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Crónica de D.

João I de Fernão Lopes

Personagens individuais e personagens


coletivas nas crónicas de Fernão Lopes
A história que este homem nos conta e que era a que ele tinha para
nos contar — porque se dá com ele o caso raro de estar identificado
com o advento de uma situação histórica que realizava a sua visão do
mundo — era de uma grande dificuldade. Incluía aventuras de
personagens, e movimentos de massas, cenas de interior e de praça,
choques de conceções de vida e de direito.
Como poucos escritores portugueses, ele soube criar e aproveitar
situações
e desenvolvê-las através do confronto de personagens individuais. As
crónicas estão cheias de situações dramáticas desenvolvidas em
diálogos e em gestos. O Rei D. Pedro passeia para trás e para diante, à
frente do escudeiro que ele condenou à morte, remoendo as mesmas
palavras, antes de confirmar a sentença. O Rei D. Fernando, fingindo-
se desiludido, procura, sem resultado, arrancar aos seus
conselheiros uma opinião sincera sobre o seu casamento com Leonor
Teles.
Pelo sentido agudo das situações entre personagens e pela arte de as
confrontar, merece uma análise o capítulo em que se narra a entrevista
entre a Rainha D. Leonor e o Mestre de Avis no mesmo dia em que foi
assassinado o Conde Andeiro, que fora, segundo o cronista, amante da
Rainha.
Na literatura portuguesa, Fernão Lopes é um dos mais fecundos e
poderosos criadores de caracteres, isto é, de personagens. Dele se
alimentaram poetas, romancistas e dramaturgos dos séculos seguintes,
como o teatro grego se alimentou das criações homéricas.
Ora, ao lado dos caracteres individuais tão variados, complexos e,
por vezes, devassados na sua intimidade por uma luz tão crua, Fernão
Lopes atribui um papel decisivo a forças que não caberiam num palco
de teatro, amplas e irresistíveis como enchentes sobre as quais boiam à
deriva as grandes personagens e as suas «cuidações ». São as forças
gregárias, animadas de uma vontade definida, como a cidade de Lisboa ou os
povos do Reino.
São frequentes no nosso autor fórmulas como «todos postos sob um
mesmo cuidado », «todos animados de uma só vontade», «quando a
cidade soube», «voz de grande espanto foi ouvida por todo o Reino»,
etc. E outro processo muito seu é resumir um sentimento coletivo
através de um dito, de uma voz que sai de uma multidão, como a
daquele tanoeiro que resume a posição da gente miúda de Lisboa em
face dos burgueses da cidade.
Fernão Lopes é assim levado a tratar uma coletividade como se fosse
uma pessoa, não encontrando outra maneira de lhe definir a vontade e
o pensamento com que intervém na marcha dos acontecimentos e de
expressar a simpatia enternecida que desperta no autor. A gente que
acorre em defesa do Mestre de Avis por ocasião do assassinato do
Conde Andeiro é como uma viúva em cuidado pela vida daquele que
lhe ficou em lugar do marido; Lisboa é como a ama que criou ao peito
a resistência do Reino e que se aflige mais do que ninguém pela sua
saúde

CONCEÇÃO DA HISTÓRIA E MÉTODO HISTORIOGRÁFICO

 O carácter admirável da obra de Fernão Lopes deve-se, em


grande parte, à originalidade da sua conceção da História, tanto
em relação à tradição historiográfica como aos autores
contemporâneos.
 Antes deste cronista, todos os textos que se reportassem a
acontecimentos do passado — independentemente de serem
lendas, contos tradicionais, romances de cavalaria e
narrativas de crónicas e de livros de linhagens — eram
aceites como relatos históricos sem que a sua veracidade
fosse averiguada.
 A experiência profissional de Fernão Lopes como notário e
arquivista não só lhe incutiu a consciência da necessidade
de fundar a verdade histórica num documento escrito, como
também lhe proporcionou o acesso a documentos escritos e
testemunhos orais que, caso contrário, lhe estariam vedados.
 No prólogo da Crónica de D. João I, o autor expõe o seu
ponto de vista sobre o trabalho do historiador, descrevendo
o método utilizado para tentar manter a imparcialidade.
a) Recolher informação de numerosos testemunhos escritos, de
modo a assegurar o rigor dos factos históricos avançados;
b) Apesar de seguir a historiografia anterior no processo de
elaboração do texto, procedendo ao corte e montagem de
textos de outros autores, sujeitou as fontes a uma análise
criteriosa, procurando verificar qual seria a mais verosímil
ou a mais adequada à lógica interna dos factos; verificou
também a verdade destes testemunhos escritos através do seu
confronto com documentos oficiais.

ATORES INDIVIDUAIS E COLETIVOS


 Como afirma António José Saraiva (1965), a história que
Fernão Lopes tinha de contar era bastante complexa, pela
diversidade da natureza de cenas que deveria incluir. No
entanto, o cronista narra os eventos históricos em causa
com enorme mestria, alternando o fio da
narrativa com instantâneos intensamente dramáticos, momentos
em que, ao desenvolver situações através do confronto
de personagens (como, por exemplo, no episódio do
assassinato do conde Andeiro), mostra ter características de
um verdadeiro dramaturgo.
 Fernão Lopes foi um dos mais fecundos e poderosos
criadores de caracteres tanto individuais como coletivos,
vindo, por este motivo, a influenciar poetas, romancistas e
dramaturgos de épocas posteriores.

1. Atores individuais
 As personagens individuais criadas por Fernão Lopes
são variadas e complexas, sendo devassadas na sua
intimidade por um olhar incisivo.
 Na Crónica de D. João I, três personagens se destacam pelo
seu protagonismo: D. Leonor Teles, o Mestre de Avis e D. Nuno
Álvares Pereira.
a) A primeira é caracterizada de forma profundamente negativa,
na medida em que é descrita como objeto de um ódio
profundo por parte do povo, sendo, além disso, alvo das
acusações do partido que queria a independência do trono
português. Apesar disto, o cronista não oculta a
sua grandeza e força, que lhe permitem manipular figuras
masculinas, como D. Fernando, D. João de Castro
(filho ilegítimo de D. Pedro e de Inês de Castro) e o próprio
Mestre de Avis, e enfrentar, mesmo após a derrota, o rei de
Castela, recusando-se a ingressar num convento.

b) Quanto ao Mestre de Avis — e ao contrário do que seria de


esperar — é caracterizado como um homem vulgar, hesitante e
vulnerável às fraquezas, como é possível verificar, por exemplo,
pelas oscilações no seu comportamento aquando da conjura
contra o conde Andeiro (depois de se mostrar indeciso, adere à
conjura, fugindo em seguida para o Alentejo, de onde regressa
quando se apercebe de que a conspiração será inevitavelmente
descoberta). Apesar destes defeitos — que o tornam uma
personagem profundamente realista —, o Mestre de Avis mostra
também ser capaz de atos espontâneos de solidariedade, o que o
converte numa figura cativante.
c) Finalmente, Nuno Álvares Pereira é caracterizado num outro
registo, sendo convertido num herói hagiográfico (isto é, com
traços de santidade) e, ao mesmo tempo, num grande guerreiro.

2. Atores coletivos
 Nas crónicas de Fernão Lopes, as personagens coletivas (como,
por exemplo, a população de Lisboa) têm um papel ativo e
decisivo, determinando o curso dos acontecimentos.
 Com efeito, sempre que é narrado um evento importante, o
cronista faz questão de expor o que pensava dele a opinião
pública, como sucede aquando do cerco de Lisboa, momento
em que a população da cidade oscila entre a esperança
de que a frota castelhana fosse derrotada e o receio de que
os castelhanos saíssem vitoriosos, exercendo uma vingança
cruel sobre os sitiados.
 Esta expressão de sentimentos da coletividade é, por vezes,
resumida através de um dito que sai de uma multidão —
como sucede com as cantigas entoadas durante o cerco de
Lisboa, que mostram a profunda determinação dos
habitantes da cidade.
 A importância conferida a uma entidade coletiva nos eventos
históricos (como sucede aquando da derrota dos castelhanos
no cerco de Lisboa, cujo mérito é atribuído à população da
cidade) torna Fernão Lopes um cronista único entre os seus
congéneres medievais.

AFIRMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA COLETIVA


 Na Crónica de D. João I emerge um sentimento coletivo do povo
português que se traduz na consciência de se pertencer a uma
mesma nação. A consciência nacional dos portugueses
advém, em grande medida, de temerem a invasão
estrangeira (castelhana) e de sentirem a independência do
reino e a sua liberdade ameaçadas durante a Crise de 1383-
1385.
 O sentimento nacional afirma-se porque, nessa ameaça, se
fortalece a noção de comunidade. O povo de Lisboa manifesta-
se contra a regente D. Leonor e contra a influência
estrangeira (cap. 11) e sofre em conjunto a dureza e as
privações do cerco que João de Castela monta à capital (cap.
148). Contudo, são também portugueses de várias terras e
regiões que se mobilizam para preparar a resistência a essa
invasão e que enfrentam o exército castelhano nas batalhas
de Atoleiros e de Aljubarrota.
 A ideia de ser português está enraizada na «arraia-miúda» (o
povo); mas dela comungam também a burguesia e a nobreza
que se mantém fiel à causa patriótica. De facto, o povo
ganha a consciência coletiva de que tem um papel mais
ativo e quer participar na vida política do reino e
na condução dos destinos da nação: intervém para «salvar»
o Mestre, mobiliza-se para enfrentar os castelhanos e quer
decidir quem será o próximo rei de Portugal.
Sistematização de conhecimentos
 Em termos narrativos, a consciência de grupo e o
sentimento nacional são representados através da noção
de personagem coletiva (cf. p. 87), quando se trata
da multidão de Lisboa, que revela uma vontade comum
(cap. 11), que se organiza em conjunto para defender a
capital (cap. 115) e que sofre em conjunto o cerco imposto
(cap. 148). Mas a enumeração de grupos sociais e
profissionais (soldados) chama a atenção também para o
facto de a unidade nacional se fazer a partir da motivação e
do empenho dos grupos que a compõem.
 No plano da escrita da história, a própria Crónica de D. João
I contribui, ao mesmo tempo, para representar o sentimento
coletivo vivido durante a Crise de 1383-1385 e para afirmar
essa consciência nacional. A obra foi encomendada pelo
rei D. Duarte, filho de D. João I. Um dos objetivos de Fernão
Lopes foi demonstrar o patriotismo dos portugueses
e valorizar o papel do Mestre de Avis, fundador da Casa de
Avis, na defesa da independência do reino e na construção
do novo Portugal, que nasce na segunda dinastia. Fernão
Lopes ajuda a legitimar (justificar) o direito de D. João I ao trono
do Reino português.

ESTILO E ARTE NARRATIVA DE FERNÃO LOPES


 As crónicas de Fernão Lopes testemunham um estádio da
língua portuguesa que se costuma classificar
como português antigo e exibem construções
sintáticas, expressões e vocabulário com marcas da língua
de um período de amadurecimento. Apesar dos arcaísmos
(«talente», «aadur», «açalmamento») e de
construções arcaicas («Ca nenhuu˜ por estonce podia outra
cousa cuidar»), é claro que a língua portuguesa já sofreu
uma evolução que a distingue dos seus primórdios.
 No texto da Crónica de D. João I, a narração alterna com
a descrição e com o diálogo para incutir vivacidade e energia
no relato dos episódios mais relevantes da Crise de 1383-
1385. (Não surpreende que os campos lexicais
dominantes sejam o militar e o da realidade social.) Fernão
Lopes consegue criar ritmo e tensão na forma expressiva de
narrar os acontecimentos e com a introdução de
discurso direto no relato («— U matom o Meestre?»).
 A vivacidade, o ritmo e a emoção das personagens são
também conseguidos através de características do discurso
como as marcas de oralidade e a simplicidade da
linguagem (registo corrente e vocabulário familiar), os verbos
de movimento, os verbos introdutores do discurso
(«braadar»), as interjeições e as apóstrofes («Ó Senhor!»).
O dinamismo da ação resulta do uso de tempos, formas e
aspetos verbais como o imperfeito do indicativo, o gerúndio
e o aspeto durativo. O uso de recursos expressivos é
relativamente parco e pouco vai além da comparação, da
metáfora e da personificação.
 As descrições são pautadas pelo forte apelo visual. O
narrador desempenha o papel da testemunha dos
acontecimentos; percorre os espaços e caracteriza os
lugares, os ambientes e as figuras (indivíduos ou grupos)
que encontra. O uso de verbos associados ao olhar
(«oolhae», «veede») ajuda a salientar o visualismo das
situações descritas. Por vezes, as sensações visuais são
associadas às auditivas (cap. 15).
 Numa técnica semelhante à do cinema ou da reportagem, o
narrador percorre os espaços, detendo-se em figuras
individuais ou em grupos, como sucede na descrição do
sofrimento do povo de Lisboa (cap. 148). Em colaboração
com as outras técnicas anteriormente descritas, assim se
consegue criar um estilo expressivo que põe em destaque
pormenores patéticos da situação descrita.

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