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Apresenta características inovadoras próprias de Fernão Lopes:

Narra os acontecimentos com bastante detalhe, conferindo-lhe maior


visualismo e veracidade.
Inclui várias perspetivas, nomeadamente a do Povo.
Tem uma dimensão interpretativa e estética.
Apresenta comentários pessoais do autor.

O desejo do autor é «em esta obra escrever verdade sem outra mistura».
A primeira parte da crónica descreve a insurreição de Lisboa na narração
célere de episódios quase simultâneos: o assassinato do conde Andeiro e o
alvoroço da multidão que acorre a defender o Mestre de Avis.
Ao longo dos capítulos da Crónica de D. João I (1.ª parte), fundamenta-se a
legitimidade da eleição do Mestre, consumada nas cortes de Coimbra, na
sequência da argumentação do doutor João das Regras, enquanto desfecho
inevitável imposto pela vontade da população. 
Na primeira parte, o talento do cronista na animação de retratos individuais,
como os de D. Leonor Teles ou D. João I, excede-se na composição de uma
personagem coletiva, o povo, verdadeiro protagonista que influi sobre o devir
dos acontecimentos históricos.
Na Crónica de D. João I (2.ª parte), o ritmo narrativo diminui, tratando-se agora
de reconhecer o rei saído das cortes.
É de novo pela ação do povo que a glorificação do monarca é transmitida, por
exemplo, no modo como é acolhido na cidade do Porto.
Na narrativa da Batalha de Aljubarrota não ecoa o mesmo tom de exaltação
que, na primeira parte da crónica, tinha sido colocado no movimento da massa
popular de apoio ao Mestre

A morte do Conde Andeiro produziu uma inflexão notável na situação, pois na


pessoa do seu executor desenhava-se a promessa de um chefe […]. Com este
ponto de partida bem explicitado […], Fernão Lopes tem o caminho aberto
para escrever a história lógica e convincente da ascensão e triunfo do Mestre
de Avis, na qual este figura sempre mais como escolhido do que como
interventor voluntário. […]
Eleito pelo povo, quase se pode dizer instintivamente, para Regedor e
Defensor em dezembro de 1383, seria de novo uma eleição popular (agora
participada por todos os estratos sociais) que o faria rei em abril de 1385. […]
A D. João [Fernão Lopes] atribui o mérito indiscutível de oferecer a disposição
do seu nome e do seu corpo, para ocupar o lugar de senhor que, à partida, se
apresenta no texto mais como um risco do que um privilégio. Ao longo da
narrativa, é com bastante dignidade que ele se mantém constante nessa
atitude inicial.
Álvaro Pais [o «homem bom»] sabia manejar o povo de Lisboa e gozava
de bom ascendente sobre a sua burguesia. [Assim, através de um
estratagema bem planeado
levou o povo de Lisboa a acorrer ao Paço da Rainha.]
Mesmo que anónimas na sua maioria, as pessoas são observadas de
perto, a expressão do rosto, o tom da voz, os gestos, os passos, as poses, tudo
é dado a ver.

Para o cronista português, a diferenciação dos «pequenos» é a única maneira


de os tornar presentes e de lhes dar uma presença humanamente plena.
Também ele diz que, no acender das ruas pelo rastilho incandescente que de
súbito as percorre, com os brados do pajem de que matavam o Mestre, «as
gentes», saindo para a rua, «começavom de tomar armas cada uù como
melhor e mais asinha podia», e que, à medida que o pajem avançava, logo
acompanhado de Álvaro Pais, «se moverom todos com maão armada,
correndo a pressa pera hu deziam que sse esto fazia» […]. Quer dizer que
havia gente e gente, e que, se a gente de armas acorreu, a eles se juntaram os
outros que não as tinham a não ser paus ou pedras, como muitas vezes depois
se vai ler no texto. Destes, as falas que depois se sucedem, embora sem
sujeito nomeado, são meios de eficácia segura para lhes dar, enquanto
pessoas, um estatuto igual ao dos outros.

Ele [Fernão Lopes] não faz, porém, unicamente a apologia do rei; faz também,
e principalmente, a apologia da resistência popular ao Castelhano. […] Há
uma força maior, embora sem forma jurídica definida. […] É a força de toda
uma coletividade que não aceita o lugar que lhe é destinado dentro do direito
senhorial. Esta coletividade cria o seu direito novo, fundado no sentimento
nacional, o «amor da terra», e defende-o de armas na mão. Fernão Lopes faz a
apologia desse novo direito, que não é já o do rei, mas o do povo. O «amor da
terra», a palavra «Portugal», definindo, não já um território, mas um corpo de
gente animado de um pensamento […], expressão ainda esboçada [em Fernão
Lopes], mas vigorosa, do direito pelo qual um novo povo se levantou contra um
rei, o direito nacional […].
A guerra nacional aparece, portanto, no nosso cronista como uma
guerra civil entre camadas opostas da população, ou, melhor, entre uma
popular e uma outra nobre […].
Ela [arraia-miúda] constitui a força armada em que inicialmente se apoiou o
Mestre de Avis, permitindo-lhe resistir à gente de armas favorável ao partido
castelhano e até apoderar-se de alguns castelos. A população de Lisboa
resistiu ao cerco do rei de Castela […].
A existência do povo como sujeito da História, do povo que se sente
senhor da terra onde nasce, vive, trabalha e morre e que ganha consciência
coletiva contra os que querem senhoreá-lo, do povo que é a fonte última do
direito, é a grande realidade que ressalta das crónicas de Fernão Lopes. […]
[O] povo é o que ganha a sua vida quer com o trabalho manual (mesteirais e
lavradores), quer com a «indústria», isto é, a atividade, habilidade e iniciativa
em qualquer ramo produtivo e pacífico.

No entanto], a generalização da consciência da identidade nacional pela


totalidade da população portuguesa não se pode presumir como um facto antes
da difusão de fenómenos característicos do fim do século XIX […] como seja a
difusão da escrita e da imprensa, a implantação de um sistema eleitoral, a
generalização de práticas administrativas uniformes e a participação ativa da
população na vida pública. […]
O facto de se poderem encontrar formulações precoces de tais noções
[soberania popular], como por exemplo nas Cortes de 1385, não pode fazer
esquecer que o «povo» aí considerado soberano é, na realidade concreta, o
conjunto dos que se apresentavam como seus representantes. […]
Observe-se, por fim, que as noções românticas acerca do «espírito do
povo»
(Volksgeist) conduzem não só a que se tenda a considerar a categoria nacional
como fundada na Natureza, […] mas também à ideia de que essa categoria
implica diferenças específicas, isto é, que tem de se manifestar por meio de
uma coerência interna, e consequentemente por meio de caracteres c

Para as classes populares, porém, o «reino» podia, certamente, implicar


apenas uma noção territorial, sem trazer consigo a ideia de uma comunidade
constituída por todos os seus habitantes. De qualquer maneira, o conceito de
«reino» representou um complemento importante da identidade nacional como
substantivo que designava os cidadãos do país como um todo. […]
Por sua vez, ao adquirir um sentido territorial, a noção de reino passou a
implicar também a de «fronteiras». De facto, enquanto significou o poder sobre
os vassalos, mais do que o poder sobre o espaço que eles habitavam, a
noção de fronteira era uma realidade humana, mutável, imprecisa;
normalmente uma zona de combate ou uma área deserta. Afetada pela noção
de «naturalidade», passou a considerar-se antes a linha que separava os
vassalos de um rei dos do rei vizinho. Tornou-se então complementar da noção
de «território», e este, por sua vez, interpretou-se como suporte físico da
diferença para com aqueles que habitavam para além das respetivas fronteiras.
A fronteira sempre separou os «nossos» dos «outros», ou seja, os nacionais
dos estrangeiros. […]omportamentais comuns a todos os seus membros. […]
[A influência destas noções] Atingiu primeiro, obviamente, os representantes da
autoridade régia, uma grande parte do clero, […] mais tarde os membros das
administrações municipais. A restante população do país foi provavelmente
mais influenciada no processo de consciencialização nacional pelo uso
constante de emblemas e sinais concretos, como o escudo de armas do rei, a
bandeira nacional e a moeda.
Tornaram-se, de facto, sinais identificadores. A sua categoria simbólica dotava-
os de um poder emocional que contribuiu para fazer esquecer o seu sentido
primitivo de emblemas de dominação. E assim, mesmo quando as mudanças
de regime faziam alterar a sua forma, como aconteceu frequentemente com a
bandeira nacional, o escudo de armas do rei permaneceu sempre como
elemento permanente, mesmo quando deixou de haver rei. Ainda hoje figura na
bandeira de Portugal.

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