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Crónica de D.

João I, Fernão Lopes

Contexto histórico

Fernão Lopes, nascido entre 1380 e 1390, provavelmente em Lisboa, era de origem humilde. Foi tabelião
(notário) geral do reino e, para além disso, também exerceu as funções de guarda-mor da Torre do Tombo (arquivo
geral) e “escrivão dos livros” dos primeiros reis da dinastia de Avis, D. João I e D. Duarte, tendo igualmente sido
secretário de confiança do infante D. Fernando (filho de D. João I).
A partir de 1434, foi nomeado por D. Duarte para desempenhar o cargo de cronista do reino, com a missão de
colocar em crónica “as estórias dos reis que antigamente em Portugal foram”, bem como os “grandes feitos e altos
do mui virtuoso” rei D. João I, seu pai. Em 1454, foi substituído pelo cronista Gomes Eanes de Zurara e supõe-se que
terá morrido em 1459.
Quanto à sua obra, são da sua autoria as crónicas referentes aos reinados de D. Pedro, D. Fernando e D. João I.
A Crónica de D. João I é considerada a crónica medieval portuguesa mais importante, quer pelos acontecimentos
que relata, quer pela qualidade literária da sua prosa. Foi publicada pela primeira vez em 1644, em Lisboa, e
encontra-se dividida em duas partes:
• a primeira ocupa-se do espaço de tempo desde a morte de D. Fernando até à eleição de D. João I;
• a segunda relata o reinado deste monarca até à paz com Castela, em 1411.
Escrita durante o reinado de D. Duarte, a Crónica de D. João I é, na realidade, uma legitimação da nova dinastia,
a dinastia de Avis, iniciada após o período conturbado de interregno na monarquia portuguesa que vai
de 1383 a 1385. A crise dinástica e a revolução popular e burguesa que então se deram foram o resultado de uma
série de acontecimentos, muitos dos quais ocorridos durante o reinado de D. Fernando (1367-83), reinado este
marcado pelas sucessivas guerras com Castela, que empobreceram o reino e que culminaram com a assinatura do
Tratado de Salvaterra de Magos, que determinou o casamento de D. Beatriz, sua filha, com o rei João I de Castela,
pondo em causa a independência de Portugal. Para além disso, acresce a grave crise económica, que o monarca
tentou resolver recorrendo à desvalorização da moeda, à legislação para aumentar a produção agrícola e ao fomento
e proteção do comércio naval.
Face ao exposto, é possível concluir que este reinado ficou marcado por um clima de instabilidade e de incerteza,
que se acentuou aquando da morte de D. Fernando, que não deixou filho varão, pelo que a sucessão deveria caber a
sua filha D. Beatriz, casada com o rei de Castela.
A nobreza e o clero eram partidários de D. Beatriz, enquanto o povo pretendia que o sucessor do trono fosse um
dos filhos bastardos de D. Pedro, meios-irmãos, portanto, do falecido rei Fernando. Graças a uma conspiração bem
urdida pelo influente burguês Álvaro Pais, o povo viria a apoiar entusiasticamente o Mestre de Avis.
Após a invasão castelhana, seguiram-se um prolongado e doloroso cerco de Lisboa e diversas batalhas, de que,
sob o comando de Nuno Álvares Pereira, os portugueses saíram vitoriosos. Posteriormente, o Mestre de Avis seria
proclamado rei, graças igualmente à habilidade jurídica do Dr. João das Regras que, nas Cortes de Coimbra, soube
encontrar argumentos para defender a aclamação do Mestre, que receberia o nome de D. João I e seria o fundador
da 2.ª dinastia.

Afirmação da consciência coletiva

Já vimos como a Crónica de D. João I representa a legitimação da dinastia de Avis. Mas importa referir que essa
legitimação adveio da força do povo, habilmente “conduzido”, é certo, por Álvaro Pais. Na verdade, o povo, a
chamada “arraia-miúda”, foi a força motriz da revolução, representando todos aqueles que queriam preservar a
independência de Portugal, todos aqueles que manifestavam um amor à terra que os vira nascer, à terra que
cultivavam e da qual dependiam para viver.
Por essa razão, é possível dizer que a Crónica de D. João I constitui uma afirmação da consciência coletiva, no
sentido em que o verdadeiro herói que povoa as suas páginas não é um herói individual, não é um cavaleiro, um
nobre, como até então acontecera na prosa medieval, mas antes um herói coletivo – o povo. Fernão Lopes mostra-
nos com imenso realismo, vivacidade, pormenor descritivo e emotividade o povo que se revolta, que irrompe pelas
ruas de Lisboa à procura do Mestre, que defende a cidade contra os castelhanos, que passa fome e privações por
causa do cerco.
A voz do povo, o sentir dos homens e das mulheres, dos mesteirais, dos homens-bons, é muitas vezes transmitida
através de uma voz anónima da multidão. Outras vezes, é a própria cidade que parece revelar essa consciência do
todo, assumindo quase o estatuto de uma personagem coletiva (veja-se a cidade de Lisboa, cujo ambiente, força e
vida estão tão bem descritos e narrados no capítulo 115).
A afirmação da consciência coletiva é, sem dúvida alguma, uma inovação e, simultaneamente, uma prova da
originalidade e da modernidade de Fernão Lopes. De facto, ele é um cronista, um historiador mais preocupado com
os movimentos de fundo, com uma visão de conjunto (em que entram elementos económicos, políticos e sociais),
com as massas, do que propriamente com as figuras isoladas da elite. Tal como referem Saraiva e Lopes, “A
originalidade de Fernão Lopes revela-se muito particularmente na composição das crónicas. Não seguiu a simples
ordem cronológica dos acontecimentos, antes procurou ordenar a matéria variada que constitui a sua visão histórica
em grandes conjuntos animados. Por este lado as crónicas merecem ser analisadas não apenas como narrativa de
dados objetivos estranhos ao autor, mas como produção romanesca ou épica”. (1)

Atores individuais e coletivos

O facto de o povo ser o protagonista por excelência das crónicas de Fernão Lopes, e em particular da Crónica de
D. João I, não invalida, porém, a existência de atores individuais. Na verdade, na crónica em questão, podemos
identificar alguns e com papéis relevantes, como é o caso de:

• Mestre de Avis – um homem que se mostra receoso, no seguimento do assassinato do conde Andeiro; um homem
acarinhado e apoiado pelo povo de Lisboa; um líder resoluto, mas também solidário com a população, aquando do
cerco à cidade;
• Álvaro Pais – o burguês que espalha pelas ruas de Lisboa que estão a matar o Mestre, influenciando o povo a
correr em seu auxílio;
• D. Leonor Teles – a mulher que gera ódios na população e que é apelidada de “aleivosa” (traidora) (capítulo 11).

Todas estas figuras são apresentadas pelo cronista na sua densidade psicológica, nos dramas, nas angústias e nos
anseios e, por isso, ainda que muito diferentes (em termos de motivações, comportamentos, atitudes), aproximam-
se pelo seu lado humano. Mesmo quando o cronista foca a sua atenção nestes atores individuais, fá-lo, porém,
apenas no sentido de os integrar num todo, na sociedade à qual pertencem. Daí a consciência coletiva ser tão
marcante na sua obra.

Capítulos 11, 115 e 148 da 1.ª Parte

Antes de vermos com maior detalhe alguns capítulos da 1.ª parte da Crónica de D. João I, convém ainda salientar
uma outra preocupação de Fernão Lopes, expressa logo no Prólogo: a verdade objetiva. É com essa noção em mente
que o cronista não só recolhe e compila os registos anteriores (as crónicas), como inclusive pesquisa, confronta e
recorre a documentos originais da Torre do Tombo, de cartórios, de igrejas e a diplomas para corroborar os factos
que relata. Fernão Lopes chega mesmo a reproduzir esses documentos e a reconhecer a existência de várias versões,
algumas até contraditórias. Por essa razão, podemos falar de crítica documental e histórica na sua obra.
Concluindo, Fernão Lopes conferiu à História uma conceção de tal modo dinâmica e à narrativa uma tal
plasticidade que colocou as suas crónicas no caminho da História e da Literatura modernas.
Vejamos agora como o fez, em particular através da leitura e da exploração dos capítulos 11, 115 e 148.

Resumo do capítulo 11

• O pajem do Mestre de Avis brada pelas ruas, a caminho da casa de Álvaro Pais, que matam o Mestre nos paços da
rainha, o que leva as gentes, em agitação, a saírem para a rua e a pegarem em armas.
• Álvaro Pais, que já estava preparado, dirige-se com o pajem e outros aliados para os paços, apelando à população
para que se junte e corra em auxílio do Mestre.
• Chegada às portas do paço, que estavam fechadas, a multidão mostra-se ansiosa e agitada, querendo entrar para
confirmar que o Mestre está vivo.
• Aconselhado pelos que estavam consigo e atendendo ao alvoroço das pessoas, o Mestre aparece à janela para
apaziguar os ânimos. Perante esta visão, a população manifesta um “gram prazer”.
• Sentindo-se seguro, o Mestre deixa os paços e cavalga pelas ruas em direção aos paços do Almirante, onde se
encontrava o conde D. João Afonso, irmão da rainha.

• Pelo caminho, o Mestre contacta com a população, que se mostra aliviada, alegre e disponível.
• Próximo dos paços do Almirante, o Mestre é acolhido pelo conde, pelos funcionários da cidade e por outros
fidalgos.
• Já à mesa, vêm dizer ao Mestre que as gentes da cidade querem matar o bispo. O Mestre faz tenções de o ir
socorrer, mas é aconselhado a permanecer ali (o bispo é morto pela população).

Tópicos de análise

• O episódio narrado neste capítulo enquadra-se na sequência de eventos que levaram ao cerco da cidade de Lisboa,
considerado um dos focos estruturadores da Crónica de D. João I (o outro é a batalha de Aljubarrota).
• Neste capítulo, Fernão Lopes relata como se deu a aclamação do Mestre, após o assassinato do conde Andeiro, as
ações da população quando soube que o Mestre corria perigo e os seus sentimentos relativamente ao futuro
monarca.
• A população é, aliás, a protagonista deste episódio. Assemelhando-se a um repórter que assistiu ao desenrolar dos
acontecimentos, Fernão Lopes transmite-nos as movimentações (d’ “as gemtes”) através de sensações
auditivas (“dizemdo altas vozes, braadamdo pella rrua”, “e começamdo de fallar huũs com os outros”, “Soarom as
vozes do arroido pella çidade ouvimdo todos braadar que matavom o Meestre”, “Alli eram ouvidos braados de
desvairadas maneiras”), mas também visuais (“se moverom todos com maão armada, corremdo a pressa”, “A gemte
começou de sse jumtar a elle, e era tanta que era estranha cousa de veer. Nõ cabiam pellas ruas primçipaaes, e
atrevessavom logares escusos”).
• Verifica-se uma concentração espacial (rua-paço-janela) que coincide com uma gradação e um ritmo crescentes
das ações (ao apelo do pajem e de Álvaro Pais, segue-se o alvoroço da população, que se desloca para o paço e que
aí mostra o seu estado de espírito – confusão, nervosismo), que culminam no clímax: o aparecimento do Mestre à
janela.
• Após a visão do Mestre, o ritmo narrativo diminui e o estado de espírito da população passa a ser de alegria, de
satisfação e de alívio (“ouveram gram prazer quamdo o virom”).
• Os sentimentos desta “gemte” são ainda realçados através das falas transcritas, que conferem uma tonalidade
realista e expressiva a todo o episódio. Estas falas servem também para denegrir a imagem de Leonor Teles e para
fazer a apologia do futuro monarca (veja-se como sai ilibado de ter matado o conde – “Oo que mall fez! pois que
matou o treedor do Comde, que nom matou logo <e> a alleivosa com elle!”).
• Entre a multidão (ator coletivo) destacam-se, porém, alguns atores individuais, nomeadamente:

› pajem do Mestre – já preparado (“segumdo já era percebido”), desencadeia toda a movimentação posterior;
› Álvaro Pais – avisado pelo pajem, e também ele pronto (“que estava prestes e armado cõ huũa coiffa”), pegou no
seu cavalo e, com os seus aliados, foi até ao paço, espalhando igualmente o alvoroço e influenciando o povo a correr
em auxílio do Mestre;
› Mestre de Avis – atua segundo o conselho dos que o rodeiam; de início, parece ter receio da multidão; depois,
mostra-se à janela e, sentindo-se seguro, abandona o palácio e percorre as ruas da cidade a cavalo até aos paços do
Almirante.

• Quanto ao narrador, detetamos a sua subjetividade (“era estranha cousa de veer”, “era maravilha de veer”), a sua
simpatia pelo povo e a sua defesa do Mestre (legitimação da nova dinastia).

Linguagem e estilo

• Visualismo e dinamismo – a movimentação e o sentir das massas são-nos apresentados de uma forma muito forte
e real, não só através de recursos expressivos, como a comparação (“e assi como viuva que rei nom tiinha”), como
também através do apelo às sensações ou do uso de verbos de movimento (“A gemte começou de sse jumtar a elle,
e era tanta que era estranha cousa de veer. Nõ cabiam pellas ruas primçipaaes, e atrevessavom logares
escusos”, “Huũas viinham com feixes de lenha, outras tragiam carqueyja”).

Resumo do capítulo 115

• Ao saberem da vinda do rei de Castela, o Mestre e os habitantes de Lisboa começam a recolher mantimentos e
muitos vão às lezírias buscar gado morto.
• As populações movimentam-se: muitos lavradores deslocam-se com as mulheres, os filhos e com tudo o que têm
para dentro da cidade; outros vão para Setúbal e Palmela; outros ficam em Lisboa e há ainda os que permanecem
nas vilas que apoiam Castela.
• Começa-se a preparar a defesa da cidade: primeiro, pensa-se na defesa ao nível dos muros (muralhas) e das torres,
tarefa que o Mestre delega nos fidalgos e cidadãos honrados, que contam com a ajuda de besteiros e homens de
armas. Mostra-se preocupado com a guarda da cidade e ele próprio passa em revista os muros e as torres, durante a
noite. As gentes que aí se encontram estão alerta e são diligentes.
• Depois, analisa-se a defesa ao nível das portas da cidade: quantas eram, quem as vigiava e os cuidados que eram
tidos.
• Passa-se para a ribeira, zona onde foram construídas estacas para impedir e/ou dificultar a passagem dos
castelhanos.
• Ainda relativamente à defesa, refere-se a construção de um muro à volta das muralhas da cidade e a ajuda das
mulheres, que, sem medo, apanham pedras pelas herdades e entoam cantigas a louvar Lisboa.
• A propósito da construção desse muro, o narrador estabelece uma comparação entre os portugueses, que tão bem
defendem a sua cidade (constroem o muro ao mesmo tempo que defendem a cidade), e os filhos de Israel, que
fizeram o mesmo. Salienta-se, assim, a coragem e a determinação da população.
• Para além disso, é dito que todos estavam em sintonia e a pensar no bem comum, o que leva o cronista a concluir
o capítulo num tom elogioso. Com efeito, no final, Fernão Lopes menciona a superioridade do rei de Castela (“tam
alto e poderoso senhor como he elRei de Castella, com tamta multidom de gemtes”), mas apenas com o objetivo de
realçar a postura da cidade de Lisboa, que, perante um adversário tão feroz, está “guarnecida comtra elle de gemtes
e darmas”.

Tópicos de análise

• Neste capítulo, o leitor/ouvinte, a quem o cronista desde logo se dirige (“que avees ouvido”), começa por ser
convidado a presenciar:
› a descrição da cidade de Lisboa, quando o rei de Castela a cercou (“de que guisa estava a çidade, jazemdo elRei de
Castella sobrella”);
› a preparação da defesa da cidade pelo Mestre de Avis, juntamente com a população (“per que modo poinha em ssi
guarda o Meestre, e as gemtes que dẽtro eram, por nom rreceber dano de seus emmiigos”);
› o esforço, a valentia, a determinação que a gente de Lisboa mostrava (“e fouteza que comtra elles mostravom”).
• Continuando a interpelar o leitor/ouvinte (“Omde sabee que”), o cronista passa a relatar o que foi feito
relativamente aos mantimentos (2.º parágrafo), focando depois (a partir do 3.º parágrafo) a sua atenção numa outra
preocupação: a defesa da cidade.
• Relativamente à defesa de Lisboa, a informação apresentada é bastante detalhada: primeiro fala-se dos muros,
depois das torres, chegando-se por fim às portas da cidade e ao rio. Os pormenores descritivos abundam (há, por
exemplo, referências ao número de torres, ao número de portas da cidade, ao número de estacas), bem como os
termos técnicos associados ao campo semântico da guerra (ver 3.º e 4.º parágrafos).
• Porém, à medida que o cronista vai descrevendo o que foi feito para proteger a cidade, vai também mostrando os
grupos sociais – os atores coletivos – que participaram nestes preparativos. Desta forma, vemos como os lavradores
se recolheram à cidade, como a defesa das muralhas foi entregue aos “fidallgos e çidadaãos homrrados”,
aos “hom˜ees darmas”, aos “mesteiraaes”. Até as mulheres tiveram um papel a desempenhar, apanhando pedras e
cantando (“e as moças sem nehuũ medo, apanhamdo pedra pellas herdades, camtavom altas vozes”).
• A cantiga transcrita ilustra bem o espírito de solidariedade, de entreajuda, de patriotismo e de orgulho que reinava
entre as gentes da cidade. Aliás, a atitude dessas gentes é várias vezes elogiada pelo narrador (“todos rrijamente
corriam pera ella”, “logo os muros eram cheos, e muita gemte fora”, “Nom avia hi nehuũs rrevees dos que aviam de
vellar, nem tall a que esqueeçesse cousa do que lhe fosse emcomemdado; mas todos muito prestes a fazer o que lhe
mamdavom, de guisa que a todo boom rregimemto que o Meestre hordenava”). É, assim, evidente a afirmação da
consciência coletiva, uma consciência pela defesa da cidade contra o inimigo.
• Mas não são só as gentes da cidade que têm um comportamento digno de louvor. Também o Mestre de Avis – ator
individual – merece uma caracterização favorável, destacando-se a sua diligência e determinação, bem como todo o
apoio que deu à população (“E hordenou o Meestre com as gemtes da çidade, que fosse rrepartida a guarda dos
muros”, “ho Meestre que sobre todos tiinha espeçiall cuidado da guarda e governamça da çidade, damdo seu corpo a
mui breve sono”, “boom rregimemto que o Meestre hordenava”).

Linguagem e estilo

• Registo coloquial – evidente nos apelos ao leitor/ouvinte e no uso da 2.ª pessoa do plural; a transcrição da cantiga,
ao reproduzir uma linguagem popular e carregada de insinuações, contribui também para o tom coloquial.
• Descrição viva e dinâmica – os preparativos de defesa são apresentados com minúcia, recorrendo a pormenores
(quantificação), a vocabulário técnico e a recursos expressivos, como a enumeração (“forom feitos fortes
caramanchoões de madeira, os quaaes eram bem forneçidos descudos e lamças e dardos e beestas de torno”) e
a adjetivação (“gramde e poderoso çerco”, “fortes caramanchões”, “Oo que fremosa cousa”, “tam alto e poderoso
senhor”, “tam fremoso cerco”).

Resumo do capítulo 148

• Estando a cidade cercada, os mantimentos começam a faltar, por causa da quantidade de pessoas que estavam
dentro das muralhas de Lisboa, o que leva a que alguns procurem alimentos fora da cidade e vão de barco, à noite,
buscar trigo, correndo perigo.
• As esmolas também escasseiam e já não há como socorrer os pobres. Então, estabelece-se quem deve ser posto
fora da cidade: as pessoas miseráveis, os que não combatem, as prostitutas, os judeus. Inicialmente, os castelhanos
acolhem estas gentes, mas, quando percebem que tal ato se devia à fome, também eles as expulsam do seu
acampamento.
• Na cidade, há carência de todo o tipo de alimentos, como trigo, milho e vinho. O preço destes produtos é elevado
e, por isso, os hábitos alimentares mudam e até há quem procure apenas grãos de trigo na terra ou quem beba tanta
água que acabe por morrer. A carne e os ovos são outros dos alimentos em falta e muito caros.
• As crianças não têm que comer e andam pela cidade a pedir; as mães não têm leite para os seus filhos e veem-nos
morrer. Toda a cidade está envolta num ambiente de tristeza, de pesar e de morte. As pessoas dirigem preces a
Deus. O desespero é tal que há até rumores de que o Mestre vai expulsar da cidade todos os que não têm que
comer. Porém, esse rumor é desmentido.
• O capítulo termina com um forte apelo ao leitor/ouvinte, representante da “geeraçom que depois veo”, designado
de bem-aventurado, pois não teve que enfrentar os sofrimentos descritos.

Tópicos de análise

• Mais uma vez, o capítulo inicia-se com uma interpelação ao leitor/ouvinte (“Estamdo a çidade assi çercada na
maneira que ja ouvistes”), através da qual se estabelece uma ponte com o capítulo anterior e se transmite uma ideia
de continuidade e de ligação a um dos centros nevrálgicos da narrativa: o cerco de Lisboa.
• Mais uma vez também, o protagonismo é dado às gentes de Lisboa (ator coletivo), que vivem momentos atrozes
por causa da fome que assola a cidade, devido ao grande número de pessoas que nela se acolheram.
• Num estilo vivo e emotivo, o cronista narra e descreve, pormenorizadamente, o sofrimento da população: a
procura arriscada de trigo, à noite e em barcos; a falta de meios (esmolas) para socorrer os pobres; a expulsão de
todos aqueles que não podiam combater, bem como dos judeus e das prostitutas; a recusa dos castelhanos em
receber no seu acampamento os que foram expulsos; a procura desesperada de algo que comer e beber. O
sofrimento é evidenciado através de pormenores, como, por exemplo, o preço exorbitante de alguns alimentos.
• Perante este cenário, o narrador mostra-se solidário e pretende mesmo comover/sensibilizar os leitores. Por isso,
dirige-lhes, repetidamente, perguntas retóricas carregadas de intensidade (destaque para a última – “Hora
esguardaae como sse fossees presente, hũa tall çidade assi descomfortada e sem nehuũa çerta feuza de seu
livramento, como veviriam em desvairados cuidados, quem sofria omdas de taaes affliçoões?”).
• O Mestre de Avis (ator individual) aparece-nos neste capítulo como o chefe que tem de tomar decisões (“Meestre
mamdou saber em çerto pella çidade que pam avia per todo em ella”), algumas difíceis até, a bem da comunidade,
como a expulsão dos inaptos. Por outro lado, mostra-se solidário com as suas gentes (“Sabia porem isto o Meestre e
os de seu Comsselho, e eramlhe doorosas douvir taaes novas”).

Linguagem e estilo

• Rigor do pormenor – patente, por exemplo, na descrição detalhada dos que saíam à noite de barco e iam buscar
trigo; na informação precisa sobre o preço de alguns alimentos, como o trigo, o milho, o vinho, a carne – recurso
à enumeração.
• Conjugação de planos – por um lado, é-nos dado um plano geral da cidade; por outro, são-nos
apresentados planos de pormenor (por exemplo, quando a atenção se foca nos pobres, nos que foram expulsos da
cidade, nos homens e nas moças cheios de fome que esgaravatavam a terra).
• Coloquialismo – muito evidente nas interrogações retóricas e no uso do imperativo, no último parágrafo,
combinado com a comparação (“Hora esguardaae, como se fossees presente”).
(1) António José Saraiva, Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa, Porto Editora, 2001

Síntese de conteúdos

Crónica de D. João I
Autor Fernão Lopes (1380-1390?-1459?)
Género Crónica – narração histórica pela ordem do tempo em que se deram os factos
• 1.ª parte – da morte de D. Fernando até à eleição de D. João I
Estrutura
• 2.ª parte – do início do reinado de D. João I (1385) até 1411 (paz com Castela)
• Morte do rei D. Fernando e crise de sucessão dinástica
• Revolução popular e burguesa
Contexto histórico: • Morte do conde João Fernandes Andeiro (capítulo 11)
Crise política de 1383- • Nomeação do Mestre de Avis como regedor e defensor do reino
1385 • Cerco de Lisboa (capítulos 115 e 148) e luta pela independência contra Castela
• Proclamação do Mestre de Avis como D. João I de Portugal – início da dinastia de Avis
• Batalha de Aljubarrota
• O povo manifesta o seu patriotismo, o seu apoio ao Mestre, garante da independência de
Afirmação da Portugal: pelas ruas da cidade de Lisboa, após o assassinato do conde Andeiro; durante o
consciência coletiva cerco à cidade, suportando os ataques dos castelhanos, a fome, a miséria
• O povo é o verdadeiro herói da revolução e da crónica de Fernão Lopes
• Atores individuais – figuras históricas como o Mestre de Avis, Álvaro Pais, D. Leonor Teles
Atores individuais e
• Atores coletivos – as gentes de Lisboa, quer como uma massa, uma coletividade, quer
atores coletivos
como grupos sociais (ex.: os lavradores, os homens-bons, as mulheres)
• Descrição viva e dinâmica (visualismo) – sensações visuais, auditivas; ritmo acelerado; uso
de recursos expressivos (comparação, enumeração, adjetivação, personificação)
• Rigor do pormenor – informações detalhadas e precisas que ajudam a enquadrar os
Estilo acontecimentos (ex.: dados económicos)
• Coloquialismo – uso do imperativo e da 2.ª pessoa do plural (interpelações ao
leitor/ouvinte); transcrição de cantigas
• Conjugação de planos – plano geral vs. plano de pormenor

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