, conforme Chamada Pública nº 005/2012.

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O Junta e a Saída
A folia de Reis é um grupo de andarilhos que perfaz um caminho circular por
espaços determinados e determinantes. Este “bando precatório” (CASCUDO,1972:402)
formado por foliões e suas bandeiras emoldura cenários previamente planejados e
esperados para efetivação de rituais tradicionais que integraram as mentalidades
medievais, influenciaram e foram influenciados pelo cristianismo. E desde então
compõem o modo de ser no mundo das pessoas que vivenciam uma manifestação que
há muito tempo existe na história da humanidade.
A coleção popular escrita no século XIII pelo arcebispo italiano Tiago de
Varazze intitulada Lenda Dourada e analisada por Jacques Le Goff (2014) parte da
concepção de tempo preconizada pelo cristianismo que buscou examinar o tempo
temporal, o santoral e o tempo escatológico, tempos estes pregados nos sermões da
Igreja Católica objetivando através da educação e da teologia desenvolver as faculdades
racionais do homem daquele período. Esta obra medieval foi definida como

a obra que melhor soube expressar, em toda a sua riqueza e sua


complexidade, a originalidade configurada pela ideologia dominante do
cristianismo e pela excepcional personalidade de um dos maiores espíritos
desse período essencial da história europeia que é a Idade Média, soube
expressar, dizíamos, o dado mais fundamental da vida na história de uma
sociedade humana, o tempo (LE GOFF, 2014:272).

Ao tratar da Natividade de Cristo, Tiago de Varazze, afirma a distinção entre o


maravilhoso, que foi o nascimento, e o milagroso que foi a pessoa do Cristo, pelo fato
de Deus ter reunido na mesma pessoa “o eterno, o antigo e o novo”, assim “o eterno é a
divindade. O antigo é a carne humana saída de Adão e continuando por gerações
sucessivas através dos séculos. O novo é que a alma de Jesus transfigura a alma
humana” (LE GOFF, 2014:96). Esse ritmo estabelecido pelos ensinamentos
institucionais, a Igreja Católica, vão demarcar as temporalidades presentes nos eventos
culturais e religiosos, assim os ritos presentes em manifestações como as folias são de
fato um ordenador que “numa sequência de experiências diversas unidas pelo fio
condutor da consciência sociocultural e religiosa que ordena, antecipa, projeta, recorda e
vive hic et nunc ligando o passado ao presente e o presente ao futuro” (TERRIN,
2004:226).

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Com ramificações por toda Europa durante a Idade Média, a folia de Reis é uma
herança cultural que, ao transformar e desdobrar, no tempo e no espaço, se fez presente
em várias regiões da Europa e do Brasil, trata-se de uma prática do catolicismo popular
que, partindo de princípios universais, como a busca por uma experiência religiosa,
adquiriu especificidades e singularidades em cada localidade.
Com forte influência portuguesa, no Brasil, este catolicismo vai se ambientar no
campo, desenvolvendo práticas e vivências ligadas ao cultivo da terra, produzindo
sentidos e significados expressivos, ou ainda, no dizer de Pessoa, quando trata do rural
não mais como especificidade, mas como “ruralidades” manifestas na intersecção do
mundo rural com o mundo urbano num emaranhado de formas.

O que marca as ruralidades é a relação com a terra, com o plantar. A terra


como cultivo e criatório ainda é muito a referência formadora das nossas
mentalidades. Isso faz parte, está presente em nossos processos de construção
de identidades, mesmo se moramos nas médias e grandes cidades. Ou seja,
mesmo no contexto urbano, há muitas pessoas que elaboram sua
compreensão de mundo, com referências do mundo rural (PESSOA,
2005:51).

A compreensão do mundo que nos circunda passa pelo entendimento de estamos


inseridos num contexto amplo o qual, por sua vez “encarna-se e toma forma de um
lugar, de um ambiente, de um modo de ‘habitar’ o mundo” (TERRIN, 2004:197), este
espaço sensível forma o cenário onde se desenrola as tramas e os dramas traçados pelas
folias, sendo possível perceber as experiências humanas e suas relações com o mundo
circundante.
Estes ensinamentos e compreensões de mundo advindos de manifestações
culturais como as folias são resultantes de desdobramentos complexos que dão
dinamismo ao fenômeno. E por envolver diversos grupos sociais tutelados ou não pela
Igreja, pelas relações familiares e o poder público vão desenhar imagens de mundo
comparadas com as rabelaisianas analisadas por Bakhtin e que se caracterizam por ser
“decididamente hostis a toda perfeição definitiva, a toda estabilidade, a toda
formalidade limitada, a toda operação e decisão circunscrita ao domínio do pensamento
e à concepção do mundo” (BAKTHIN, 2013:2).
Em Pirenópolis, esta manifestação cultural é representativa da vida social, não
sendo possível precisar o início dos giros pelo município surgido da mineração do ouro.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


393
Contudo, a persistência dessa tradição sobre o tempo é resultante dos ensinamentos
passados de geração para geração, da influência das migrações e do entendimento
daqueles que lideram a peregrinação – alferes ou embaixador.
São vários os grupos que atualmente perfazem uma trilha ritualística e circular
pelas ruas da cidade e caminhos das fazendas, tocando músicas alegres em louvor aos
“Santos Reis” e ao nascimento de Cristo, no período que vai das comemorações do
Natal ao dia de São Sebastião.

Um Pouso na História dos Reis Magos


A história inicial dos Reis Magos é originária das narrativas bíblicas, sendo
mencionada em apenas um dos quatro evangelhos canônicos, o de Mateus, no Livro do
Novo Testamento, ocupando 12 versículos.

Os magos do oriente
2 E, TENDO nascido Jesús em Belem da Judeia, no tempo do rei Herodes,
eis que uns magos vieram do oriente a Jerusalém,
² Dizendo: Onde está aquele que é nascido rei dos judeus? porque vimos a
sua estrela no oriente, e viemos a adorá-lo.
³ E o rei Herodes, ouvindo isto, perturbou-se, e toda Jerusalem com ele
(BÍBLIA, Mateus, 1977:2, 1-3).

Conforme a transcrição, não há na narrativa bíblica a especificação de que os


magos eram reis e nem que eram três – “uns magos” indicam a existência de mais de
um - e também não há nenhuma afirmação sobre suas origens, o texto refere-se a magos
que vindos do Oriente acompanhavam um astro celeste. A partir destes fatores de
peregrinação dos magos guiados pela estrela, a perseguição de Herodes, que por não
pertencer à descendência de Davi sentiu-se ameaçado e a sobrevivência de Jesus diante
de seus perseguidores, após a fuga para o Egito, representando a vitória do bem.
De qualquer maneira estas personagens relatadas no Evangelho reafirmaram a
importância da natividade de Jesus, servindo como fundamento para as comemorações
do culto católico do Natal. Numa saga de histórias prodigiosas e milagrosas, oficiais ou
apócrifas, que fertilizaram as narrativas e a imaginação servindo para estruturar rituais,
acrescentar fatos, relativizar o tempo, suprimir dados e disseminar as histórias bíblicas
por toda Idade Média, chegando aos dias atuais.
Numa análise mais apurada, focada nas origens dos rituais e cultos
encontraremos razões mais complexas e anteriores no tempo. Conforme abordou

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


394
Tinhorão em suas pesquisas sobre a diversidade étnico-cultural e a busca por uma
história universal do homem,

o que as realidades da procissão de Corpus Christi, no âmbito da Igreja, e as


romarias dos círios, no campo da devoção popular, estavam destinadas a
revelar era exatamente a permanência de costumes pagãos, tanto no rito
litúrgico católico quanto no cumprimento dos votos de fé feitos pelas
comunidades populares com a melhora das intenções cristãs (2012:35-36).

A trama urdida no emaranhado que justapõe o fato original, se é que este existiu,
e os fatos originados da vivência sensível do homem vão tecer o enredo que darão
sustentação à trama. Ao longo de Idade Média vários fatos vão servir como fios
condutores na tessitura histórica das folias de Reis, da visita dos magos ao menino
Jesus, passando por diversas localidades da Europa até sua ambientação do Brasil - o
giro foi longo. Num “recuo histórico-iconográfico” Pessoa demonstra a dispersão da
devoção aos Reis Magos pela Europa,

isso se deve à chegada dos restos mortais destes três entes míticos, lendários,
imaginários, mas, enfim, tão reais na cultura popular brasileira; à catedral de
Colônia (Alemanha), em 1164. Para lá foram trasladados de Milão (Itália)
como despojos de guerra numa conquista de Frederico Barbarrocha. E para
Milão teriam sido levados no século IV ou V como presente especial da
Imperatriz Helena, de Constantinopla (2005:77).

Os magos após a visita à lapinha voltaram a se encontrar e vieram a falecer,


segundo a lenda, na Turquia; foram transformados em Reis, aproximadamente no século
III; receberam nomes e locais de origem: Melchior, rei da Pérsia, Gaspar, rei da Índia, e
Baltazar, rei da Arábia e passaram a ser referenciados como santos a partir do século
VIII. Esteves, ao estudar as narrativas dos cronistas medievais, com foco na Península
Ibérica, afirma que estes centrados na explicação da vida humana na Terra e inspirados
no cristianismo pautado na fé e na Bíblia vão narrar histórias prodigiosas e milagrosas e
neste campo fértil das narrativas e da imaginação é que vão disseminar as histórias
bíblicas e dentre elas a saga dos Reis santos em busca do encontro com menino Deus.
Explica que,

a história, ainda que se mantenha como uma narrativa, vai passar a incluir
aspectos explicativos, procura-se uma justificação dos acontecimentos. Os
mitos continuam a ser utilizados, em conjunto com a realidade histórica, mas

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


395
a cronologia ganha importância e há uma consciência e que parte das
histórias são fábulas (ESTEVES, 2013:168).

A vivência da religiosidade do povo e uma produção constante do sagrado vão


influenciar culturas ao longo do tempo. Estas, transfiguradas nos mais diversos espaços,
vão se sustentar por meio dos gestos, dos símbolos e das crenças transmitidas através do
tempo. Desse modo, os três magos do Oriente conhecidos posteriormente como
Baltazar, Melchior e Gaspar, presenteiam Jesus com ouro, incenso e mirra, a tradição
permanece viva e estas ofertas têm seus valores e símbolos ressignificados ao longo do
tempo, sendo hoje um ato que desperta a atenção de todos, porque é a época de se dar e
receber presentes.
A preocupação com a dádiva e a obrigação de retribuir presentes (MAUSS,
2003), torna-se uma característica que fundamenta e justifica a realização das folias, ou
seja, a união de uma dualidade de contrários em que a aliança religiosa e a manipulação
do símbolo garantem a prosperidade para quem doa e certifica a agregação dos
visitantes. Motivo pelo qual se oferece durante as folias, em contradádiva, o pouso, as
danças, as comidas.

E o Giro Segue por Pirenópolis


A história de Pirenópolis remete ao período da prospecção aurífera no século
XVIII, quando as levas de migrantes eram constituídas por portugueses, seus escravos e
alguns poucos paulistas. A suntuosidade dos templos religiosos e a quantidade de
igrejas – cinco ainda no mesmo século – demonstram a implantação da fé católica e a
disseminação das práticas religiosas acordadas entre o Estado e a Igreja, o Padroado
Régio. “É notório verificar, em todos os relatos de viajantes e memorialistas e nas
corografias históricas, a existência de igrejas em todos os arraiais, por menores que
fossem, o que mostra a influência do catolicismo na cultura colonizadora” (SILVA,
2001:23).
No entanto, as distâncias e os poucos poderes conferidos à Santa Sé pelo
governo português fizeram com que a Igreja se estabelecesse através das confrarias
religiosas com acentuada presença leiga cuja atuação principal se dava por intermédio
das festas de santos e das romarias. Este catolicismo popular, caracterizado pela
ausência de padres, aliado às práticas jesuíticas fundadas na catequização dos índios e

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


396
negros e o gosto português pelas festas religiosas foram determinantes para construção
das religiosidades. Para Silva as festas populares em Goiás, no período colonial,

costumavam confundir as práticas sagradas com as profanas, tanto nas


comemorações externas como nas realizadas dentro das igrejas. Além das
missas com músicas mundanas, sermões, Te-Deuns, novenas e procissões,
eram partes importantes as danças, os batuques, os fogos de artifício e as
barracas de comidas e bebidas (SILVA, 2001:24).

A folia de Reis faz parte da cultura caipira e consequentemente da cultura


popular brasileira estando presente em vários municípios do país desde a colonização
portuguesa. Em Pirenópolis, estado de Goiás, são realizados todos os anos os festejos
ligados ao ritual da folia de Reis, que acontecem depois do Natal até a festa de São
Sebastião. Estas reproduzem continuamente as memórias de acontecimentos ou estados
passados, por isso estes festejos reproduzem, criam e recriam o momento festivo.
Estas folias são conhecidas pelo nome da região em que surgiram. Em pesquisas
realizadas pelo município de Pirenópolis identificamos as seguintes Folias de Reis:
Folia de Reis da Rua que acontece nos bairros de Pirenópolis e em chácaras próximas à
cidade, Folia de Reis do Tortinho, Folia de Reis da Santa Rita, Folia de Reis do
Engenho de São Benedito e Folia de Reis de Lagolândia. Outras folias são conhecidas,
mas ao longo dos três anos de pesquisas e devido à simultaneidade de realização dos
giros não foram possíveis observações e registros mais precisos, e por isso, não estão
citadas.
A folia de Reis no seu percurso é permeada de cantorias embaladas num ritmo
contínuo, e nos versos improvisados, descrevem, pedem e agradecem cada elemento dos
arcos, dos altares, das esmolas, dos alimentos e entrega dos donativos. Corrêa (2002)
discorre que as folias são documentos sonoros, reminiscências de outras épocas, enfim,
testemunhos da identidade musical de um povo. As músicas entoadas constroem uma
teia de significados é a parte essencial dos rituais.
Veiga (2005) afirma que a folia é, simultaneamente, uma visitação, um circuito
de coleta e uma bênção itinerante. Ao percorrer o caminho, as folias estabelecem uma
rede de contatos que extrapolam os laços familiares e de compadrio. Durante estas
manifestações da cultura popular que acontece nas ruas e caminhos das fazendas, cria-se
um mundo utópico, em que os partícipes se revestem de outra vida, penetrando
temporariamente num mundo que é universal caracterizado pela liberdade, pela

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


397
ausência das diferenças sociais e pela abundância. Um mundo em que ao indivíduo é
permitido

estabelecer relações novas, verdadeiramente humanas, com os seus


semelhantes. A alienação desaparecia provisoriamente. O homem tornava a si
mesmo e sentia-se um ser humano entre os seus semelhantes. O autêntico
humanismo que caracterizava essas relações não era em absoluto fruto da
imaginação ou do pensamento abstrato, mas experimentava-se concretamente
esse contato vivo, material e sensível (BAKHTIN, 2013:9).

Este contato estabelecido nos momentos de festa vão comunicar o saber popular,
as práticas dos foliões, e o saber erudito - que na Idade Média era ditada pela Igreja –
confrontando-os, constituindo a cultura popular, que segundo Bakhtin, “constrói-se de
certa forma como paródia da vida ordinária, como um ‘mundo ao revés’” (2013:10)
responsável por perpetuar acontecimentos que chegam ao presente com uma densa
carga de tradições.
Os foliões reúnem-se numa casa onde ocorre o “junta” da folia, ali comem,
bebem, rezam, benzem a bandeira de Reis, cantam e tocam instrumentos musicais.
Assim começa o giro da Folia, uma peregrinação em direção às casas, as quais serão
visitadas, durante alguns dias. Algumas folias perfazem esse trajeto durante o dia, mas
outras o realizam à noite.
Os grupos de folia são organizados dentro de uma hierarquia, o folião recebe sua
divisa e obtém determinada função. Os alferes são os responsáveis por comandar a folia
e portar a bandeira durante a peregrinação, o embaixador é o encarregado das músicas e
dos músicos e o regente é uma espécie de coordenador que atua diretamente com os
demais foliões, principalmente durante a distribuição da comida. Estes compõem as
companhias de Santos Reis que perfazem um caminho circular – saindo do leste e para
o oeste - visitando os devotos, colhendo esmolas e distribuindo graças.
Uma personagem enigmática que acompanha o grupo de “viajantes” é o palhaço,
este se apresenta sozinho ou em duplas – um masculino e outro feminino – e recebe
nomes variados, tais como: Catarina, Caetano, Coisa Ruim ou simplesmente Palhaço.
São enigmáticos por figurarem num espaço limiar entre o bem e o mal, dentro da trama
da folia é entendido como o que afasta as energias negativas ou a própria negatividade
representando a perseguição de Herodes ao menino Deus. Corporifica a alegria e possui
a missão de proteger a bandeira, contudo sua presença na sala da lapinha não é bem

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


398
vista e até mesmo proibida. Traja roupas de chita e máscara com o objetivo de preservar
sua identidade, reza a tradição que quem se propõe a encarnar o palhaço deve fazê-lo
por sete anos e isso quase sempre está ligado a um cumprimento de voto. Possui a
interface da alegria ao causar risos e provocar brincadeiras com os presentes, e da
religiosidade ao apresentar sua devoção ao menino Jesus, a Virgem Maria, São José e os
Reis Magos. Sua função é angariar e guardar os donativos além de fazer a marcação do
ritmo das músicas com seu cajado.
Os rituais são permeados por música e versos. A musicalidade produzida pelos
foliões acompanha todo o percurso e dão singularidade a cada grupo. “Especula-se que
grande parte das folias goianas tem a influência mineira, até mesmo por considerar a
intensa integração cultural que une ambos os territórios desde o período da mineração”
(CURADO, 2011:128). Com base na sonoridade produzida, os grupos são identificados
como folia mineira ou folia goiana nas suas origens. Nos grupos observados em
Pirenópolis, todos tiveram a influência mineira, mas entendem que hoje fazem folia
goiana, atestam esta afirmação tocando acordes específicos de uma e outra folia e
empostando a voz de maneiras distintas. Estes cânticos e suas musicalidades se
originam também no medievo.

Como herança direta dessas peregrinações, surgiram então os cânticos


populares muito importantes em toda Europa medieval, chamados Noëls na
França, Villancicos na Espanha e Janeiras em Portugal. Provavelmente esses
cantos, acrescidos do teatro de Gil Vicente, depois de José de Anchieta e
Manoel da Nóbrega, constituem as matrizes mais diretas das diversas
devoções existentes no Brasil, como reisados, boi-de-janeiro, boi-de-reis,
pastorinhas e, especialmente no chamado “corredor das bandeiras” (SP, MG,
GO, MS), as folias de reis (PESSOA, 2005:77).

A folia é composta por músicos que tocam instrumentos, às vezes artesanais,


como tambores, reco-reco, pandeiros, triângulo, chocalhos, além da tradicional viola
caipira e do acordeon, também conhecida em certas regiões como sanfona, gaita ou pé-
de-bode. Estes músicos além de rezadores são também cantadores entoando versos
inspirados e criados sob a emoção do momento. Eles subdividem em dois grupos na
hora da cantoria. Os versos cantados normalmente são rimados e enquanto um grupo
canta a pergunta o outro responde, em outras vezes um grupo canta e o outro repete,
essa estrutura musical foi também descrita nas pesquisas realizadas por Corrêa (2002) e
Vilela (2013) que estudaram a viola e a música caipira como modo de afirmação de uma

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


399
identidade nacional. A viola que tem um percurso histórico que remonta os tempos
medievais.

Ao longo dos últimos quinhentos anos, a viola, de origem ibérica, foi


construindo sua identidade muito próxima ao povo formador deste Brasil.
Sua história vem de longe e fazemos aqui um esforço de resgatá-la. A
chegada dos árabes e de sua rica cultura à Península Ibérica no ano de 711 foi
crucial para o desenvolvimento da musicalidade e de outros segmentos do
conhecimento humano na Europa e, posteriormente, no Brasil. As
modalidades do repentismo nordestino, como galope-a-beira-mar, martelo
agalopado, quadrão, sextilha, são formas literárias de origem árabe; aliás
foram os árabes que nos deram o sabor da rima. A poesia latina compunha-se
com a métrica apenas (VILELA, 2004-2005:77).

A cantoria da folia está presente em todos os rituais, não tem folia sem músicos,
pois o trajeto é permeado de canções embaladas num ritmo contínuo. Os versos são
improvisados, estes descrevem, pedem e agradecem os elementos encontrados nos
arcos, nos altares, as esmolas e os alimentos ofertados. Estes articulam as aspirações
pessoais e interpretam a visão do mundo aos olhos de seus participantes, os quais fazem
referências aos Reis Magos como intermediadores da relação com Deus, transformando-
os em verdadeiros santos.
A chegada à residência do devoto é envolto de devoção. O grupo é conduzido
pela bandeira, seguida dos músicos e demais foliões que adentram o espaço onde o
cenário da natalidade foi artisticamente elaborado para o momento. Os três Reis
estampados na bandeira representam o encontro dos magos com Jesus e o propósito não
mais de levar presentes – ouro, incenso e mirra – mas de receber do dono da casa
donativos comumente para finalidades filantrópicas.
No interior da casa, se tiver presépio, canta novamente, pois geralmente a
música retrata o período em que Jesus nasceu ou mesmo a viagem de Melchior, Baltasar
e Gaspar. Após rezarem e pedirem proteção e harmonia para casa, os foliões pedem a
esmola. Prosseguem assim por vários dias, visitando as casas, que fazem parte do
itinerário pré-estabelecido pelos foliões.
Durante os dias de festejo, tem o “pouso”, que foi previamente combinado.
Neste local a bandeira, símbolo maior da festividade descansa no altar e os foliões se
entregam à farta mesada de comida, as danças, comumente o Catira e o Chá – danças
tradicionais coreografadas que intercalam palmas e batidas de pés –, e as alegres
músicas que misturam moda de viola e músicas modernas. A festa é o encontro com o

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


400
outro, é o momento em que o passado é presentificado e o presente é intensamente
vivido, assim a tradição se cumpre e as experiências humanas mais significativas são
vivenciadas.

A Chegada
O cristianismo adotado como religião oficial do Estado pelo Imperador
Constantino no ano de 337 vai se espalhar pela Europa durante a Idade Média,
chegando ao Novo Mundo. Sua propagação se deu, em parte pela imposição da fé
refletida nas ações missionárias e nos condicionamentos simbólicos, pela espacialização
proporcionada pela migração de pessoas e crenças religiosas que se sobrepôs às culturas
em várias localidades e pela constituição da concepção de tempo ensinada por meio das
narrativas e de rituais que estruturavam o tempo mítico das festividades em homenagens
aos santos e seus feitos.
Estas ações aparentemente externas e movidas por questões econômicas e
políticas vão desenvolver raízes mais profundas manifestas no cotidiano capazes de
comunicar formas e fenômenos que se revelam, o que se mostram em si mesmo
(HEIDEGGER, 2009). As festas populares são um desses fenômenos que oferecem uma
visão do mundo, do homem e das relações humanas, que permitem infinitas
compreensões. A vivência da fé é muito mais complexa do se imagina e se
compreendidas à luz dos ensinamentos e da imposição do poder oficial da Igreja ficam
reduzidas e empobrecidas.
Os entendimentos passam pela percepção da dualidade entre um mundo social e
outro individual da vida humana, analisadas por Bakhtin (2013) com base nas ideias de
Rabelais e cujo, percurso é um interessante condutor na compreensão das manifestações
da cultura popular nos dias atuais. Esta que é marcada pelo riso, pela subversão dos
valores oficiais, pelo caráter contestador da ordem imposta pela hierarquia social e
diretamente pela Igreja.
O estudo das folias de Reis como manifestações culturais em Goiás demonstram
a riqueza do saber local, as experiências coletivas e as práticas subjetivas que garantem
e compõem as identidades territoriais e religiosas dos goianos. O envolvimento popular
com a festividade demonstra a importância para a comunidade que as realiza, uma vez
que é experienciada por várias gerações. Esta prática religiosa coletiva estruturada numa

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


401
sequência ritual demonstra a solidariedade entre os partícipes e definem momentos que
o homem, dentro de uma vivência sociocultural, se coloca diante de si mesmo, e a partir
daí constrói sua compreensão de mundo e do outro.
“Toda essa porção essencial e imprescritível do homem — que se chama
imaginação — está imersa em pleno simbolismo e continua a viver dos mitos e das
teologias arcaicas” (ELIADE, 2002:15). Tais representações, externadas no momento da
festa, são “multivalentes” resultantes, ainda conforme Eliade, das contradições da
própria realidade que permitem que estas lancem mão das imagens para “captar a
realidade profunda das coisas” (1991:11). Nas festas da religiosidade popular, como é a
folia de Santos Reis, percebem-se variadas significações dos símbolos presentes que
vão além da concretude, a qual possibilita uma compreensão espiritual das imagens
apresentadas, pois “os símbolos jamais desaparecem da atualidade psíquica: eles podem
mudar de aspectos; sua função permanece a mesma” (2002: 13).
Para Eliade (2002), a experiência religiosa pressupõe uma vivência nas
dimensões espaço-tempo. Daí buscar nas origens, as festas pagãs, passando pelas
narrativas bíblicas e suas variações para compreender a festa atual — a despeito de
pertencerem a temporalidades diferentes e a espaços distintos, eles narram imagens
muito próximas da realidade de quem vivencia uma festa com “nostalgia”.
Essas narrativas, expressas nas comemorações dos Santos Reis, juntam este e o
outro mundo, com todo o seu simbolismo e subjetividades ilustrados por imagens e
símbolos, resultantes da imaginação dos que vivenciam a festa. Os santos celebrados e
as práticas sociais em seu entorno são memórias de um tempo que traduz a sensibilidade
e a devoção de quem participa. Repetir todos os anos a saga da peregrinação pelas ruas
da cidade e pelos caminhos das fazendas para reverenciar o nascimento de Jesus
transfigura espaços, tempos, objetos, gestos em valores religiosos, em busca do
“caminho da vida” ou o “caminho para o centro”. O chegar na realidade é uma busca
constante pelo eterno retorno.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2013.
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XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


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XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


403
MARIALIS CULTUS: A REPRESENTAÇÃO DE NOSSA SENHORA
NA DRAMATURGIA HAGIOGRÁFICA PORTUGUESA DO
SÉCULO XVI
Verônica Cruz Cerqueira
UFBA/PPgLitCult/CAPES
Márcio Ricardo Coelho Muniz
UFBA/PPgLitCult/CNPq

RESUMO: A veneração dos santos teve início ainda na Igreja Antiga (fundada por
Cristo e difundida pelos apóstolos Pedro e Paulo), contudo, foi no período medieval,
devido à expansão do Cristianismo, que se intensificou o culto aos santos, quando
surgiram métodos institucionais para a oficialização da santidade e com a consolidação
da literatura hagiográfica. Conforme Andréa Cristina L. F. da Silva (2008), os textos
hagiográficos têm como temática a vida, os trabalhos realizados, os milagres e o culto
de uma pessoa considerada santa. Na diversidade de santos explorados pela
Dramaturgia Hagiográfica Portuguesa do Século XVI, Santa Maria é aquela que mais se
destaca nas narrativas, visto que desempenha um dos papéis mais caros à Igreja
Católica: Theotókos (Mãe de Deus). Buscar-se-á neste trabalho apresentar como Maria
se configura como personagem e discutir como se dá o diálogo dela com as demais
personagens presentes nos autos medievais e, por fim, como seu culto torna-se a
expressão e reafirmação dos dogmas católicos neste período.

Palavras-chave: Dramaturgia Hagiográfica Portuguesa, Nossa Senhora, Literatura


Portuguesa

RESUMEN: La veneración de los santos tuvo inicio aún en la Iglesia Antigua (fundada
por Cristo y difundida por los apóstolos Pedro y Paulo), pero, fue en el periodo
medieval, debido a la expansión del Cristianismo, que se intensificó el culto a los
santos, cuando surgieron métodos institucionales para la oficialização de la santidade y
con la consolidación de la literatura hagiográfica. Conforme Andréa Cristina L. F. de
Silva (2008), los textos hagiográficos tienen cómo temática la vida, los trabajos
realizados, los milagros y el culto de una persona considerada santa. En la diversidad de
santos explorados por la Dramaturgia Hagiográfica Portuguesa del Siglo XVI, Santa
María es aquella que más se destaca en las narrativas, visto que desempeña uno de los
papeles más caros a la Iglesia Católica: Theotókos (Madre de Dios). Buscar-se-á en este
trabajo presentar como María se configura como personaje y discutir cómo se da el
diálogo de ella con las demás personajes presentes en los autos medievais y, por fin,
como su culto se hace la expresión y reafirmación de los dogmas católicos en este
período.

Palabras clave: Dramaturgia Hagiográfica Portuguesa, Nuestra Señora, Literatura


Portuguesa

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


404
Quando se estuda a dramaturgia portuguesa do século XVI, Gil Vicente é o
dramaturgo mais referido, autor que fez quase cinco dezenas de autos com temas e
gêneros diferenciados entre si, a exemplo, autos pastoris, moralidades, mistérios,
comédias, farsas, entre outros.
Por outro lado, no âmbito dos estudos literários, pouco se conhece sobre a
colaboração, para a dramaturgia quinhentista portuguesa, dos autores contemporâneos
ou posteriores a Gil Vicente. No séc. XIX, Teófilo Braga (2005 [1898]) desenvolve o
conceito de Escola Vicentina, no qual inclui autores que apresentavam em suas obras
elementos característicos do teatro vicentino e que segundo o teórico em quase nada se
diferenciavam do mestre. Carolina Michaelis de Vasconcelos, por sua vez, na
compilação Os autos de Gil Vicente y de La Escuela Vicentina (1922), reproduz o fac-
símile de dezessete autos, descrevendo-as e apresentando abordagem diferenciada sobre
as obras e seus autores:

Dezasete pertencem a poetas que constituem a Escola de Gil Vicente, obras


mais ou menos características que, se não transformaram a figura magra e
malicenta da arte dramática portuguesa de mil e quinhentos em outra tão
excepcionalmente vigorosa e bela como a castelhana, sempre lhe comunicam
algo de côr e vivacidade (1922:28).

Podemos ainda encontrar registros acerca desses dramaturgos medievais na


História da Literatura Portuguesa Ilustrada, dirigida por Albino Forjaz de Sampaio
(1930), o qual, num capítulo intitulado Os continuadores de Gil Vicente, faz o
detalhamento de algumas obras dos principais dramaturgos do referido século.
Um dos trabalhos mais importantes sobre o corpus dramatúrgico quinhentista é a
recente coletânea de três volumes intitulada Teatro de Autores Portugueses do Séc. XVI,
organizada pelo Centro de Estudos de Teatro (CET), sob a direção acadêmica de José
Camões, em que se podem encontrar excelentes edições das obras, acompanhadas de
iluminadoras apresentações dos volumes e esclarecedoras notas de rodapé. Algumas das
obras alcançaram edição impressa, outras são encontradas apenas na versão transcrita do
fac-símile, em meio digital1.

1 No site http://www.cet-e-quinhentos.com podemos encontrar as obras e biografias dos dramaturgos


quinhentistas, como também notas explicativas e de significados.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


405
Acerca do que conhecemos sobre os estudos da história do teatro, temos
consciência de que somente na “Idade Média, [há a retomada do] fio teatral [que]
aparece vinculado ao ofício religioso, e o drama litúrgico não se distingue da liturgia
cristã” (MAGALDI, 1989:69). A liturgia cristã, que de início era encenada dentro da
igreja, passa a seu pórtico até chegar à praça pública, e neste último espaço assume
caráter mais profano. Assim, o teatro religioso medieval passa a ser a representação da
“agonia cotidiana do verdadeiro cristão, na ânsia de vencer o pecado, aspirando ao céu”
(MAGALDI, 1989:70), marcando com isso um afastamento dos padrões greco-latinos.
Considerando o recorte temporal deste trabalho, reportar-nos-emos à sociedade
portuguesa de meados do século XVI, a qual, segundo os historiados J. Derek Holmes e
Bernard W. Bickers ([1983] 2006), está inserida no contexto político-religioso da Igreja
Católica Medieval, em meio à Reforma e à Contra-Reforma. Neste período, a Igreja
tinha dois temas centrais em seus discursos: o primeiro, a morte e o juízo; o segundo, a
paixão e morte de Jesus. Predominava o uso de crucifixos em todas as igrejas, e, junto
aos painéis, com os instrumentos da paixão, alguns afrescos eram adornados com as
cenas da paixão: Maria e João ao pé da cruz ou a Pietá, Maria segurando o corpo sem
vida de seu filho.
Na tentativa de fazer com que o povo se arrependesse de seus pecados, eram
expostos, não só dentro das igrejas como fora delas, cenas da paixão de Cristo de forma
mais humana. Contudo, a imagem do Bom Pastor era obscurecida pela de Deus como
Juiz, assim, acentuava-se nas pregações:

a distância entre Deus e o seu povo e até Cristo, que era medianeiro entre o
Pai e este povo, parecia fora do alcance da maioria. Em consequência, criou-
se o hábito de procurar ajuda para se dirigirem a Deus e a primeira pessoa a
quem apelavam era Maria. Ela era vista como a que mais provavelmente
poderia desviar a ira e o juízo de Deus e a devoção que lhe era prestada, que
tivera sempre um papel importante na Igreja do Oriente, desenvolvia-se agora
no Ocidente (BICKERS; HOLMES, 2006:149).

No início da consolidação da religião cristã, Maria fora proclamada Theotókos


(Mãe de Deus)2.Este primeiro dogma mariano está baseado em algumas passagens
bíblicas, nas quais há o anúncio de Maria como mãe do Senhor ou quando é anunciado

2 Em 431, no Concílio de Éfeso.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


406
que ela terá o filho do Altíssimo3. Na Igreja Antiga (fundada por Cristo e difundida
pelos apóstolos Pedro e Paulo), a figura de Maria fora usada para se contrapor às
imagens das deusas do paganismo, em uma época que a Igreja precisou se impor em
relação às tradições pagãs greco-romanas. No contexto em que trabalhamos, no período
medieval, Maria ressurge como o elo entre a sociedade e um Deus misericordioso; ela
se torna, a exemplo de outros santos, a figura central da expansão do Cristianismo,
quando este estava em crise devido às transformações propostas pelo Protestantismo.
É neste contexto sócio-histórico que encontramos os dramaturgos hagiográficos
portugueses que estudaremos neste trabalho. Das dezenas de autos que estão
catalogados no site do Centro de Estudos de Teatro (CET), da Universidade de Lisboa,
dezenove são de caráter hagiográfico e na metade destes se representa ou se refere à
personagem de Nossa Senhora, seja lembrada em uma oração, seja personificada em
personagem.
Segundo Augusto A. Nascimento:

O texto hagiográfico medieval situa-se entre os extremos tipificados e


cronológicos dos Acta Martyrum (originados nos processos judiciais
romanos) e dos Acta Sanctorum (estabelecido pela crítica historiográfica dos
Bolandistas a partir do século XVII). Às suas variantes fundamentais
pertencem as Legendas destinadas ao culto (nomeadamente no ofício das
matinas), derivadas ou não das Passiones Martyrum e compendiadas, para
efeito em livro correspondente (o Legendário) e as narrativas isoladas, sob
forma de Vidas, Milagres, Transladações (Apud: LANCIANI; TAVANI.
1993:307).

Deste modo, as narrativas hagiográficas exibem traços fundamentais como: a


santidade ser um dom de Deus. Por isso, o nascimento e a morte de um santo são
cercados de sinais que o desvendam; a vida do santo manifesta o poder e a plenitude
divina; e o santo é modelo de valores. Os textos hagiográficos têm como principal
finalidade a instrução da fé dos menos conhecedores, ou seja, tomam-se tais obras como
exemplos para ensinamentos. Portanto, o homem medieval, ao ler ou assistir tais textos
hagiográficos, encontrava um caminho para sua edificação e um repertório de modelos
de conduta que o levassem, na perspectiva de seus autores e da Igreja, a dar um salto
qualitativo de vida, não na condição social, mas nas práticas espirituais.

3 Na Bíblia, as palavras Senhor e Altíssimo são aplicada a Deus e ao Messias-Rei, enquanto representante
de Deus. A partir disso, encontram-se na História da Igreja Católica vários relatos acerca da presença de
Maria em diversos acontecimentos, promovendo intercessões ou milagres, meio pelo qual poderiam os
fiéis retornarem ao caminho da fé cristã.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


407
O discurso hagiográfico, do ponto de vista do gênero literário, apresentado por
Cristina Sobral (2005), é formado por elementos extratextuais: a intencionalidade
(promover imitação, a catequese e a edificação do crente) e a funcionalidade (promoção
e apoio ao culto do santo); e elementos textuais: o discurso panegírico (quando se
enumeram as virtudes dos santos), a representação do maravilhoso (milagres, aparições
etc.), a intertextualidade entre os textos bíblicos e litúrgicos e a atemporalidade da
narrativa.
No âmbito deste texto, buscando observar a configuração de Maria como
personagem dramática, centrar-nos-emos no Pranto da Senhora Caminho do Monte
Calvário, auto do dramaturgo Frei António de Portoalegre, sobre cuja biografia quase
nada sabemos, a não ser o pouco que se encontra registrado na Biblioteca Lusitana, de
Diogo Barbosa Machado ([1741] 1965). Segundo Machado, Frei António de
Portoalegre foi primeiramente homem da corte, tornou-se depois membro da Ordem
Franciscana e foi chamado para confessor da princesa D. Maria Manuela (1527-1545),
filha de D. João III e de D. Catarina de Áustria, irmã de Carlos I, quando ela se casou
com o rei castelhano Filipe I, o Prudente (1581 - 1598).
O Pranto da Senhora Caminho do Monte Calvário encena a passagem bíblica da
Via Crucis, porém sob o olhar de Maria, ela que é a mediadora entre os fiéis e Deus.
Segundo Holmes e Bickers ([1983] 2006), esta mudança de perspectiva pode estar
ligada a estratégias usadas pela Igreja para não perder mais fiéis para o Protestantismo e
manter os que permaneceram. Deste modo, o culto mariano torna-se essencialmente
cristológico, pois Maria é o caminho que leva a Cristo e que o aproxima humanamente
dos cristãos.
Datado de 1547, ano em que foi instaurada a Inquisição em Portugal, o referido
auto é impresso a pedido de dom Brás, (1485-1661, 1º Bispo de Leiria), pois, para ele
havia uma necessidade de o povo aproximar-se das coisas divinas. Inicia-se o auto com
o pranto de Maria, uma forma poética, que se divide em três partes, a primeira o
anúncio da morte, depois a louvação do morto e por fim uma invocação a Deus. Através
do jogo de rimas que encontramos nos versos a seguir, podemos observar que a figura
de Maria se lamenta da amarga desventura pela qual está passando, por causa do mal
mortal que lhe corta o coração, e atribui seu sofrimento à cruel e impiedosa justiça

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


408
hebraica. Ela afirma/parece não entender o que fez seu filho para ser pregado em um
madeiro:
Ó vos omnes qui transitis
pola via d’amargura
chorai a desaventura
desta triste sunamitis
sinti sua grã tristura.
Ó gentes chorai meu mal
vede bem sua grandeza
o cutelo de crueza
que corta com dor mortal
minh’alma com tal tristeza.

Ó judaica crueldade
onde me levas meu bem?
Ó cruel Hierusalém
mantador sem piedade
dos profetas que a ti vem
que te fez o meu cordeiro
filho do meu coração
por que tanto sem rezão
condenaste ao madeiro
toda tua salvação?
(CET, Pranto da Senhora, vv. 5-24)

Como se vê, a personagem de Maria chama a atenção da plateia, que para o


teatro medieval era vista como personagem da obra representada, quanto ao anúncio do
filho morto. Mais adiante, no auto de Frei António de Portoalegre encontramos diálogos
simples, entre Maria e demais personagens, os quais, através de pares melódicos,
exprimem toda a dor e compaixão de uma mãe por seu filho, assemelhando-se assim às
mulheres que choram no caminho da vida dolorosa:

Ó donas vós que paristes


filhos que tanto amais
por que tal dor nam vejais
se dor de filho sentistes
senti dores tam mortais
oh que me levam a matar
todo meu bem e conforto
e o maior desconforto
é que hei medo de ficar
viva depois d’ele/dele morto.
(CET, Pranto da Senhora, vv.25-34)

A justaposição do texto bíblico com palavras simples, faz com que haja a
aproximação do povo com a Bíblia sem o intermédio do alto clero, posto que no século
XVI as edições que existiam da Bíblia eram feitas em latim e somente tinham acesso a

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


409
este texto os estudiosos da Igreja. Para Erich Auerbach ([1946] 2013), esta é uma das
maiores características do drama litúrgico, a convergência do sublime (Cristo) com o
cotidiano (a cristandade), isto é, o auto religioso tinha por objetivo unir a vida de Cristo
ao cotidiano, para que assim se pudesse alcançar o coração das pessoas que assistiam às
peças, mesmo que conhecessem as narrativas. A passagem citada, o diálogo de Maria
com as mulheres que a assistem sofrer, não consta nos evangelhos, ela é verossímil e
intensamente humana ao aproximar Nossa Senhora das mulheres que estavam na via
dolorosa, as quais eram representadas pelas senhoras da Corte, que assistiam ao auto.
Observando o desenrolar da história, Nossa Senhora encontra as demais
personagens (uma figura, Nicodemus, Josef ab Arimatia e sam João), em momentos
distintos. Os diálogos que acontecem entre as personagens apresentam-nos
características psicológicas e físicas de Maria, como sua beleza, piedade e compaixão.
Depois do lamento de Maria, entra em cena uma figura que tem a função de mostrar à
Senhora o filho crucificado. Além de mostrar onde se encontra o Cristo crucificado e
exaltar as qualidades de Maria, “fremosa” e “mais bela”, também nos apresenta o
presente, o concreto da obra divina (morte e ressurreição de Cristo) e prenuncia o
destino do homem (salvação e condenação).

Chegando a Senhora/senhora ao pé do cadafalso onde estava o senhor


crucificado, metido em um esparavel4, sai ũa figura e mostra-lho abrindo
o esparavel, dizendo:

Ó mais fremosa e mais bela


que quantas no mundo são
de ver tua grã paixão
e tua mortal querela
se me quebra o coração
pois que vens com tanta pena
em busca do teu amado
sabe que é crucificado
quem nos salva e nos condena
vê-lo aqui condenado.
(CET, Pranto da Senhora,vv. 65-74).

Neste trecho, é feita a louvação do morto, mostrando que Cristo fora amado, e a
salvação e condenação do cristão, o que constitui mais uma característica do pranto. Em
seguida, entram as personagens de Nicodemus e Josef ab Arimatia, o diálogo também
pode ser encontrado no Evangelho de João, realçando o caráter intertextual do auto com

4 Tipo de rede de pesca usado como cortina.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


410
a Bíblia5. No texto bíblico, após pedir autorização a Pilatos para retirar o corpo de
Cristo da cruz, sepultam-no em um sepulcro novo. Entretanto, no auto o destino do
corpo de Cristo é diferente, conforme a rubrica que diz: “E despegando o senhor da cruz
põe-no em o regaço da senhora”, o regaço materno, e não o sepulcro, será o local de
descanso, onde se consegue repousar. Isso é usado com artifício cênico, pois era comum
que os autos fossem representados dentro ou no átrio das igrejas, por isso usavam as
imagens e painéis como personagens, neste caso o uso da Pietá fora apropriado, fazendo
com que houvesse a discordância com texto bíblico.
Na sequência, há o lamento de Maria que nos remete à seguinte profecia,
encontrada no Evangelho de Lucas, após a apresentação do menino Jesus no templo, na
qual Simeão diz a Maria: “És que este menino foi posto para a queda e para o
soerguimento de muitos em Israel, e como um sinal de contradição - e a ti, uma espada
transpassará tua alma! - para que se revelem os pensamentos íntimos de muitos
corações” (2, 34-35); no auto Nossa Senhora diz esta trova:

Ó cruel cutelo forte


ó crueza desmedida
ó mortal dor tam crecida
ver morto e ver a morte
ah vida de minha vida.
Ó morte por que acrecentas
mais mortes com teus espaços?
Filho meu morto nos braços
oh como nam arrebentas
coração em mil pedaços?
(CET, Pranto da Senhora, vv. 85-93)

Aqui, Nossa Senhora torna-se a representação daquela profecia, o lamento de


um povo que busca a misericórdia divina, sem que esta seja imposta pelo alto clero.
Tendo em consideração que o auto fora representado no tempo da quaresma e segundo a
classificação feita por Jacope de Varazze (2003), na Legenda Áurea6, a celebração da
Paixão do Senhor se encaixa no grupo das festas que ocorrem no tempo do desvio,
assim a figura de Maria neste momento é o ícone que apresenta uma Igreja mais
humana, mais aberta aos apelos dos cristãos povo.

5 “Depois, José de Arimateia [...] pediu a Pilatos que lhe permitisse retirar o corpo de Jesus [...].
Nicodemos, aquele que anteriormente procurara Jesus à noite, também veio [...]. Eles tomaram então o
corpo de Jesus e o envolveram em faixas de linho com aromas [...]” (19, 38-40).
6 Uma compilação de textos hagiográficos, de grande valor moral e pedagógico, divididos de acordo com
o tempo no qual eram utilizados pela Igreja.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


411
Posteriormente, a tarefa de sepultamento fica por responsabilidade da
personagem de sam João, o mesmo discípulo que estava ao pé da cruz com Maria e a
quem Jesus entregou sua mãe. Sendo João o mais novo dos discípulos, é o que tem mais
humildade para entender a magnitude daquele gesto.
Em relação ao relato bíblico, a mudança da personagem bíblica (Nicodemus e
Josef ab Arimatia por sam João), neste auto, revela-nos a intenção de Frei António de
Portoalegre, que segundo E. Auerbach acontece na “representação viva dos
acontecimentos bíblicos [...] [quando] estende convidativamente as mãos para receber
os incultos e os simples e levá-los do concreto, do quotidiano, para o oculto e
verdadeiro” (2013:135). Esta transformação acontece, pois, para que a parcela divina
que existe em cada ser seja manifestada, faz-se necessário que o sublime, o inalcançável
se torne compreendido e esteja ao alcance de todos.

Já por derradeira, pede sam João licença à senhora pera enterrar o


corpo dizendo:

Um triste desconsolado
mal pudera/poderá consolar
senhora teu gram pesar
porque sangue tam chegado
nam se roga em tal lugar
ver meu Deos e meu senhor
sofrer cruezas tamanhas
ver tuas dores estranhas
me dão tam estranha dor
que me rasgam as entranhas.
(CET, Pranto da Senhora, vv. 94-103).

Na fala da personagem de sam João encontramos rico jogo de palavras rimadas,


as quais apresentam o familiar mais “chegado” e “desconsolado”, que se sente incapaz
de “consolar” o grande “pesar” que Nossa Senhora sente naquele “lugar”, pois o seu
Senhor está a sofrer “tamanhas” e “estranhas” dores que rasgam as “entranhas” do
discípulo. Após ter acompanhado o pranto da mãe de Cristo, as personagens clamam
pela clemência divina, encerrando-se o auto com o canto do Miserere mei Deus, que se
encontra no Salmo 507, essa invocação de Deus é outra característica do pranto.

7 “Tem piedade de mim, ó Deus, por teu amor!Apaga minhas transgressões, por tua grande
compaixão!Lava-me inteiro da minha iniquidade e purifica-me do meu pecado!Pois reconheço minhas
transgressões e diante de mim está sempre o meu pecado;pequei contra ti, contra ti somente,pratiquei o
que é mau aos teus olhos” (SALMO 50, 3-7).

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


412
A representação da via dolorosa pela ótica mariana pretende que renasça a
piedade no crente e a reafirmação da fé em um Deus, que agora é amoroso e piedoso.
Assim, como renasce o culto a Maria e a outros santos que passam a ser exemplo de
conduta social e religiosa.
Na literatura dramática quinhentista portuguesa ainda há muito que se analisar
no que diz respeito à hagiografia, muitos são os dramaturgos que tomam o assunto,
como Baltasar Dias, Fernão Mendes, Francisco da Costa, Francisco Vaz de Guimarães e
Afonso Álvares. Sobre este há um estudo realizado pelo professor Márcio Muniz, no
texto 8 Considerações sobre o Entremez nos autos de Afonso Álvares, no qual apresenta-
nos características da dramaturgia hagiográfica, como o uso do Entremez9, a mesclagem
da linguagem e dos gêneros. Os autos dos dramaturgos, acima citados, têm
características e personagens diversas, mas revelam singularidade no que diz respeito à
centralidade da personagem de Nossa Senhora e como esta se torna a representação não
só das mulheres medievais, como também de cada cristão, por ser a primeira cristã e o
maior modelo de seguidora de Cristo.
Com isso, percebe-se que os autos religiosos não eram somente expressão de fé,
mas também nos apresentam traços históricos e literários, neste caso, da sociedade
portuguesa de meados do século XVI. Históricos, por revelarem características de uma
dada sociedade, tais como, suas tradições, questões políticas, dentre outros; e literários,
no que tange aos recursos estilísticos usados pelos dramaturgos, a preferência pelos
versos e rimas, a interposição de cenas farsescas em auto religioso e a intertextualidade
com textos bíblicos e litúrgicos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
AUERBACH, Erich. Adão e Eva. In: Mimesis: a representação da realidade na
literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2015, p. 125-150.
BICKERS, W. Bernard; HOLMES, J. Derek. A Reforma protestante e o progresso da
Reforma católica (1455-1648). In: História da Igreja Católica. Trad. de Victor Silva.
Lisboa: Edições 70, 2006, p. 139-198.
BRAGA. Teófilo. História da Literatura Portuguesa: Os seiscentistas. 3. ed.
Imprensa Nacional - Casa da Moeda: Lisboa, 2005. Vol. III.

8 Texto apresentado no XIV Congreso Internacional de La Asociación Hispánica de Literatura Medieval,


em 2011.
9 Ato farsesco, que serve para entreter a plateia durante a apresentação, pode vir no início, meio ou final
do texto dramático, como também pode ser extraído do auto sem que acarrete danos a narrativa.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


413
JOÃO. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
LANCIANI, Giulia; TAVANI, Giusepe. Dicionário da Literatura Medieval Galega e
Portuguesa. Lisboa: Editorial Caminho, 1993, p. 307.
LUCAS. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
MAGALDI, Sábato. Teatro Religioso Medieval. In: O texto no Teatro. São Paulo:
Perspectiva, 1989, p. 69-70.
MUNIZ, Márcio. Considerações sobre o Entremez nos autos de Afonso Álvares. Actas
do XIV Congreso Internacional de La Asociación Hispánica de Literatura
Medieval, 2011.
PORTOALEGRE, António de. Pranto de Nossa Senhora Caminho do Monte
Calvário. Disponível em: <http://www.cet-e-quinhentos.com/obras>
SALMO. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão. Reflexões sobre a hagiografia ibérica
medieval: um estudo comparado do Liber Sancti Iacobi e das Vidas de Santos de
Gonzalo de Berceo. Niterói: EdUFF, 2008.
SOBRAL, Cristiane. O discurso hagiográfico medieval. Actas do V Colóquio da
Secção Portuguesa da Associação Hispânica de Literatura Medieval. Porto,
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2005, pag. 97 - 107. Disponível em:
<http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/11524.pdf.>
VARAZZE, Jacope de. Legenda áurea: vidas de santos. Tradução do latim,
apresentação, notas e seleção iconográfica: Hilário Franco Júnior. - São Paulo:
Compainha das Letras, 2003.
VASCONCELLOS, Carolina Michaelis de. Autos portugueses de Gil Vicente y de La
Escuela vicentina. Madrid, 1922, p. 28. Disponível em: http://purl.pt/1360/4/l-12581-
v_PDF/l-12581-v_PDF_01-B-R0150/l-12581-v_0000_capa-capa_t01-B-R0150.pdf.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


414
O LUGAR DOS MORTOS NA LONDRES MEDIEVAL – ENTRE
NARRATIVA E TESTAMENTOS

Viviane Azevedo de Jesuz


Doutoranda - PPGH-UFF/CAPES

RESUMO: O medo da morte esteve fortemente presente na mentalidade medieval. Em


uma sociedade direcionada à salvação, procuraram-se alternativas para garanti-la,
afastando-se dos riscos do Inferno e superando as punições do Purgatório. Os vivos,
como responsáveis por aliviar os sofrimentos das almas que esperavam pela salvação no
Purgatório, ofereciam continuamente missas, cânticos e orações pelos falecidos. Ao
mesmo tempo, esses ritos empreendidos em favor dos mortos tinham papel fundamental
na manutenção da memória coletiva e, portanto, no fortalecimento dos laços de
pertencimento a uma comunidade. Na direção inversa, os mortos, além de favorecer
seus entes mais próximos e determinadas instituições em seus testamentos, deixavam
indicações de como sua memória deveria ser preservada e suas almas salvas. Entre os
discursos da morte presentes nas narrativas e nos testamentos do fim do medievo,
destacam-se os laços recíprocos de solidariedade estabelecidos entre vivos e mortos.
Este trabalho tem por objetivo analisar tais laços com base na conjuntura da Londres do
século XIV, partindo da narrativa The Canterbury Tales, escrita por Geoffrey Chaucer,
e do Calendar referente aos testamentos arrolados na Court of Hustings, em especial, na
segunda metade do século XIV.

Palavras-chave: Morte, Memória, Testamentos

ABSTRACT: The fear of death was quite present in the medieval mentality. In a
society focused on salvation, alternatives were sought in order to guarantee it, avoiding
the risks of Hell and overcoming the punishments of Purgatory. The alive ones, being
responsible for softening the sufferings of the souls that waited for salvation in
Purgatory, continually offered masses, songs and prayers for those who died. At the
same time, those rites undertaken in favour of the dead played a fundamental role in the
maintenance of the collective memory and, therefore, in the invigoration of the sense of
belonging to a community. On the other hand, the dead, besides favouring their closest
relatives or friends and certain institutions in their wills, left indications of how their
memory should be preserved and their souls saved. Among the speeches about death
which are present in the narratives and in the wills of the end of the Middle Ages, the
reciprocal solidarity bonds established among the alive one and the dead stand out. This
work aims to analyse such bonds based on the context of London in the 15th century,
fromThe Canterbury Tales narrative, written by Geoffrey Chaucer, and the Calendar
regarding the wills inventoried in the Court of Hustings, especially, in the second half of
the 15th century.

Keywords: Death, Memory, Wills

Os mortos, e a morte, são uma presença constante no Ocidente medieval. No


meio citadino, ocupam seu espaço físico, como nos cemitérios e igrejas, mas,

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


415
principalmente, marcam presença no espaço simbólico da cidade. Por conseguinte,
constituíam um tema recorrente das narrativas transmitidas pela tradição oral. Embora
apenas uma pequena parcela dos textos transmitidos oralmente tenha sido registrada em
manuscritos (BATANY, 2002:389), algumas dessas narrativas puderam ser retomadas
sob o registro escrito, ao lado de outros textos clássicos que eram traduzidos,
comentados e copiados. Seguindo tal modelo, a compilação de contos de The
Canterbury Tales, atribuída a Geoffrey Chaucer, poeta inglês do século XIV, também
apresenta a morte entre os seus temas, como no extrato a seguir:

And whan the devel herde hire cursen so


Upon hir knees, he seyde in his manere,
“Now, Mabely, myn owene mooder deere,
Is this youre wyl in ernest that ye seye?”
“The devel”, quod she, “so fecche hym er be deye,
And panne and al, but he wol hym repente!”
“Nay, olde stot, that is not myn entente,”
Quod this somonour, “for to repente me
Foy any thyng that I have had of thee.
I wolde I hadde thy smok and every clooth!”
“Now, brother,” quod the devel, “be nat wroth;
Thy body and this panne been myne by right.
Thou shalt with me to helle yet tonight,
Where thou shalt knowen of oure privetee
Moore than a maister of dyvynytee.”
(CHAUCER, 2008:127)1

O Conto do Frade versa sobre o encontro de um beleguim, que acusava e


entregava muitos fiéis inocentes à Justiça Eclesiástica, e um diabo, que andava pelo
mundo a recolher aquilo que lhe pertencia. Por decidirem que se assemelhavam muito,
passam a se tratar como irmãos e caminhar lado a lado. No entanto, uma das vítimas do
beleguim, como indica o extrato, pede que ele seja levado pelo diabo. Este, então, não
pode deixar de desempenhar sua tarefa e levá-lo para o inferno. É este medo da
condenação ao inferno um dos motivos que levam a uma aproximação cada vez maior
entre vivos e mortos no fim do medievo.

1The Friar’s Tale, 1624-1638. A efeito de comparação, disponibilizamos a versão em prosa do extrato da
fonte: “Ao vê-la rogar a praga de joelhos, perguntou-lhe o diabo: “‘Mabel, minha avozinha querida, você
está falando sério?’ / ‘Sim!’ repetiu ela. ‘A menos que se arrependa, o diabo pode leva-lo agora mesmo,
com panela e tudo!’ / ‘Arrepender-me, vaca velha?!’ interveio o beleguim. ‘Nunca! Jamais hei de
arrepender-me de esfolar você. Eu bem que gostaria de levar também o seu manto e todas as suas roupas!’
/ ‘Irmão’, falou o diabo, ‘não fique zangado comigo, mas acho que tenho direito a seu corpo e a esta
panela. Esta noite você vai comigo para o inferno, onde irá conhecer nossos segredos mais que um
professor de teologia.’” (CHAUCER, 1988:163).

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


416
Seguindo a lógica cristã do Ocidente, a vida do homem medieval era conduzida
pela meta da salvação. Empreendia, assim, suas ações cristãs de ajuda à Igreja e ao
próximo, como a caridade aos pobres, a fim de garantir um lugar privilegiado na vida
eterna. No entanto, desde o século XIII, com a formalização da ideia de um lugar
intermediário entre o Céu e o Inferno, o Purgatório, consolidou-se a noção de que
grande parte dos falecidos deveria, ainda após a morte, purgar os seus pecados para
alcançar a salvação. Acreditava-se, então, que os vivos podiam, e tinham a
responsabilidade de, aliviar os sofrimentos dessas almas, que passavam pelo Purgatório
(GORDON e MARSHAL, 2000:2). A própria Igreja atesta essa proposta, “os sufrágios
dos vivos podem ser úteis aos defuntos que mereceram se beneficiar deles”
(LAUWERS, 2002:245). Sufrágios estes que podiam se dar de três formas: a oração, a
celebração da eucaristia e as esmolas por intenção dos falecidos. De certo modo, a
Igreja, antes detentora do monopólio sobre a morte através da última confissão, da
extrema-unção, da redação dos testamentos e das missas pelas almas, passa a reconhecer
o papel exercido por aqueles que pertencem aos círculos mais próximos dos defuntos.
“Os herdeiros deviam, em compensação, cultivar a lembrança daqueles de quem
haviam recebido um nome e uma condição, bens e terras: eles tinham que administrar
uma memória que foi ao mesmo tempo pacificada e fecunda” (LAUWERS, 2002:247).
A memória destaca-se, a partir de então, como uma questão fundamental dos ritos post
mortem. A rememoração do nome de cada falecido nos atos litúrgicos, encomendados já
em testamento ou posteriormente por entes mais próximos, marca um aspecto crucial
para a manutenção da memória dos falecidos como membros do grupo social (cristão,
familiar e profissional). Assim, as missas, orações e doações em nome dos mortos
tornavam-se cada vez mais comuns no fim do medievo, tanto para a salvação dessas
almas quanto para a manutenção de sua memória no seio das comunidades de que
faziam parte.
Uma chave essencial para acessar o lugar dos mortos no funcionamento desse
corpo social são os testamentos deixados por estes, como indica um dos conjuntos de
fontes selecionados para este trabalho. O Calendar of Wills proved and enrolled in the
Court of Husting reúne um panorama dos testamentos arrolados em Londres, além de
extratos de alguns dos principais destes, abrangendo os testamentos aprovados entre os
reinados de Eduardo III e James II, desde 1358 até 1688. Nosso recorte engloba a

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


417
coletânea que abarca a documentação da segunda metade do século XIV. Estes
testamentos apontam para as posses do indivíduo e seu status no momento de sua morte,
revelando traços fundamentais de sua identidade citadina. Além disso, permitem mapear
as redes associativas dos citadinos, assim como seus desejos póstumos, como
peregrinações por procuração, missas encomendadas, doações, entre outros. Não se
pode deixar de mencionar, porém, os limites desse tipo de estudo, uma vez que essa
documentação se refere em especial à nobreza e à nova burguesia da cidade, deixando
às escuras as práticas mortuárias difundidas por outros grupos sociais que compõe a
Londres do século XIV.
Os testamentos seguem, em geral, uma fórmula comum. Como primeira
resolução, o citadino escolhe o local onde deseja ser sepultado e, em alguns casos,
detalha o modo como se deve proceder seu sepultamento, como indica um testamento
arrolado em 13 de outubro de 1369:

Evenefeld (John de), pepperer.—To be buried in the church of S. Mary de


Aldermariechirche near the tomb of Dionisia his late wife. (…) His body not
to be left above ground, but to be placed in a chest underground, and to be
previously covered with ten ells of black or russet cloth of the value of forty
pence the ell; the same to be afterwards distributed to five poor people.
Provisionalsomade for waxtapers. 2

John de Evenefeld descreve o local onde deve ser enterrado, no interior da igreja
e próximo ao túmulo de sua falecida esposa, estendendo, assim, os seus laços em vida
ao seu descanso eterno. O testador detalha ainda como deseja ser sepultado e, para isso,
deixa os recursos pecuniários necessários.
Em seguida, os testamentos apresentam, em geral, a prescrição da quantidade de
missas e orações a serem realizadas pela alma do falecido. Por vezes, a data de sua
morte é escolhida como celebração perpétua, para o que se direciona uma generosa
soma à paróquia de origem ou à paróquia de sua fraternidade. Lista-se, então, as somas
deixadas em favor das paróquias, ordens religiosas, hospitais, obras de piedade, obras
em favor da cidade e fraternidades de sua preferência. Por fim, atestam-se os bens a
serem herdados por sua família e, em alguns casos, amigos. Essas informações sobre os
favores prestados pós-morte, assim como o local de sepultamento, são indicações

2 'Wills: 43 Edward III (1369-70)', in Calendar of Wills Proved and Enrolled in the Court of Husting,
London: Part 2, 1358-1688, ed. R R Sharpe (London, 1890), pp. 123-134 http://www.british-
history.ac.uk/court-husting-wills/vol2/pp123-134 [accessed 5 July 2015].

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


418
essenciais dos grupos aos quais se pertence, contribuindo para a percepção da
identidade construída pelos mesmos.
Apresentamos a seguir um exemplo bastante representativo dos temas
recorrentes nos testamentos e das redes através destes remontadas:

Wycombe (Richard de), corder.—To be buried in the church of All Hallows


at the Hay, to which he leaves sums of money for maintenance of chaplains,
&c. Instructions for the disposition of wax torches at his funeral. His
executors to buy cloths of gold, each of the value of fifty shillings, to place
around his corpse upon the bier; the same to be given to the aforesaid church
after his burial. Provision made for chantries in the same church for the good
of his soul, the souls of Cristina his late wife, Mathias his father, Matilda his
mother, Henry his master, Richard his nephew, John and Adam his brothers,
Matilda his sister, and others. Bequests also to the church of All Hallows de
Wycombe and to the poor of the parish, as well as to the various religious
orders in London, the inmates of prisons and hospitals, the church of S. Paul,
the work of London Bridge, the nuns of Kellyngbourne, Chesthunt, and
Stratford. To Alice his daughter he leaves forty shillings; and to Johanna his
daughter, a nun of Berkyngg, twenty shillings. To Petronilla his wife, by way
of dower, five hundred marks of silver, and divers cups of silver and of
mazer, as well as other household goods. To Isabella his daughter two
hundred marks of silver for her marriage, and his best silver spicedisshe.
Among numerous other bequests he leaves to each of his apprentices in the
Ropery ten shillings; to William his brother ten pounds sterling; and to John
his nephew, son of John his brother, all his balances, weights, and other
implements of trade belonging to his shop in the Ropery. Also to his
aforesaid daughter Isabella the reversion of tenements in the parish of All
Hallows upon the Cellar, after the decease of Petronilla his wife. Dated
London, Saturday the Vigil of H. Trinity [27 May], A.D. 1358.
Also he wills that the aforesaid Isabella, together with her goods and chattels,
remain under the care of Petronilla his wife, she finding the usual security at
the Guildhall. Release of a sum of money due from his fermers at Little
Hadham. The Abbot and Convent of Dorchestre to enjoy an annual rent
issuing from certain tenements in the parish of All Hallows upon the Cellar;
and other pecuniary legacies to divers persons. Dated London, under his
signet, Saturday next after the Feast of Annunciation of B.V. Mary [25
March], A.D. 1359. Roll 89 (67).3

O cordoeiro indica, em primeiro lugar, onde e como deve ser sepultado,


deixando uma soma para a igreja que será sua última morada. Preocupa-se também em
encomendar cânticos e orações em favor de sua alma, assim como das almas de sua
esposa, seus pais, seu mestre e outros entes próximos. Este aspecto, recorrente em
grande parte dos testamentos, reitera a noção então difundida de que as intercessões
realizadas em intenção dos falecidos tinham um papel fundamental na sua salvação ou,

3 'Wills: 35 Edward III (1361-2)', Calendar of wills proved and enrolled in the Court of Husting,
London: Part 2: 1358-1688 (1890), pp. 13-64. URL: http://www.british-
history.ac.uk/report.aspx?compid=66902 Date accessed: 10 September 2014.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


419
como indica a narrativa anteriormente citada, podiam definir sua condenação imediata.
No entanto, destacamos, sobretudo aqui, as redes pessoais que se desenham. O testador
empenha-se em prover orações para os membros da família que já haviam partido,
tecendo no Além a rede familiar na qual estava inserido. Da mesma forma, este citadino
não abandona sua identidade dentro deste corpo social, cuidando também de contribuir
para a salvação da alma de seu mestre e, assim, cumprindo seu papel dentro de sua rede
profissional.
Entretanto, não é somente com os já falecidos que o testador estabelece suas
interações. Embora, no momento da execução de suas vontades, ele não esteja mais no
plano terreno, preocupa-se em reforçar seus vínculos com os vivos. Começa por dividir
sua herança entre as filhas e sua segunda esposa, favorecendo a filha solteira, que
precisaria de uma quantia considerável para fazer um bom casamento e deixando à
esposa o que lhe era de direito. Ainda no âmbito familiar beneficia seu irmão e seu
sobrinho, levando-nos a considerar que este último também integrava seus laços
profissionais, uma vez que recebe como herança seus instrumentos de trabalho. Nesta
esfera, atentamos para a menção a sua oficina, the Ropery, e para o fato de colocar seus
aprendizes entre seus herdeiros. O oficio é um eixo essencial da identidade desses
citadinos e, por isso, mesmo no momento da morte, os laços profissionais são
reforçados. Afinal, como mestre de ofício, é principalmente neste meio que sua
memória será mantida.
Como mencionado anteriormente, os falecidos procuram marcar em seus
testamentos seu lugar no corpo social. Para tanto, não se esquecem de deixar sua
contribuição para o bem social. No exemplo de Richard de Wycombe, observamos que
ele cuida de reservar partes de sua herança para os pobres de sua paróquia (All Hallows
de Wycombe), para diversas ordens religiosas de Londres, para as prisões e hospitais,
assim como para as obras de St. Paul’s e da London Bridge. Essas duas últimas doações
nos remetem a dois pontos essenciais. O primeiro refere-se às indulgências concedidas
por algumas instituições religiosas; em Londres, St. Paul’s torna-se uma das principais
concessoras ao buscar atrair doações para suas obras de ampliação e restauração. O
segundo aponta para a participação como membro da cidade; esses citadinos que podem
registrar seus testamentos são cidadãos reconhecidos de Londres e, como tais, inserem
entre suas últimas vontades uma forma de contribuir para o bem da cidade, reforçando

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


420
sua presença nos laços associativos desta e preservando sua memória.
De acordo com Rubin, “[w]ills clearly reveal the life-worlds of their makers and
illustrate efforts to knit together, at the end of a life, a web of associations and
memories” (RUBIN, 2006:388). Permitiam reavivar suas redes associativas, assim
como assegurar desejos não realizados em vida, mas que podiam ser então realizados
em nome daquele que já estava morto. Uma dessas possíveis aspirações são as
peregrinações, que assumem no medievo uma função de destaque na busca de objetivos
espirituais, em especial, na purgação dos pecados. Esta é, por exemplo, a opção de
Roger Crede ao registrar seu testament em 1385: “Also if he happen not to go to Rome
before he dies he leaves ten marks for some honest man to go there on his behalf and
there remain, visiting the stations (stacionesituro) and praying for his soul, throughout
Lent (per totam quadragesimam).”4 O tecelão reserva, então, parte da sua herança para
que seja feita uma peregrinação à Roma em seu nome, detalhando o período e o
itinerário a ser seguido pelo peregrino, ou seja, a visita às estações que rememoravam a
vida de Jesus e de seus apóstolos,durante a Quaresma.
No entanto, embora essas viagens lancem luz sobre os deslocamentos de longa
distância empreendidos pelo homem medieval, é importante lembrar que estes eram em
sua maioria deslocamentos de âmbito regional, direcionando os viajantes para não
muito mais distante do que paróquias e cidades vizinhas (DUFFY, 2006:315-316).

Copyn (Thomas), butcher.—To be buried in the church of S. Botolph without


Algate. Bequests to the said church, Sir Ralph the rector, and other ministers
thereof; to each order of friars in London for a trental of masses; to the
inmates of various hospitals and of Neugate prison. Provision made for eight
chaplains in the church of S. Botolph aforesaid, and for a pilgrim to travel on
his behalf to the various shrines of S. Mary de Walsyngham, S. Edmund, S.
Mary de Stokes, S. Mary de Manlond, and S. Thomas the Martyr at
Canterbury, and there to make offerings. To Alice his wife, by way of dower,
he leaves for life a tenement with shops in the aforesaid parish of S. Botolph;
remainder to Thomas his son and to the infant with which his said wife is
enceinte, and to the heirs of their respective bodies; remainder in trust for sale
for pious uses. Dated London, 28 May, A.D. 1361. Roll 94 (152).5

O testamento do açougueiro faz referência aos principais centros de

4 'Wills: 9 Richard II (1385-6)', in Calendar of Wills Proved and Enrolled in the Court of Husting,
London: Part 2, 1358-1688, ed. R R Sharpe (London, 1890), pp. 248-259 http://www.british-
history.ac.uk/court-husting-wills/vol2/pp248-259 [accessed 5 July 2015].
5 'Wills: 40 Edward III (1366-7)', in Calendar of Wills Proved and Enrolled in the Court of Husting,
London: Part 2, 1358-1688, ed. R R Sharpe (London, 1890), pp. 92-98 http://www.british-
history.ac.uk/court-husting-wills/vol2/pp92-98 [accessed 5 July 2015].

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


421
peregrinação do território insular. Para Webb, as peregrinações de curta distância e
duração seriam, para uma grande maioria, a regra, não a exceção (WEBB, 2000:XIV).
Tal situação dever-se-ia principalmente ao custo dessas viagens. Antes de partir, era
preciso planejar os detalhes da jornada, como a época do ano, a duração do percurso, a
hospedagem ao longo do caminho e no destino, pois todos esses fatores determinam os
gastos da viagem. Por isso, para muitos ingleses, mesmo após a morte, os santuários e
sepulcros insulares eram os únicos aos quais se podia almejar.
Tal aspecto nos atenta ainda para o alcance dos bens que os testadores possuíam
em vida e que podiam ser distribuídos, na eminência da morte, entre herdeiros, doações
e atos pios. Desse modo, os testamentos apontavam para as posses do indivíduo e seu
status no momento de sua morte, revelando aspectos fundamentais da identidade desses
citadinos. Como aponta Júnia Furtado, os testamentos podem ser testemunhos sobre a
morte, mas são, acima de tudo, testemunhos sobre a vida, tanto material quanto
espiritual (FURTADO, 2009:93).
Estes dois eixos caminham lado a lado na documentação uma vez que, quanto
maiores as posses do indivíduo, em maior número surgem os atos pios previstos em
testamento. Todos os testadores aludem, ao menos, a uma igreja, sua igreja paroquial ou
aquela que escolhem para seu sepultamento, e para esta fazem uma doação. Todavia,
quando observamos os testamentos dos citadinos mais abastados, há uma profusão de
doações a diversas igrejas e ordens religiosas da cidade, e até mesmo em outras cidades
do reino. A exemplo disso, citamos o testamento de Edelena Atte Legh, esposa de um
mercador de peixes:

AtteLegh (Edelena, wife of Thomas, late "stokfishmongere").—To be buried


in the cloister of the collegiate church of S. Laurence near Candelwykstrete.
Bequests to the master and chaplains of the said church; the chaplains of the
church of S. Michael de Crokedelane, to the high altar of which she leaves
her best tablecloth and towel; to the Abbot and Convent of Abyndon, and the
Priory of Assherugge; to the church of Eton near Wyndesore, where she was
baptized, for the maintenance of a chantry therein; to the work of S. Paul's,
the five orders of friars in London, the inmates of divers hospitals, the Prior
and Convent of the house called "le Charthous" near Smythfeld; the lepers at
la loke, of S. James's near Westminster, of S. Giles's, and at Hakeneye;
prisoners in Neugate, &c. Three thousand masses to be sung for the good of
her soul within one month after her decease, and provision made for her
funeral, observance of month's mind, &c. A long cloth of russet to be
purchased for covering her coffin at her funeral, having a fair cross of white
cloth in the middle; the same to be distributed to the poor after her funeral.
(…) Dated London, Tuesday next after the Feast of Translation of S. Thomas

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


422
the Martyr [7 July], A.D. 1375.6

A testadora indica diversas doações a instituições religiosas variadas, como a


igreja em que seria sepultada e a igreja onde fora batizada, encomendando as orações
que estas deveriam realizar, além de doações aos leprosos, presos e pobres. Essas ações
caritativas eram consideradas cruciais na busca pela salvação, mas não bastavam. Desse
modo, a citadina define previamente as orações que devem ser feitas em intenção de sua
alma, e não poupa esforços: devem ser celebradas 3 mil missas em seu benefício no
período de um mês, além da missa de 1 mês (month’smind).
No entanto, estas missas pelos falecidos não eram uma responsabilidade
exclusiva das igrejas. Nestas, deviam se fazer presentes seus familiares, seus vizinhos,
seus confrades e companheiros de oficio, assim como todos aqueles que haviam sido
beneficiados pelas doações testamentárias.

“Moreover, by bestowing benefactions on the community through their


testaments, the dead established a claim on the memory of the living, and,
explicitly or implicitly, in a virtually contracted manner, required the
‘counter-gift’ of prayers for their souls in Purgatory.” (GORDON e
MARSHALL, 2000:4-5)

No momento da morte e na produção dos testamentos, os citadinos destacavam


suas redes pessoais, profissionais e caritativas, através de doações e obrigações
mortuárias. Desse modo, estabelecia-se uma relação recíproca entre os vivos e os
mortos. A manutenção da memória deixava de ser, então, uma responsabilidade
exclusiva da família, sendo delegada também a grupos mais amplos, como as guildas,
fraternidades e paróquias.

Embora os pontos desenvolvidos neste trabalho tenham sido abordados de


forma breve, é possível destacar um aspecto central. As interações entre os vivos e os
mortos nos ritos funerários e post mortem lançam luz sobre questões fundamentais no

6 'Wills: 49 Edward III (1375-6)', in Calendar of Wills Proved and Enrolled in the Court of Husting,
London: Part 2, 1358-1688, ed. R R Sharpe (London, 1890), pp. 167-186 http://www.british-
history.ac.uk/court-husting-wills/vol2/pp167-186 [accessed 5 July 2015].

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


423
que tange à produção e à manutenção da memória dos citadinos. E, assim, ampliam o
horizonte de estudos sobre a memória medieval.

BIBLIOGRAFIA
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Dicionário temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC/Imprensa Oficial SP,
2002, v1.
DUFFY, Eamon. Religious belief. In: HORROX, Rosemary & ORMROD, W. Mark
(Eds.). A Social History of England 1200-1500. Cambridge: Cambridge University
Press, 2006.
FURTADO, Junia Ferreira. A Morte como testemunho de vida. In: DE LUCA, Tania
Regina; PINSKY, Carla Bassanezi. O Historiador e Suas Fontes. São Paulo: Contexto,
2009.
GORDON, Bruce and MARSHALL, Peter (ed.). The place of the dead: death and
remembrance in late medieval and early modern Europe. Cambridge: CUP, 2000.
LAUWERS, Michel. Morte e mortos. In: LE GOFF e SCHMITT. Dicionário Temático
do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, 2002, v. 2, pp. 243-261.
RODRIGO-ESTEVÁN, Maria Luz. Muerte y Sociabilidad em Aragón. In: CEA, Juan
Carlos Martín (Coord.). Convivir en la Edad Media. Burgos: Dossoles, 2010, p. 285-
320.
RUBIN, Miri. Identity. In: HORROX, Rosemary & ORMROD, W. Mark (Eds.). A
Social History of England 1200-1500. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.
THE RIVERSIDE CHAUCER. Larry D. Benson (ed.). 3. ed., Oxford: Oxford
University Press, 2008.
WEBB, Diana. Pilgrimage in Medieval England. London and New York: Hambledon
and London, 2000.

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


424
A DIMENSÃO HISTÓRICA NA CANÇÃO DOS NIBELUNGOS:
REFLEXOS DOS POVOS GERMÂNICOS NO POEMA MEDIEVAL

Wanderson Fernandes Fonseca


(PPGLetras/ UEMS)

RESUMO: Neste trabalho foram identificados, discutidos e relacionados com a obra


medieval germânica A Canção dos Nibelungos, alguns dos elementos históricos que
possibilitaram a elaboração das diferentes lendas perpetuadas através da consciência
poética dos povos germânicos. Bem como a maneira com que a preparação da obra
reflete esses elementos.

Palavras-chave: A Canção dos Nibelungos, Literatura, História

ABSTRACT: In this paper were identified, discussed and related to Medieval


Germanic book The Song of the Nibelungs, some of the historic elements that made
possible the preparation of various legends perpetuated through the poetic
consciousness of the Germanic peoples. And the way the preparation of the work
reflects these elements.

Keywords: The Song of the Nibelungs, Literature, History

Introdução:
Este trabalho apresenta resultados parciais da pesquisa desenvolvida no
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de Mato Grosso do
Sul (UEMS), sob orientação da Profª Drª Ana. A. Arguelho de Souza. A pesquisa tem
por objetivo levantar fontes e realizar um estudo acerca dos elementos míticos, literários
e históricos no poema germânico medieval A Canção dos Nibelungos. O trabalho
vincula-se à linha de pesquisa Historiografia Literária, do referido programa de Pós-
Graduação, e ao grupo de estudos e pesquisa Literatura e Humanidades, coordenado
pelo Profº Drº Daniel Abrão.
Nesta comunicação foram identificados, discutidos e relacionados com a obra
alguns dos elementos históricos que possibilitaram a elaboração das diferentes lendas
perpetuadas através da consciência poética dos povos germânicos. Bem como a maneira
com que a preparação estética e temática da obra reflete esses elementos.
Para a análise aqui realizada, considerou-se a observação da história e de suas
transformações como conteúdo social para as criações artísticas. Esta consideração
pressupõe a afirmação de uma natureza histórica da obra literária e a adoção da crítica

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


425
marxista como fundamentação teórica, o que se deu pela compreensão de que assumir
tal postura

[...] diz respeito a compreender a natureza histórica da obra literária, a inferir


do mundo delineado pela linguagem da obra mediações que permitam
perceber nela as pegadas do humano, do universal, daquilo que representa a
totalidade do mundo construído pelo homem. (SOUZA, A.A.A. 2005: 51)

A compreensão da totalidade de que fala a autora é buscada por meio do


entendimento das mediações estéticas através das quais as obras de arte se relacionam
com o mundo. Podendo essa compreensão, ainda, ser apreendida na singularidade das
obras de arte, e da literatura neste caso particular.

A obra:
A Canção dos Nibelungos, compilada por volta de 1200, é escrita em forma de
versos e dividida em cantos, 39 cantos ao todo. Podem, ainda, ser percebidas duas
partes claramente distintas: uma composta de 19 cantos com origem supostamente
lendária, onde são narradas as origens e aventuras do bravo herói Siegfried e de sua
esposa, Kriemhild, bem como a morte de Siegfried; e outra parte composta de 20 cantos
com origem de base supostamente histórica, onde se narra o casamento de Kriemhild
com Etzel, soberano dos hunos, e seu plano de vingança contra os assassinos de seu
primeiro esposo.
A obra apresenta uma parte totalmente embasada em mitos anteriores. As
principais sagas, mais antigas que ela, nas quais se identificam elementos ali presentes
são as Eddas, a Volsunga Saga e a Saga Thidreks. Todavia, há, entre os estudiosos de
literatura, quem considere o caráter histórico como o principal da obra. Um desses
estudiosos é Otto Maria Carpeaux, que ainda vê na Canção... “a maior façanha de toda a
literatura dos cavaleiros” (2013: 17). Segundo ele:“[...] Em todo caso, versão da saga
nórdica só é a primeira parte do poema, a menos importante, contando as causas e os
motivos da agonia trágica pela qual passarão os Nibelungos na segunda parte; [...]”
(CARPEAUX, 2013:16, grifo nosso).
A segunda parte de que fala o autor é a recordação histórica do ataque dos hunos
liderados por Átila (Etzel, no poema) contra as tribos germânicas, que no poema tem

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


426
como finalidade dar cabo à vingança da terrível Kriemhild. Tal episódio é identificado
como a Batalha dos Campos Catalúnicos.
Vale ressaltar que, como literatura de documentação histórica, A Canção dos
Nibelungos foi declarada “patrimônio documental da humanidade” pelo programa
Memory of the World (Memória do Mundo) da UNESCO em 2009. Também foi
considerada o grande poema épico nacional germânico pelos intelectuais do
Romantismo Nacionalista alemão do século XIX, entre os quais estava o compositor do
ciclo de óperas O Anel do Nibelungo, Richard Wagner.1
A obra é anônima e, se a sua autoria permanece ignota, a região onde foi escrita
parece ser mais consensual entre os estudiosos. Isso porque a região de Passau, na
Bavária, às margens do Danúbio, perto da fronteira com a Áustria e seus arredores, são
descritos no poema com bastante exatidão. Essa exatidão faz a crítica deduzir que ali
teria vivido o provável autor da obra.
A terra dos burgúndios, que é a de Kriemhild, assim como a dos Países Baixos,
que é a de Siegfried, fica às margens do Reno. E lá se passa a maior parte da história na
primeira metade do poema. Às margens do Danúbio ocorre a segunda parte da estória.
Sucede também o episódio do encontro de Hagen com as ninfas do rio;, elas vaticinam a
morte dos guerreiros que estão indo às terras de Etzel.
Como os burgúndios são identificados como um dos povos germanos que
entraram em contato com os romanos, trazendo consigo o passado germânico, iniciamos
apresentando os povos germânicos, de maneira geral.
Para entender como esse povo chegou ao século XIII, e que bagagem tinha para
construir uma obra histórica como A Canção dos Nibelungos, apresenta-se um breve
estudo da formação histórica dos germanos.

Os germanos e seu reflexo na Canção...


O que conhecemos como germanos, na verdade, não se tratava de um povo
determinado, mas de várias tribos mais ou menos numerosas que falavam múltiplos
dialetos e eram, entre si, extremamente heterogêneas.

1 Sobre a influência da Canção dos Nibelungos na obra de Wagner, especificamente, foi publicado um
estudo comparando as duas obras em um artigo intitulado História e Intertextualidade em O Anel do
Nibelungo de Richard Wagner: as fontes literárias (2013).

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


427
Oliveira (1988) aponta que três grandes grupos de germanos podem ser
reconhecidos: os germanos do norte constituído por frisões, anglos, saxões, jutos e
nórdicos; os germanos do centro (ou dos bosques) que eram os francos, alamanos,
marcomanos, suevos, turíngios, burgúndios, lombardos e vândalos; e os germanos do
leste (ou das estepes), formado pelos visigodos e ostrogodos. Esses últimos foram os
primeiros a terem contato com os hunos, que chegaram à Europa por volta do século IV.
Sobre o modo como foram percebidos pelos romanos que os contataram no
período, a obra Germânia, de Tácito (s/d), escrita por volta do primeiro século, os
descreve fisicamente: “Eu mesmo propendo à opinião de que os povos da Germânia
jamais se aliaram por casamentos a outras nações e não foram desnaturados, e existiram
como povo (nação) permanente e puro, somente semelhante a eles próprios” (p. 26).
O autor segue descrevendo fisicamente os germanos. Afirma que o aspecto
corpóreo seria o mesmo entre todos os homens (olhos turvos e cerúleos, cabelos loiros,
grande estatura, etc.) e que seriam impetuosos para o ataque. Além disso, afirma que
não teriam paciência para a fadiga e o trabalho, apesar de poderem suportar a fome e o
frio por conta do clima e do solo.
Antes do primeiro século d.C., ao tempo de César, quando os romanos
começaram a negociar com as tribos germânicas, toparam com um povo agricultor e
pastoril que desconhecia a propriedade privada de terra. Não lidava muito com a prata
ou o ouro, somente os povos mais próximos às fronteiras do Império usava em maior
quantidade esse metal nas trocas com os romanos.
O poder era exercido por líderes tribais que, basicamente, tinham a função de
distribuir o solo a ser cultivado. Líderes excepcionais eram eleitos em tempos de guerra,
na paz não havia uma liderança centralizada que dominasse sobre todo o povo, mas
líderes regionais, eleitos e mantidos por assembleia. Sobre seu modo de produção,
distribuição da riqueza e liderança, Perry Anderson afirma:

(...). Um modo de produção comunal primitivo prevalecia entre eles. A


propriedade privada de terra era desconhecida: a cada ano os líderes de uma
tribo determinavam que parte do solo comum deveria ser cultivada e
distribuíam porções dela aos clãs respectivos, que as lavrariam e se
apropriariam dos campos coletivamente: as redistribuições periódicas
evitavam grandes disparidades de riqueza entre os clãs e as famílias, embora
os rebanhos fossem propriedade particular, que proporcionavam as fortunas
dos guerreiros liderantes das tribos. (ANDERSON, 2000: 103)

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428
Esse modo de produção é característico de povos em estágio de transição da
barbárie2 à civilização, e, de fato, é nessa transição que os germanos ainda se encontram
quando entram em contato com os romanos (ENGELS, 2014).
Um dos resquícios desse tempo de barbárie, na obra investigada, é o poder
conferido às mulheres. Aí, na literatura, elas não só reinam, mas decidem o destino de
povos e o desfecho de guerras, definem as decisões dos homens.
No poema há registro de um vestígio desse poder feminino. Quando Kriemhild
fica viúva, manda trazer o tesouro que pertencia a Siegfried da terra dos Nibelungos; e
por conta desse tesouro acumula um poder que põe temor em seus irmãos e em Hagen:

Agora que Kriemhild possuía o tesouro, convidou a seu país muitos


guerreiros de outras terras e presenteou-os tão ricamente que jamais poderiam
ter visto tanta generosidade. Ela mostrou suas qualidades e foi reconhecida
por isso. Distribuía sua fortuna a ricos e pobres, e Hagen afirmou que, se ela
vivesse ainda por algum tempo, teria tantos homens a seu serviço que se
tornaria um perigo para os burgúndios.
O rei Gunther respondeu: “Ela é senhora de si e de suas posses. Como
poderia eu impedi-la de fazer o que quer? Com grande dificuldade
consegui reconciliar-me com ela. Não nos preocupemos com o que faz com
seu ouro e sua prata!” (ANÔNIMO, 2001: 177, grifo nosso)

Apesar do poder aí conferido ser limitado à “compra” de cavaleiros através de


suas doações, vê-se uma grande autonomia de Kriemhild em suas ações, conforme fica
testemunhado nas palavras de seu irmão Gunther.
Quanto à transferência de poder para as mulheres, historicamente, Engels,
enquanto considera escritos de Tácito sobre o fato de um tio materno considerar o
sobrinho como se fosse um filho seu, afirma termos “aqui uma relíquia viva da gens
organizada segundo o direito materno, quer dizer, primitiva, que é descrita como algo
que distingue particularmente os germanos” (ENGELS, 2014:166).
Para ilustrar apresentamos a nomeação de um regente para o país da Islândia,
quando sua rainha, Brünhild, deve deixar sua terra e acompanhar Gunther à terra dos
burgúndios, onde se ternará sua esposa. A rainha escolhe, para reger em seu lugar até
que Gunther se torne rei daquelas terras, um tio materno:

2 Engels, em A origem da família, da propriedade privada e do estado, divide cronologicamente as


sociedades humanas de acordo com seus meios de apropriação da terra e de produção. Assim, ele
classifica três estágios básicos do desenvolvimento das sociedades: Estado de selvagem; barbárie e
civilização. (ENGELS, 2014).

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429
A rainha disse: “A quem confiarei minhas terras? Isso deve ser decidido por
mim e por vós antes de partirmos.”
O nobre rei respondeu: “Mandai vir à vossa presença quem vos parecer mais
apropriado para isso, e nós o nomearemos soberano!”
A rainha viu perto dela um de seus mais ilustres familiares, o irmão de sua
mãe, e disse-lhe: “Que lhe sejam confiadas minhas terras e meus burgos, até
que o rei Gunther passe a governar aqui!” (ANÔNIMO, 2001: 85)

Outra passagem de Engels ilustrativa do trato conferido às mulheres, que têm


ecos na saga, é a que aborda o respeito a elas atribuído pelos germanos. Segundo o autor
era quase incompreensível para os romanos o trato que os germanos devotavam ao sexo
feminino. Para realizar um trato com eles, por exemplo, era bastante seguro que se
mantivesse uma donzela de família nobre como refém. Os germanos consideravam as
mulheres sagradas, com dons proféticos. Seus conselhos eram ouvidos em diversos
assuntos, até nos mais importantes, como assuntos de guerra.
Também é possível encontrar registros dessa consideração dos germanos pelos
conselhos das mulheres nos escritos de Tácito. Em Germânia, o escritor romano afirma
o seguinte:

Rememora-se que exércitos indecisos foram incentivados pelas mulheres, da


constância de suas preces e oferecimento de seus seios (peitos), e pelo
cativeiro (por eles) pressentido próximo de que se arreceiam muito mais para
suas mulheres do que para eles próprios, de tal modo que se demanda com
mais eficácia o compromisso (fidelidade) das cidades, delas exigindo-se entre
as presas (reféns) moças nobres. (TÁCITO, s/d: 32)

E sobre os dons proféticos das moças, bem como sobre a consideração de seus
conselhos, ainda é Tácito que afirma que elas não eram desprezadas, pois os homens
consideravam que elas teriam algo de santidade e de providencial.
Acerca do matriarcado, Anderson (2000) também dá conta que ao tempo em que
os romanos tiveram o primeiro contato com os bárbaros germanos, por volta do
primeiro século da Era Cristã, encontraram um povo predominantemente pastoril e com
um modo de “produção comunal primitivo”. Segundo ele, foi somente no contato com
os romanos que o matriarcado começou efetivamente a ser substituído por uma
linhagem patriarcal que marcava propriedades dentro da tribo e posições sociais,
especialmente nos conselhos de guerra.
Considerar os conselhos das mulheres, na cultura delineada na obra, não apenas
era importante, era vital. Assim agem os reis burgúndios na Canção..., sempre

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430
recorrendo aos conselhos da poderosa rainha Uote, mãe de Kriemhild e dos dois reis da
pequena nação, tanto para assuntos de guerra quanto de caça; a ela e a sua irmã também
recorrem quando precisam preparar a nação para receber visitantes ilustres, como os
cavaleiros que acompanham Siegfried em sua primeira viagem à terra dos burgúndios.
Assim também são tratados os vaticínios de Kriemhild sobre sua futura vingança. Antes
mesmo de conhecer Siegfried, Kriemhild tem visões proféticas sobre seu futuro:

Em meio a tal magnificência, Kriemhild sonhou que criava um falcão, forte,


belo e selvagem, e que duas águias o dilaceravam diante de seus olhos; nada
neste mundo poderia ser para ela mais doloroso. Ela contou o sonho à sua
mãe, Uote, que não pôde dar à bela jovem uma interpretação melhor que esta:
“O falcão que crias é um nobre homem. A menos que Deus o proteja, tu em
breve o perderás.” (ANÔNIMO, 2001: 10)

Na nossa perspectiva, a obra literária reflete aspectos da vida real. Assim,


consideramos que essas ilustrações encontradas na obra refletem os aspectos de barbárie
que ainda havia na memória dos povos germânicos que habitavam as fronteiras do
Império Romano. Ilustrativo dos resquícios de matriarcado entre os germanos
encontrados por Tácito, é a seguinte passagem, em que fala sobre o matrimônio:

A mulher não (dota) oferece dote ao marido, mas o marido à mulher.


Interferem os pais e os parentes e verificam os presentes; presentes não para
despertar (vaidade) à mulher, nem para com eles se adornar a nova esposa,
porem bois e um cavalo arreado e um escudo com a frâmea e o gládio.
(TÁCITO, s/d: 46)

Têm-se aí o fato de a mulher receber um dote e, apenas após a verificação por


parte dos parentes da utilidade do dote oferecido, é aceito o matrimônio. Na obra
estudada, Siegfried além de ter que vencer várias provações para mostrar-se digno de
casar-se com Kriemhild, a princesa burgúndia; o casamento só se realiza porque Hagen
fala aos reis burgúndios sobre o tesouro imenso e o controle do exército dos Nibelungos
que Siegfried tem sob sua posse.
Sobre a maneira de praticar a justiça, Oliveira esclarece que era aplicada com
base em tradições tribais; visando, em primeiro lugar, manter o grupo forte e coeso. E
segue afirmando que

[...]. Admitia-se, entre outras coisas, o direito de vingança familiar, a ser


exercido pelos parentes das vítimas contra os integrantes das famílias dos

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agressores. Inexistia, pois, entre os germanos, uma lei escrita, destinada a ser
cumprida por todos os integrantes do grupo, como acontecia entre os
romanos. (OLIVEIRA, 1988: 16)

Ainda segundo esse autor, o direito dos germanos opunha-se, dessa maneira, ao
direito dos romanos, que era escrito. O direito do primeiro povo considerava cada caso
único e realçava, em cada um dos casos, as circunstâncias particulares que o
envolvessem (Id. Ibid. : 16).
A afirmação de Oliveira, sobre a prática da justiça, refere-se ao tempo por volta
do século IV. Como foi por essa época que os germanos tiveram seu primeiro contato
com os hunos, deduzimos que a segunda parte da Canção... alude, em grande parte, a
esse período. A falta de leis escritas, o direito a vingança familiar e a formação de
conselhos específicos para cada caso também ficam refletidos na obra.
Para cada batalha, para cada caso de traição ou julgamento que precise ser feito
há uma deliberação diferente, isso abre a possibilidade de Hagen estar sempre
influenciando o rei Gunther no poema. Quando Siegfried é assassinado por Hagen em
uma caçada, os guerreiros de seu séquito querem iniciar uma guerra imediatamente, mas
sua esposa os aconselha a esperarem, pois estão em terra estrangeira e em grande
desvantagem. Mas ali mesmo todos os guerreiros de Siegfried juram lealdade à rainha
Kriemhild e juram também ajudá-la a executar sua vingança. O excerto abaixo
demonstra como a rainha e os pais de Siegfried recebem a notícia de sua morte, e, um
pouco adiante, a confirmação do assassinato e o juramento de vingança:

“Meu senhor Siegmund”, disse a desolada rainha,“o que pretendeis fazer?


Não sabeis que o rei Gunther conta com muitos homens destemidos?
Morrereis todos se enfrentardes estes guerreiros!”
Mas eles tinham sede de batalha e erguiam seus escudos. A nobre
rainha primeiro pediu-lhes, depois ordenou que se contivessem, mas os
orgulhosos guerreiros não queriam voltar atrás em suas intenções, o que
muito preocupou Kriemhild. “Senhor Siegmund”, disse ela, “esperai até que
uma ocasião mais favorável se apresente. Estarei sempre pronta a vingar
convosco meu esposo. Quando eu tiver as provas de quem o matou, causar-
lhe-ei muito mal. Aqui no Reno há muitos homens arrogantes, são trinta para
cada um de vós, por isso não vos aconselharia a lutar. Que Deus permita que
eles recebam de nós tudo o que merecem! Ficai e ajudai-me a suportar essa
dor. Bravos heróis, quando amanhecer, deveis ajudar-me a colocar no ataúde
meu amado esposo!”
“Que assim seja!”, responderam os guerreiros.
[...]
É algo admirável e que ainda hoje acontece: quando um assassino se
aproxima do corpo de sua vítima, os ferimentos voltam a sangrar. Foi o que

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aconteceu, e então ficou claro que Hagen era culpado. As feridas voltaram a
sangrar como antes, e os que lamentavam, agora redobraram seu pranto.
“Digo-vos que ele foi morto por salteadores”, afirmou o rei Gunther,
“Hagen nada fez.”
“Bem conheço esses salteadores!”, respondeu Kriemhild. “Deus
permita que ele seja vingado por seus amigos. Gunther e Hagen, vós o
assassinastes!” Os guerreiros de Siegfried já se preparavam para a luta.
“Ajudai-me a suportar essa dor!”, disse-lhes Kriemhild.
(ANÔNIMO, 2001: 162-163)

O excerto é longo, mas reflete com verdadeira beleza literária o valor dado à
honra familiar e ao sentimento de vingança, bem como resgata crenças populares como
a de que um corpo voltaria a sangrar caso seu assassino dele se aproximasse.
A estrutura social encontrada no primeiro contato entre romanos e germânicos
foi modificada com a chegada, e ocupação, dos romanos à região compreendida entre o
Reno e o Elba no século I d. C. Um comércio foi estabelecido entre as tribos germânicas
e o Império. Mercadorias de luxo dos romanos passaram a ser trocadas por gados ou por
escravos capturados em incursões germânicas sobre outras tribos para esse fim. Esse
comércio teria produzido rapidamente “uma crescente estratificação interna dentro das
tribos germânicas” (ANDERSON, 2000: 104), tornando mais desigual e menos
frequentes a distribuição das terras, e distribuindo-as diretamente para os indivíduos,
não mais para os clãs.
O comércio que abastecia os germanos de mercadorias de luxo também fica
evidenciado no poema, no episódio em que Kriemhild prepara roupas para que seus
irmãos e o estrangeiro Siegfried se apresentem na corte de Brünhild:

“Queremos trajar belas vestes, cara irmã, e deves ajudar-nos a


prepará-las com tua nobre mão [...]”
[...] Deveis agora ouvir maravilhas sobre seus deslumbrantes trajes.
As mulheres dispunham em abundância da melhor seda do Marrocos
e da Líbia que já possuiu qualquer outra família real. Kriemhild demonstrava
claramente sua estima por esses cavaleiros. Já que era tão alto o objetivo
desta viagem, as peles de arminho pareciam insuficientes, assim foram
recobertas com brocado negro como carvão e, decorado com pedras que
luziam sobre ouro da Arábia [...]. (ANÔNIMO, 2001: 62 – 63)

Além das relações comerciais consolidadas, temos também uma divisão de


classes já bem solidificada no poema com pouca, ou nenhuma, mobilidade social. A
falta de mobilidade social na obra reflete, além da época romantizada dos bárbaros do
século V, a própria época em que foi escrito, o século XIII.

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Na Canção..., a propriedade, o direito a herança, e a existência de um exército
organizado e dividido em hierarquias, aparecem de forma consolidada nas descrições
dos reinos existentes. Ilustrativa é a descrição da terra dos burgúndios, onde vivia a
nobre Kriemhild:

Sua mãe era uma poderosa rainha chamada Uote, e seu pai, que ao
morrer lhes deixara terras e tesouros, chamava-se Dankrat. Era um homem de
grande bravura, e em sua juventude também conquistara grande renome.
Como já disse, estes três reis eram de grande coragem, e tinham às
suas ordens os melhores guerreiros de que já se ouviu falar, fortes,
destemidos e fiéis nas mais árduas batalhas. (ANÔNIMO, 2001: 09-10)

Ao passo que as leis, os costumes e a forma de organização social romanas eram


incorporadas pelos germânicos, também a conversão ao cristianismo ocorreu, no espaço
de uma geração, em todas as tribos que adentraram o Império.
A religião antes praticada era um tanto naturalista, a Edda poética identifica
algumas entidades adoradas pelos germanos, entre eles: Wotan (o Odin dos
escandinavos), divindade que representava os céus e dominava a guerra, era a mais
importante do panteão; Donnar (o mesmo Thor nórdico); Tiwaz, protetor das
assembleias tribais e seu fiador; e Freya, deusa do amor e da fecundidade. Além dessas
principais, outras entidades menores completavam o quadro místico: as Walkyrias;
filhas virgens de Wotan encarregadas de levar os mortos em campos de batalha ao
Walhalla, morada dos deuses; os elfos, as ondinas e os gnomos. Serem os germanos
bastante naturalistas em sua religião pode ser explicado pelo período de barbárie em que
ainda viviam, sem ter qualquer domínio sobre a natureza.
A conversão à religião romana foi necessária para consagrar o abandono da
autoridade subjetiva característica da comunidade de clãs, firmando uma autoridade
terrestre mais firme como extensão da autoridade divina. Não que esse cristianismo
fosse igual ao de Roma, mas ele foi mesclado com o arianismo, criando uma igreja
paralela à Igreja Romana.
A Igreja germânica foi a religião comum em todos os reinos bárbaros iniciais. A
diferença entre ambas as religiões foi, inclusive, inicialmente incentivada como garantia
da separação da população romana e da população germânica em reinos como o dos
ostrogodos na Itália e dos visigodos na Espanha (ANDERSON, 2000).

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Importante ressaltar essa separação, pois, apesar de instalarem-se em diferentes
regiões de Roma, os germanos permaneceram sempre um povo à parte, nunca se
integrando com outros povos no interior do Império. A geografia dos espaços ocupados
era bem demarcada. Sua religião, apesar da adoção do cristianismo, permaneceu
diferenciada. E, também linguisticamente, pouquíssimo influenciaram ou foram
influenciados pelos romanos.
Apesar de as influências serem limitadas, o cristianismo ariano desenvolveu-se a
ponto de, nos séculos XII e XIII, reivindicar para si atribuições do papado romano.
Sobre o envolvimento germânico na política e na igreja romanas, bem como sobre a
incipiente nobreza germânica, Carpeaux afirma:

[...] A aristocracia medieval alemã está intimamente ligada aos ideais


políticos do Império, sobretudo aos imperadores da dinastia de Staufen, que
se envolveram numa luta secular com o Papado, reivindicando não somente o
domínio da Itália, mas também o condomínio das almas: o imperador é
soberano temporal e soberano espiritual ao mesmo tempo. Arroga-se uma
posição ao lado do Papa, se não acima do Papa. Justifica suas reivindicações
por uma visão mística da História Universal, resumida na obra de um
historiador que pertencia àquela família imperial: Otto von Freising (1114-
1158). (CARPEAUX, 2013: 12-13)

O mesmo autor segue pontuando que boa parte da literatura dos cavaleiros seria
de índole política, muitas vezes com inspiração mística. Mas não seria, a princípio, uma
literatura de corte. Segundo ele, a aristocracia alemã medieval jamais teria conseguido,
ou sequer pretendido, submeter completamente seus vassalos. Essa mesma aristocracia
teria guardado ampla independência em seus castelos. E teria tempo e ócio para dedicar-
se aos ideais de natureza pessoal (Id. Ibid).
As mudanças e substituições feitas, no entanto, não trouxeram uma fórmula
política que ainda permanecesse ao final da Idade Média, o abandono de algumas
tradições da Antiguidade levou a uma queda no nível de sofisticação dos Estados. A
expansão islâmica no Mediterrâneo, no início do século VII e o consequente
fechamento do comércio e bloqueio da Europa Ocidental, aliados ao crescimento
demográfico, fizeram toda Europa voltar-se à economia rural. A realização mais
positiva dos bárbaros no período foi a conquista da Germânia, completada pelos
merovíngios no século VI.

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Destarte, embora ainda permanecessem diferenças consideráveis entre romanos
e germanos, por volta do século V, quando os hunos forçaram as Völkeranderungen, as
tribos germânicas já estavam bastante diferentes da forma que tinham ao tempo de
César. Pressões internas e externas haviam consolidado uma nobreza cortesã
solidificada e a igualdade dos clãs originais havia sido substituída pela fortuna
individual. O longo contato, comercial e militar, entre romanos e germanos nas regiões
fronteiriças estreitara as diferenças entre as duas sociedades. Sobre essas relações,
Anderson ainda afirma que da “colisão e fusão final e cataclísmica [de romanos e
germanos] iria surgir finalmente o feudalismo” (ANDERSON, 2000: 107).
Já a Idade Média, no contexto geral, e do ponto de vista político, foi o período
em que todos os povos europeus adquiriram, pouco a pouco, sua fisionomia e sua
consciência nacionais. Se no início as regiões e tribos eram organizadas em pequenos
territórios e tais territórios fariam parte do um império ou reino, ao fim do período já há
grandes unidades nacionais estabelecidas nos espíritos das pessoas. O desenvolvimento
das línguas nacionais está profundamente enraizado nesse processo.
Quanto ao povo dos burgúndios, foi um povo que permaneceu ao longo das
fronteiras da Gália, em paz com os romanos, e com eles tendo estabelecido contatos
comerciais. Essa permanência ocorreu depois de algumas tentativas frustradas de
adentrar o Império durante o século III. Foi por volta de 406 que se integraram às
grandes migrações dos povos germanos na direção do oeste.
Na Canção dos Nibelungos, o reino aparece totalmente cristianizado e o
ambiente cortês é, a todo o momento, exaltado. Patier apresenta que

As provas de mútua consideração e gentileza que ainda hoje se pratica são


ecos de sentimentos cavaleirescos do passado. Esse tema é outro aspecto
importante dos Nibelungos. A maneira de andar, sentar-se, levantar-se, sair e
entrar, receber ou conceder favores tinha um certo modus faciendi que as
persoangens dos Nibelungos observavam rigorosamente em seu
relacionamento. Nesse sentido, o poema é um verdadeiro manual de boas
maneiras. (PATIER, 2013: 17)

As descrições da exuberância de luxo e da riqueza das cortes, juntamente com a


beleza física das personagens, corrobora a afirmação acima. Ainda segundo Patier, a
beleza seria uma representação da nobreza de caráter. O ambiente cortês ignoraria a

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feiura. Ilustrativa é a cena da preparação para receber a rainha da Islândia, que havia
sido conquistada para ser esposa de Gunther:

Incumbidos de receber os que estavam por chegar, familiares dos


três reis cavalgavam por todos os caminhos do país; para isso foram tiradas
dos baús muitas vestes preciosas.
Anunciaram que a comitiva de Brünhild havia sido vista cavalgando
em direção àquelas terras, e uma grande excitação tomou conta dos
burgúndios. Que bravos cavaleiros podiam ser vistos em ambos os lados!
A bela Kriemhild disse: “Minhas jovens, se quiserdes acompanhar-
me na recepção, procurai em vossos baús a melhores vestes, assim
ganharemos o louvor dos hóspedes!”
Vieram também os cavaleiros e mandaram trazer esplêndidas selas
trabalhadas com ouro rubro, sobre as quais as mulheres cavalgariam de
Worms até o Reno. (ANÔNIMO, 2001: 93)

A narração segue descrevendo os arreios, o brilho do ouro, as rédeas, o quão


alegres estavam as damas ao montar e as quantidades de damas e cavaleiros que iam
encontrar a comitiva que chegava.
Esse é o povo de Kriemhild, esposa de Siegfried. Na segunda parte do poema,
quando os cavaleiros burgúndios enfrentam Etzel na terra dos hunos, esse povo é
tratado como o povo dos Nibelungos. O motivo da troca de nomes é a posse do tesouro
que antes pertencera ao povo da neblina (os Nibelungos originais). Siegfried conquistara
a posse desse tesouro e, com sua morte, ele passara à rainha Kriemild, que o mandara
trazer à burgúndia. Com o tesouro na terra dos burgúndios, Hagen o rouba da rainha e o
esconde no Reno, onde permanece escondido após perecerem todos os que sabem de
sua localização.

Considerações finais:
Posicionamos, nesse trabalho, historicamente os povos germânicos que
formaram a nação alemã, bem como seus movimentos históricos que os identificaram
inicialmente como povos bárbaros e, posteriormente, como povos vivendo no interior
do Império Romano, incorporando suas instituições, sua forma política e sua religião.
Essa incorporação não ocorre sem conflitos (bélicos, políticos e ideológicos) que são
refletidos em obras produzidas no período e, neste caso particular, na Canção dos
Nibelungos.
Consideramos, no desenvolvimento dessa pesquisa, o valor do tema para o
avanço dos estudos mitológicos e literários na perspectiva marxista. Especialmente

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quando se assiste a uma retomada de elementos míticos por meio de obras, fílmicas e/ou
literárias, que banalizam o tema e lotam as prateleiras das livrarias e as salas dos
cinemas. A busca de compreensão desse fenômeno, e de elaboração de propostas para a
valorização da literatura junto à sociedade contemporânea, também justifica a pesquisa
e o desejo de retorno às fontes literárias medievais bem como discussões sobre sua
influência em trabalhos da envergadura de um compositor como Wagner, de um
cineasta como Fritz Lang ou de um escritor como Tolkien, por exemplo.

BIBLIOGRAFIA:
ANDERSON, P. Passagens da antiguidade ao feudalismo. Tradução de Beatriz
Sidou. São Paulo: Brasiliense, 2000.
ANÔNIMO. A Canção dos Nibelungos. Tradução de Luís Krauss. São Paulo: Martins
Fontes, 2001. Coleção Gandhära.
ANÔNIMO. A Canção dos Nibelungos. Tradução de Shcmidt Patier. Brasília:
Thesaurus, 2013.
CARPEAUX, O. M. A História concisa da Literatura Alemã. São Paulo: Faro
Editorial, 2013.
ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do estado. Tradução de
Leandro Konder. Rio de Janeiro: Best Bolso, 2014.
OLIVEIRA, W. F. Os primeiros reinos medievais: os reinos germanos. Salvador:
Centro Editorial e Didático da UFBA, 1988.
SOUZA, A. A. A. Literatura e marxismo: a natureza histórica da obra literária. In:
SOUZA, Ana Aparecida Arguelho de; FRIAS, Regina Barreto (Org.). O processo
educativo na atualidade: fundamentos teóricos. Campo Grande: UNIDERP, 2005, v.
1, p. 51-64.
TÁCITO, P. C. Germânia. Tradução de João Penteado Erskine Stevenson. São Paulo:
eBookLibris, s/d. Versão para E-Book.

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