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O
TEATRO DA HISTÓRIA EM JAIME GRALHEIRO: FUTURO DE QUE
PASSADO? Saarbrücken, Deutschland, Novas Edições Acadêmicas, 2016
Seria absurdo que nos desfizéssemos, por milagre de um passado, de uma memória,
de uma identidade que se forjou ou se exaltou nos Descobrimentos e de que a
aventura colonial foi a consequência (...) era natural que esse passado fosse revisitado,
reexaminado, situado e lido na perspectiva de uma consciência mais exigente e crítica,
realista, que devia ter sido o natural complemento de uma revolução libertadora.
Eduardo Lourenço
1
Todas as citações apresentadas estão com a grafia original.
2
Segundo Peter Burke, “a mais importante contribuição do grupo dos Annales (...) foi expandir o campo
da história por diversas áreas inesperadas do comportamento humano e a grupos sociais negligenciados
pelos historiadores tradicionais. Estas extensões do território histórico estão vinculadas à descoberta de
novas fontes e ao desenvolvimento de novos métodos para explorá-las. Estão também associadas à
colaboração com outras ciências, ligadas ao estudo da humanidade, da geografia à lingüística, da
economia à psicologia [sem esquecer a literatura]. Essa colaboração interdisciplinar manteve-se [ou será
vem-se mantendo?] por mais de sessenta anos, um fenômeno sem precedentes na história das ciências
sociais”. História dos Annales (1929-1989): a revolução francesa da historiografia. 2. ed. São Paulo:
Editora da UNESP, 2010, p. 143.
Talvez devamos apontar ainda que o percurso histórico não pretende de modo
algum tratar de toda a História portuguesa. Apenas elencamos aqueles que são
considerados capitais aos nossos propósitos, enfocando-lhes aspectos que contribuam
decisivamente para a constituição da identidade portuguesa. Afinal, Portugal conta com
dez séculos de existência.
É impossível traçar uma linha histórica sem começar do ponto de partida, que,
conforme veremos, explica muito do ser português. O início se dá efetivamente nos
finais do século XI3, quando cavaleiros franceses, oriundos da Borgonha, chegam à
Península Ibérica, para combater os infiéis, naquilo que será conhecido, mais tarde,
pelas Cruzadas do Oriente. À volta de 1090, dá-se a união de Raimundo, Conde de
Amous, com D. Urraca, filha do Imperador Afonso VI, de Leão, e de D. Constança,
nascida Borgonha. Raimundo vem acompanhado por seu primo, Henrique, a quem é
dada em casamento D. Tarasia (D. Teresa), filha ilegítima do mesmo Imperador.
Conforme era costume, recebe D. Raimundo o condado da Galiza, e a Henrique cabem
os condados de Portugal (entre Douro e Minho) e Coimbra (a sul do Douro). Raimundo
morre em 1107, D. Afonso VI em 1109, herdando D. Urraca a coroa, mas não o título
imperial, porque é mulher. Casa-se pela segunda vez, em 1109, com Afonso I de
Aragão, iniciando uma guerra civil contra o filho Afonso Raimundes, uma vez que há
uma cláusula a rezar que Urraca só governaria caso se casasse novamente. O Conde D.
Henrique mantém-se afastado dessas questões até sua morte, ocorrida à volta de 1109;
sua viúva, D. Teresa, segue-lhe a política. Em 1126, morre D. Urraca, ascendendo ao
trono Afonso Raimundes, com o título de Afonso VII, que acaba por submeter a tia, em
1126.
Entra em cena Afonso Henriques (*1109?/+1185), um jovem de dezoito anos,
filho do Conde D. Henrique e de D. Teresa, que é obrigado a render-se ao primo em
Guimarães. Conta D. Afonso Henriques com o apoio de um grupo de nobres que
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As informações históricas foram retiradas de várias obras, das quais se destacam: MARQUES, A. H.
Oliveira. Breve História de Portugal. Lisboa: Gradiva, 2009; MATOSO, José (dir). História de Portugal.
Lisboa: Editorial Estampa, 1998-2001, 8 v.; SARAIVA, António José. Para a história da cultura em
Portugal. Lisboa: Mira-Sintra/Publicações Europa–América, 1972, 2 v.; SARAIVA, António José.
História Concisa de Portugal. Lisboa: Mira-Sintra/Publicações Europa–América, 1996; SERRÃO,
Joaquim Veríssimo. História de Portugal. Lisboa: Verbo, 2003, 14 v.; SERRÃO, José (dir.). Dicionário
da História de Portugal. Porto: Figueirinhas, 2002, 6 v.; TENGARRINHA, José (org). História de
Portugal. Bauru (SP), São Paulo: EDUSC/UNESP/Instituto Camões, 2000.
também se opõe ao governo de D. Teresa e de seu amante, o conde D. Fernando Peres
de Trava. Na Batalha de São Mamede, em 1128, Afonso Henriques alcança a vitória,
expulsando a mãe e o amante para a Galiza. Em 1139, o exército henriquino, em
número muito menor, vence os mouros, segundo documentos coevos ou bastante
próximos aos fatos, na famosa Batalha de Ourique, consolidando a monarquia
portuguesa, uma vez que se confunde com a própria nacionalidade. As lendas ligadas à
batalha rezam que Cristo teria aparecido a Afonso Henriques, ungindo os portugueses,
e, de certa forma, preparando-os para a vitória. Eis aí o Milagre de Ourique.
Durante os anos que se seguem, Afonso Henriques e o primo, Afonso VII, estão
em constante litígio. Em 1143, com a intervenção de um embaixador da Santa Sé,
assina-se a paz. Embora o tratado se tenha perdido, parece assente entre os historiadores
que a partir desse momento Afonso Henriques se torna rei, devendo, contudo, lealdade
militar ao primo. Várias instâncias de Afonso Henriques junto à Santa Sé no sentido de
ser-lhe reconhecido o título e o reino fazem com que, em 1144, o papa Lúcio II lhe
conceda apenas o título de dux portugalensis, uma vez que não deseja se indispor com
Afonso VII. Em 1179, depois de ceder importantes privilégios e vultosa soma à Igreja, o
papa Alexandre III reconhece o reino e o rei de Portugal. A independência efetiva
acontece, portanto, cerca de cinquenta anos depois da batalha de São Mamede, local
próximo à atual Guimarães, o que legitima o letreiro que há na praça central da cidade:
Aqui nasceu Portugal.
Parece que empiricamente é já no nascimento da nação portuguesa que surge
uma das marcas fundamentais de seu destino. Após a morte de Afonso Henriques,
iniciam-se duas crônicas acerca de sua vida: a Gesta de Afonso Henriques e os Anais de
Santa Cruz de Coimbra. Esta última crônica apresenta a aparição de Cristo a D. Afonso
Henriques, de forma a incitar a vitória sobre os infiéis, na famosa, misteriosa e
lendária(?) Batalha de Ourique, ocorrida, segundo a historiografia moderna, em 25 de
julho de 1139. Daí se instaura a ideia de que o reino português recebeu desde sempre a
proteção divina. Uma lenda deste gênero, numa época de grande religiosidade como a
Idade Média, é a melhor forma de enaltecer a vitória portuguesa, além de, outrossim,
apontar o início de uma postura que marca o ser português até os dias de hoje, conforme
nos informa Eduardo Lourenço:
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A Ordem Militar de Avis é a mais antiga das Ordens Portuguesas e ocupa um singular espaço na
História de Portugal, por ter dado o nome à segunda Dinastia. A actual Ordem tem origem na antiga
Ordem Militar de S. Bento de Aviz, cuja fundação está envolta em lendas, que pretendem essencialmente
demonstrar uma maior antiguidade que a da Ordem Militar de Calatrava, a cuja observância se cingiu a
partir do final do século XIII. No decreto de restabelecimento da Ordem, em 1917, faz-se referência à
origem lendária da Ordem, referindo-a como “a mais antiga ordem militar de Portugal, criada por D.
Afonso Henriques em 13 de Agosto de 1162” (MELO, Olímpio de. Ordens Militares Portuguesas e
outras Condecorações. Lisboa: Imprensa Nacional, 1922, p. 41).Esta versão, que já constava do Alvará
com que o Rei D. Carlos reformou da Ordem em 1894, é posta em causa pela falta de documentação
coeva que a sustente. Disponível em: http://www.ordens.presidencia.pt/?idc=179. Acesso em: 08 jan.
2013.
Nuno Álvares é agraciado com muitas terras e sua família com títulos de nobreza. Uma
de suas filhas, inclusive, funda a poderosa Casa de Bragança.
D. João I casa-se com a inglesa Filipa de Lencastre (*1360/+1415),
fortalecendo, assim, os laços políticos com a Inglaterra, contando, notadamente, com o
apoio britânico contra Castela. O casal gera a chamada “ínclita geração”, uma vez que
seis dos nove filhos oriundos desse consórcio são marcantes na história de Portugal.
Papel preponderante desempenha o rei e seus descendentes, no século seguinte, que
marca o apogeu e o poderio português no mundo, graças às Grandes Navegações, que
levam ao descobrimento de terras em África, Ásia e América, sempre escudados na
divisa de cristianização dos infiéis.
Destaquemos que é no século XV que despontam dois importantes dêiticos da
cultura portuguesa: a saudade e os Descobrimentos Ultramarinos.
Abramos parênteses no devir histórico para começarmos a tratar do primeiro
deles: a institucionalização da saudade como sentimento genuinamente português. Sem
nos aprofundarmos na discussão acerca da exclusividade linguística do termo pertencer
ao idioma português, talvez valha a pena trazer algumas reflexões. A questão da
saudade, ou suidade de D. Duarte (*1390/+1438), que inaugura a ideia de que não há
em outra língua uma palavra que possa traduzir o sentimento por ela expresso, ao
apontar que “o latim nem outro linguagem, que eu saibba, non he pera tal sentido
semelhante” (D. DUARTE, 1965, p. 50), é discutida, por exemplo, pela reconhecida
lusófona de origem alemã Carolina Michaelis de Vasconcelos. Depois de percorrer a
etimologia do termo, considerando aspectos etnológicos e de significado, D. Carolina
defende a ideia de que existe em outras línguas a palavra saudade, enfatizando, por
exemplo, die Sehnsucht, em alemão, embora considere que a saudade mais frequente
está ligada a terras portuguesas, notadamente “nos séculos dos Descobrimentos e das
conquistas longínquas na África, Ásia, América”. Aponta, outrossim, “que a saudade
seja traço distintivo da melancólica psique portuguesa” (1996, p. 32), identificando o
seu significado a lugar ermo, estado da pessoa que está só, ou solitária sem companhia,
quer no meio do mundo, quer apartada do mundo. Ainda, isolamento, ausência,
abandono, falta, míngua, carência de pessoas ou coisas necessárias ou desejadas,
desamparo, tristeza, melancolia, dó de alma, compreendido como mal de ausência,
nostalgia, mágoa de já não gozar um bem de que em tempos se fruía, seguida da
vontade de volver a desfrutá-lo no futuro, e mesmo de possuir aquilo que nunca
possuiu, como por exemplo, a bem-aventurança, o céu. Enfim, um “sentimento doce-
amargo, privativamente português” (id. ibid., p. 55).
Em nosso entender, a gênese do sentimento reside nos cantares autóctones
medievais, ou seja, nas cantigas de amigo, que contemplam uma “saudade embrionária,
seminal, [onde] o desejo prevalece sobre a lembrança” (BOTELHO, 1980, p. 126).
D. Duarte, herdeiro do trono de D. João I, versando temas variados, em escritos
reunidos no volume Leal Conselheiro (1965), mais especificamente no capítulo
intitulado Do nojo, pesar, desprazer, aborrecimento e saudade, tece as primeiras
importantes considerações, sob a óptica da moral, acerca do conceito de saudade, que
distingue arquetipicamente o povo português. Segundo Afonso Botelho, “no tratado de
D. Duarte encontramos o espelho dessa extraordinária preparação psicológica e ética
que o reino ia elaborando, reflectida ou intuitivamente, com vista à grande diáspora das
Descobertas.” (1980, p. 17). Para o melancólico jovem rei, a saudade remete ao espírito,
surgindo-lhe esta como um sentimento intraduzível, uma vez que, embora parta do
coração, é autônomo e superior aos elementos que a desencadeiam como a tristeza, o
nojo, o prazer, o desprazer ou o aborrecimento. D. Duarte distingue dois tempos em que
a saudade está radicada: um ligado ao passado, outro, ao futuro, como notamos em:
... quando nos vem algữua sentimos nembrança d’algữu tempo em que
muito folgamos(...), e, por conhecermos o estado em que somos seer
tanto melhor, nom desejamos tornar a el por leixar o que possuímos,
tal lembramento nos faz aprazer. E a míngua do desejo, per juízo
determinado da razom, nos tira tanto aquel sentido que faz a suidade,
que mais sentimos a folgança, por nos lembrar o que passamos, que a
pena da míngua do tempo ou pessoa. E aquesta suidade he sentida
com prazer mais que com nojo nem tristeza (1965, p. 50-51).
Trata, portanto, da saudade pela ausência de um ser ou de um lugar amado, em que “ao
comparar o nosso estado presente ao estado passado, em que fomos felizes, achamos
este presente melhor” (LOURENÇO, 1999, p. 108). Sob esta óptica, a saudade revela
um certo alento, em contraposição ao que podemos constatar nas cantigas de amigo, em
que o presente, marcado pela ausência do amado, é triste, conforme se percebe na alba
de Nuno Fernandes Torneol:
e que remete à saudade das cantigas de amigo, na medida em que reedita o sentimento
que a amada sente e a faz chorar para a Natureza, que lhe causa tristeza, porque está
ligado à ausência de um ente querido que a/nos deixou. O ensaísta Eduardo Lourenço
vai denominar esse sentimento de nostalgia, na medida em que gera sofrimento por um
bem perdido e, nesse sentido, ele o considera um sentimento negativo. Porém, na
segunda estrofe do mesmo poema, Pessoa abre para um sentimento maior, gerado a
partir da subtração nostálgica do sentimento de perda, transformando a privação
individual em vitória ou sonho, portanto, ainda segundo Eduardo Lourenço, em
saudade:
Esta talvez seja a primeira espécie da saudade ôntica à qual já nos referimos,
uma vez que ela traz um elemento extremamente positivo. Saudade, marcada pelo
sonho, pelo desafio, pela vitória, pela incessante busca por conquistar novas terras pelo
mar. É a essência da saudade que, segundo o criacionista português Leonardo Coimbra,
“transforma o desejo em sonho e a lembrança em transcendente memória” (BOTELHO,
1980, p.14). Saudade, ao fim e ao cabo, propulsora de uma nova ordem mundial, que
concretiza um outro verso pessoano: “Deus quer, o Homem sonha, a obra nasce”
(PESSOA, 1981, p. 12)
Mais adiante, traremos à baila o segundo tipo, que efetivamente marcará o “ser
português”.
Continuemos nosso percurso historiográfico.
Antes de adentrarmos o governo manuelino, que constitui o apogeu do Império
português, convém dedicar ainda algumas linhas a D. João II.
Se, por um lado, a Revolução de 1383 promove profundas transformações na
ordem política portuguesa, já que o Conselho do Rei é constituído por “cidadãos e
letrados”, uma vez que “os mais importantes cargos públicos são ocupados por homens
da alta burguesia” (COELHO, 1977, p. 111), por outro, graças aos privilégios
concedidos por D. João I, notadamente a Nuno Álvares Pereira, anos mais tarde é
constituída a mais importante casa nobre portuguesa: os Bragança. Fundada pela união
entre D. Afonso (*1380(?)/+1461), filho bastardo de D. João I e de D. Inês Pires, e D.
Brites Pereira, filha herdeira do condestável Nuno Álvares Pereira e de D. Leonor de
Alvim, será considerada “tão grande em estados, que nenhum Infante deste reino a teve
semelhante, e tão poderosa entre todas as mais da Europa” (SOUSA, D. Antônio
Caetano de, VERBO, 1966, p. 1276, v. 4.). Nos governos de D. Duarte e D. Afonso V a
força e autoridade dos Bragança são tão imperiosas que chegam a superar o poder régio.
Contrário a esse estado de coisas, D. João II promove a centralização do poder real,
instando a que os nobres lhe jurem fidelidade, além de, nas Cortes que lhe confirmam o
poder em 1481, promulgar várias medidas que ameaçam os privilégios feudais, como,
por exemplo, “a violação da jurisdição senhorial e a redução das contias” (MARQUES,
2009, p. 192).
Estamos, pois, diante do primeiro monarca absolutista da História. Instala-se
quase que imediatamente uma conspiração, liderada pelos Duques de Bragança e Viseu.
O primeiro, depois de sumário julgamento, é morto em praça pública, enquanto o
segundo, por ser irmão da rainha, é perdoado. Mais tarde, acusado de nova conjuração,
é morto pelo próprio rei, seu cunhado. Estão extintas as principais casas nobres
portuguesas, parece não haver mais sombra para os desígnios do Príncipe Perfeito, no
intuito de reunir a Península Ibérica sob a égide da coroa portuguesa. Para realizar seu
propósito, D. João II engendra o casamento de seu único filho legítimo, Afonso, com a
herdeira do trono dos Reis Católicos, Isabel; muito provavelmente também eles urdem
igual intento. Tudo parece concorrer para o sucesso da empresa portuguesa até que,
menos de um ano após o consórcio, Afonso morre, depois de sofrer uma queda de
cavalo. O monarca ainda tenta legitimar Jorge, seu filho natural, porém, como é de
esperar, vê seu propósito malogrado por parte da rainha D. Leonor, que já tivera um
irmão morto pelo rei e não deseja ver um bastardo no trono que por direito sucessório
seria de seu outro irmão, o futuro D. Manuel I, por vários motivos, o Venturoso. D. João
II morre sozinho, paradoxalmente, no Alvor, sem realizar o sonho de ver Portugal
transformado no desejado império “onde o sol nunca se põe”.
A ventura de D. Manuel (*1469/+1521) começa já por herdar um trono, no qual
é o oitavo na linha sucessória, ao ver Vasco da Gama chegar às Índias, por ver Pedro
Álvares Cabral “descobrir” o Brasil5, última grande empresa portuguesa.
Questões de ordem social, derivadas da ganância que, como afirma Gil Vicente,
é própria de “todo mundo”, aliada à despesa incomensurável para manter colônias pela
África, Ásia e América, levam ao início da decadência do Império Português, já no
reinado manuelino. Alia-se a isso o fato de o monarca ser instado a devolver aos nobres
os bens que haviam sido confiscados pelo cunhado. Note-se, entretanto, que a nobreza
no século XVI está mais afeita à centralização do poder régio, tornando-se até, em
muitos casos, dependente dele, pois vive na corte sob os auspícios do rei, que a nomeia
para cargos públicos ou fornece-lhes subsídios temporários. Surge, então, uma nobreza
de corte, cujos princípios estão mais próximos daquilo que de pior a classe burguesa
emergente revela, distanciando-se dos valores medievo-cavaleiresco que a nobreza
terratenente defendia, conforme aponta Oliveira Marques: “Ao contrário da Itália onde o
burguês ascendeu à aristocracia, em Portugal foi o nobre que “desceu” e se meteu no
comércio como meio de alargamento do próprio patrimônio” (2009, p.167). Além da
nobreza, floresce nesses tempos uma burguesia constituída essencialmente por legistas,
que detêm alguns privilégios nobres, dentre os quais se destacam os funcionários
públicos, os magistrados, os advogados, os professores universitários; os cidadãos,
chamados “homens-bons”, “gente honrada” e “gente limpa”, uma vez que não
5
Atendendo à escassa documentação possuída, alguns historiadores admitem que, pelos meados do
século [XV], os Portugueses haviam alcançado ou pelo menos avistado algumas das Antilhas, o Nordeste
do Brasil e o Nordeste do continente norte-americano (Terra Nova e Groenlândia). (MARQUES, 2009, p.
140).
trabalham com as mãos, a exemplo dos proprietários e mercadores, além da manutenção
do artesanato, que, fundamentais na Revolução de 1383-1385, agora perdem parte de
sua força; e por último, aqueles que não detêm poder algum. Como resultado desse
estado de coisas, há uma inflação muito grande nas contas do Estado, já
demasiadamente inchado pelas despesas na exploração e colonização das terras
conquistadas.
Tal derrocada é intensificada no governo de seu filho, D. João III
(*1502/+1557), filho de D. Manuel, cujo semblante, arraigadamente beato, implanta a
Inquisição (1536), num país que se antecipou à Europa sendo renascentista em pleno
século XV, porém sem jamais ser humanista, no sentido de reunir subsídios teóricos
para realizar o exercício do ser renascentista. Nos primeiros anos de seu reinado, o
monarca abre as portas do país para o convívio humanista. Para isso, leva de volta a
Portugal importantes estudiosos, como por exemplo, André de Resende 6. O rei promove
a fundação de Colégios, dentre os quais se salienta o Colégio Real das Artes e
Humanidades, cuja direção é facultada a André de Gouveia 7, reunindo um corpo
docente de excelência internacional. Acaba, no entanto, uma marionete nas mãos do
Santo Ofício, fechando o diálogo, recém-inaugurado, com a Europa. Tais iniciativas são
corroboradas por Oliveira Marques, para quem o rei passa a se caracterizar como “um
governante fanático e curto de vistas, controlado pela Companhia de Jesus e pelos
defensores de uma estrita política de Contra-Reforma, mandando prender e condenar
aqueles mesmos que antes convidara...” (2009, p. 197).
Tal mudança de conduta por parte do monarca pode ser explicada por diferentes
motivos, reiterados pela fraqueza de sua personalidade, dentre os quais se destacam o
agravamento da já aludida precária situação econômica do reino e a morte dos nove
filhos e cinco irmãos antes de 1540. O rei e a rainha consideram que a liberdade dada no
6
Humanista (*1500/+1573). Estudou na Espanha, posteriormente segue para a Lovaina, onde pertencia a
um círculo de erasmitas, que depois traz a Portugal, atendendo a convite de D. João III, sendo também
professor dos irmãos do rei. Em 1534, na abertura do ano letivo da Universidade, a esta época situada em
Lisboa, pronunciou a Oratio pro Rostris, que contém princípios humanistas. Seguidor de Erasmo, é, no
entanto, mais moderado do que o mestre, notadamente no que tange à crítica à Escolástica. Queixa-se ao
amigo Damião de Góis da ignorância e do materialismo dos nobres palacianos. Embora não possa
convencer o Rei acerca disso, continua contando com prestígio intelectual até a sua morte. (BIBLOS,
1995, p. 710-713, v. 4)
7
Humanista e pedagogo (*1479?/ +1548). Estudou em Paris, onde obteve o título de Mestre em Artes
(1528), exercendo depois o cargo de Reitor dessa Universidade, mais tarde ocupou o cargo de principal
no Colégio de Guiena, Bordéus. Desavenças em França trouxeram-no de volta a Portugal, onde fundou o
Colégio das Artes (1547) a convite de D. João III, congregando aí mestres de diferentes nacionalidades.
Morre, em 1548, em condições que levaram a suspeitar de sua ortodoxia. Houve intervenção da
Inquisição, que prendeu e julgou alguns dos professores, o que levou os estrangeiros a deixarem Portugal
e o Colégio a ser entregue à Companhia de Jesus em 1555. (BIBLOS, 1995, p. 865-866, v. 2)
reino aos hereges e judeus é a causa da falta de descendência, permitindo e mesmo
fazendo tudo que lhes está ao alcance para a instalação do tribunal do Santo Ofício em
Portugal (1536). Segue-se a chegada da Companhia de Jesus ao reino, em 1540. Está
instalado o império, marcado pelo espírito obscurantista, unido contra a heresia, eivado
nos ensinamentos veiculados pelo Concílio de Trento, que levam à estagnação de toda
sorte de manifestação cultural.
As consequências são desastrosas do ponto de vista social, uma vez que
ocasionam insegurança nos cristãos novos e judeus, gerando a evasão desta etnia do
país, que, levando consigo seus bens móveis, agrava a situação econômica do reino.
O Império acaba por ruir completamente no reinado de D. Sebastião, marcado
pelo desastre de Alcácer Quibir.
Já mencionamos algures os problemas que evolviam a sucessão ao trono
português. Tais questões transformam o nascimento de D. Sebastião (*1554/+1578) na
vinda do desejado, ungido de uma aura nacional, comparável à de Jesus Cristo, na
medida em que, a exemplo do Senhor, salvaria Portugal do demoníaco inimigo: a
Espanha. Neto de D. João III, torna-se herdeiro do trono depois da morte do pai, o
príncipe João de Portugal, duas semanas antes do seu nascimento, e rei com apenas três
anos, em 1557. O país é governado por sua avó, D. Catarina, de 1557 a 1562, e por seu
tio-avô, o Cardeal D. Henrique, Inquisidor-Mor, de 1562 até sua efetiva assunção ao
trono, em 1568. Tanto as regências quanto o reinado de D. Sebastião estão impregnados
do mesmo espírito beatamente religioso que já envolvera o governo de seu avô.
Enfermiço de corpo e alma, deixa a gerência do reino nas mãos dos irmãos Câmara,
eminências pardas, que administram segundo os interesses da Igreja e da Espanha. O
monarca dedica seu tempo aprimorando-se na arte da caça e, notadamente, envolvido
com a ideia de promover, em finais do Quinhentos, sua cruzada santa, a expandir a fé
cristã, cujo alvo primeiro reside na conquista do Marrocos, sonhando, talvez, conforme
aponta Rebelo da Silva, “com as proezas de seus avós, quis acordar o reino de seu
torpor”. (SILVA, 1960, p. 154).
A loucura de D. Sebastião, de que magistralmente trata Pessoa, é incentivada
por jovens aristocratas tão imaturos quanto ele. Ninguém os podia conter. Embora a
empresa fosse em parte subsidiada pela Igreja, o rei promove a criação de novos
impostos, além de contrair empréstimos vultosos no estrangeiro, tornando a situação
econômico-financeira do reino ainda mais difícil.
Numa espécie de expedição de reconhecimento, D. Sebastião desembarca no
Marrocos em 1574. No retorno a Portugal, passa os dias a preparar sua investida,
tentando em vão obter ajuda militar e logística, inclusive recorrendo ao tio, Filipe II, de
Espanha, que nega. Em meados de 1578, consegue reunir um exército desorganizado e
despreparado disciplina e militarmente, constituído por forças portuguesas e
mercenárias, que conta com quinze mil e quinhentos infantes e mil e quinhentos
cavaleiros, além de pessoal de apoio. Depois de desembarcar em Arzila, cujo
governador Mulay Muhammad abre-lhe as portas, o rei português marcha para o sul até
Alcácer Quibir, onde era esperado pelo sultão Mulay ‘Abd al-Malik e seu exército,
composto por oito mil infantes e quarenta e um mil cavaleiros. O resultado da investida
todos conhecemos: o rei e a nata da aristocracia portuguesa são mortos, são feitos
inúmeros prisioneiros, poucos conseguem escapar. A aventura malograda custou aos
cofres públicos 1.000.000 de cruzados, ou seja, metade da receita anual do reino.
A misoginia do rei falecido não lhe permite gerar descendentes diretos.
Portugal passa a ser governado pelo parente mais próximo, seu tio-avô, Inquisidor-Mor,
o Cardeal D. Henrique (*1512/+1580), que, no alto de seus sessenta e seis anos,
apresenta uma saúde debilitada e uma energia enfraquecida. Falecido dois anos mais
tarde, o reino passa a ser disputado por vários pretendentes, dentre eles, Filipe II
(*1527/+1598), de Espanha.
O intervalo entre o ápice e a derrocada da dominação portuguesa sobre o mundo
dura um século. Agora é a arqui-inimiga Espanha quem comandará, por sessenta anos, o
Império onde “o sol nunca se põe”.
O domínio filipino, marcado pela privação da independência política, e
consequente perda da identidade cultural portuguesa, gera um impulso nacionalista,
agravado por dificuldades econômicas tanto nas colônias, incluindo Portugal, quanto na
agora metrópole, que, além de tudo, tem que abafar revoltas internas em muitas das
comunidades, até hoje autônomas, como é o caso de Aragão ou Catalunha.
Agora sim, talvez tenhamos chegado ao ápice do problema português. Não se
pode negar que a perda da hegemonia política exerce em qualquer povo um desastre de
inegáveis consequências. No caso português, em particular, essa perda está ligada a toda
uma história marcada por lutas pela separação e manutenção da independência frente à
Espanha. Obviamente que o desastre de Alcácer Quibir, uma morte anunciada, gera um
forte sentimento de privação, uma vez que se perde a independência política, mas se
perde também, e talvez principalmente, todo um passado heroico, marcado pelo espírito
guerreiro medievo-cavaleiresco, que leva a nação ao domínio do mundo, já antecipado
nos versos da epopeia camoniana.
A partir desse momento, lidamos com um outro tipo de saudade, que
gostaríamos de chamar saudade nostálgica, porque estigmatizada pela saudade
ontológica, arquetípica do ser português, intensificada por profundas cicatrizes, oriundas
da nostalgia de um tempo passado, irremediavelmente perdido, que nasce aqui e se
propaga para o futuro. Os portugueses estão saudosos de uma nação que se foi e que
nunca mais voltará a reeditar o passado, pelo menos naqueles moldes sonhados. O
império espanhol logo também se porá. Estamos, pois, diante de uma saudade, digamos,
castradora, pois impede a propulsão para frente, para novas buscas, para novas
conquistas, talvez com medo de outras novas perdas.
A união ibérica, sob a égide espanhola, acaba por constituir-se na primeira
grande marca em prol da perda de identidade do povo português que, convenhamos, não
sem razão, passa a sonhar e a viver da memória saudosa de um tempo perdido. Nasce,
assim, um dos grandes emblemas da eterna busca portuguesa por essa espécie de paraíso
perdido: o sebastianismo, mito alimentado no fato de o corpo do rei morto nunca ter
sido encontrado. É a imagem mítica do rei salvador, que, a exemplo da também mítica
aparição do Cristo salvador a Afonso Henriques, despontará mais intensamente, já que
está sempre presente, toda vez que a nação se sente mais ameaçada. Afinal, não nos
esqueçamos, Portugal é a nação ungida, escolhida por Cristo, eternamente iluminada
pela Graça, que levará ao fim último, que é atingir a Glória.
Com o apoio francês, começa, em 1638, uma conspiração de aristocratas, que, só
em 1640, terá apoio efetivo do Duque de Bragança, o futuro D. João IV (*1604/+1656).
Em 1̊ de dezembro, um grupo de nobres ataca o Palácio Real de Lisboa, prendendo a
Duquesa de Mântua8. Poucos dias depois, D. João entra em Lisboa, onde é aclamado rei,
e reconhecido como soberano português no Portugal continental e ultramarino,
excetuando-se Ceuta, que permanece fiel a Filipe IV (*1605/+1665).
Mais uma vez, agora sob a feição marcadamente religiosa, Portugal está apto a
dominar o mundo, conforme aponta o patriotismo mítico-profético do Padre Antônio
8
Vice-rainha de Portugal (24/08/1589-25/06/1655). Filha da infanta espanhola D. Catarina e de Carlos
Manuel, Duque de Sabóia. Chamava-se Margarida de Sabóia. Casou, em 10/03/1608 com Francisco
Gonzaga. Tornou-se Duquesa de Sabóia em 01/02/1612, enviuvando nesse mesmo ano. Filipe IV de
Espanha, seu primo co-irmão, deu-lhe o governo de Pavia e depois, por ser muito afeta à política do rei
espanhol, fê-la vice-rainha de Portugal. Entrou em Lisboa em 23/12/1634, tendo o escrivão da Fazenda,
Miguel de Vasconcelos, como Secretário de Estado. Em 1̊ de dezembro de 1640, depois de assassinado,
Miguel de Vasconcelos, pretende impor sua autoridade ao apelar para a lealdade dos portugueses, quando
é presa pelos insurgentes. (VERBO, 1971, p.1340-1341, v. 12).
Vieira (*1608/+1697), em sua História do futuro. Ali, e também nos sermões mítico-
proféticos, pressagia que Portugal segue o destino de egípcios, assírios, persas e
romanos, despontando como o V Império, onde se consumaria o reino universal de
Cristo, sob a égide do amigo, D. João IV, uma vez que “todos os reinos se unirão em
um cetro, todas as cabeças obedecerão a uma cabeça suprema, todas as coroas se
rematarão em um só diadema, e esta será a peanha da cruz de Cristo” (VIEIRA, 1982, p.
61). Não nos esqueçamos, outrossim, que a Cruz sempre foi a insígnia da Nação.
Atentemos para os comentários de Ana Cristina Nogueira da Silva e Antônio Manuel
Hespanha:
Também o século barroco trata da saudade, deixando muito clara a relação que
se estabelece entre o mar, o amor e este sentimento, conforme patenteia D. Francisco
Manuel de Melo, em suas Epanáforas amorosas, que tratam da lendária (?) descoberta
da Madeira por dois amantes ingleses:
10
Transformação profunda e brusca, por vezes violenta e sangrenta, das instituições políticas, sociais e
econômicas de um país provocada por forças organizadas superiores às forças de conservação com a
participação, mais ou menos importante, das camadas inferiores da sociedade e com o objetivo de criar
uma ordem nova. (BOBBIO, 1999, p. 284). Revolta militar: levantamento em que as forças militares de
um país, ou parte delas, procuram derrubar pela fora a autoridade instituída. (id. ibid., p. 284).
Embora a bandeira como símbolo nacional só tenha surgido com o advento da
Revolução Francesa, ela sempre esteve presente na história dos povos, ainda que
representasse, no caso português, por exemplo, as casas reinantes ou viesse hasteada nas
caravelas que singravam os mares ao longo das conquistas marítimas.
É bastante característico da índole portuguesa o fato de Afonso Henriques ter
adotado para representá-lo um escudo branco com uma cruz azul, sobrepondo, mais
tarde, os besantes (ou dinheiros). De acordo com a versão tradicional, esta inclusão dos
dinheiros está relacionada com o milagre de Ourique, segundo o qual, como sabemos,
Jesus Cristo teria aparecido ao rei, permitindo-lhe a vitória contra os castelhanos.
Assim, Afonso Henriques teria colocado no seu escudo de armas os trinta dinheiros
pelos quais Jesus foi vendido (ou segundo outra leitura, as suas cinco chagas). Nos
reinados de Sancho I e Sancho II, a cruz azul é substituída por cinco quinas da mesma
cor postas em cruz11. D. Afonso III acrescenta uma bordadura vermelha e os castelos,
cujo número se modifica ao longo da história. D. João I coloca a cruz de Avis, sobre a
qual apõe o campo branco das quinas. 12 D. João II introduz o formato retangular da
bandeira, sobrepondo ao escudo uma coroa de ouro com cinco cruzes. D. Manuel
introduz uma coroa, simbolizando a centralização do poder régio.
As bandeiras vão se constituir efetivamente símbolos nacionais com D. João VI
e D. Pedro IV. O primeiro introduz a esfera armilar, emblema pessoal de D. Manuel I e
que figura nas armas do Brasil, para indicar o Reino Unido de Portugal e dos Algarves e
do Brasil, promovendo também alterações na coroa. D. Pedro IV retira a esfera armilar,
apondo o escudo num fundo branco e azul.
A bandeira republicana13 é constituída pelo verde, “cor da esperança e do
relâmpago, significa uma mudança representativa na vida do país” e pelo vermelho,
“cor combativa e quente, é a cor da conquista e do riso. Uma cor cantante, ardente,
alegre. Lembra o sangue e incita à vitória”. Sobre elas, vem a esfera armilar, que
representa os descobrimentos portugueses, encimado pela faixa vermelha com os sete
11
Diz a tradição que, do escudo que D. Afonso Henriques recebera do pai, com uma cruz azul, à qual
sobrepusera os besantes, nada mais restava que os pregos que representavam os dinheiros e pequenos
pedaços de couro azul que eles pegavam, dando assim a impressão dos cinco escudetes de quinas que
ainda hoje a bandeira possui. A cruz azul desaparecia, assim, definitivamente e estava encontrado o
elemento central das armas da nação nascente. COELHO, Trindade. Manual Político do Cidadão
Portuguez. Lisboa: Parceria A. M. Pereira Livraria/Editora, 1906.
12
É também nesta época que surgem as primeiras referências ao uso do termo quina para designar os
escudetes das armas nacionais.
13
As explicações que envolvem a bandeira republicana portuguesa foram retiradas de Bandeiras de
Portugal. Câmara Municipal de Lisboa. C.M., 1994.
castelos, que retratam a independência nacional; dentro dela, o escudo com as quinas a
homenagear a “bravura dos portugueses que lutaram pela independência”.
Essa breve descrição das bandeiras portuguesas leva-nos a pensar em dois
importantes aspectos, que vêm alegorizar o ser português. O primeiro deles repousa
sobre a marcante presença da cruz, que, desde Afonso Henriques, carrega a ideia de que
a pátria está ungida por Deus, conforme já apontado quando tratamos da batalha do
Ourique e nunca mais deixa de estar presente nas armas dos monarcas, nas bandeiras da
Monarquia e na da República. Portanto, a ideia de povo ungido, iluminado, escolhido
por Deus já está emblematizado, se assim podemos chamar, no símbolo nacional.
Outro aspecto que releva notar é a presença do número sete 14, considerado
algarismo da sorte em várias culturas, que simboliza, segundo a numerologia, a
totalidade do universo criado, a união do espírito, três, com a matéria, quatro; ou ainda a
perfeição, a completude, porque é a soma de quatro (= feminino) com três (=
masculino). Na mitologia judaico-cristã, sua presença é marcante, seja na Bíblia, seja na
Cabala. É, pois, a síntese, cuja simbologia revela a transformação e a integração, e
também um dinamismo total, ou seja, uma totalidade em movimento.
No caso de Portugal, esse número parece estar ciclicamente presente.
Encontramo-lo, por exemplo, nos castelos que compõem a bandeira portuguesa, a
representar os sete castelos tomados aos mouros por Afonso III — Albufeira, Alzejur,
Cacela, Castro Marrim, Estombar, Paderne, Sarjes.
Vemo-lo também no mito da Sétima idade de que trata Fernão Lopes, na
Crônica a D. João I. Suspendendo a narração dos feitos do eminente Rei, cognominado
Mexias de Lixboa, o Cronista mor afirma que a Sétima idade:
14
A simbologia do número sete foi composta a partir dos verbetes Sete: CHEVALIER, Jean;
GHEERBRANT, Alain. Dicionário dos símbolos. Lisboa: Teorema, 1982, p. 603-606 e Septenário:
CIRLOT, Juan-Eduardo. Diccionario de símbolos. Barcelona: Editorial Labor, 1981, p. 404-406.
Assim, a Sétima Idade designa o tempo de uma nova geração de homens, enaltecidos
pelo serviço ao Mestre e oriundos de baixos estratos, que no tempo do cronista são os
novos “doões”. Fernão Lopes, por um lado, está comparando a figura de D. João I à de
Jesus Cristo, na medida em que o Mexias de Lisboa inaugura a Sétima Idade, trazendo o
advento de um mundo novo, assim como Jesus Cristo teria feito ao vir para salvar a
humanidade. Por outro, a Sétima Idade reforça a memória dos homens inscritos na sua
contemporaneidade, uma vez que a geração de Aljubarrota começa a morrer,
simbolizando, pois, conforme aponta Marcella Lopes Guimarães, em A Sétima Idade de
Fernão Lopes: novo tempo para os Príncipes de Avis? 15: “uma visão salvídica,
renovadora, que oferece significado para as expectativas mais aterradoras na realidade
do outono da Idade Média portuguesa”.
Não nos podemos esquecer ainda da figura do infante D. Pedro, filho de D. João
I, homem dividido entre o ontem medieval e o amanhã dos Descobrimentos. É
conhecido como o das “sete partidas”, graças às viagens que empreende com vistas a
saber e sentir o que se passa pelo resto do mundo. Parte de Portugal, em 1418, visitando
a Espanha, Hungria, Alemanha, Chipre, Terra Santa, Palestina, Turquia, Constantinopla,
Alexandria, Cairo, Paris, Dinamarca, Inglaterra, Flandres, Veneza, Roma, retornando,
em 1428, a Coimbra, via Salamanca. Um ano antes de sua chegada, de Bruges, escreve
uma carta ao irmão D. Duarte, criticando a falta de cultura na administração do Estado
Português, apontando como exemplos a serem seguidos Paris e Oxford.
Além disso, o 25 → 2 + 5 = 7, também é marcante. Persigamo-lo: a Batalha do
Ourique teria ocorrido em 25 de julho de 1139; a Revolução dos Cravos em 25 de abril
de 1974; o chamado Verão Quente em 25 de novembro de 1975, só para resgatar alguns
importantes exemplos. Acontece que o sete também comporta uma certa ansiedade pelo
fato de indicar uma passagem do conhecido para o desconhecido, uma vez que, se um
ciclo está encerrado, poder-se-ia perguntar: qual será o seguinte? O incógnito, que leva
os portugueses aos desconhecidos mares e terras, não é mais capaz de impulsioná-los
para novas revelações, uma vez que a saudade ôntica que marca o ser português é de tal
forma magnetizante, que os prende no “quintalinho à beira mar plantado”, impedindo-os
de ir em busca de novos desconhecidos, que podem, é certo, levar a novas conquistas,
mas também a novos fracassos.
Ao fim e ao cabo, podemos dizer que os conceitos que dão título ao capítulo —
História... Memória... Saudade... Identidade... Hiperidentidade... — marcam
15
Disponível em: http://people.ufpr.br/~andreadore/marcella.pdf. Acesso em: 30 nov. 2012.
visceralmente o ser português. A História de Portugal está pautada por uma invasão
mítico-lendária, assinalada, em primeira instância, pelo destino, compreendido
paradoxalmente, na acepção que lhe dão os gregos pagãos, ou seja, os deuses
determinam a fortuna da nação portuguesa. Embora inscritos sob o signo da
Cristandade, que desde Afonso Henriques lhes distingue como nação escolhida e ungida
por Deus, a fortuna da nação está centrada na saudade, móvel do ser português.
Estamos, pois, diante de um espectro que não permite que o povo eleito pratique o livre-
arbítrio cristão, o caminho a seguir, uma vez que sua História está estigmatizada pela
saudade. Seja a saudade nostálgica, ligada à ausência de um ente querido, entrevista nas
cantigas de amigo, seja a saudade ôntica, de que fala D. Duarte, cuja lembrança leva a
um presente positivo, que remete ao sonho, ao desafio, à vitória, congraçados nos
Descobrimentos, que trazem a nova ordem mundial que Portugal inaugura no
Quatrocentos, símbolo maior da heroicidade que marca o povo português desde o início.
Tudo isso cai por terra (ou por areia?) com a derrocada de Alcácer Quibir, que
faz imergir a independência política, enterrando consigo a identidade nacional, geradora
de um sentimento ainda marcado pela saudade, porém uma saudade nostálgica,
assinalada, em última instância, pela perda da heroicidade medievo-cavaleiresca que se
torna a partir daí apenas lembrança na memória nacional. Talvez possamos pensar na
reminiscência platônica, na medida em que o presente se configura como mera sombra,
lembrança ou memória de um passado heroico e glorioso.
Os séculos transcorrem e Portugal cultiva a cada nova perda o seu
ensimesmamento, marcado, antes de tudo, por um catolicismo beato frente à Europa,
frente ao mundo, sempre imerso na saudade que, de ôntica e nostálgica, se transforma
em desesperançadamente castradora. Estamos, pois, diante daquilo que Eduardo
Lourenço em Nós e a Europa ou as duas razões (1994) afirma ser não um “problema de
identidade, mas de hiperidentidade, de quase mórbida fixação na contemplação e no
gozo da diferença que nos caracteriza ou nos imaginamos tal no contexto dos outros
povos, nações ou culturas” (p. 10).
Podemos, em última instância, apontar que a nação, sob o desígnio do sete, a
oscilar entre completude do passado e a ansiedade do presente, carece da “loucura
sadia”, de que trata Pessoa, para sair do inerte “nevoeiro” em que se encontra há quase
quinhentos anos, haja vista a situação atual.