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BARROS, João de, Panegyricos do Grande João de Barros Fielmente Impressos Conforme a Sua Antiga Linguagem — Anno de

1533, Lisboa, Off. António Gomes, 1791; B ARROS, Teresa Leitão de, Escritoras de Portugal, sl, sn, 1924; id., Infanta D. Maria de
Portugal, Lisboa, SPN, 1949; BRITO, Gomes de, As Tenças Testamentárias da Infanta D. Maria, Lisboa, Tip. Calçada do Cabra,
1907; CASTRO, Augusto Mendes Simões de, Notas acerca da Vinda e Estada del Rei D. João III em Coimbra no Ano de 1550 e do
Modo como Foi Recebido pela Universidade, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1914; COTTA, Antonio dos Santos Carreta, Dona
Maria Infanta de Portugal, Évora, Minerva Comercial, 1924; COUTINHO, Carlos da Cunha, O Grão Prior de França e a Sua
Armada no Tejo em 1560: Subsídio para Um Pretenso Noivado da Infanta D. Maria, Sep. Arquivo Histórico de Portugal, 2,
Lisboa, 1936; DANTAS, Júlio, «A Infanta D. Maria», Revoada de Musas. As Mulheres na Vida dos Homens Célebres, Lisboa,
Portugália Editora, 1965, pp. 85-96; FARIA, Manuel Severim de, Notícias de Portugal, Lisboa, 1655; LEITE, Bertha, A Mulher na
História de Portugal, Lisboa, sn,1940; MONTEIRO, J. P. Franco, As Donatarias de Alenquer, Historia das Rainhas de Portugal e
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Heroino, Abecedario Histórico e Catalogo das Mulheres Illustres em Armas, Letras Acçoens Heroicas e Artes Liberaes, Lisboa,
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Mecenato de Uma Princesa Renascentista, Lisboa, Fundação Oriente, 1998; RAM ALHO, Américo Costa, «A Infanta D. Maria e o seu
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interesse e conflito em torno do mecenato póstumo da Infanta D. Maria (1521-1577)», Rumos e Escrita da História: Estudos em
Homenagem a A. A. Marques de Almeida, Lisboa, Colibri, 2007; RIBEIRO, Vítor, A Infanta D. Maria e o Seu Hospital da Luz,
Lisboa, Tip. Casa da Moeda e do Papel Selado, 1907; S ABUGOSA, Conde de, Donas de Tempos Idos, Lisboa, Livraria Ferreira, 1912;
SERRÃO, Joaquim Veríssimo, A Infanta D. Maria e a Sua Fortuna no Sul da França 1521-1577, Lisboa, Álvaro Pinto, 1955;
SILVEIRA, Olga Moraes Sarmento da, A Infanta D. Maria e a Corte Portuguesa (1521-1577), Coimbra, França Amado, 1909; VALE,
Alexandre de Lucena e, «Príncipes, titulares do senhorio de Viseu», Anais da Academia Portuguesa da História, Lisboa, pp. 167-197,
II série, vol. 12; VASCONCELOS, Carolina Michaëlis de, A Infanta D. Maria de Portugal (1521-1577) e as Suas Damas, Porto, 1901
[reimp. Lisboa, Biblioteca Nacional, 1983]; VILLA-REAL Y VALDIVIA, Francisco de Paula, «La Infanta D. Maria y su Academia
literaria», Tres princesas lusitanas. Bosquejos históricos, Granada, Tp. Sabatel, 1899, pp. 37-45.

Vanda Anastácio

MARIZ, Pedro de (Coimbra? Braga, entre 1562-1569; Lisboa, 1615). Membro de uma família de
tipógrafos e livreiros — neto, pelo lado materno, de João Álvares; filho de António de Mariz, que
trabalhou, em Braga, na década de 60, para o arcebispo Fr. Bartolomeu dos Mártires, e depois, a
partir de 1572 e até à sua morte, em 1601, para a Universidade de Coimbra; cunhado de Diogo
Gomes Loureiro; «parente», segundo João Franco Barreto, de Domingos Fernandes… —, Pedro de
Mariz, sobrinho do lente e deputado do Santo Ofício, padre Cristóvão João, graduou-se como
bacharel em Cânones pela Universidade de Coimbra, havendo registo da sua primeira matrícula, em
1584, bem como da sua aprovação final, a 18 de março de 1595. Aí chegou a ter funções de
«corretor da impressão» e de «guarda da livraria», labor que, por implicar o controlo de
encomendas bibliográficas, o obrigou, pelo menos no ano de 1603, a uma estada em Lisboa, cidade
para onde viria a mudar-se um pouco mais tarde. Por alvará de 20 de setembro de 1605, passou a ser
escrivão da Torre do Tombo, cargo a que conseguiu juntar, a 25 de setembro de 1612, o de
procurador dos presos do Santo Ofício. Nas portadas dos volumes que deu à estampa nesse período
de maturidade, refere-se como «Sacerdote coimbricense», e em especial, em 1612, acumulou as
designações de «Provedor perpétuo do hospital da Castanheira» e de «Licenciado» (habilitação que,
verdadeira ou fictícia, continuaria a ser posta em evidência no introito das Rimas de Camões
impressas por Domingos Fernandes em 1616: «Ao Estudioso da Liçam Poetica: Feito por o
Licenciado Pedro de Maris Sacerdote canonista em que conta a vida de Luis de Camões»).
Pedro de Mariz desenvolveu uma obra extensa, de títulos pregoeiros que espelham a consciência
do valor do livro como objeto de mercado e procuram criar expectativas mediante a promessa de
uma generosa tematização. A folha de rosto dos Dialogos de Varia Historia anuncia: Em que
sumariamente se referem muytas cousas antiguas de Hespanha. E todas as mais notavees, q[ue]
em Portugal acontecerão em suas gloriosas Conquistas, antes e depois de ser levantado, a
Dignidade Real. E outras muytas de outros reynos, dignas de memoria. Com os Retratos de todos
os Reys de Portugal. Igualmente loquazes são os limiares da Historia do Bemaventurado Sam Ioão
de Sahagum ou da Historia Admiravel do Sanctissimo Milagre de Sanctarem, que se ramificam na
longa enumeração de matérias a explorar, e desse hábito não destoa sequer um texto deixado inédito
(Historia da Vida, Milagres e Canonização do Bemaventurado S. Hyacintho da Ordem dos
Pregadores).
A julgar por informações disseminadas neste corpus ou apuradas por bibliógrafos, mais vasta
ainda foi a produção do autor. Nela caberia, além de uma «segunda parte» dos Dialogos de Varia
Historia, a que o próprio Mariz alude (1599, fls. 200, 249v, 337v) e cuja existência o testemunho de
João Franco Barreto confirma, uma Vida e Feitos do Valeroso e Virtuoso Capitão André Furtado de
Mendonça. Ambos os manuscritos, porém, terão ficado na posse de Domingos Fernandes, perdendo-
se por ocasião da sua morte. Haveria outrossim um «livro [..] dos Milagres do Santíssimo
Sacramento» (declara-o Mariz, a f. 52v da Historia Admiravel do Sanctissimo Milagre de
Sanctarem) e «dois tomos mais de fólio que […] escreveu sobre a Bula da Santa Cruzada»
(BARRETO, f. 860v), mas de todos se ignora o paradeiro. Muito frágil é a hipótese (só cautelosamente
aventada, no códice 2601 da Biblioteca Geral de Salamanca) de haver sido Mariz a redigir uma
Crónica de D. Sebastião — obra de controversa paternidade, já atribuída a Fr. Bernardo da Cruz, a
Fr. Amador Rebelo e a António Vaena.
Concentremos, pois, a atenção nos elementos disponíveis, e sigamos um fio cronológico. Os
Dialogos de Varia Historia foram publicados em 1594 e reeditados numa versão revista e
acrescentada, em «calamitosos tempos» de peste, entre 1597-1598 (as duas datas alternam no
frontispício dos exemplares recenseados) e 1599 (data constante no cólofon: «Acabouse de imprimir,
a segunda vez, esta Primeyra parte dos Dialogos de Varia Historia; e˜ a Ribeyra de Sernache dos
Alhos, em os Moinhos do acipreste, a 8 dias de Abril, de 1599. Na Officina de Antonio de Mariz,
Impressor da Universidade.»). Outras edições os relançaram através dos séculos (1672-1674, 1749,
1758, 1806), o que não surpreende, como não surpreende, nessas iniciativas, o afã atualizador,
traduzido em múltiplos aditamentos: no quadro da Restauração, os Dialogos foram ampliados de
modo a enaltecerem no reinado de D. João IV uma época de ressurreição e liberdade; em plena
instauração do absolutismo (à sombra do Magnânimo ou no começo da era pombalina), houve quem
os estendesse até D. João V; sob o impacto da Revolução Francesa e na iminência das invasões
napoleónicas, o texto ganhou terceiro suplemento para incluir o elogio do «Príncipe Regente» — o
futuro D. João VI —, avivando, em simultâneo, a memória de um passado capaz de proporcionar
alento em maré convulsa. A história de Portugal proposta por Mariz, a que outros agregaram seus
contributos, tinha características que a tornavam potencialmente interessante em contextos distintos.
Anima os Dialogos a ideia de que à história — e à história portuguesa, desde logo — subjaz um
sentido providencial. Daí que, ao aplicar o modelo pitagórico das quatro idades do homem, Mariz
engrandeça, como fruto de um projeto divino, as raízes do Reino e a pujança da expansão tutelada
por D. Manuel. Nesta sequência, desenha uma trajetória ascendente, da «infância» ao vigor
«varonil», e se lhe contrapõe um declínio, protagonizado por D. João III, D. Sebastião e D. Henrique,
fá-lo também como se buscasse razão superior para a perda da independência. Este trauma, inegável,
compensa-o Mariz sublimando a integração de Portugal na Monarquia Hispânica e tecendo encómios
aos Filipes como guardiães ou «Coluna» do mundo católico; não abdica, porém, de encarecer o
direito das posições portuguesas no conflito com Castela em 1383-1385, nem hesita em trazer à
colação o «juramento de D. Afonso Henriques», texto que a Primeyra Parte da Chronica de Cister,
Onde se Contam Cousas Principais desta Religiam com Muytas Antiguidades, assi do Reyno de
Portugal como de Outros muytos da Christandade (1602), de Fr. Bernardo de Brito, concorreria
para celebrizar e que se volveria peça-chave da mitificação de Portugal como sede do império de
Cristo. Nos Dialogos, não há apenas uma maneira nova de conceber a história (já não cronística, mas
«uma narrativa de conjunto», conforme advertiu Jorge Borges Macedo): ali se equaciona,
contemplando um amplo horizonte, o destino de Portugal.
No início de Seiscentos, Mariz privilegiou assuntos religiosos. Em 1609, deu ao prelo a Vida do
Bemaventurado Sam Ioão de Sahagum; em 1612, a Historia Admiravel do Sanctissimo Milagre de
Sanctarem, que estaria pronta desde 1608, pois a esse ano remonta a primeira deliberação censória.
Quanto ao manuscrito da Historia da Vida […] de S. Hyacintho, datou-o explicitamente de 1611. No
caso dos impressos, escolheu por dedicatários figuras de topo da hierarquia vigente sob a Monarquia
Dual: o valido, D. Francisco de Sandoval y Rojas, duque de Lerma; D. Pedro Castilho, inquisidor-
geral e vice-rei. No que toca à Historia de S. Jacinto, o protetor eleito foi D. Álvaro de Sousa,
«Capitão da Guarda de Sua Majestade» e Provedor da Irmandade daquele santo dominicano.
Decidido a mostrar zelo católico, Mariz enfatizava a sua condição de sacerdote, facto que, aliado à
influência cultural da Igreja reformada no Concílio de Trento, ajuda a compreender o cuidado de
incitar ao culto de santos, à comemoração de milagres e à veneração de relíquias. Todavia, a esses
motivos, profissionais e conjunturais, pode somar-se mais um, de índole circunstancial: é admissível
que a concentração de títulos devotos, oferecidos a altas personagens — curriculum abonatório…
—, esteja relacionada com a candidatura (coroada de êxito), em 1612, ao lugar de procurador dos
presos do Santo Ofício.
Sem dúvida, um ethos recomendável foi sendo composto. Na Historia do Bemaventurado S. João
de Sahagum — autêntico ex voto —, o autor traça um autorretrato edificante, como quem reivindica
a conjugação fecunda de letras profanas e sagradas: «era Sacerdote e Letrado, de Profissão
Canonista; mas per uso e inclinação, muito dado à lição dos livros Teólogos e Historiadores, e em as
ciências e artes que vulgarmente chamam liberais e de Humanidade, curiosamente exercitado, e
versado em as várias Línguas em que estas faculdades são mais próprias. E sobretudo muito
afeiçoado às cousas Eclesiásticas e Religiosas, e de todo o comum proveito muito zeloso.» (Segunda
Parte, f. 1v). Gesto relevante: à narrativa hagiográfica, ao relato das festas salmantinas e lisboetas
em prol do Santo, Mariz acrescenta a evocação de um desafio por si patrocinado («Certamen
Poético, em Louvor de S. João de Sahagum, Patrão Salamantino, Para se divulgar com a História de
sua Vida, que se está acabando de imprimir»).
Visando, às escâncaras, servir a Igreja, a Historia do Bemaventurado S. João de Sahagum encerra
também uma ilustração do melindre e dos riscos que a publicação de um texto pio acarretava. Com
efeito, o parecer de um censor («um papel separado», só secreto na medida em que a sua vocação era
privada, para norte do autor e das emendas a que o Santo Ofício esperava que procedesse),
documento tão raro quanto precioso para a história do livro em Portugal, permite saber quais as
reservas que o padre revedor João Correia levantou e quais as «advertências» a que Mariz deveria
acomodar-se. Mais significativa se torna, por isso, na Historia do Bemaventurado S. João de
Sahagum, a inscrição preambular de uma fórmula de humildade e obediência («Omnia quae dixero,
Censurae & Correctioni Sanctae Romane Ecclesiae subiecta sunto.»), como significativa é a nitidez
com que adiante, ao imprimir a Historia do Milagre de Sanctarem, Mariz salienta o escrúpulo do
inquisidor-geral e faz vénia à minuciosa vigilância exercida sobre o texto «por cinco qualificadores
de proposições heréticas: todos doctíssimos e mui Religiosos». Fervorosamente, abraçava a defesa
da Inquisição numa altura em que ambicionaria ser parte da sua máquina.
Este rumo religioso parece quebrar-se com a intervenção n’Os Lusiadas Commentados pelo
Licenciado Manoel Correa (1613), mas a realidade é complexa e exige conclusões matizadas.
Decerto, levar a cabo a edição do «comento» do padre Manuel Correia, inclusive transformando-o
para melhor o perfilhar, manifesta um apreço profano pelo «nosso» Camões. Contudo, por volta de
1611 (têm essa data, as licenças d’Os Lusiadas Commentados), exatamente no mesmo período em
que Mariz se afadigava na preparação de tomos devotos, não contaria menos o desejo de agradar a
D. Rodrigo da Cunha, deputado do Santo Ofício e admirador de Camões e das letras portuguesas, a
julgar pelas obras que lhe são endereçadas e a crer no que dele dizem dedicatórias como as das
Rimas de Camões de 1616 ou da Sylvia de Lisardo de 1626. Mais: ao retomar a obra de Manuel
Correia, Mariz abandonava a atitude laudatória para com os Habsburgos assumida nos Dialogos de
Varia Historia, entrando num coro de vozes que, sob o domínio filipino, defendiam com
desassombro um sentimento de identidade nacional — e também esta inclinação seria grata a D.
Rodrigo da Cunha.
Do que foi a interferência na «sementeira» de Correia, apenas é lícito conjeturar. Utilizando,
porém, como termo de comparação, o texto que Mariz assina n’Os Lusiadas Commentados pelo
Licenciado Manoel Correa (i. e., o prólogo), tudo indica não ser sua, por exemplo, a nota inaugural
que giza, em escala mínima, uma «vida» de Camões: «O Autor deste livro foi Luís de Camões,
Português de nação, nacido e criado na cidade de Lisboa, de Pais nobres e conhecidos: à qual,
depois d’haver estado muitos anos nas partes da Índia, se recolheu e nela morreu e está sepultado no
Mosteiro de S. Ana. Pelas armas foi na Índia muito conhecido e estimado: como testemunham muitas
pessoas de qualidade que o conheceram naquelas partes e hoje em dia vivem nestas. Quanto às
Letras, esta e outras obras suas, que andam impressas, mostram sua erudição e engenho e quão alta
pusera a risca, se deixados outros exercícios, se dera a elas de todo» (fls. 1-1v). Este perfil plácido
não satisfaria Mariz, que no prólogo «Ao estudioso da lição poética» argumentou com engenho a
favor de convicções muito diversas, asseverando que a ingratidão dos senhores, a dureza da fortuna e
«alguma propriedade natural» podiam coartar a existência dos poetas.
Dialecticamente travejado, o seu raciocínio merece observação minuciosa. Repare-se que, embora
preterido, o primeiro fator recebe algum — e não despiciendo — destaque: afinal, Luís Vaz não teria
sofrido a sombria ingratidão que Mariz insinua ser timbre do presente; pelo contrário, havia
beneficiado do apoio de um rei «tão altivo e grandioso» como D. Sebastião. Pecara por escasso,
esse apoio? Mariz imputa a míngua à fortuna, não ao soberano português, nem a príncipes nem a
fidalgos, que esta lógica vem desculpar. A fortuna, porém, é ambivalente no seu discurso: por um
prisma negativo, tira bens; sob um ângulo benigno, dá talento extraordinário. E é assim que, acima da
fortuna ou em temível conjura com ela, Mariz diagnostica uma «doença» que teria afetado Camões,
por isso nobre e miserável, magnífico e fracassado: uma irracional tendência ou «propriedade
natural» para o conflito com os outros e para a dissipação. Executando estes passos, Mariz foca a
imagem de um melancólico sobre cujo «calor poético» os anos e os desgostos haviam logrado
triunfar: uma imagem semelhante à que Diogo do Couto fixou na Década VIII, onde, além da «pouca
ventura», o cronista lembra a «natureza terríbel» do Poeta nascido «pera triste» (CRUZ, pp. 469-470,
473).
Não pôde Mariz conhecer as biografias de Torquato Tasso lavradas por Guido Casoni (1625) ou
por Giovanni Manso (esta, impressa em 1621, com probabilíssimas repercussões na obra de Manuel
Severim de Faria), e só como verosímil se postulará o seu acesso àquela que Giovanni Pietro
D’Alessandro, em 1604, difundira. A verdade é que não necessitaria destes textos nem das suas
especulações sobre a aura trágica do vate, e não é, de resto, como símbolo do génio desgraçado
(mito que o próprio Tasso fez germinar…), mas sim como poeta excelente, que Mariz menciona o
italiano quando o associa a Camões. Para inspirar o discurso «Ao estudioso da lição poética»,
bastariam noções e fascínios em voga: o conceito de imitatio vitae, atuante no entendimento da
poesia, tornava inevitável a curiosidade biográfica (pensemos nas consequências que essa
curiosidade teve na edição e na leitura de uma obra como a de Petrarca…); e o apetite por vidas
impressionantes era fomentado pela valorização da melancolia como timbre do indivíduo excecional.
Tudo isso se aplicava a Camões, que esculpira, verso a verso, reclamando dizer «puras verdades»,
atormentado por «tamanhas misérias» e «trabalhos nunca usados», um ethos ímpar. Tal como para os
biógrafos posteriores, esse modelo terá sido fundamental para Mariz, a quem não escapariam, tão-
pouco, testemunhos avulsos, peças potenciais ou embrionárias de uma biografia: as palavras
cinzeladas na sepultura do mosteiro de sant’Ana; pequenas histórias e ditos; composições
encomiásticas, da pena de autores como André Falcão de Resende, Fernão Álvares do Oriente ou
Diogo Bernardes, que no soneto Quem louvará Camões qu’ele não seja? havia deplorado a «fortuna
escassa» do Poeta ou a «imiga sorte» que fizera com que a pátria «com ele só» fosse «encolhida».
O prólogo «Ao estudioso da lição poética» terá soado como excessivo, ou então o empenho em
conquistar redobrados amparos e novos patronos ditou as mudanças patentes na sua reedição, nas
Rimas de 1616. É aceitável que haja sido Mariz a mitigá-lo, já que as licenças censórias vêm de
1615: o texto adquiriu um subtítulo aparatoso («Feito por o Licenciado Pedro de Maris Sacerdote
canonista em que conta a vida de Luis de Camões») e derramou-se em loas aos mecenas enfim dignos
desse nome, obliterando pormenores acerca da indigência de Camões. Na descrição da sepultura, a
fórmula da versão original — «tão rasa como as do mais povo» — foi suprimida, e não custa
adivinhar porquê: em 1616, o «fidalgo português» responsável por essa caridade é identificado, e
não faria sentido manchar D. Gonçalo Coutinho com qualquer suspeita de mesquinhez. Por seu turno,
na transcrição epigráfica, cortou-se a frase «Viveu pobre e miseravelmente», evitando o choque com
o epíteto de «Príncipe dos Poetas de seu tempo» e atenuando a discrepância relativamente ao teor do
epigrama latino que — explica-se — Martim Gonçalves da Câmara quisera juntar ao de D. Gonçalo.
A «vida» de Camões que Mariz publicou constitui um elo de uma corrente gerada por razões
culturais e antropológicas e dinamizada pelo tempo e pela História. Seguir essa corrente num eixo
diacrónico é sempre fonte de descoberta; analisá-la em sincronia não o é menos. Há que cotejar «Ao
estudioso da lição poética» com a «Vida do Doutor Francisco de Sa de Miranda, collegida de
pessoas fidedignas que o conhecerão, & tratarão, & dos livros das gerações deste Reyno», que o
mesmo livreiro Domingos Fernandes estampou em 1614 e que envolve igualmente as figuras
mecenáticas de D. Gonçalo Coutinho e de Martim Gonçalves da Câmara: o anónimo autor desse texto
(D. Gonçalo Coutinho, garantem bibliógrafos como João Franco Barreto) exalta em Sá de Miranda a
razão, a inteireza de costumes, a fé de «católico cristão, devotíssimo em particular da Virgem Nossa
Senhora», a mesura filosófica do estoicismo, o conforto patrimonial, o gosto pelo recolhimento, pela
contemplação e pelo estudo; Mariz, tratando de Camões, acentuara antíteses, contradições, dispersão,
caprichosa prodigalidade, vincando que desse magma se havia feito o Poeta maior. Tem sua
eloquência, tal contraste. Em paralelo à exaltação do trabalho e de uma sabedoria pacientemente
amealhada, como sucede na «Vida» de Sá de Miranda, o prólogo d’Os Lusiadas Commentados
sustenta uma outra ideia do que é o poeta e do que é a sua poesia: fenómenos misteriosos, cheios de
qualidade, que brilham sob o signo de Saturno.

OBRAS:
Dialogos de Varia Historia Em que sumariamente se referem muytas cousas antiguas de Hespanha. E todas as mais notavees,
q[ue] em Portugal acontecerão em suas gloriosas Conquistas, antes e depois de ser levantado, a Dignidade Real. E outras
muytas de outros reynos, dignas de memoria. Com os Retratos de todos os Reys de Portugal. Autor. Pedro de Mariz. Em Coimbra.
Na Officina de Antonio de Mariz. Com Privilegio Real. MDLXXXXIIII.
Historia do Bemaventurado Sam Ioão de Sahagum, Patrão Salamantino, Primeyra Parte. E as Historias Da Invenção &
maravilhas do Sancto Crucifixo de Burgos, E da Paxão da Imagem de Christo N.R. feyta pelo Sancto Varão Nicodemus. Em as
quaes entrão outras muytas, tambem Pias, & admiraveis. Auctor Pedro de Mariz, Sacerdote Coimbricense. Dedicadas a Sua
Excellencia Dom Francisco de Sandoval & Rojas, Duque de Lerma & Sea, &c. Em Lisboa per Antonio Alvarez. Com as Licenças &
Approvações necessarias. Anno do Senhor M.DC.IX.
Historia Admiravel do Sanctissimo Milagre de Sanctarem. Que aconteceo na Igreja do Protomartyr Sancto Estevão, em o
sanctissimo Sacramento do Altar. Cujas Reliquias milagrosas se conservão nella ha 345. annos: com muytas circunstancias
maravilhosas. Approvada & confirmada pelo Conselho Geral da sancta Inquisição: pelo Illustrissimo Senhor Arcebispo
Metropolitano: & pelo Dezembargo do Paço de sua Magestade. Com o Retrato & Relação da Imagem maravilhosa do sancto
Crucifixo: que na mesma Villa està. E mais os famosos Milagres, que as Historias notão, que moverão o Papa Urbano a
instituir a festa de Corpus Christi: & outros muytos do mesmo argumento. Offerecida ao Illustrissimo, & Reverendissimo Senhor,
Dom Pedro de Castilho, Bispo, Capellão Mor, & Esmoler Mor de S. Magestade: & de seu Conselho d’Estado: Inquisidor Geral, & Vice
Rey destes Reynos. Pelo Licenciado Pedro de Mariz, Sacerdote Coimbricense, & Provedor perpetuo do Hospital da Castanheyra. Com
as licenças necessarias. Em Lisboa. Por Pedro Crasbeeck. Anno 1612. Com Privilegio Real.
Os Lusiadas do Grande Luis de Camoens. Principe da Poesia Heroica. Commentados pelo Licenciado Manoel Correa,
Examinador synodal do Arcebispado de Lisboa, & Cura da Igreja de S. Sebastião da Mouraria, natural da cidade de Elvas.
Dedicados ao Doctor D. Rodrigo d’Acunha, Inquisidor Apostolico do Sancto Officio de Lisboa. Per Domingos Fernandez seu Livreyro.
Com licença do S. Officio, Ordinario, y Paço. Em Lisboa. Por Pedro Craesbeeck. Anno 1613.
Mariz, Pedro de, História da Vida Milagres e Canonização do Bemaventurado S. Hyacinto da Ordem dos Pregadores , Lisboa,
Instituto de Alta Cultura/Centro de Estudos Históricos, 1965.

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Biblioteca Nacional de Portugal). Arquivo Nacional da Torre do Tombo — Habilitações do Santo Ofício, letra M, Maço 41, Diligência
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: A LM EIDA, Isabel, «‘‘Este nosso Camões’’», in A A VV., Estudos. Homenagem a Maria Idalina Resina Rodrigues,
Maria Lucília Pires, Maria Vitalina Leal de Matos , Lisboa, Departamento de Literaturas Românicas, 2007, pp. 337-368; CARVALHO,
A. Saraiva de, «O biógrafo de Camões Pedro de Mariz e os seus «Diálogos de Vária História», Separata da Revista Gil Vicente, 1973,
vol. XXIV; CARVALHO, Teixeira de, «Pedro de Mariz e a Livraria da Universidade de Coimbra», Boletim Bibliográfico da Biblioteca
da Universidade de Coimbra, 1914, n.os 8, 9, 10, 11, vol. I, pp. 389-398, 438-446, 482-494, 533-542; CRUZ , Maria Augusta Lima,
Diogo do Couto e a Década 8.ª da Ásia. Vol. I, edição crítica e comentada de uma versão inédita, Lisboa, Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses/IN-CM, 1993; FERRO, Manuel Simplício Geraldo, A Recepção de Torquato Tasso na
Épica Portuguesa do Barroco e Neoclassicismo, Dissertação de Doutoramento em Letras apresentada à Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, 2004 (policopiada); P ALM A-FERREIRA, João, «O “Biógrafo” de Luís de Camões, Pedro de Mariz, como autor
da Crónica de El Rei D. Sebastião?», Arquivos do Centro Cultural Português , VII, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1974, pp.
471-484; P IRES, Maria Lucília Gonçalves, A Crítica Camoniana no Século XVII, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa,
1982; RAU, Virgínia e M ACEDO, Jorge Borges de, «Da biografia e Obra de Pedro de Mariz», in MARIZ , Pedro de, História da Vida
Milagres e Canonização do Bemaventurado S. Hyacintho da Ordem dos Pregadores , Lisboa, Instituto de Alta Cultura/Centro de
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