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Obreis publicadas na Colecção «Forum da História»:

1 — O Domínio Romano em Portugal, Jorge de Alarcão


2 — A Revolução Francesa em Questão: Novas Perspectivas, Jacques Solé
3 — Introdução ¿i História dos Descobrimentos Portugueses, Luís de Albuquerque
4 — A s Escolas Históricas, Guy Bourdé e Hervé Martin
5 — Ouro e Moeda na História, Pierre Vilar
6 — A Civilização Celta, Françoise Le Roux e Christian-J. Guyonvarc'h
7 — História das Relações Diplomáticas entre Portugal, e os Estados Unidos da América, José
Calvet de Magalhães
8 —- Historias das Ideias Políticas I, Jean Touchard
9 — Historia das Ideias Políticas II, Jean Touchard
10 — Historia das Ideias Políticas III, Jean Touchard
11 — Historias das Ideias Políticas IV, Jean Touchard
12 — O Casamento na Idade Média, Christopher Brooke
13 — Em Busca do Passado, Lewis R. Binford
14 — A Civilização Islâmica, J. Burlot
15 — A Idade Média à Mesa, Bruno Laurioux
16 — Lucy — Crónicas da Pré-História, Yvonne Rebeyrol
17 — Falsificações da Historia, Marc Ferro
18 —Movimentos Populares Agrários em Portugal, I (1751-1807), JoséTengarrinha
19 — Movimentos Populares Agrários em Portugal, II (1808-1825), José Tengarrinha
20 — A Vida em Roma na Antiguidade, Pierre Grimal
21 — A Sociedade Celta, Françoise Le Roux e Christian-J. Guyonvarc'h
22 — A Linguagem das Coisas, Luís Raposo e Antonio Carlos Silva
23 — A Guerra na Historia da Europa, Michael Howard
24 — Panorama Histórico da Cultura Jurídica Europeia, António Manuel Hespanha
25 — História das Superstições, Jean-Claude Schmitt
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HISTORIA
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FORUM,
HISTORIA
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JEAN-CLAUDE SCHMITT

HISTÓRIA
DAS SUPERSTIÇÕES

PUBLICAÇÕES EUROPA-AMERICA
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Título original: Les superstitions


(Chapitre 4 du tome 1 de 1'HISTOIRE DE LA FRANCE RELIGIEUSE
— Des origines au xive siècle, sous la direction
de Jacques Le Goffet Rene Rémond)

Tradução de Luís Serrão


Tradução portuguesa © de P. E. A.

Capa: estudios P. E. A.

© Editions du Seuil, 1988

Direitos reservados por


Publicações Europa-América, Lda.

Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida


ou transmitida por qualquer forma ou por qualquer pro-
cesso, electrónico, mecânico ou fotográfico, incluindo
fotocópia, xerocopia ou gravação, sem autorização pré-
via e escrita do editor. Exceptua-se naturalmente a
transcrição de pequenos textos ou passagens para apre-
sentação ou crítica do livro. Esta excepção não deve de
modo nenhum ser interpretada como sendo extensiva à
transcrição de textos em recolhas antológicas ou simi-
lares donde resulte prejuízo para o interesse pela obra.
Os transgressores são passíveis de procedimento judicial

Editor: Francisco Lyon de Castro

PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA.


Apartado 8
2726 MEM MARTINS CODEX
PORTUGAL

Edição n.°: 158025/6671


Abril de 1997

Execução técnica:
Gráfica Europam, Lda.,
Mira-Sintra — Mem Martins

Depósito Icyal n.": 104554/Vft


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ÍNDICE

Pág.
Os fundamentos latinos e patrísticos da noção
de «superstitio» 15

Do paganismo à superstição 27

Feiticeiros e adivinhos na Alta Idade Média 47

Superstições na aldeia 97

«Sabat» das bruxas e «charivari» na Baixa Idade


Média 147
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A superstição é para a religião


o que a astrologia é para a astronomia,
a filha louca de uma sábia mãe.

VOLTAIRE

Entre todas as «grandes religiões», o cristianismo do


Ocidente medieval (tal como o catolocismo moderno que
dele derivou) teve a característica própria de estar estrei-
tamente ligado à existência de uma Igreja, de um clero, de
um dogma. Estes factos essenciais distinguem-no espe-
cialmente das outras religiões que o precederam, acompa-
nharam ou seguiram no tempo: as religiões greco-romanas
da Antiguidade, o judaísmo e o islamismo, os protes-
tantismos saídos da Reforma. A existência de uma insti-
tuição eclesiástica, o estabelecimento por escrito, desde o
início do século III, de um dogma constrangedor, a distin-
ção social, cultural e religiosa de duas categorias de cris-
tãos — os clérigos e os laicos — conferiram à cristandade,
em particular na Idade Média, limites bem definidos, dos
quais ela tinha, de resto, uma forte consciência: limites
externos, que opõem os cristãos aos pagãos, aos judeus,
aos ni iiçu Imanos; Iimites i nternos, que distinguem os bons
e os maus cristãos, os heréticos e os cismáticos e, mais
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genericamente, os pecadores. Foi entre estes últimos que,


desde a origem, se incluíram os «supersticiosos».
A palavra «superstição» continua a pertencer à nossa
linguagem: ainda hoje, são considerados «supersticiosos»
aqueles que parecem estabelecer uma relação de cau-
salidade entre um acto ou um facto julgados significativos
— treze convivas à mesa, o saleiro que se entorna, um es-
pelho que se quebra, etc. — e um acontecimento, situado
geralmente no futuro, que se espera ou que se receia e de-
seja afastar. Tais afirmações, comportamentos e crenças
podem coexistir, na mesma sociedade, até num mesmo
indivíduo, com uma abordagem científica e técnica dos
fenómenos: pode «bater-se na madeira» antes de embarcar
num avião, embora sabendo que este voará conforme as
leis da aerodinâmica. Segundo os grupos sociais considera-
dos, os níveis de cultura, os objectos em causa — o corpo e
a doença representando sempre as principais apostas —,
o recurso simultâneo ou sucessivo a lógicas diferentes da
crença e do saber é mais ou menos frequente, mais ou
menos bem aceite: nas grandes cidades, onde a ideologia
ocidental tem o hábito de situar a sede da sua racionalida-
de, proliferam os videntes...
As «superstições» são hoje, em geral, toleradas: o seu es-
pectáculo suscita a alguns um sorriso irónico, a outros
uma curiosidade prudente. Não são novas na sua forma: o
temor dos presságios é universal. No entanto, mudou o sis-
tema dominante de referência, suposto como único legíti-
mo, em nome do qual as julgamos. As superstições não se
deparam já com os imperativos da fé enunciados por uma
Igreja: em contrapartida, são geralmente opostas ;i raciona-
lidade científica que o Ocidente forjou, sobretudo n pari ir

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do século XVIII. Mas esta substituição de um sistema de re-


ferências por outro efectou—se muito progressivamente, e
decerto que ainda não se encontra hoje totalmente con-
cluída. Quando, em 1679, o abade Jean-Baptiste Thiers,
pároco de Champrond, na diocese de Chartres, começou a
publicação do célebre Traité des superstitions, a cultura de
referência era ainda tradicional: no contexto da Contra-
-Reforma católica, as «superstições» são ainda julgadas e
condenadas no próprio âmbito da religião. O abade Thiers
enumera todas as crenças e práticas consideradas exage-
radas, vãs ou sacrílegas, que se opõem ao dogma e à dig-
nidade dos sacramentos da Igreja. Esta obra não cessou de
ser reeditada e aumentada durante o século xvni, até
1777, muito depois da morte do seu autor, numa época em
que, para os filósofos, era toda a Igreja, com os seus ritos
e as suas crenças, que devia ser considerada ao lado das
«superstições»...
Embora não pretenda aqui alargar-me sobre a história
do cristianismo depois de meados do século xiv, a obra mo-
numental do abade Thiers pode servir, grosseiramente,
para marcar o termo de um estudo que depende, acima de
tudo, da longa duração. O abade Thiers, de resto, reuniu
as suas próprias observações das «superstições» contem-
porâneas numa impressionante compilação de textos ecle-
siásticos, alguns dos quais remontando aos primeiros sé-
culos da história da Igreja. A continuidade «medieval»,
aquém e além dos limites cronológicos tradicionais da
Idade Média, é completamente evidente.
Mas os quinze séculos que vamos mais particularmente
percorrer não formam um bloco uniforme: transformações
i m portantes afectaram, no seu d ecurso, a noção de «supers-

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tição» assim como os lugares e as formas da sua aplicação.


O período medieval, no quadro de uma história ainda mais
longa, ajudar-nos-á, portanto, a compreender que não há
«superstições» em si, mas uma palavra muito antiga que,
atravessando os séculos e mesmo as religiões (pagãs, cató-
licas, protestantes), mudou de sentido, designou outros
objectos, justificou outros constrangimentos, serviu para
revelar outras legitimidades culturais.
Usarei sempre a palavra «superstição(ões)» entre aspas,
para sublinhar bem que se trata de um termo da época es-
tudada, não de um conceito actual do historiador; e ora a
utilizarei, como nos textos medievais, no singular, ora no
plural, quando se tratar de crenças, ditos e gestos particula-
res. Ainda no século passado, eruditos locais, historiado-
res e folcloristas nem sempre distinguiram claramente o
seu próprio vocabulário de eruditos e o das autoridades do
passado — autores eclesiásticos, juízes seculares, etc. —
aos quais deviam os seus documentos. E certo que quiseram,
cada vez mais, evitar a reprodução do mesmo discurso do-
minante: as palavras, por conseguinte, mudaram; de pre-
ferência a «superstições», falaram de «sobrevivências», ou
de «crenças populares». Mas os preconceitos foram, mui-
tas vezes, mais tenazes que o vocabulário.
Tomarei igualmente como ponto de partida a palavra
superstitio, mas sabendo o risco que corro: o de prestar
sobretudo atenção ao ponto de vista da autoridade, a da
Igreja, em primeiro lugar, e, mais genericamente, a dos
letrados que escrevem, julgam e condenam. Não considero
necessário começar por expor este ponto d e v i s t a para
sublinhar o papel histórico essencial q u e a a u t o r i d a d e d a
Igreja desempenhou na construção p l u r i s s e c u l a r d a ciilt u r a

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e da sociedade ocidentais. Este papel foi por ela especial-


mente desempenhado ao separar do joio aquilo que pensava
ser o trigo. Mas a representação que os clérigos faziam do
joio das «superstições» mudou no decurso dos séculos, e a
Igreja não o arrancou num só campo. Tradicionalmente,
foi primeiro nela própria, nas práticas de pelo menos uma
parte do clero, que a Igreja ou alguns dos seus membros
perseguiram as «superstições». Esta crítica interna lança
sobre a história da Igreja e da cultura religiosa uma luz
extremamente esclarecedora: no culto, na liturgia, na vida
normal dos clérigos, certas práticas tidas durante muito
tempo como legítimas são um dia postas em causa e, pouco
tempo depois, abolidas, pelo menos em princípio. Veremos
como esta crítica interna se intensificou a partir do século
XII, por exemplo contra as relíquias, os milagres, o sobre-
natural, o culto dos santos, as imagens religiosas, os ordá-
lios, etc. Esta crítica nunca cessou. Como exemplo mais re-
cente, o concílio Vaticano II e as suas reformas litúrgicas
inscrevem—se nesta longa tradição.
A caça às «superstições» acentuou igualmente e, por ve-
zes, dramatizou a distinção de clérigos e laicos, dos papéis
que lhes eram respectivamente atribuídos na Igreja, even-
tualmente das lógicas culturais que lhes eram próprias. E
certo que não se deve exagerar esta divisão: um pároco de
aldeia esteve sempre mais próximo dos seus paroquianos
do que dos grandes teólogos da Universidade. Acontece
ainda que a história das «superstições» encontra necessa-
riamente a da «cultura popular» ou do «folclore», que os
historiadores revalorizaram nos últimos vinte anos. Em
certo sentido, é a negação desta última: durante muito
tempo, o facto de se ter em conta apenas o ponto de vista

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da cultura oficial impediu que fossem compreendidas as


lógicas próprias da cultura do povo e reduziu, por exemplo,
a «religião popular» a uma forma degradada da religião
das élites. Ao tratar das «superstições», partindo, por con-
seguinte, do discurso da autoridade, da ordem e do cons-
trangimento, será necessário fazer uma tentativa para
considerar em conjunto as «duas extremidades» da reali-
dade histórica, para mostrar como o juízo emitido sobre as
«superstições» podia traduzir desajustamentos, incompa-
tibilidades ou incompreensões culturais; para mostrar
também que, na flutuante linha da frente que os usos da
palavra «superstição» desenham através dos séculos, o
assalto nunca veio só de um lado: a pressão das «supersti-
ções» sempre manteve com a lei e a autoridade uma rela-
ção dialéctica cujo produto histórico, que se designa por
história religiosa, é um enredo e uma sucessão de «figuras
de compromisso».

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Os fundamentos latinos
e patrísticos
da noção de «superstitio»

O grande linguista Émile Benveniste situou perfeita-


mente a palavra superstitio no conjunto do vocabulário
indo-europeu. Em latim, mais particularmente, deriva do
verbo super-stare (estar acima de), que designa a condição
da testemunha (superstes): a testemunha é quem, por ter
«sobrevivido» a um acontecimento do passado, pode ates-
tar que este teve realmente lugar.
Na origem, a palavra não tem uma significação propria-
mente religiosa. Mas adquiriu—a a partir da época roma-
na: para Cícero (De natura deorum, II, 28), muitas vezes
citado na Idade Média, especialmente por Isidoro de Sevi-
lha nas suas Etimologias (X, 244), «são chamados supers-
ticiosos aqueles que oram ou sacrificam todos os dias para
que os seus filhos lhes sobrevivam». Sobreviver, adquirir
a qualidade de testemunha, pressupõe que se obtenha a
protecção dos deuses. De resto, o adjectivo superstitiosus
qualifica frequentemente os adivinhos.
Mas, já em Roma, a palavra superstitio adquiriu em
certos casos um sentido desfavorável: é então oposto a
religio, que designa o escrúpulo religioso, a preocupação,
característica da religião romana, de cumprir os rituais

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segundo as regras, a maneira apropriada de «reunir»


aquilo que respeita ao culto dos deuses: reunir, re-legere,
tal é a etimologia de religio que Cícero propõe. A supersti-
tio é, portanto, concebida como uma forma pervertida da
religio, muitas vezes manchada pelo exagero, segundo um
outro sentido do prefixo super: o que é supérfluo (super-
-fluus), vão, acrescentado (super-institutus, super-addi-
tus), ou mesmo estranho.
O cristianismo herdou a palavra assim como este con-
junto de noções e valores. Mas também os transformou: as
Instituições Divinas de Lactâncio, retórico romano con-
vertido ao cristianismo por volta do ano 300, permitem
avaliar esta mudança. Lactâncio rejeita as etimologias ci-
ceronianas: para ele, religio não vem de relegere, mas de
re-ligare, ligar de novo; esta interpretação dá ênfase a
uma concepção completamente diferente, decididamente
cristã, da religião, concebida como uma ligação pessoal
que ob-liga o cristão perante Deus. Quanto à superstitio,
Lactâncio recusa mais uma vez a explicação de Cícero,
para dar a sua, mas num contexto cristão, uma etimologia
que o poeta Lucrécio já propusera: «Os supersticiosos não
são aqueles que esperam que os seus filhos lhes sobrevi-
vam — isso, todos nós o esperamos —, mas aqueles que
veneram a memória dos defuntos para que esta lhes sobre-
viva, ou ainda aqueles que, mediante imagens dos seus
pais, lhes prestam um culto doméstico como aos deuses
penates.» Lactâncio, e depois dele os autores cristãos,
optaram por reter somente o sentido negativo de «supers-
tição», por opô-la irremediavelmente à «religião» e por a
assimilar a formas do paganismo rejeitadas com parti-
cular vigor pelo cristianismo; a ¡id i vi nhação dos mortos (ou

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HISTÓRIA DAS SUPERSTIÇÕES

evemerismo) bem como a idolatria. Com Lactâncio, a


separação entre «religião» e «superstição» foi definitiva-
mente estabelecida, e esta última noção tem um sentido
muito forte, totalmente negativo, visto que a «superstição»
não é mais do que o paganismo que sobrevive no seio do
cristianismo: «A religião é o culto do verdadeiro [Deus], a
superstição, do falso.»
Foi em função desta primeira grelha de leitura que os
primeiros autores cristãos interpretaram e traduziram a
Bíblia. No Antigo Testamento não faltam anátemas lan-
çados pelo próprio Jeová ou pelos seus profetas contra os
inimigos ou os hebreus infiéis, e a Igreja medieval saberá
utilizá-los na denúncia das «superstições». São, por exem-
plo: «Não deixarás viver a feiticeira» {Êxodo, 22, 17), ou
«Quando uma alma se dirigir aos espectros e aos adivinha-
dores para se prostituir ao segui—los, eu porei a minha face
contra aquela alma e a extirparei do meio do seu povo»
(.Levítico, 20, 6). No entanto, na Vulgata — a tradução que
São Jerónimo (m. 420) fez da Bíblia e que alimentou o pen-
samento cristão ocidental até hoje —, a palavra supersti-
tio não aparece nem no Antigo Testamento nem nos Evan-
gelhos. Apenas surge três vezes nos Actos dos Apóstolos e
numa epístola de São Paulo. Nos Actos (25, 19), o seu uso
é, aliás, ambíguo, já que se trata da «superstição» de que
os judeus acusavam São Paulo, pois este dizia que Jesus
estava vivo apesar de ter sido morto. Os Romanos, por seu
lado, não viam nela qualquer delito religioso; eram princi-
palmente os cristãos que exprimiam na linguagem jurídica
romana (quaestiones de sua superstitione habebant) uma
atitude que1 atribuíam aos judeus... Em contrapartida,
nos Actos (17,22), é São Paulo que se exprime: dirige-se ao

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Areópago de Atenas depois de ter descoberto na cidade um


altar dedicado «ao deus desconhecido». Por aquilo que lhe
parece evidentemente uma pedra que espera o culto cris-
tão, louva os Atenienses, que são, segundo afirma, «os
mais religiosos dos homens». A Bíblia grega utiliza aqui,
no superlativo, a palavra deisidaimon, aquele que teme os
deuses. Uma palavra muito ambígua para os cristãos, pois
contém daimon, de que derivaram «demónio», satélite do
Diabo... Por isso, São Jerónimo traduziu o termo por quasi
superstitiores, adivinhando—se aí uma hesitação: é certo
que os Atenienses esperavam o Cristo, mas eram ainda
pagãos!
Na Epístola aos Colossenses (2, 23), São Paulo dirige-
—se, pelo contrário, a baptizados: exorta-os a ultrapassar
o formalismo das regras alimentares («Não toques, não
proves, não manuseies»), a seguirem antes a verdadeira
sabedoria e a humildade cristãs, a não se enredarem na
«afectação de religiosidade» (in superstitione). Encontra-
- s e aqui a oposição pauliana do espírito que salva e da le-
tra que mata: ela justificará, em parte, a condenação das
«superstições» pela Igreja.
Aquilo que o bispo de Hipona, Santo Agostinho (354-
-430), escreveu das «superstições» pesou sobre toda a tra-
dição cristão até Tomás de Aquino, no século xiii: trata-se
do grande teórico das «superstições». Na base da sua teo-
ria, há duas ideias-chave.
A primeira é que as «superstições» são as «sobrevivên-
cias» de crenças e de práticas que a encarnação do Salva-
dor e a instituição do cristianismo, em princípio, aboliram.
São assim visadas, na maior parte dos casos, «sobrevi-
vências» do paganismo a que os autores cristãos chamnrn

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geralmente «idolatria»: além do culto dos ídolos propria-


mente ditos, esta palavra designa a adoração da criatura,
quer se trate do Homem, do Diabo, de um elemento da
natureza ou de um objecto fabricado. A condenação das
«superstições» liga-se, assim, de forma privilegiada ao
primeiro mandamento: «Não terás outros deuses além de
mim» {Êxodo, 20, 3).
Mas podem também «sobreviver» no seio do cristianismo
observâncias judaicas, igualmente caducas aos olhos da
Igreja, seja qual for a fidelidade dos cristãos em relação à
lei do Antigo Testamento; desde as origens do cristianismo,
no concílio dito «dos apóstolos» (49-50), que se pôs a ques-
tão da legitimidade da circuncisão dos cristãos: conside-
rou-se que deixaria de se praticar; tornou—se, portanto,
«supersticiosa». Os Estatutos da Igreja Primitiva, com-
postos na Gália por volta de 475 e retomados depois pela
literatura canónica até ao século xn, estabeleciam nitida-
mente a diferença entre as «superstições» dos augúrios e
dos encantadores — supostas sobrevivências do paganis-
mo de que iremos, sobretudo, tratar — e as «superstições
judaicas». Na época carolíngia, o arcebispo Agobardo de
Lyon (m. 840) escreveu um tratado Das Superstições
Judaicas (em que refuta, entre outras, a acusação de ido-
latria feita pelos judeus contra os cristãos...) e, igualmente,
um tratado Contra a Superstição Daqueles que Pensam
que se Deve Adorar as Pinturas e as Imagens dos Santos:
acusa, desta vez, os partidários do culto dos ícones, em
Bizâncio, mas também em Roma, de serem herdeiros da
idolatria antiga...
IMPORTANTE - SANTO O segundo contributo de Santo Agostinho foi a ligação
AGOSTINHO:
DEMONOLOGIA E que estabeleceu entre a demonologia e as «superstições».
SUPERSTIÇÃO.
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Esta ligação teve pesadas consequências; da crítica, espe-


cialmente na Idade Média, das «superstições» como sobre-
vivências da idolatria antiga, à caça às bruxas a partir do
século XV, nunca a sedução diabólica deixará de ser invo-
cada pelos clérigos, na sequência de Santo Agostinho,
como a causa primeira da queda dos homens no pecado.
Por sua vez, os Padres da Igreja, grega e latina, retoma-
ram, conciliaram e transformaram as representações mais
antigas, por um lado as greco-romanas, por outro as judai-
cas, dos maus espíritos, para lhes conferir na religião cris-
tã um papel decisivo. A tradição judaica, o cristianismo foi
sobretudo buscar mitos da origem do mal; à filosofia hele-
nística, um conjunto de reflexões sobre a natureza dos de-
mónios.
O Diabo é uma invenção tardia e, em larga medida,
cristã. Esta figura só aparece, pouco a pouco e imperfeita-
mente, no Antigo Testamento: a serpente do Génesis não
é mais do que uma criatura de Deus entre outras, «o mais
astuto de todos os animais». A interpretação «diabólica»
desta serpente só aparece no Livro da Sabedoria (2,24), no
primeiro século da nossa era, antes de se impor no
Apocalipse e na tradição cristã. Nos livros mais antigos da
Bíblia, o Mal não tem um senhor particular: Jeová usa-o
à vontade como uma modalidade da sua omnipotência, que
confina com a duplicidade. No Livro de Job (redigido no
século V a. C.), é Deus que decide pôr à prova o seu mais fiel
servo, e «satã» (entendido ainda como um nome comum) é
apenas seu instrumento. Ainda mais cedo, no século x
a. C., no Livro de Samuel (11, 24), Jeová, inflamado de
cólera contra os israelitas, incita, ele próprio, David a
e n u m e r a r o seu povo, mas depois censura-o e castiga os

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Hebreus. Ora, quando o mesmo episodio é retomado nas


Crónicas (1, 21), no século ni a. C., é Satã — este nome, que
significa o Adversário, sendo utilizado pela primeira vez
como um nome próprio —, e já não Jeová, que sugere a
David o recenseamento sacrílego.
Antes mesmo da era cristã, a literatura apócrifa judaica
dos séculos in e I a. C. ligou, em dois grandes mitos, a ori-
gem de Satã e do Mal à queda dos anjos.
No primeiro mito, esta queda ocorreu depois da criação.
A narrativa desenvolve um dos episódios mais estranhos
do Génesis (6, 1.4): os «filhos de Deus» — que a tradição
verá como os anjos caídos — vieram unir—se na Terra aos
«filhos dos homens». Da sua união nasceram os gigantes.
Partindo deste episódio, o Livro de Henoch explica que
Deus castigou os homens com o Dilúvio e encerrou os anjos
caídos nas trevas, para que aí permanecessem até ao Juízo
Final. Quanto aos gigantes, deles nasceram os demónios
que, depois do Dilúvio, não cessam de atormentar os des-
cendentes de Noé, incitando—os a sacrificar aos ídolos.
Será um primeiro mito da origem do paganismo e, por
extensão, das «superstições». Por volta de 430—435, João
Cassiano, monge do Oriente que veio fundar em Marselha
o mosteiro de São Vítor, utiliza nas Collationes patrum
uma versão ligeiramente diferente do mito para explicar
as origens da magia: o conhecimento da natureza que ti-
nham os nossos primeiros pais foi transmitido, depois do
pecado original, ao seu terceiro filho, Seth. São os descen-
dentes deste que o Génesis designa por os «filhos de Deus»,
enquanto os descendentes do mais velho, Caim, assassino
do segundo filho, Abel, são chamados os «filhos dosho-
mens». Quando os descendontoH de Seth se uniram aos
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descendentes de Caim, foram contaminados pela perver-


sidade destes últimos, o que deu origem «à instigação dos
demónios, às técnicas maléficas, aos artifícios e às supers-
tições mágicas».
No entanto, através do Dilúvio, Deus puniu os homens,
mas um filho de Noé, Cham, conseguiu salvar este saber
sulfuroso e transmiti-lo ao seu próprio filho mais velho,
Chus. Este último excitou muito a imaginação dos autores
medievais, desde Gregório de Tours, no fim do século vi,
até Hugo de São Vítor, que viveu em Paris na primeira
metade do século xn: Chus, com efeito, não seria outro se
não Zoroastro, ou Zaratrusta, que, segundo Gregório de
Tours (Histoire des Francs, 1,6), inventou na Ásia a magia
e a idolatria.
Estas derivas longínquas do Génesis entrecruzam-se
na tradição cristã com o segundo mito da origem do Mal,
que situa a queda dos anjos antes da criação do homem.
Presente nos apócrifos do século i d. C., este mito foi reto-
mado pelos padres gregos e latinos: por exemplo, para
Agostinho (Cidade de Deus, VIII e XIV) e Gregório Magno
(Morais sobre Job, XXX), Satã era o primeiro dos «anjos de
luz»: tomado de orgulho e querendo igualar o seu Criador,
foi precipitado no plano mais baixo com os seus cúmplices.
Esta queda é o início da história humana, porque Deus
criou depois os homens para que fossem ocupar no paraíso
o lugar deixado vago pelos anjos caídos. Mas Satã, cheio de
ressentimento, esforçou-se por virar Adão contra o seu
Criador; é, na verdade, a serpente tentadora do Génesis e
não cessa, desde então, de incitar os homens ao pecado, à
idolatria e também às «superstições».
A estes mitos, os padres da Igreja misturaram outras

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informações retiradas da filosofia neoplatónica pagã e,


depois, cristã, representada em particular pelo pseudo-
-Dionísio, autor, no século v, da Hierarquia Celeste. O
cristianismo não podia admitir sem alterações a teoria da
participação dos daimones na criação contínua do univer-
so; entre a Trindade, única criadora, e os anjos, imortais
mas criados, estabeleceu uma ruptura decisiva. Além
disso, a sua explicação da origem do Mal levou-o a distin-
guir anjos bons e anjos maus, os anjos caídos. Daimon
adquiriu assim um sentido unicamente negativo. Por fim,
o cristianismo hierarquizou a sociedade dos demónios: o
principal, entre estes, o Diabo (diabolus: o senhor da pala-
vra dupla, da mentira), tornou-se o chefe dos demónios.
Tertuliano é o primeiro autor a nomeá-lo assim, no início
do século ín, seguido por São Jerónimo na Vulgata e por
Santo Agostinho: foi este último que deu ao Diabo a sua
identidade cristã.
No seu tratado sobre a Adivinhação dos Demónios, es-
crito entre 406 e 411, Santo Agostinho expõe os privilégios
que os demónios conservaram da sua natureza angélica.
Criados na origem do mundo, muito antes dos homens,
dispõem de uma muito longa experiência e de um saber
muito grande. Além disso, o seu corpo etéreo, nem verda-
deiramente material nem totalmente espiritual, dá—lhes
uma prodigiosa celeridade («sem medida comum com a
marcha dos homens e dos animais selvagens nem mesmo
com o voo das aves») e uma subtileza que permite que se
introduzam em toda a parte, incluindo no corpo e no
espírito dos homens. Graças a todas as suas qualidades, os
demónios têm um dom de predição que surpreende os
homens, pois estes estão submetidos à lentidão das

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percepções terrestres e à brevidade da existência e da


memória humanas.
Se os demónios não têm o poder de criar, desfrutam de
uma habilidade técnica muito grande, origem, dir-se-á na
Idade Média, das suas «maquinações». Têm, por exemplo,
«até o poder de enviar doenças, de tornar o ar malsão» e,
sobretudo, de suscitar nos pensamentos dos homens «certas
visões imaginativas, quer no estado de vigília, quer du-
rante o sono». Os demónios são os senhores do sonho, que
a Alta Idade Média considerou, por isso, com infinita des-
confiança.
Estas observações de Agostinho foram reproduzidas
durante toda a Idade Média, até aos grandes canonistas do
século XII (Ivo de Chartres, Graciano) e à teologia escolás-
tica (Tomás de Aquino). Orientaram a demonologia me-
dieval na via de uma «psicologia» da acção demoníaca: os
demónios não criam a matéria, mas despertam imagens,
agem sobre o «poder imaginativo» da alma humana, sus-
citam nela vãos «fantasmas». Se o Diabo e os demónios por
vezes se enganam (pois são, apesar de tudo, limitados pela
omnisciência de Deus), quase sempre triunfam sobre o es-
pírito mais fraco dos homens, se necessário misturando às
suas mentiras algumas proposições verídicas para mais
abusar das suas vítimas.
As tentações e enganos dos demónios nunca poupam os
homens, incluindo os melhores, os santos. Mas os homens
podem igualmente tomar a iniciativa de se encontrarem
com os demónios: «Alguns, sob o impulso do vício e da
curiosidade, ou devido ao amor a uma felicidade falsa e ter-
restre ou à busca de uma proeminência temporal, acredi-
taram que os demónios são dignos de que os sirvam e de

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que lhes concedam honras divinas». Por isso, os homens


«comunicam» com os demônios.
Aqui, Agostinho integra a demonologia na teoria do
conhecimento, que elabora entre 396 e 426 na sua obra ma-
gistral, De doctrina Christiana. Este «ensino cristão» é um
dos textos fundadores da cultura cristã da Idade Média,
síntese de Cícero e da Bíblia englobando todas as realida-
des do mundo. Estas realidades são de duas espécies: as
coisas (res) e os signos (signa), que são coisas cuja signifi-
cação excede a aparência sensível; há duas espécies de sig-
nos: os signos naturais (como o fumo, que significa que há
um fogo em qualquer parte) e os signos convencionais (por
exemplo, a linguagem, a escrita, a música). Todos os seres
utilizam signos convencionais, os homens e mesmo os
animais, mas também Deus, os anjos e os demônios. Cer-
tos signos convencionais são necessários, mas outros são
supérfluos ou mesmo nefastos: são as «superstições», sig-
nos convencionais que os homens e os demônios utilizam
para comunicar.
«E supersticioso o que é instituído pelos homens para
fazer ídolos e os venerar ou dirigir um culto a uma criatura
ou a qualquer parte de uma criatura como se se tratasse de
Deus, ou para consultar os demônios, concluir ou selar
através de certos pactos uma comunicação com eles (pacta
quaedam significationum cum daemonibus placida atque
foederata), como tentam fazer as artes mágicas» (11, 20).
O historiador da teologia Dieter Harmening sublinhou
muito justamente a importância da expressão pacta signi-
fication um: desde Agostinho, a noção de «pacto» com
os demónios está presente. Mas será a época escolástica
que precisará esta noção e que também a modificará
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substituindo os demónios pela figura mais comprometedora


do Diabo.
Santo Agostinho faz também o inventário das «supers-
tições» que o cristão deve «evitar e repudiar»: são «liga-
mentos e remédios» que os próprios médicos reprovam e
que consistem em invocações e amuletos para estabelecer
«comunicações ocultas ou manifestas» com os demónios;
são as diversas técnicas da astrologia antiga; são também,
mais prosaicamente, «os pendentes no lóbulo de cada ore-
lha, os anéis de osso de avestruz nos dedos, o gesto que te
recomendam quando tens soluços, ou seja, agarrar com a
mão direita o polegar esquerdo». Mais adiante, denuncia
aqueles que interpretam como um mau presságio o tremor
de um membro, aqueles que pensam que a amizade de
duas pessoas é ameaçada quando tropeçam numa pedra,
num cão ou numa criança, aqueles que batem com os pés
na soleira da porta de casa antes de entrar, aqueles que
voltam para a cama se espirraram enquanto se calçavam,
ou ainda aqueles que tremem se os ratos lhes roeram os sa-
patos.. . Faz também entrar as fadas (fata) no vocabulário
e no imaginário da cristandade. Todos estes signos, e mui-
tos outros, traem a mesma cumplicidade, a mesma «comu-
nicação» dos homens e dos demónios. A tradição medieval,
até aos séculos xn exiii, e, mesmo depois, retomará, por ve-
zes literalmente, as reflexões e os exemplos de Agostinho.

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Do paganismo
às «superstições»

Se a Igreja procurou desde a origem repelir as «supers-


tições», é porque via nelas sobrevivências do paganismo e
a prova do domínio obsidiante dos demónios e do Diabo
sobre o espírito dos homens. Mas, durante toda a Alta
Idade Média, as condições sociais do estabelecimento e da
difusão do cristianismo também pesaram muito sobre a
maneira como os clérigos encararam as «superstições» e
lutaram contra elas.
Nos séculos IV e V, a fusão da hierarquia eclesiástica e
da aristocracia rural galo-romana reforçou a oposição en-
tre estes meios, social e culturalmente privilegiados, mas
minoritários, e a massa do povo; entre eles, rareavam cada
vez mais as classes médias, artesanais e urbanas, que ha-
viam assegurado os primeiros êxitos do cristianismo, mas
que a retracção da economia urbana enfraquecera mate-
rial e socialmente. Ao mesmo tempo, a ruína da economia
dominial das uillae galo-romanas deixou entregue a si
mesmo o povo dos campos. As tradições religiosas mais
antigas, em particular as celtas, que tinham precedido a
introdução da religião romana, puderam recuperar alguma
vitalidade. A denúncia clerical das «sobrevivências» do pa-
ganismo — sendo todas as tradições, aliás, confundidas,
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pois os clérigos não tinham os meios para distinguir as


camadas sucessivas — não deixava de ter, sem dúvida,
fundamento objectivo, mesmo que correspondesse tam-
bém a categorias ideológicas pré-estabelecidas.
Graças à sua cultura clássica, os bispos conheciam bem
os nomes dos deuses pagãos. Mas, nestes últimos, viam de-
mónios, tanto mais virulentos quanto se afastavam dos
bastiões da civilização que, a seus olhos, eram as cidades
episcopais. Urbani e rustici, estas palavras traduziam
polaridades ideológicas tenazes, expressas também na
evolução da palavra paganus: em francês, deu origem,
simultaneamente, a paysan (camponês) e paien (pagão).
As «superstições» não floresciam só nos campos, mas era
realmente aí que pareciam resistir a todos os esforços fei-
tos pela Igreja para as erradicar: a «superstição», deplora
no século IX Agobardo de Lyon, «perdura hoje entre os cam-
poneses (hodieque durat in rusticis).» Muitos outros de-
pois dele — até que a revolução industrial despovoasse os
campos — terão a oportunidade de fazer eco das suas pa-
lavras...
Para os autores cristãos, não havia solução de continui-
dade entre o paganismo e as «superstições» nas quais se
supunha que sobrevivesse. Paganismo e «superstições»
justificavam, porém, duas diligências diferentes: os pa-
gãos deviam ser convertidos e, em geral, esta tarefa recaía
sobre um santo, na maior parte dos casos um bispo, que,
através de milagres esplendorosos, provocava a confusão
dos idólatras, suscitava a sua adesão entusiasta <• <>:; pre
cipitava em multidões para as pias b a p t i s m a i s
A segunda diligência dizia r e s p e i t o a s p o p u l a ç õ e s HU

postamente cristãs, mas nas q u a i s OH d e i ir,nu ih rolu iam

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uma persistente ligação às tradições pagãs. A luta heróica


dos santos era substituída por uma acção pastoral menos
dramática, mais suave, mas não menos obstinada, segundo
um modelo legado pelo bispo Cesário de Aries (m. 542): in-
cansavelmente, o bispo deve pregar contra as «supers-
tições», repetir os mesmos cânones por ocasião do sínodo
anual do seu clero e, por vezes, aplicar penas previstas nos
penitenciais, listas de penitências e jejuns merecidos pelo
pecador segundo a condição social (um clérigo é mais du-
ramente castigado do que um laico) e a gravidade da falta.
Só esta segunda diligência, visto que respeitava a bap-
tizados e não a pagãos, se relaciona verdadeiramente com
as «superstições». Mas a primeira diligência, a luta contra
o paganismo, não só precedeu a segunda no tempo; conti-
nuou a guiar o comportamento do clero na luta contra as
«superstições», configurou as representações que este de-
las fazia. Falar, para começar, da conversão dos pagãos, é
mais do que fazer um recuo necessário, é explorar um mo-
delo.
Pode distinguir-se, portanto, duas etapas na acção da
Igreja, segundo uma cronologia relativa que não é a
mesma, evidentemente, em todas as regiões, e também
dois tipos de documentos para o historiador, cada um dos
quais apresenta os seus próprios constrangimentos: a
hagiografía, que deve ser tomada como um discurso mimé-
tico sobre as origens da civilização e da fé cristã; depois, a
pastoral, a luta quotidiana do clero contra as «supersti-
ções». Mas estas duas etapas não se deixam facilmente se-
parar.
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A conversão dos pagãos: um modelo

Os hagiógrafos que relataram a luta heróica de um


santo contra os idólatras tinham um guia: a Vida de São
Martinho, escrita por Sulpício Severo por volta de 397,
pouco depois da morte do santo bispo de Tours. Prosse-
guindo esta tradição no século seguinte, Constâncio de
Lyon escreveu a Vida de São Germano de Auxerre, pouco
depois da morte deste, em 448. Depois disso, um período
mais longo intercala-se entre o momento em que os hagió-
grafos escrevem e a vida dos seus heróis: o confronto do
s¡ ui to e dos pagãos deixou de ser um facto de observação di-
recta, pelo que o hagiógrafo se torna historiador. E em 576,
ti () 111 á ximo, que Venâncio Fortunato escreve a Vida de São
Mu recio em Paris, falecido em 436. Sobretudo, Gregório de
Tours (m. 596) escreve as Histórias dos Francos e Vidas de
sa li tos mártires e confessores que viveram entre os séculos
li i - IV, constituindo a gesta quase completa da evangeliza-
ção da Gália; os grandes opositores da idolatria são aí
Santo 1 lilário de Poitiers, São Juliano de Brioude, São Ju-
liano de Javols, São Sinfrónio e São Simplício de Autun,
: íao Benigno de Dijon, etc. Outras Vidas de santos mero-
vingioH, notavelmente estudadas por Frantisek Graus,
sao pa rt icularmente ricas para o nosso tema: as de São Lú-
cio, rei bretão que partiu para fazer conversões na Récia,
ou seja, na Suíça, de Santa Radegunda, mulher do rei
(Mot ario I e morta em Poitiers em 587, de São Koinao de
liouen e d o s e u sucessor Santo Ouen(m. GH'1), adversarios
resolutos dos restos de idolatria no Bnixo Sena, mau, desde
o início do século vn, o paganismo ennmlia u< quase

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HISTÓRIA DAS SUPERSTIÇÕES

extirpado no reino dos Francos, e a acção dos bispos dirige-


- s e cada vez mais para o Norte: Santo Amândio (m. 647),
cuja Vida será escrita somente no século viu, recebe do
bispo de Noyon e do rei Dagoberto I a missão de converter
as populações «ferozes e pagãs» que vivem na região que é
hoje a Bélgica; Santo Elói, bispo de Noyon e Tournai de 641
a 660, prossegue esta acção na Flandres, cujos habitantes,
diz o seu hagiógrafo, são «como animais selvagens dos
campos» (velut agrestes ferae). Em seguida, mas desta vez
muito além dos limites da França actual, a Igreja, apoiada
pelo poder real, continuou os esforços com vista à conver-
são dos pagãos; na Frísia, na Turíngia — com São Bonifá-
cio —, no Saxe, durante o século viu, mais tarde nos paí-
ses eslavos ou magiares; e nunca faltaram, também aqui,
hagiógrafos para glorificaros novos apóstolos. No entanto,
para nos limitarmos à França, as invasões normandas
provocaram uma espécie de recuo da história; com estes
pagãos ferozes, foi preciso começar tudo do zero. A propó-
sito deles, a Vida de São Martinho de Vertou perto de
Nantes, no século ix, retoma os temas heróicos destacados
alguns séculos antes por Sulpício Severo.
Em todos os casos, os temas desta hagiografía são mais
ou menos os mesmos. O santo é, em primeiro lugar, um
grande destruidor dos templos pagãos (fana). São Marti-
nho incendeia-os com tanto ardor que é obrigado a fazer
um milagre para impedir que o fogo se propague às casas
vizinhas! Em Levroux, a resistência das populações locais
obriga—o a tentar duas vezes para «demolir até aos alicer-
ces o edifício ímpio e reduzir a pó todos os altares e todas
as estátuas». Querendo seguir este belo exemplo, Ra-
degunda enfrentará uma «multidão» de francos pagãos

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armados de «gládios e paus», que detém, contudo, pela


simples virtude da cruz que transporta. São Romão, «es-
quadrinhando com cuidado os lugares retirados da sua
diocese, descobriu num local diabólico templos de Mercú-
rio, de Júpiter e de Apolo», que substituiu de imediato por
igrejas cristãs.
Quer estejam ou não em «templos», os ídolos constituem
o segundo alvo privilegiado dos santos, apoiados, eviden-
temente, por toda a tradição judaico-cristã de condenação
dos ídolos: o Bezerro de Ouro do Êxodo não cessava de re-
nascer, e cada santo era um novo Moisés... Gregório de
Tours conta, no seu Livro para a Glória dos Confessores
(capítulo LXXIII), que São Sinfrónio de Autun deteve, com
um simples sinal da cruz, uma procissão pagã em honra da
deusa Berecíntia, deixou pregados ao solo os bois que pu-
xavam o carro do ídolo e quebrou este. Verificando que,
apesar dos sacrifícios que faziam, a deusa ou o ídolo não re-
punham em andamento os animais, os pagãos subjugados
pela virtus, a força suprema do santo, aceitaram o baptis-
mo. Gregório de Tours faz equivaler o culto prestado a Be-
recíntia, na cidade dos Eduos (Autun), ao culto de Apolo e
de Diana, designada «a mãe dos demonios». Mas insiste
também nas formas particulares de um culto de fertilidade
agrária e afirma, comparando-o a uma passagem da Vida
de São Martinho (capítulo xii) de Sulpício Severo, que «era
um costume entre os camponeses gauleses passearem em
volta dos seus campos os ídolos dos demónios cobertos com
um pano branco».
Se não era muito complicado destruir um templo e que-
brar ídolos, a adoração pagã das árvores e, sobretudo, das
águas (rios, fontes, lagos) ou mesmo dos animais era, para

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os santos bispos, muito mais difícil de extirpar definitiva-


mente: será, por conseguinte, um dos temas persistentes
da luta contra as «superstições». Não podendo impedir São
Martinho de cortar um pinheiro sagrado, os pagãos com os
quais este se confrontou pensaram em fazer tombar a ár-
vore sobre o bispo, para que o esmagasse na queda; mas a
provação, para São Martinho, constitui um ordálio que lhe
permitirá fazer que a verdade triunfe: o pinheiro é mila-
grosamente atirado para trás e por pouco não esmaga os
camponeses...
Também uma árvore semelhante está na origem da con-
versão de Germano de Auxerre, grande caçador que nela
suspendia as cabeças dos animais que matava. Mas tendo
Deus revelado ao bispo Amator que este pagão endurecido
seria o seu sucessor, o santo homem, na ausência de Ger-
mano, manda cortar e queimar a árvore sacrílega; surdo
aos protestos de Germano, que ameaça matá-lo, Amator
leva-o à força para a igreja e baptiza-o contra sua vontade.
O milagre acontece: consagrado ao episcopado e à santidade
— naquele tempo, uma coisa acompanhava a outra —,
Germano é instantaneamente convencido da verdade do
cristianismo. A Vida de São Valério (início do século vn)
conta que os habitantes do vale do Bresle, perto de Eu, na
Normandia, embora provavelmente fossem já baptizados,
veneravam um enorme tronco de árvore, que o santo fez
tombar pondo em perigo própria vida. Na Vida de São Lú-
cio, trata—se também de um «bosque de Marte», aonde os
boieiros vão «para adorarem bezerros como deuses».

«No território dos Gábalos, ou seja, Gévaudan, se-


gundo conta Gregório de Tours, havia uma montanha

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chamada Helarius, com um grande lago. Em certas


alturas, uma multidão de camponeses, como para fa-
zer libações no lago, aí lançavam panos destinados a
vestes masculinas; alguns deitavam capas de lã,
queijos, cera ou pães de diversas espécies aos quais
tinham dado uma forma; cada um o fazia conforme as
suas possibilidades, o que seria demasiado longo des-
crever em pormenor. Vinham com carroças que trans-
portavam a bebida e a comida, imolavam animais e
banqueteavam-se durante três dias. No quarto dia,
quando chegava o momento de descerem, uma tem-
pestade imensa com trovões e fortes relâmpagos fa-
zia-os correr, e uma chuvada violenta e a queda de
pedras atingiam—nos de tal maneira que eram raros
os que pensavam que escapariam. Assim faziam
todos os anos, e o povo imbecil permanecia no erro.
Muito tempo passara quando um padre da cidade de
Javols, havendo acedido ao episcopado, foi àquele lu-
gar e pregou às multidões, dizendo que seriam con-
sumidas pela cólera de Deus se não abandonassem os
seus usos. Mas o sermão não foi de maneira nenhuma
acolhido pela rusticidade selvagem do povo. Então,
sob inspiração divina, o sacerdote de Deus edificou à
beira do lago uma basílica em honra de Santo Hilá-
rio de Poitiers e ali colocou as suas relíquias; depois,
disse ao povo: 'Livrai—vos, meus filhos, livrai—vos de
pecar em face de Deus. Não há nesse lago nenhuma
religio. Não maculeis as vossas almas com esses vãos
rituais, reconhecei antes Deus e venerai os seus
amigos! Venerai Santo Hilário, o sacerdote de Deus,
cujas relíquias estão aqui depositadas! Ele, na
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verdade, pode ser o vosso intercessor para a miseri-


córdia do Senhor!' Então, os homens, tocados no cora-
ção, converteram-se e, abandonando o lago, levaram
para a basílica tudo o que tinham o hábito de nele lan-
çar. Foram assim libertados do erro por aquele que os
vencera. E este lugar, depois de as relíquias do santo
lá terem sido depositadas, foi interdito à tempestade
e nunca mais esta pôde causar danos naquele dia de
festa, que, daí em diante, pertenceu a Deus.»

Em geral, como neste caso, os pagãos não constituem


mais do que uma «multidão» indiferenciada face à solidão
heróica do santo. Mas este, por vezes, tem de enfrentar um
ou mais «sacerdotes» locais, antistes loei, diz Sulpício Se-
vero no episódio do pinheiro derrubado por São Martinho.
Numa das narrativas similares da Vida de Santo Elói,
estes sacerdotes pagãos formam um grupo de notáveis
(praestantiores loei) pertencendo à família do senhor do
palácio de Nêustria, Herquenoaldo. O chefe destes dirige-
—se directamente ao santo, que pretende proibi—los de ce-
lebrar o solsticio de Verão:

«Jamais, romano que és, mesmo que nos repitas


sem cessar a mesma coisa, conseguirás abolir os nos-
sos costumes: celebraremos sempre as nossas soleni-
dades como o temos feito até hoje, e não há ninguém
no mundo que possa proibir—nos estas festas antigas
que nos são tão caras.»

Na tradição hagiográfica, o confronto do santo e dos pa-


gãos é, na maior parte dos casos, colocado sob o signo da

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violência: violência dos pagãos, que querem matar o santo


antes de serem vencidos; violência de Deus, que manifesta
o seu poder pelo milagre e dá à maioria destes episódios o
aspecto de um ordálio; violência do santo, por fim, que in-
cendeia os templos, queima as árvores, derruba os ídolos.
Era isto suficiente para acabar com as observâncias pa-
gãs? A própria Igreja duvidou disso, visto que, além dos
modelos heróicos da hagiografía, também procedeu com
mais prudência e comedimento, quer aceitando um com-
promisso que a pressão da cultura autóctone lhe impunha
de facto, quer procurando muito conscienciosamente substi-
tuir por um culto cristão os cultos pagãos sem pretender
erradicar de uma só vez estes últimos.
O episódio de São Marcelo de Paris e do dragão dos pân-
tanos do Bièvre (que se tornaram, no decurso da Idade Mé-
dia, o bairro parisiense de Saint—Marcel, na margem es-
querda do Sena) apresenta o exemplo de tal compromisso.
O testemunho mais antigo de que dispomos sobre este dra-
gão é uma passagem da Vida de São Germano de Auxerre,
de Venâncio Fortunato, no século vi. Jacques Íe Goff mos-
trou que a interpretação simbólica negativa do dragão,
equiparado à serpente do Génesis, somente se impôs pro-
gressivamente. Na Alta Idade Média ainda predominam,
entre os próprios clérigos, quer uma interpretação «cien-
tífica» herdada das histórias naturais da Antiguidade e,
em particular, da de Plínio, quer a interpretação ambiva-
lente de facto imposta pela «cultura folclórica»: para esta,
o dragão era, com efeito, um génio local (genius loei), sem
dúvida temível, mas cujo poder era susceptível de ser con-
ciliado através de ritos apropriados. ()rn,o hagiógrafo teve
de considerar esta concepção nutóetoii© do dragão; assim,
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na narrativa hagiográfica, São Marcelo domou o dragão


em vez de o matar. O caso, aliás, não é único: encontra-se
o mesmo motivo hagiográfico em Roma, a propósito dos
santos papas Silvestre e Gregório Magno e de dragões saí-
dos do Tibre, e muito mais tarde nas margens do Ródano,
na lenda de Santa Marta e da Tarasca, mito etiológico de
Tarascón. A violência do santo deve por vezes apagar-se
perante a necessidade do compromisso. Mas, ao mesmo
tempo, o santo não leva somente o Evangelho a estes luga-
res inóspitos: é um herói civilizador que, transigindo com
a natureza selvagem e as suas forças sagradas, estabelece,
como em Paris, um novo bairro da cidade.
Noutros casos, a procura do compromisso é ainda mais
explícita: incapazes de destruir completamente um culto
pagão, os homens de Deus conservam o enquadramento
espaciotemporal e mesmo algumas formas, que se limitam
a «baptizar». Este método de conversão dos lugares, dos
tempos e das práticas correspondia a uma directiva quase
oficial da Igreja. Com efeito, o papa Gregório Magno fizera
essa recomendação muito claramente ao arcebispo Melito
de Canterbury, apóstolo da Grande Bretanha: é preciso
destruir os ídolos, mas, depois, «que se benza a água, para
com ela aspergir esses mesmos templos, que neles se cons-
truam altares e se depositem as relíquias». Esta Carta a
Melito, citada por Beda, o Venerável, na sua História da
Conversão dos Anglos e dos Saxões (concluída em 731), ser-
via ainda de «autoridade», no início do século x, ao arce-
bispo Hervé de Reims. Quando o arcebispo de Rouens o
consultou sobre a maneira de converter os normandos
pagãos instalados na sua diocese, Hervé respondeu-lhe ci-
tando a famosa carta:
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«Quando se quer atingir o cume de uma montanha,


não se deve subir directamente, mas tomar caminhos
sinuosos [...]»

Toda a hagiografía é também perpassada pela convic-


ção de que o método da força não é necessariamente o
melhor, ou que não é suficiente. Acerca do próprio São
Martinho, Sulpício Severo escreveu:

«Onde destruíra templos pagãos, construía ime-


diatamente igrejas e mosteiros.»

No caso já citado do monte Helarius e da igreja dedicada


a Santo Hilário, o bispo de Javols pretendeu, com toda a
evidência, tirar partido da homofonia dos nomes da mon-
tanha e do santo do Poitou, para desviar os pagãos do seu
erro. Tal substituição só podia ter êxito caso se enraizasse,
ao mesmo tempo, no espaço consagrado pela tradição e no
tempo do calendário: a igreja de Santo Hilário foi edificada
o mais perto possível do lago sagrado (ab ora stagni) e é
provável que a festa do santo, em 28 de Fevereiro, coinci-
disse com a festa anual dos pagãos; a narrativa da tem-
pestade sugere uma festa invernal que marcava, aparen-
temente, o início do ano (o l. e de Março, no calendário
romano).
Na Vida de Santo Elói, o santo, para acabar com «jogos
e danças» celebrados anualmente num vicus dos ar redores
de Noyon, impõe em sua substituição a lesl.a do apóstolo
São Pedro, em 29 de Junho. E, paia quo <\st;i l'esla nunca
mais fosse esquecida, espera pela sua edehrnçáo no ano

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seguinte para exorcizar cerca de cinquenta pagãos que de-


sejavam a sua morte. O que dá força a uma festa é a regu-
laridade, estabelecida pelo calendário, do seu regresso em
data fixa.

As «superstições», tributo da cristianização

Estas substituições, de que se poderiam citar ainda


muitos outros exemplos, foram naturalmente um factor
importante para a manutenção das «superstições» após o
baptismo das populações pagãs; sob as aparências do cul-
to cristão, as práticas ancestrais persistiam em segundo
plano, ou chegavam mesmo a coexistir. Por exemplo, se-
gundo Gregório de Tours, havia em Brioude «um templo
em que se venerava, sobre uma coluna muito alta, uma es-
tátua de Marte e de Mercúrio»; ora, este templo era vizinho
do túmulo de São Juliano!
Mas são essencialmente os textos da pastoral que infor-
mam acerca das «superstições» na Alta Idade Média. E
possível distinguir três géneros: em primeiro lugar, as ho-
milias, sobretudo as de Cesário de Arles (m. 542), visto que
estes «sermões ao povo» (em particular os sermões 13, 54,
192, 193) serviram de modelo aos pregadores ulteriores
(são, por exemplo, retomados textualmente no sermão
contra as «superstições» atribuído a Santo Elói e inserido
na sua Vita, no século viu); em seguida, os cânones dos sí-
nodos reunidos anualmente pelos bispos; recorrer-se-á,
por fim, aos livros penitenciais.

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Notemos que todos estes textos, não só os sermões, de-


pendem em menor ou maior grau de Cesário de Aries, a tal
ponto que Dieter Harmening negou que tivessem qual-
quer valor documental para o estudo das verdadeiras «su-
perstições» depois do século vi. O meu ponto de vista é um
pouco diferente: se é inegável que estes textos retomam in-
cansavelmente as mesmas fórmulas, pode observar-se,
em primeiro lugar, que existem variantes no tempo assim
como no espaço (para a Alemanha, no início do século xi, o
caso do penitencial de Burchard de Worms é particular-
mente esclarecedor). De resto, a repetição dos mesmos câ-
nones durante séculos revela com evidência a pressão con-
tínua, pelo menos até ao século xn, de práticas e crenças
bem reais, seja qual for a fidelidade dos testemunhos ecle-
siásticos.
Entre os séculos v e x , destacam-se, dentro dos limites
geográficos actuais da França, mais de vinte sínodos
diocesanos que trataram em pormenor das «superstições»;
reuniram-se inicialmente em cidades do Sul (Aries, Agde,
Eauze, Narbonne), depois no vale do Loire (Orléans, Tours,
Nantes) e, por fim, no Norte (Chalon-sur-Saône, Clichy,
Reims, Rouen, Paris, Metz, Anse). A estas decisões ofi-
ciais da Igreja devem acrescentar-se as dos soberanos que
abraçavam totalmente a mesma causa nesta matérias:
os reis merovíngios Quildeberto I (m. 558) e Gontrão
(m. 593), depois, sobretudo, os carolíngios. Com efeito, a
Admonitiogeneralis de 789 e uma quinzena de capitulares
tratam, entre outros assuntos, das «superstições», com fór-
mulas directamente inspiradas nos textos eclesiásticos.
Deve acrescentar-se a estes documentos algumas pe-
nitenciais, mesmo que ¡ís regiões consideradas tenham

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produzido menos do que a Grande Bretanha (penitencial


do Pseudo-Teodoro, primeira metade do século viu) e, so-
bretudo, que os países germânicos (penitenciais de Pirmin
de Reichnau, em meados do século vm, Reginon de Priim,
no início do século x, ou Burchard de Worms um século
mais tarde). Quanto ao século viu, não se terá em conta,
portanto, se não um penitencial borgonhês e dois peniten-
ciais respeitantes À diocese de Paris. No século IX, deve so-
bretudo citar-se o penitencial do bispo Halitgaire de Cam-
brai (817-831). Por fim, embora não pareça que autênticos
«tratados das superstições» tenham sido escritos na Alta
Idade Média, eclesiásticos de elevada posição consa-
graram-lhes opúsculos importantes; pode evocar-se,
ultrapassando os limites geográficos deste estudo, o im-
portante De correctione rusticorum do bispo Martinho de
Braga (m. 580), o anónimo Indiculus superstitionum et
paganiarum (século viu), que fornece numerosos equiva-
lentes germânicos das noções latinas, ou ainda uma parte
da obra de Hraban Maur, arcebispo de Maiença (m. 856).
Mas utilizarei de preferência os opúsculos escritos pelos
arcebispos Agobardo de Lyon (m. 840), a propósito dos «fa-
zedores de tempestades», e Hincmar de Reims (m. 882),
por ocasião do «divórcio» do rei Lotário II.
Em toda esta literatura, as «superstições» são tratadas
como um conjunto descontínuo, objecto de enumerações e
de listas de «práticas» {«Fecisti?», «Fizeste isto ou aquilo?»,
pergunta—se ao penitente) e de «crenças» («Credisti?») cuja
ordem é imposta unicamente pela cultura dos clérigos. E
o caso do sermão 13, «aos habitantes das paróquias», de
Cesário de Aries; este expõe as virtudes fundamentais do
cristão (fé, castidade, caridade), insiste no baptismo como

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rito de iniciação e garantia de rectidão da vida do cristão,


enumera as obrigações rituais deste último: ir à igreja no
dia do Senhor, escutar de pé a leitura dos textos sagrados,
mandar administrar ou receber, ele próprio, a unção dos
doentes que cura a alma e também o corpo. Em seguida,
surge, sem ordem aparente, a enumeração de todas as con-
dutas negativas que o cristão deve evitar, desde o recurso
aos augúrios à visita das fontes sagradas ou, ainda, às
danças e mascaradas nas igrejas. No penitencial de Halit-
gaire, a referência às «superstições» alterna mesmo com a
referência a outros géneros de delitos; encontra-se assim,
sucessivamente, a rapina, os malefícios, o sacrilégio, «di-
versos capítulos» consagrados à mutilação voluntária, ao
aborto, ao roubo dos bens de outrem, aos ferimentos infli-
gidos a um adversário, ao incêndio de uma igreja, à em-
briaguez e à fornicação, «causas menores» (como deixar
cair no chão a hóstia consagrada ou comer a carne de um
animal encontrado morto) ou, um pouco mais adiante, o in-
cesto, a adoração dos ídolos, o roubo por necessidade, o
adultério, etc. A denúncia do que os clérigos chamavam
«superstições» e definiam simultaneamente como sobrevi-
vências do paganismo e adoração dos demónios inscrevia-
- s e para eles num programa muito mais vasto de reforma
religiosa e moral; a sua vontade de impor uma ordem so-
cial era inseparável da preocupação propriamente pasto-
ral de salvar as almas. O ministério religioso dos bispos da
Alta Idade Média não se distinguia do seu papel público;
o conjunto das suas prerrogativas sociais comandava a sua
acção contra as «superstições».
A determinação dos bispos não os impedia, quando ti-
nham de puniros pecadores culpadoH do - superstições», de
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mostrar uma notável moderação, sobretudo se comparada


à severidade dos juízes laicos e mesmo eclesiásticos a par-
tir do século XIV. Notemos, antes de mais, que a Igreja
nunca inflige castigos corporais; a lapidação ou a condena-
ção à morte são um recurso dos laicos, não dos clérigos. A
própria prisão é desconhecida.
A pena eclesiástica por excelência é a penitência; esta
varia em duração e intensidade — penitência simples ou
agravada durante certo tempo de jejum a pão e água —,
conforme a gravidade do pecado e o estatuto social do pe-
cador na Igreja; os clérigos são mais duramente castigados
do que os laicos.
No penitencial de Halitgaire de Cambrai, as «supersti-
ções» acarretam penitências que duram três semanas, as
mais ligeiras — para uma criança que comesse, sem saber,
carne imolada a ídolos —, e sete anos, as mais pesadas —
no caso de um malefício que tenha causado uma tempes-
tade ou levado à morte de um homem. Nestes dois últimos
casos, os culpados são respectivamente postos a pão e água
durante três ou quatro anos e sete anos.
Por um malefício por causa de amor, sem que haja morte
humana, um laico não sofre mais de meio ano de penitên-
cia; um simples clérigo, um ano inteiro; um diácono, três
anos; um sacerdote, cinco anos, dos quais dois a pão e água.
Se o malefício conduziu a um aborto, será necessário acres-
centar a estas penitências seis Quaresmas, seja qual for o
estatuto do culpado.
As penitências de cinco anos visam certas espécies de
adivinhação «demoníaca e sacrílega»; as penitências de
três anos são reservadas aos augúrios, aos que interrogam
os «destinos dos santos», aos que fazem «votos» às árvores

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JEAN-ClAUDi:SCHMiri

e às fontes ou «ligamentos», e, por fim, aos que se mascaram


nas calendas de Janeiro.
As penitências que duram, segundo os casos, quarenta
dias, «três Quaresmas» ou doze semanas, visam aqueles
que comem ritualmente junto de um templo pagão (fanum),
sendo a pena agravada se o fizeram depois de já terem sido
admoestados num sermão.
Poder-se-ia comparar esta lista de penitências gradua-
das à de outros penitenciais, como o de Burchard de
Worms, mais tardio. As «superstições» mencionadas podem
variar, mas o género e a moderação relativa das penitên-
cias são equivalentes.
A lista das penitências impostas pela Igreja traduz so-
mente a ideia que os clérigos faziam da gravidade respec-
tiva, na ordem do pecado, das diversas «superstições». Mas
essa hierarquia nada nos diz da significação e da função
destes comportamentos ou destas crenças para aqueles
que, em particular entre os laicos, delas eram acusados. É
necessário, portanto, tentar inverter o nosso ponto de vis-
ta, privilegiar o que parecia, pelo contrário, essencial à
massa dos fiéis e podia justificar a sua adesão duradoura
às condutas ou às representações incriminadas.
Três domínios atraem especialmente a atenção. Em pri-
meiro lugar, numa civilização agrária e à mercê das forças
da natureza, a preocupação de assegurar a fertilidade, a
fecundidade, a reprodução dos homens, dos animais e dos
produtos da terra. Em seguida, o domínio simbólico do
espaço, para favorecer justamente a influência do homem
sobre o ambiente e para inscrever no espaço social a su-
cessão das gerações; o culto dos mortos e os seus locais
específicos t o r n a r a m - s e assim factores iinportnntcs que

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HISTÓRIA DAS SUPERSTIÇÕES

estavam em jogo no conflito entre a Igreja e as «supersti-


ções». Essenciais, por fim, são o conhecimento e, se possível,
o controlo do tempo, do tempo que faz e ameaça a ruína das
colheitas, assim como do tempo futuro que os presságios
talvez permitam adivinhar.
Não se poderia, por conseguinte, analisar de forma au-
tónoma, nestes três domínios, as motivações daqueles que
a Igreja acusava de «superstição»; sem dúvida, porque o
saber do historiador passa necessariamente pela mediação
dos textos eclesiásticos; mas talvez, sobretudo, por outra
razão, que permite não deplorar demasiado este limite da
documentação: a realidade histórica é feita da dialéctica
das diversas práticas sociais e culturais, de conflitos e
compromissos que foram sempre a ocasião privilegiada da
produção dos documentos aos quais o historiador pode,
actualmente, recorrer.
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Feiticeiros e adivinhos
na Alta Idade Média

A adversidade biológica:
homens, animais e colheitas

A angústia da adversidade biológica conduziu à multi-


plicação dos meios de protecção ou, eventualmente, de
cura, que os clérigos condenavam de acordo com dois tipos
de argumentos. Afirmavam, em primeiro lugar, que os fi-
lactérios, «caracteres» e outros amuletos depositados junto
das fontes, nas árvores, nas encruzilhadas, o recurso aos
curandeiros e as invocações feitas aos demónios não ti-
nham eficácia em comparação com a medicina natural, a
physica, legada pela Antiguidade: «A própria disciplina
dos médicos condena todos estes ligamentos e todos estes
remédios», conforme se repete desde Santo Agostinho a
Graciano. Acrescentavam que estes recursos não possuem
nenhuma das garantias de ortodoxia dos ritos efectuados
pelos próprios clérigos com vista à salvação biológica dos
homens, dos animais ou das plantas: sacramento dos
doentes, exorcismos, bênçãos, procissão das preces, etc.
Pior ainda, os ritos e fórmulas proibidas substituem a in-
vocação do nome de Deus ou dos santos pelo dos demónios:

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jr. AN-C l AUDE SCHMITT

estes «ligamentos de ossos ou de ervas», afirma o concilio


de Tours de 813, não passam de «armadilhas do Diabo»; se
os amuletos e as invocações têm eventualmente alguma
eficácia, é somente aos demónios que a devem; quanto aos
curandeiros — os «encantadores» (praecantatores), adivi-
nhos, feiticeiros, caragi que põem caracteres —, são os cai-
xeiros viajantes do Diabo. Escutemos Cesário de Aries:

«Acontece, meus irmãos, que um homem chega à


cabeceira de um doente, da parte do Diabo, para o
perseguir e lhe diz: 'Se deres ouvidos a tal encantador,
serás curado: se quiseres pendurar breves (caracte-
res) por cima de ti, depressa recuperarás a saúde.' Se
cedeis a tal perseguidor, sacrificais ao Diabo; se, pelo
contrário, o desprezais, adquirireis a glória do mártir.»

Noutra passagem, Cesário indica quais são as medici-


nas da Igreja e os seus méritos:

«Vede, irmão: aquele que acorre à igreja num caso


de doença merecerá receber, ao mesmo tempo, a
saúde do corpo e o perdão pelos seus pecados. Se po-
demos, então, encontrar um duplo bem na igreja, por
que haverá infelizes que atraem uma infinidade de
males recorrendo aos encantadores, às fontes e às
árvores, aos filactérios diabólicos, aos mágicos ou aos
harúspices, e aos adivinhos ou ainda aos enfeitiçado-
res?»

A Igreja não condenava — como poderíamos fazer hoje


— o princípio da eficácia simbólica actuante nas práticas

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HISTÓRIA DAS SUPERSTIÇÕES

de curas por ela consideradas «supersticiosas». A eficácia


simbólica em geral não era também o fundamento do seu
poder sobre os homens? A intervenção de um sacerdote, a
presença de relíquias reconhecidas, a recitação de uma
oração em devida forma, sem falar dos milagres realizados
por um santo quando vivo ou depois de morto através das
suas relíquias, não eram diferentes dos filactérios e das in-
vocações que se condenavam; mas ostentavam marcas de
reconhecimento que bastavam para os autentificar. Des-
de o ano 400, aproximadamente, Severo, o Retórico, põe
em cena, no Canto Bucólico sobre a Morte dos Bois, dois
boieiros, Búculo e Títiro, que discutem as maneiras de
afastar a epizootia:

«O sinal da cruz, afirma este último, feito no meio


da fronte, garante a salvação de todo o gado. Por isso,
Deus é chamado, com justiça, o Salvador todo-podero-
so. De imediato a morte funesta se afasta da manada,
a doença é impedida de permanecer. Se queres orar
a este Deus, basta crer. E a fé das palavras que
ajuda.»

Esta passagem é interessante pela luz que lança sobre


o formalismo das práticas: para transformar um gesto
«mágico» num sinal legítimo, é suficiente que o sinal feito
sobre a fronte do gado seja o sinal da cruz e que o nome de
Deus seja pronunciado. Retomando uma fórmula de Gra-
ciano, São Tomás de Aquino escreverá ainda, no século xiii
(Ha, He, 96, 4):

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JEAN-CIAUDE SCHMiri'

«É interdito aos cristãos dedicarem-se a 'observa-


ções' ou encantações recolhendo ervas chamadas me-
dicinais, excepto se recorrerem ao símbolo divino [o
Credo] e à oração dominical.»

A história do culto das relíquias, muito particularmente,


mostra em abundância até que ponto era frágil o limite en-
tre o que a Igreja tolerava ou mesmo encorajava e o que
condenava como «supersticioso». Gregorio de Tours não
hesita em louvar a virtude miraculosa do musgo que cres-
cia sobre o túmulo de São Tranquilo de Dijon, dos frutos e
da casca da amoreira do túmulo de São Baudrille de
Nimes, das pêras do túmulo de São Nazaire e de São Celso
de Embrun; nenhuma dúvida era permitida, porque estes
vegetais tinham o mérito de crescer na proximidade ime-
diata de corpos santos reconhecidos pela Igreja...
Para lançar o descrédito sobre os curandeiros, os cléri-
gos não deixavam também de lembrar que eles eram mui-
tas vezes feiticeiros maléficos. Quanto a esta ambivalên-
cia dos poderes dos feiticeiros — que, de resto, se verifica
também no caso dos santos —, a tradição eclesiástica dava
a sua interpretação; para Santo Agostinho, retomado por
Hraban Maur, Burchard de Worms, Ivo de Chartres, Gra-
ciano,

«os mágicos e os feiticeiros parecem ora curar os


doentes, ora prejudicar as pessoas sãs; fazem-no sem
que tenham neles qualquer força ou potência pró-
prias; mas Deus permite-lhes isso para pôr à prova
aqueles que os vêem ou escutam e apreciar qual é a
sua fé n'Ele».

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Os feiticeiros não têm qualquer poder se não pela von-


tade divina ou graças ao Diabo, o qual não age, ele próprio,
se não com «a permissão de Deus». A análise que a etnóloga
Jeanne Favret-Saada fez da feitiçaria, tal como se mani-
festa ainda hoje no Bocage, permite ultrapassar estas fór-
mulas da cultura erudita; a ambivalência é constitutiva da
feitiçaria como estratégia verbal de agressão, de defesa e
de acusação entre indivíduos pertencentes à mesma mi-
cro-sociedade e susceptíveis, apesar da sua vontade, de
trocarem de papéis; nenhum acusador está livre de uma
acusação de feitiçaria. A divisão clerical do bem e do mal
confronta-se com um dispositivo em que a posição de cada
interveniente nunca é unívoca, mas sempre susceptível de
se inverter.
Benéfica e/ou maléfica, a acção dos feiticeiros incidia
prioritariamente sobre a sexualidade e a geração. Para a
confecção de filtros amorosos, os interessados podiam apli-
car, eles próprios, as receitas tradicionais ou recorrer às
«artes mágicas» dos feiticeiros: fazer que o homem bebes-
se, sem o saber, uma poção contendo sangue menstrual da-
quela que pretende os seus favores; com a mesma finalida-
de, a mulher pode também amassar a farinha sobre os
seios para fazer um pão que dará a comer ao homem. Mis-
turar esperma do homem na comida da mulher não é me-
nos eficaz. Outras beberagens visam impedir a concepção
ou provocar o aborto; neste último caso, como no do infan-
ticídio, o crime é particularmente grave; trata-se de um
homicídio que, além disso, privou uma criança da graça do
baptismo.
O tratado escrito em 860 pelo arcebispo de Reims, Hinc-

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JEAN-ClAUDi: SCHMiri

mar, para se opor ao divórcio de um neto de Carlos Mag-


no, o rei Lotário II da Lotaríngia, e da rainha Teutberga,
fornece um esclarecimento preciso acerca dos malefícios
em matéria sexual na época carolíngia, inclusivamente no
topo da hierarquia social. O rei, privado de descendência
legítima, queria separar-se de Teutberga para desposar a
sua amante, Valdrada, da qual já tinha um filho. Para o fa-
zer, acusa a mulher de ter mantido antes do casamento re-
lações incestuosas, contra natura (masculino concubito
inter femora) e, no entanto, fecundas (mas ela teria abor-
tado!) com o seu irmão Huberto, abade de Saint-Maurice-
-d'Agaune; a rainha admitiu os crimes em confissão, cujo
segredo é ilegalmente quebrado, mas retrata-se, e o seu
defensor prevalece por ocasião de um ordálio; o rei não de-
siste, porém, de querer separar-se dela e faz aprovar a sua
decisão por alguns bispos da Lorena adeptos da sua cau-
sa. Convidado a fazer o mesmo, Hincmar opõe-se, pelo
contrário, ao divórcio e apela ao julgamento do papa. O seu
tratado apresenta-se como uma sequência de perguntas
às quais dá longas respostas argumentadas.
A Interrogatio XV pergunta se existem formas capazes
de originar entre um homem e uma mulher um «ódio irre-
mediável» por meio de malefícios e, ao invés, de suscitar
entre eles um «amor inefável»; pergunta se Lotário não foi
impedido de gerar um herdeiro legítimo pelos malefícios
de Valdrada. Conta também as desventuras de um jovem
nobre que conheceu e que, pelos malefícios de uma antiga
concubina, foi incapaz de consumar o casamento durante
dois anos. E «com vergonha» que o arcebispo relata em
seguida o que soube, por ouvir dizer (fabulas), acerca dos
«actos sacrílegos» destinados à protecção contra tais

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malefícios; certas pessoas, embora libertas e curadas pela


bênção da Igreja, usam poções compostas de ossadas de
mortos, de cinzas e de carvões extintos, de cabelos e de
pêlos provenientes do sexo de homens e de mulheres, de
ervas variadas, de conchas e de fragmentos de serpentes.
Algumas cobrem-se totalmente de vestes enfeitiçadas.
Depois, Hincmar fala das vítimas dos malefícios; aqueles
que ficaram loucos devido à bebida ou à comida que os fei-
ticeiros lhes deram, ou ainda aqueles que sofreram a
agressão dos maus espíritos; homens fascinados pelas
strigae, enfraquecidos pelas lamiae ou pelos geniciales
feminae; mulheres com as quais os dusii se teriam deitado
assumindo a aparência de homens que as faziam arder de
amor... Mas estes homens e estas mulheres, rejeitando
tais «fantasmas diabólicos», podem reencontrar a saúde
graças aos exorcismos e ao «antídoto da Igreja».
Esta descrição de Hincmar é interessante sob mais de
um aspecto; nela se reencontra a ideia da ambivalên-
cia da feitiçaria, benéfica e/ou maléfica; Hincmar tem
também o mérito de distinguir bem os papéis masculino e
feminino; por fim, como os autores de certas penitenciais,
insiste na crença no papel desempenhado pelos maus es-
píritos na impotência ou na esterilidade; os nomes que
lhes dá — strigae, lamiae, geniciales feminae, dusii —
pertencem à tradição legada por Agostinho e Isidoro de Se-
vilha, fortemente marcada pela cultura antiga; mas há
poucas dúvidas de que traduzem também noções autócto-
nes; dusius viria de um nome gaulês, e os geniciales femi-
nae são os genes ou genesches, espíritos femininos cujos
nomes franceses aparecem pela primeira vez no século XII,
associados a estries, tradução de strigae. Os filólogos

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fazem derivar este nome de Diana, a deusa antiga, mencio-


nada pelos penitenciais como um espírito feminino cujo
voo nocturno certas mulheres acreditavam acompanhar;
nestes textos, Diana é por vezes associada a Herodíade, fi-
gura não menos negativa do Novo Testamento.
Assim, de uma maneira ainda alusiva, vê-se que
Hincmar refere um conjunto de crenças às quais os cléri-
gos iriam, em breve, dar uma expressão definitiva. Trata-
- s e , em primeiro lugar, do voo nocturno de Diana e do seu
cortejo de feiticeiras, cujo papel se verá na formação da
ideia do sabat das bruxas. Hincmar não cita explicita-
mente o nome de Diana. Mas este nome aflora no dosgeni-
ciales feminae e não tardará a cristalizar uma boa parte
das tradições contra as quais a Igreja pretendia agir.
O texto central, a este propósito, é o célebre cânone
Episcopi, que os clérigos medievais atribuíam ao concílio
de Ancira de 314; teria, pois, a idade da Igreja, e esta su-
posta antiguidade dava-lhe uma considerável autoridade.
Na realidade, aparece pela primeira vez nas Causas Sino-
dais do abade beneditino de Prüm, na Alemanha, em 906,
antes de ser retomado tal qual por Burchard de Worms,
Ivo de Chartres e Graciano. Fixou a interpretação ecle-
siástica das «superstições» que dominou até à escolástica,
no século XIII.
Esta interpretação é conforme à tradição augustiniana,
à qual também se refere Hincmar, que vê no objecto das
crenças «supersticiosas» não uma realidade material mas
um fantasma inspirado pelo Diabo a espíritos incultos e
frágeis, os das mulheres em particular. Leiamos este câ-
none essencial:

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«Que os bispos e os seus padres se esforcem junto


de todos os homens para desenraizar a arte dos ma-
lefícios e da magia inventada por Zabulão e, quando
encontrarem um homem ou uma mulher sectários
deste crime, expulsem—nos da sua paróquia cobrindo-
- o s de vergonha [...]. Não se deve passar aqui em si-
lêncio que certas mulheres pérfidas, endiabradas e
enganadas por fantasmas diabólicos acreditam e
afirmam que à noite, com Diana, a deusa pagã, ou
com Herodíade e uma multidão de outras mulheres,
cavalgam sobre animais, percorrem grandes distân-
cias no silêncio da noite profunda, obedecem às or-
dens da sua senhora e são chamadas ao seu serviço
em noites determinadas. Se ao menos estas bruxas
pudessem perecer na sua impiedade, sem arrastar
tantas outras na sua perda! Com efeito, numerosas
pessoas, induzidas em erro, crendo que estas coisas
existem realmente, afastam-se da verdadeira fé e
caem no erro dos pagãos, imaginando que possa
existir uma divindade ou uma deusa além do único
Deus. É por isso que os padres, nas igrejas que lhes
foram confiadas, devem pregar com insistência ao
povo de Deus, para que este saiba que todas estas
coisas são falsas e que não é o espírito divino, mas o
espírito maligno, que introduz tais fantasmas na
imaginação dos fiéis.»

Burchard de Worms comentará assim o cânone Episcopi,


um século mais tarde:

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«O Diabo, na verdade, transforma-se em todas as


espécies de figuras e aparências humanas e, enga-
nando nos sonhos a alma que tem cativa, mostra-lhe
ora acontecimentos felizes, ora desgraças, ora perso-
nagens desconhecidas. É assim que o Diabo conduz a
alma por caminhos aberrantes. Só a alma está envol-
vida, mas o espírito crê que todos estes fantasmas são
reais e não imaginários. Quem nunca—nem que seja
em sonho e nos pesadelos nocturnos — foi conduzido
para fora de si e viu durante o sono aquilo que jamais
vira acordado? Quem pode ser tão néscio e estúpido
que imagine que estes fantasmas, fruto da imagina-
ção, se produzem corporalmente? [...]»

Embora Hincmar já adira totalmente a uma tal interpre-


tação «fantasmática» das «superstições», não menciona
ainda o voo nocturno de Diana e das feiticeiras. Em contra-
partida, fornece um testemunho muito importante sobre
os maus espíritos «masculinos» e, sobretudo, «femininos».
Os primeiros são os dusii; Hincmar limita-se a seguir
a tradição que remonta a Santo Agostinho (Cidade de
Deus, XV) e Isidoro de Sevilha (Etimologias, VIII): como os
faunos e os sátiros ou os pãs (pilosi, os peludos, diz
Isidoro) — figuras herdadas da mitologia da Baixa Anti-
guidade—, são demónios «íncubos» cujo nome vem de «dei-
tar-se sobre».
Nem Agostinho nem Isidoro falavam, em contraparti-
da, dos «súcubos» (de succuba, a concubina, que «se deita
por debaixo de»). Mas é verosímil que a existência reco-
nhecida dos íncubos tenha permitido atribuir um papel
igualmente demoníaco e sexual, mna inverso, a espíritos

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HISTÓRIA DAS SUPERSTIÇÕES

«femininos» que a Antiguidade já identificara: ninfas e síl-


fides, lâmias e estriges.
Depois de Hincmar, estas figuras serão aproximadas
por Bruchard de Worms das divindades do destino (as três
fatae ou Parcas). No século xiii, por fim, como sustentou
recentemente Laurence Harf—Lancner, a literatura ver-
nacular utilizando a «matéria da Bretanha» fundirá os
amantes sobrenaturais e as divindades do destino numa
só figura, a de uma fada medieval; a uns, a fada irá buscar
o nome e o poder sobre o destino dos homens desde o ins-
tante em que nascem; a outros, o desejo de se unir aos mor-
tais.
O poder atribuído aos feiticeiros estendia—se não só ao
corpo dos homens e dos animais mas também à natureza
e à vida em geral; ameaçava, antes de mais, as colheitas.
E a outro prelado carolíngio, Agobardo, arcebispo de Lyon
desde 816 à sua morte, em 840, que se deve um pequeno
tratado bastante original sobre a A Néscia Opinião do
Povo a respeito do Granizo e do Trovão. Visto que Agobardo
se dirige explicitamente a ouvintes, parece que se tratava,
pelo menos no início, de um sermão.

«Nestas regiões, quase todos os homens, nobres e


não nobres, citadinos e camponeses, velhos e novos,
pensam que o raio e o trovão podem ser comandados
pelos homens.»

Esta «superstição» não se limita, pois, aos camponeses


ou às camadas inferiores da sociedade; abrange todo o
populus, ou seja, os laicos.
Estes, escreve Agobardo,

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«dizem, com efeito, quando ouvem o trovão e vêem o


raio: 'Aura levatitia est.' Ao serem interrogados sobre
o que significa aura levatitia, confirmam — com ver-
gonha, por vezes com remorso, ou então com con-
fiança, como acontece com as pessoas ignorantes —
que o raio e o trovão são «levantados» pelas encanta-
ções de homens a que chamam os tempestará, e é por
isso que se diz: 'Levatitiam auram.'»

Agobardo especifica o conteúdo destas «néscias opi-


niões»:

«Vimos e ouvimos numerosas pessoas, tão embru-


tecidas pela sua loucura, tão alienadas pela sua estu-
pidez, que crêem e dizem que há uma região, a que
chamam Magonia, donde vêm navios através das nu-
vens; estes navios levam para este país os frutos que
o granizo faz tombar e apodrecer, e os nautas aéreos
dão presentes aos tempestarii em troca dos frutos.
Estão de tal forma cegos pela sua loucura, ao acredi-
tarem que isso possa acontecer, que os vimos numa
assembleia de homens apresentarem quatro pes-
soas, três homens e uma mulher, dizendo que tinham
caído desses navios; depois de os manter amarrados
durante alguns dias, a assembleia dos homens con-
denou—os à lapidação. Mas, prevalecendo a verdade,
depois de muitos raciocínios [que eu lhes opunha]
[post multam ratiocinationem], aqueles que os ti-
nham capturado foram considerados ladrões.»
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Os tempestara teriam também o poder de concentrar o


granizo num só ponto a fim de matar um inimigo que atra-
vessasse um campo ou passasse numa estrada.
Em seguida, Agobardo relata outro acontecimento
recente, que se relaciona, desta vez, com os venefici, os en-
venenadores. «Há alguns anos» grassou uma epizotia
(mortalitas boum) que de imediato fez que estas loucas
crenças se espalhassem:

«Alguns disseram que o duque Grimauld de Béné-


vent, inimigo do muito cristão imperador Carlos, en-
viara homens com pós que espalharam sobre os cam-
pos, as montanhas, os prados e as fontes, tendo os
bois morrido devido a este pó disseminado; por causa
disto, segundo soubemos, muitas pessoas foram pre-
sas, e vimos alguns que foram mortos, outros prega-
dos a tábuas e lançados ao rio e assassinados. Mas é
espantoso: aqueles que foram capturados testemu-
nharam contra si próprios dizendo que possuíam tal
pó e que o espalharam [...]»

Esta passagem parece referir-se à epizotia que gras-


sou, com efeito, no Império de Carlos Magno em 810 e à
qual faz também alusão, nesse mesmo ano, a capitular
Missi dominici.
Um dos grandes interesses do texto de Agobardo é expor
muito claramente as categorias espaciais da crença; os fei-
ticeiros malévolos — envenenadores e nautas aéreos —
são «os outros», aqueles que vêm de um ducado inimigo, o
de Grimauld de Bénévent, ou ainda de um país mítico,
Magonia, o reino dos magi, magos ou mágicos. Outros
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textos contemporâneos falam também dos magones ou


maones, mágicos, que, à semelhança dos tempestarii, po-
dem «levantar o ar» e fazer cair o granizo. No século xiv,
São Bernardino de Sena volta a falar deles independente-
mente do texto de Agobardo, referindo-se a tradições que,
mais uma vez, dizem respeito a tempestades; magonia é,
segundo ele, o nome que «alguns» dão a uma nuvem anun-
ciadora do furacão que destrói os navios; desembainhando
a espada e fazendo-a vibrar, fingem (simulant) cortar esta
nuvem para afastar o perigo.
Os tempestarii lioneses do início do século IX parecem
realmente ter pertencido à sociedade local; é provável que
concentrassem neles — como os feiticeiros da Baixa Idade
Média — todos os ressentimentos que as dificuldades quo-
tidianas originavam. Mas os camponeses não estavam
completamente sós perante eles; Agobardo menciona
também defensores, que têm a reputação de defender os
habitantes contra os tempestarii, mas em troca de um pa-
gamento que o texto designa por canonicum; eram, por-
tanto, «feiticeiros bons», cujo papel benéfico é equiparado
ao que poderia ser o dos padres, de tal forma que recebem
o equivalente à «porção canónica» prevista pelo direito da
Igreja. Agobardo, evidentemente, indigna-se; os campo-
neses servem-se do pretexto de que pagam aos seus
«defensores» (sem poder real aos olhos de Agobardo) para
não pagarem o dízimo à Igreja e não darem esmola aos
órfãos.
O interesse do texto de Agobardo é, por conseguinte, es-
clarecer concretamente um aspecto do funcionamento
local da sociedade carolíngia: papéis bem definidos dos
tempestarii e defensores; assembleia dos homens (conventus

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hominum), que é talvez o tribunal dos homens livres, o


mallus, embora este nome não apareça e nenhum repre-
sentante do poder condal seja mencionado; a justiça feita
por esta assembleia é expedita, não sendo de excluir que
se exercesse à margem das instituições públicas do Império.
Para Agobardo, toda a questão revela a dominação do
Maligno, que abusa do espírito dos cristãos para espalhar
«paganices» (paganias) e prejudicar a Igreja, visto que os
fiéis vítimas de abuso recusam pagar o dízimo. Para de-
monstrar a inutilidade destes comportamentos, apoia-se,
em primeiro lugar, num arsenal de autoridades bíblicas;
porque, segundo diz, se o poder dos tempestarii fosse real,
dever-se-ia encontrar a prova disso nas Escrituras. Ora,
não existem lá nenhumas, o que constitui realmente a pro-
va de que tudo não passa de uma loucura. Mais original é
a sua argumentação lógica, que permitiu a certos historia-
dores a atribuição a Agobardo de uma espécie de «raciona-
lismo» antecipado em relação ao seu tempo... 1 E verdade
que se dedica a uma verdadeira crítica dos testemunhos
interrogando uma testemunha que dizia ter visto um tem-
pestarius:

«Afirmava que o que ele dizia era verdadeiro,


designava o homem, o momento e o lugar, mas con-
fessava também que não estivera presente.»

Ao rumor que se exagera e se transmite, Agobardo opõe


o testemunho visual e pessoal. Ora, afirma, «não ouvimos

1 Kf.nn Hoshof, Krzbischof Agobard von Lyon. Leben und Werk, Colónia-
-Viona, Böhlau, 1969.

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ninguém dizer que viu isso com os seus próprios olhos».


Agobardo procede também por demonstração racional, a
que chama ratiocinatio; se os tempestarii podem causar o
granizo, deveriam também ser capazes de provocar a
chuva, mas não é esse o caso, prova de que o seu poder é
ilusório. E o que afirma aos seus auditores:

«Na nossa época, vimos por vezes, depois das cei-


fas e das vindimas, os camponeses impedidos de se-
mearem por causa da seca. Por que não fazeis que os
vossos tempestarii enviem auras levatitias que irri-
gariam as terras para que, em seguida, pudésseis se-
mear? Na verdade, não lhes pedistes, nunca os vistes
fazê-lo e nunca ouvistes dizer que o tenham feito.»

Os tempestariisão incapazes disso, porque Deus é o


único dador de todas as coisas.
Agobardo era um espírito pouco comum; o que se veri-
fica também na sua correspondência com o bispo Bartolo-
meu de Uzès. Este pedira-lhe uma opinião sobre um fe-
nómeno de possessão colectiva. A uma «certa igreja onde
repousa o corpo de um certo São Firmino» afluem pessoas
dos dois sexos «que tombam à semelhança dos epilépticos
e que o povo chama e considera serem demoníacos»; estes
demoníacos «têm a impressão e sentem nos seus corpos os
ferimentos de queimaduras como se fossem inflamadas
por enxofre». As gentes trazem para este lugar ouro, pra-
ta, gado e outras dádivas; nenhum destes casos é mortal,
mas também ninguém se cura.
Agobardo não põe em causa, explicitamente, a autenti-
cidade deste São Firmino; o bispo da região não o fizera, e
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ele próprio diz que precisaria de se deslocar ao local para


ter uma certeza. No entanto, fala deste santo como de um
quidam, «um certo santo», o que dá a entender uma suspei-
ta. E esta peregrinação é muito estranha, porque nunca se
fica curado! Aliás, num «sermão ao povo sobre a verdade
da fé e a instituição de todo o bem», Agobardo denuncia
aqueles que andam de peregrinação em peregrinação e es-
quecem que o caminho da perfeição é, antes de mais, inte-
rior... No caso de Uzès, visa sobretudo os efeitos desta es-
tranha peregrinação; para um benefício nulo, os doentes
contribuem com dádivas preciosas que melhor fariam se
as dessem aos pobres. Como em relação aos tempestarii, a
«superstição», por efeito das maquinações do Diabo, vem
entravar o funcionamento normal da instituição eclesiásti-
ca. A carta de Agobardo ao bispo Bartolomeu tornou-se, de
resto, quase de imediato uma «autoridade» para a hierar-
quia; o sucessor de Agobardo, Amolon de Lyon (841-852),
não deixou de a utilizar quando o bispo Teutbaldo de Lan-
gres o consultou, por sua vez, acerca de um caso compará-
vel ao de Uzès.

Os mortos

A par da adversidade biológica que atingia os corpos dos


homens ou dos animais e os produtos da terra, as atitudes
em relação à morte traçavam outra linha divisória entre a
Igreja e as <• superstições». Mas esta clivagem não se
consolidou se não muito progressivamente no decurso dos

6.»
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séculos. Nos princípios estabelecidos pelo cristianismo


neste domínio, sobretudo pela voz de Santo Agostinho,
dois aspectos interessam particularmente à questão das
«superstições»; por um lado, o privilégio concedido pela
Igreja a certos mortos, os santos, que sofreram o martírio
ou adquiriram pela sua acção de «confessores» méritos
especiais junto de Deus; por outro lado, o pouco interesse
tradicionalmente demonstrado pela Igreja quanto aos cor-
pos dos mortos e à sua sepultura, excepto no que respeitava
aos • i tos e às respectivas relíquias; pouco importa um ca-
dáver quando é preciso, acima de tudo, preocupar-se com
a alma e a sua salvação. Neste ponto, a Igreja pretendia
distinguir—se nitidamente dos usos pagãos, reprovando os
túmulos sumptuosos da aristocracia romana, os sacrifícios
e as oferendas nas sepulturas.
Era indispensável, para a Igreja, realçar a excelência
inigualável dos seus mortos, os santos. Para o fazer, não
dispunha ainda do procedimento jurídico da canonização
oficial, que não se estabelecerá antes do século xii. A au-
tentificação dos corpos santos, que eram para a Igreja re-
servas de poder miraculoso, não era menos importante,
mas passava por outras vias. Desde muito cedo, a Igreja
lutou contra os cultos espontâneos e «supersticiosos» de
«santos» que não reconhecia. Um texto de Sulpício Severo
a propósito de São Martinho serviu de modelo neste domí-
nio durante toda a Idade Média; o santo estava preocupado
com o culto prestado, junto de Tours, a um mártir des-
conhecido ao qual não se podia atribuir nome nem data da
paixão. Depois de ter hesitado, acabou por ir ao local e, em
pé sobre o túmulo, suplicou ao Senhor que lhe revelasse
quem estava sepultado naquele lugar.

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«Então, virando-se para o lado esquerdo [notemos


desde logo o lado «sinistro» e maléfico], vê erguer-se
junto dele uma sombra repulsiva e feroz, ordena-lhe
que diga o seu nome e as suas qualidades. Ela declara
o nome, confessa o seu crime; fora um malfeitor, exe-
cutado por graves delitos e venerado indevidamente
pelo povo; nada tinha de comum com os mártires, pois
estes permanecem na glória, mas ele no castigo.
Coisa extraordinária: os assistentes ouviam a sua
voz, sem o verem, contudo, em pessoa. Depois, Mar-
tinho contou em público o que vira, mandou retirar
daquele local o altar que ali se encontrava e foi assim
que libertou o povo do erro desta superstição.»

Sendo uma espécie de versão inversa da narrativa de


Sulpício Severo, um texto de Gregório de Tours mostra
como o bispo reconheceu, em Dijon, o túmulo do mártir São
Benigno, onde pensava encontrar-se o sarcófago antigo de
um pagão. O povo organizara um culto junto deste túmulo,
o que muito preocupava o bispo; mas um milagre e, depois,
a aparição do santo perante o bispo permitiram que este
autentificasse o santo corpo.
Era urgente afirmar a excelência inigualável dos corpos
de santos, o que bastava, por si só, para desvalorizar o tra-
tamento dado aos corpos mortos vulgares. No entanto, nos
primeiros séculos da Gália cristã, a Igreja não procurou
combater frontalmente os usos tradicionais; a arqueologia
revela que os depósitos de objectos funerários persistiram
até aos séculos vn-viii. Era mais importante, de facto,
abolir OH cultos pagãos do que intervir no desenrolar dos

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funerais. Um episódio famoso da Vida de São Martinho


mostra bem esta relativa tolerância da Igreja; ao ver uma
procissão, o bispo de Tours julga tratar-se da celebração
de um culto pagão; usa, portanto, o seu poder miraculoso
para imobilizar toda a gente e esclarecer o que se passa;
mas é um simples cortejo fúnebre, que o santo deixa pros-
seguir sem colocar mais dificuldades.
A difusão da inumação ad sanctos permitiu, sem dúvida,
um melhor controlo das práticas funerárias. Coincide, de
qualquer forma, com o desaparecimento dos objectos fune-
rários e também com as primeiras prescrições eclesiásti-
cas rigorosas contra os cuidados «supersticiosos» com os
cadáveres. Entre o fim do século vm e o início do século xi,
os penitenciais multiplicam perguntas e avisos:

«Participaste nas tolices a que se dedicam as mu-


lheres ignorantes? Enquanto o defunto se encontra
ainda em casa, correm à fonte, trazem em silêncio um
recipiente com água e, no momento em que se ergue
o cadáver, espalham a água sobre o leito. Evitam
também, no momento em que o morto é retirado de
casa, que este seja erguido mais alto que os joelhos
delas; tudo isso para obter uma eventual cura.
»Fizeste ou consentiste no que fazem certas mu-
lheres no momento de enterrarem um homem que foi
morto? Colocam-lhe entre as mãos um unguento,
pensando que ele pode assim curar o seu ferimento.
Se não se cura, enterram juntamente o homem e o un-
guento.»

A partir da época carolíngia, a hierarquia eclesiástica

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mostra-se inquieta ao ver práticas funerárias «supersti-


ciosas» misturadas com os ritos que ela recomenda; nas
instruções que redige para o seu clero, o arcebispo Hincmar
de Reims, retomando um cânone do concílio de Nantes de
658, proibe o clero de participar nas comemorações dos
mortos que ocorrem no sétimo e no trigésimo dia depois do
falecimento, assim como no seu aniversário. Os padres,
muito especialmente, não devem aproveitar estas ocasiões
para se embriagarem; é-lhes interdito que brindem pela
alma do morto ou que forcem alguém a beber em tais cir-
cunstâncias; o riso, os banquetes e as libações são igual-
mente proibidos, e o padre não deve «permitir que tenham
lugar diante dele jogos com um urso ou justas e torneios»,
nem que se usem «máscaras [larvae] a que chamam tala-
mascas». Este texto estabelece muito claramente uma re-
lação entre as máscaras e os mortos; é verosímil que as
máscaras, associadas à comemoração periódica dos mor-
tos, se destinem não tanto a representar estes mas princi-
palmente a evocar as sombras, o duplo, através de uma
imagem, ela mesma, dual; as máscaras fariam, assim, da-
queles que as transportam possessos dos mortos. O voca-
bulário tem grande importância; a palavra clássica larva
significava o fantasma maléfico, tornado um danado ou
um demónio aos olhos da Igreja. Sempre que esta denun-
cia as mascaradas, fala de larvae daemonum. O Diabo e os
demónios são, de facto, por excelência, as figuras cristãs da
máscara; elas «transformam» os rostos, acto muito sacrí-
lego, porque o homem foi criado «à imagem de Deus»... O
equivalente dado por Hincmar, talamasca, é de origem
obscu fa, mas seguramente germânica; esta palavra reforça
a i n d a a significação fúnebre do ritual; o sufixo masca

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aparece pela primeira vez na Lei dos Lombardos em


643, e a palavra completa entrará na língua francesa no
século XIV, talemaschier, com o sentido de pintar ou ene-
grecer a cara, sendo esta a forma material mais frequente
da máscara medieval. No Sul, masca adquiriu também,
até hoje, o sentido de espírito ou de bruxa que à noite de-
vora as crianças; é confirmada no século xiii por Gervásio
de Tilbury, que a considera equivalente a lamia.
Para a Igreja, mortos e demonios encontravam-se tam-
bém associados na necromancia. Santo Agostinho consi-
dera esta uma das formas repreensíveis da adivinhação.
Toda a tradição medieval repetiu a definição de Lactâncio
e de Isidoro de Sevilha:

«As invocações dos necromantes parecem ressus-


citar os mortos e fazer que estes respondam às suas
perguntas. Necros, em grego, quer dizer morte, e
manteia, adivinhação. Para ressuscitar o cadáver,
junta—se água ao sangue. E por isso que, sempre que
um acto de necromancia ocorre, água é misturada ao
sangue vermelho para que os demónios sejam evoca-
dos mais facilmente pela vermelhidão do sangue.»

No século XII, a explicação etimológica tradicional conhe-


ceu uma inflexão: João de Salisbúria, bispo de Chartres
(m. 1180), faz derivar a raiz necro do latim niger, negro, e
não do grego necros. O Diabo, ainda mais que os mortos,
passava assim para o primeiro plano, no preciso momento
em que se ia afirmar, no século xiii, a ideia de «magia
negra».
Quaisquer que fossem as práticas reais, a necromancia

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ocupou um lugar muito importante nas representações


clericais das «superstições»: porque dizia respeito à relação
delicada entre os vivos e os mortos e também porque, para
estes letrados, tinha a vantagem de possuir uma referên-
cia certa nas Escrituras. Trata-se do episósio da evocação
do espectro de Samuel pela pitonisa de Endor, a pedido do
rei Saúl (I Samuel, 28). Esta passagem bíblica, retomada
sob uma forma diferente no Eclesiastes (46,23), foi ampla-
mente comentada desde os padres da Igreja. Ora, as duas
narrativas bíblicas estão longe de ser claras: para o Ecle-
siastes, foi verdadeiramente Samuel quem apareceu; o
Livro dos Reis parecia permitir, em contrapartida, várias
interpretações: logro da feiticeira, aparições do verdadeiro
fantasma ou, mais provavelmente, «fantasma diabólico».
Depois de muito ter hesitado, foi por esta hipótese «ilusio-
nista» que Santo Agostinho optou; o seu juízo, conforme à
sua convicção de que as manifestações diabólicas são «fan-
tasmas» sem realidade material, iria prevalecer até ao
dealbar da «caça às bruxas». Mas, em seguida, da Baixa
Idade Média ao século xvii, impôs-se a interpretação «rea-
lista» do episódio bíblico, sendo afirmada, por outro lado,
a realidade material do voo nocturno e do sabat das bru-
xas.
A Igreja da Alta Idade Média preocupava-se também
com a crença segundo a qual os mortos podem voltar para
visitar os seus parentes. A religião antiga atribuíra um im-
portante papel aos fantasmas; estes, aos olhos dos padres
da Igreja, encarnavam, pois, «sobrevivências» do paganis-
mo. Santo Agostinho, já no fim da vida, escrevendo um tra-
tado sobre «os cuidados a dar aos mortos» (De cura pro
mor tuis ge renda), opõe-se aos fantasmas no cristianismo:

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os mortos, afirma, nada sabem do que nos acontece e não


se preocupam connosco; o episodio de Lázaro e do homem
rico mostra-o bem; quando estavam ambos no seio de
Abraão, Deus não permitiu que Lázaro regressasse à
Terra para prevenir os irmãos do homem rico contra os tor-
mentos que os esperavam no Além. Santo Agostinho apre-
senta também outro argumento, mais pessoal: se os mor-
tos pudessem regressar para visitar os seus familiares
ainda vivos, a sua defunta mãe, Mónica, uma mulher san-
ta, não deixaria de lhe aparecer; ora, depois da sua morte,
nunca ela lhe surgiu... Veremos como o Ocidente medie-
val, depois do ano mil, reencontrou pouco a pouco os seus
fantasmas. Quanto à Alta Idade Média, é forçoso verificar
que as narrativas de aparições de mortos vulgares são
muito raras na literatura eclesiástica, com excepção da-
quelas que narra Gregório Magno no quarto livro dos seus
Diálogos; mas estas narrativas dizem respeito à Itália e a
um meio muito impregnado ainda da cultura antiga.
Os fantasmas desta época pertencem k élite dos mortos,
os santos, que aparecem em geral a clérigos e a monges ou
a reis, que são, eles próprios, homens vivos excepcionais;
viu-se como tais aparições podiam servir para a autenti-
ficação do túmulo de um santo. Ou então aparecem mor-
tos muito maus, proporcionando a oportunidade para que
uma personagem santa faça a demonstração dos seus po-
deres sobrenaturais. Estes mortos maléficos podem ser
malfeitores, como aquele cujo fantasma foi evocado por
São Martinho, criminosos executados e deixados sem
sepultura, suicidas, crianças nascidas mortas e privadas
de baptismo, mulheres mortas durante partos. Todos
estes fantasmas, geralmente terríveis e perigosos, são

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mencionados até hoje nas tradições europeias; não tendo


beneficiado dos ritos de passagem da morte, não conseguem
encontrar repouso no Além.
Uma narrativa da Vida de São Germano deAuxerre, por
Constâncio de Lyon, é uma obra—prima da literatura fan-
tástica:

«Em certa época, como ele viajava no Inverno e


passara todo o dia em jejum e fadigas, pediram-lhe
com insistência, ao cair da noite, que fizesse uma
paragem em qualquer sítio. Existia uma morada a
alguma distância, com o telhado meio arruinado, de-
sabitada havia muito tempo. Por negligência, deixa-
ra—se mesmo que as árvores selvagens a cobrissem,
sendo quase melhor passar a noite ao frio, ao ar livre,
do que entrar naquele lugar perigoso e horrível; tanto
mais que dois velhos que moravam na vizinhança ti-
nham prevenido que a casa era inabitável por estar
assombrada de forma aterradora. Quando soube dis-
so, o bem—aventurado dirigiu-se às horríveis ruínas
como se fossem lugares cheios de encanto, e ali, entre
os restos das numerosas salas de outrora, havia ape-
nas uma que tinha a aparência de um alojamento. Lá
instalou a modesta bagagem e os seus poucos compa-
nheiros; tomaram rapidamente uma refeição ligeira,
de que o bispo se absteve. Por fim, quando já era noite
profunda, vencido pelo jejum e pela fadiga, Germano
sucumbiu ao sono, enquanto um dos clérigos se dedi-
cava à leitura. De súbito, um espectro horrendo apa-
rece diante do rosto do leitor e ergue—se, pouco a pou-
co, sob o seu olhar, ao mesmo tempo que as paredes

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são atingidas por uma saraivada de pedras. Então, o


leitor aterrorizado implora o socorro do bispo. Este le-
vanta-se em sobressalto, observa a silhueta do hor-
rendo fantasma e, depois de ter invocado o nome de
Cristo, ordena-lhe que confesse quem é e o que faz
ali. Imediatamente, abandonando a aparência assus-
tadora, fala com uma voz humilde e suplicante; ele e
o seu companheiro foram autores de numerosos cri-
mes, jazem sem sepultura e, se atormentam os vivos,
é porque eles próprios não conseguem encontrar re-
pouso; pedem-lhe que reze ao Senhor por eles para
que mereçam o repouso eterno. Ao ouvir estas pala-
vras, o santo homem aflige-se, ordena—lhes que indi-
quem o lugar onde jazem. Então, precedendo-os com
uma vela, o fantasma guia-os e, no meio das ruínas,
que constituem obstáculos dificilmente ultrapassá-
veis, em plena noite, indica-lhes o local para onde os
tinham lançado. Ao amanhecer, Germano reúne os
habitantes das redondezas, exorta-os, assistindo ele
próprio ao trabalho para o apressar. Usando enxa-
das, afastam os escombros acumulados em desordem
pelo tempo e encontram os cadáveres estendidos de
qualquer maneira, as ossadas ainda acorrentadas.
Uma fossa é arranjada de modo a servir de sepultu-
ra, os membros libertados das cadeias são envolvidos
em sudários, cobertos de terra, uma prece de inter-
cessão é dita em sua intenção; de tal forma que, em
seguida, a casa pôde ser alegremente habitada, sem
qualquer vestígio de terror.»

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O tempo e a adivinhação

Do mesmo modo que a Igreja se esforçou por dominar o


espaço — controlando especialmente estes lugares privile-
giados, os túmulos dos santos (loci sanctorum), onde os
homens vinham ao encontro do divino —, procurou cristia-
nizar o tempo, em todas as suas dimensões: o tempo his-
tórico e escatológico, dando ao tempo cristão uma origem
— o Génesis —, um fim — o Julgamento Final — e, sobre-
tudo, uma finalidade, a salvação apropriada para orientar
os actos e as expectativas dos homens; e também o tempo
vivido — cíclico, não linear —, ritmado pelos movimentos
naturais da Lua e do Sol, mas medido e dividido de
maneira específica pela cultura cristã. Também aí, a
Igreja quis imprimir a sua marca. As civilizações que ti-
nham precedido o cristianismo prestavam igualmente,
mas à sua maneira, grande atenção ao tempo e à sua me-
dida; também lhe atribuíam valores que a Igreja não po-
dia admitir e a que chamava a «superstição» da «observa-
ção» do tempo. Os usos do tempo encontram-se, em todas
as culturas, entre as estruturas mentais mais profundas,
mais enraizadas. O combate, para a Igreja, anunciava-se
difícil e, mesmo com a passagem dos séculos, foi somente
ganho de forma incompleta.
A tarefa mostrava-se ainda mais difícil porque, na
época, os constrangimentos da natureza eram poderosos;
quer se tratasse de actividades agrícolas ou da adivinha-
ção, o movimento regular do Sol e da Lua relacionava-se
com uma necessidade vital antes de constituir uma questão
metafísica. A Igreja, por seu lado, associava o movimento

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dos astros à ordem cósmica imutável instaurada pelo Cria-


dor; nenhum incidente era capaz de o perturbar que não
fosse comandado por Deus. Isso não dispensava a observa-
ção dos astros para fixar a data móvel da Páscoa, mas era
uma garantia antecipada contra qualquer imprevisto. A
concepção cristã do tempo tranquilizava, porque, segundo
esta, tudo tinha um sentido.
É o que se verifica quando os camponeses vão suplicar
a São Germano de Auxerre que devolva o canto ao galo de
repente atacado de mutismo. Uma verdadeira maldição!
Não que tenham necessidade de um galo para reconhecer
a aurora, mas porque um silêncio tão pesado não deixa
pressagiar nada de bom. O santo, por seu lado, não com-
preende muito bem o interesse do pedido, mas, caridoso,
consente em fazer um pequeno milagre — etiam in mini-
mis, mesmo nestas pequenas coisas — para devolver a voz
à ave e sossegar os camponeses. E bom que a medida do
tempo recorde aos homens o plano de Deus; tal é, de res-
to, a função dos sinos, cuja utilização em todas as igrejas
se difundiu no decurso da Alta Idade Média.
Durante toda a Alta Idade Média, os clérigos também
denunciaram crenças e rituais relativos à Lua, aos eclip-
ses, às suas influências supostas. A homilia do pseudo-
—Elói ou o catálogo do Indiculus superstitionum et paga-
niarum denunciam aqueles que dizem que a Lua provoca
a loucura dos homens (mal di luna, diz-se ainda hoje no
Sul da Itália). Estes «lunáticos» eram equiparados aos pos-
sessos pelo Diabo.

«Que ninguém tema iniciar uma nova tarefa na


Lua Nova, porque Deus fez a Lua para que designasse

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os tempos e temperasse as trevas nocturnas; não


para impedir o trabalho de ninguém ou provocar a
loucura do homem, como pensam os tolos que julgam
que aqueles que são possuídos pelos demônios sofrem
por causa da Lua. Que ninguém chame «senhores» ao
Sol ou ã Lua, nem jure por eles, porque são criaturas
de Deus e servem as necessidades dos homens con-
forme a ordem de Deus.»

Estes mesmos textos denunciam também as algazarras


rituais que acompanhavam os eclipses da Lua. E o que
acontece já, em termos semelhantes, com Cesário de Aries.
No século IX, o arcebispo de Maiença, Hraban Maur, acres-
centa uma nota pessoal ao contar que, «uma noite, entre as
vésperas e o começo da noite», foi alertado por «uma voci-
feração do povo tão assustadora que a sua irreligião pare-
cia chegar ao céu»:

«Quando perguntei o que pretendiam com aquele


clamor, disseram-me que a sua vociferação se desti-
nava a prestar socorro à Lua, que sofria, e que eles se
esforçavam por ajudá-la no eclipse.»

Esta gente não se contentava com o alarido: brandindo


armas, disparando flechas para a Lua e atirando tochas
incendiadas para o céu, lançavam um verdadeiro grito de
guerra: Vinceluna! («Vitória para a Lua!»)
E o clérigo comenta:

«Eu ri e fiquei espantado por aqueles cristãos, na


sua simplicidade, prestarem auxílio a Deus, como se

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este estivesse doente ou fraco e, sem a ajuda das


nossas vozes, não pudesse defender a luminária que
criara.»

Nada pode ameaçar a Lua que não esteja inscrito já no


plano de Deus, a quem o Cristão se deve entregar com con-
fiança:

«Que ninguém, quando a Lua fica obscurecida,


comece a vociferar, escreve o Pseudo-Elói; de facto, é
segundo a ordem de Deus que fica obscurecida em de-
terminados momentos.»

Na ordem cósmica desejada por Deus, não havia lugar


para o acidente. Mas as «superstições» também se anicha-
vam na observação do movimento regular da Lua e do Sol,
fundamento do calendário.
Um primeiro escândalo, denunciado desde Cesário de
Aries, dizia respeito aos nomes dos dias. Soavam como in-
vocações feitas aos deuses pagãos, ou seja, paraos clérigos,
aos demónios ou aos astros divinizados pela idolatria: dias
da Lua, de Marte, de Mercúrio, de Júpiter, de Vénus, de
Saturno. A isso se acrescentavam usos inaceitáveis. Na
quinta-feira, em honra de Júpiter, os homens não traba-
lhavam e as mulheres deixavam de fiar:

«E porque ouvimos dizer que o Diabo seduz certos


homens e certas mulheres de tal forma que, à quinta-
-feira, os homens não fazem o seu trabalho e as mu-
lheres não fiam a lã, declaramos solenemente diante
de Deus e dos seus anjos que todos aqueles que obser-

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varam esta prática, se não expiarem através de uma


longa e dura penitência um tão grave sacrilégio, se-
rão condenados a arder no mesmo lugar que o Diabo.
Porque esses pobres desgraçados que, em honra de
Júpiter, não fazem o seu trabalho à quinta-feira, não
se envergonham nem temem, segundo creio, quando
fazem o mesmo trabalho no dia do Senhor [...]»

A estas práticas, a Igreja podia opor o exemplo de Deus,


na própria origem do mundo; trabalhou seis dias para o
criar e, ao sétimo, descansou. Para Deus, nenhum dia da
semana é mais santo que outro, com excepção do sétimo,
designado precisamente «dia do Senhor», dies domini, do-
mingo. Se o descanso da quinta—feira é «supersticioso», o
descanso «dominical», destinado a permitir a celebração
do culto divino, é, pelo contrário, uma obrigação para
todos.
Estes sete dias formam uma «semana»: é uma invocação
do cristianismo que o código teodosiano, em finais do sé-
culo IV, procurou impor ao Império Romano, que se tornara
cristão. Os nomes dos deuses pagãos dados aos dias da se-
mana foram substituídos por números: primeira-feira
(domingo), segunda-feira, etc. Mas esta espécie de matriz
numérica, cuja abstracção era uma arma contra a carga
mítica e pagã que os nomes dos deuses conferiam aos dias,
constituía somente, no cristianismo, uma estrutura pré-
via; as grandes festas da Igreja e dos santos deviam atri-
buir uma substância concreta, quase pessoal, a cada dia e,
ao mesmo tempo, inscrevê-lo no ciclo litúrgico completo do
ano.
Seria necessário saber precisamente por que motivo a

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JEAN-CLAUDE SCHMITT

denominação dos dias da semana não evoluiu da mesma


maneira, desde a Idade Média, em todos os países da
Europa: só os Portugueses continuam a contar em feiras,
como faziam os clérigos medievais; em inglês, como em ale-
mão, os nomes dos deuses germânicos impuseram-se em
detrimento do cómputo eclesiástico bem como dos nomes
dos deuses romanos (com, por exemplo, Donnerstag ou
Thursday em vez do dies Jovis, dia de Júpiter, conservado
em francês, em espanhol ou em italiano). O alemão
Mittwoch surge, a meio da semana, como uma solução neu-
tra, ao passo que o inglês celebra, pelo contrário, o deus
Wodan (Wednesday). Que diferenças culturais mais pro-
fundas estão implícitas nestas evoluções diversas?
Os nomes dos deuses estavam presentes também nos
nomes dos meses, mas a Igreja preferiu adaptar-se, pelo
que os seus nomes se mantiveram: os nossos próprios usos
ainda o testemunham.
No momento em que o cristianismo se implantou no Im-
pério, o ano romano começava nas calendas de Janeiro, o
primeiro dia deste mês; a face dupla de Janus, deus epó-
nimo, simbolizava a passagem de um ano para outro. Os
autores cristãos negaram que este dia devesse marcar ne-
cessariamente o início do ano; baseando—se na narrativa
do Génesis segundo a qual Deus «separou a luz das tre-
vas», Martinho de Braga observava que a divisão impli-
cando a igualdade, o equinócio da Primavera (21 de Março)
devia ser escolhido como data do início do ano.
Na Idade Média, o mais frequente foi escolher a data da
Páscoa para marcar o início do ano. A Páscoa é uma data
móvel, visto que a sua celebração ocorre no domingo
seguinte à primeira Lua Cheia depois do equinócio da

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Primavera. Tal mobilidade impedia, portanto, que a festa


da Ressurreição fosse ligada de maneira estável a uma
festa pagã anterior. Mas este costume nunca foi universal
e, em França, foi definitivamente posto de parte pela de-
cisão de Carlos IX, em 1564, de retomar, em todo o reino,
o l. ü de Janeiro. A vantagem de uma festa fixa e as exigên-
cias do centralismo monárquico nascente conjugavam-se
com o gosto reencontrado pela Antiguidade, de forma a
impor o l.Q de Janeiro numa época em que, é certo, a con-
denação das «sobrevivências» do paganismo tinha menos
razão de ser.
Durante toda a Alta Idade Média, pelo contrário, os clé-
rigos tinham denunciado com vigor os festejos do 1." de Ja-
neiro. Opunham-se a três espécies de costumes. Em pri-
meiro lugar, os presentes, de que as prendas de Natal são
um dos prolongamentos longínquos. Michel Meslin mostrou
que as strenae, ligadas à organização social e ao cliente-
lismo romanos — o patronus distribuía nesse dia as
benfeitorias para obter em troca a fidelidade dos clientes
durante todo o ano —, contrariavam o ideal cristão da ca-
ridade; para os autores cristãos, «os presentes diabólicos»
eram uma dádiva interesseira que engendrava o vício,
pois suscitava a cobiça naquele que recebia e o desprezo
pelo pedinte naquele que dava; opunham-se à esmola cris-
tã, gratuita e unilateral. Se a esmola deve ser retribuída,
pelo menos não será através dos bens deste mundo:

«Eu disse-vos, não deis esses presentes, dai antes


aos pobres. E respondem-me: 'Quando os dou, também
recebo.' Mas será cem vezes mais, segundo a pro-
messa do Senhor, que recebereis se for aos pobres que
derdes.» (Cesário de Arles)

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Tais argumentos são retomados, por exemplo, no século


VIII, no sermão do pseudo-Elói contra as «superstições», ou
ainda no início do século xii, na homilia do bispo de Paris,
Maurício de Sully, para a Festa da Circuncisão.
As condenações mais virulentas das calendas de Janeiro
atingiam, em segundo lugar, as mascaradas. Nenhum
epíteto parecia suficientemente forte para denunciar a
loucura, a demência, a indignidade destas práticas!

«Disfarçados de veado, querem metamorfosear a


sua aparência para terem a de animais selvagens.
Outros vestem-se com peles de carneiro; outros usam
cabeças de animais e regozijam-se e exultam quando
conseguem adquirir a aparência de animais ferozes
ao ponto de já não parecerem homens.»

Variações dos costumes ou infidelidade dos copistas? Os


disfarces de velhinhas (vetula) confundem-se por vezes
nos textos com as máscaras de bezerros (vitulus), por
exemplo num concílio de Auxerre nos finais do século vi, e
mesmo agnicula, a ovelha, torna-se facilmente annicula,
o animal de um ano, ou ainda articula, a velhinha. Mas
pouco importava a exactidão do aspecto etnológico; era
necessário, antes de mais, denunciar nas máscaras a pre-
tensão sacrílega de transformar a criação divina e de abo-
lir a distinção radical entre o homem e o animal ou entre
o homem e a mulher: linhas divisórias que a civilização
judaico-cristã, talvez mais do que qualquer outra, defendeu
com a máxima firmeza; são a própria base da sua antro-
pologia. A metamorfose do homem em animal, particular-

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mente dramática no caso do lobisomem, é uma abominação


para o cristianismo.
Sinais de transgressão social, mas também instrumen-
tos de evocação dos poderes invisíveis no momento da mu-
dança de ano, as máscaras, conforme já tivemos a ocasião
de sublinhar, tinham um profundo valor religioso, que a
Igreja, de resto, era obrigada a reconhecer, atribuindo-o à
influência de Satã. O mesmo acontecia quanto aos votos do
Ano Novo, que eram uma das numerosas formas de adivi-
nhação reprovadas pelos clérigos: a Igreja via aí a vontade
sacrílega e demoníaca de subtrair a Deus o domínio do
tempo.
Havia o risco de a celebração «supersticiosa» das calen-
das de Janeiro persistir durante muito tempo, pois a
Igreja, que já celebrava, a 25 de Dezembro, a Natividade
de Jesus e, a 6 de Janeiro, a Epifania, não tinha solução
alguma para substituir este dia intermédio. Assim, foi
levada a dar mais importância na sua liturgia ao único
acontecimento da vida de Cristo que podia ser logicamente
introduzido nessa data: a Circuncisão. As origens desta
festa são bastante obscuras: parece ter sido, inicialmente,
celebrada no Oriente, no século v. No século seguinte, é
mencionada na liturgia galicana. A sua função contra-
—ofensiva não oferece dúvida alguma; nesse mesmo dia
era celebrado um ofício Prohibendum ab idolis, contra as
«superstições». Além disso, a Igreja instituiu no l. e de Ja-
neiro um dia de jejum para contrariar as festividades tra-
dicionais. Este jejum é confirmado pela primeira vez no
Concílio de Tours de 567, cujo décimo-sétimo cânone é
perfeitamente explícito:

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JEAN-CLAUDE SCHMI'IT

«Sendo cada dia um dia de festa, entre o Natal e a


Epifania, poder-se-á comer normalmente, [mas] pa-
ra desprezar o costume pagão, os nossos antepassa-
dos decidiram que, no dia das calendas de Janeiro, se
cantassem litanias em casa e salmos na igreja, e que
à oitava hora desse mesmo dia fosse celebrada a mis-
sa da Circuncisão.»

O calendário romano incluía ainda outras festas, que


foram todas denunciadas pelos autores cristãos dos pri-
meiros séculos: no Inverno, as Saturnalia, em 17 de De-
zembro, e as Brumalia, em 25 de Dezembro — no próprio
dia de Natal; no Verão, as Neptunalia, em 23 de Julho, e
as Volcanalia, em 23 de Junho, que se tornou a vigília de
São João Baptista. Outras condenações aparecem pela
primeira vez um pouco mais tarde, como a dos dies tinea-
rum et murium, em que, diz Martinho de Braga, retomado
na Vida de Santo Elói, se deixa aos ratos e às ratazanas al-
guma roupa ou comida para que parem aí os seus estragos
para o resto do ano.
Certas celebrações romanas, como as Spurcalia de Fe-
vereiro — dias do porco (spurcus) — confundiram-se com
festas do calendário celta anterior; este dividia o ano em
quatro estações definidas pela combinação dos ciclos solar
e lunar; cada uma começava quarenta dias (a duração de
uma lunação e meia) depois de um solsticio ou de um equi-
nócio; Imbolc em 2 de Fevereiro (quarenta dias após o equi-
nócio de Inverno), Beltaine no l. e de Maio (quarenta dias
após o equinócio da Primavera), Lugnasad no l. 9 de Agosto
(quarenta dias após o solsticio de Verão), Samhain no 1."
de Novembro (quarenta dias após o equinócio de Outono).
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Inversamente, com a implantação dos Francos no terri-


tório da Gália, o calendário germânico, já mencionado por
Tácito na Germania, interferiu com os calendários ante-
riores.
Mas, apesar de tudo, o conjunto destas influências di-
versas conta menos do que a capacidade do tempo cristão
para as assimilar a todas num novo calendário, que impu-
nha nos momentos cruciais do ano, graças à sua forte coe-
rência ideológica, significações propriamente cristãs. É
por isso que se revela sempre insuficiente interpretar ape-
nas em termos de «sobrevivência» a fixação de uma festa
cristã num momento do ano já celebrado pelos paganismos
anteriores; o calendário é um produto da história em pro-
gresso. A dimensão histórica do calendário cristão deve
tanto mais chamar a atenção quanto mais os usos sociais
do tempo evoluíram no decurso dos séculos; veremos como,
ao invés da teoria das «sobrevivências», os valores cada vez
mais contrastados que foram atribuídos, ao longo da Idade
Média, aos diferentes ciclos do ano cristão — oposição do
tempo de jejum aos dias gordos, especialmente — contri-
buíram para produzir uma época de festa irredutível às
suas longínquas «origens» pagãs, a época do Carnaval.
A adivinhação estava igualmente no centro do conflito
entre a Igreja e as «superstições» a propósito do tempo.
Quer consistisse, com efeito, em interpretar «sinais», quer
se relacionasse mais particularmente com o carácter fasto
ou nefasto atribuído a determinados dias, tinha como
objectivo predizer o futuro ou decidir a necessidade ou a
impossibilidade de empreender uma acção; em todo o caso,
parecia revelar uma vontade de apropriação do tempo, que
é possessão de Deus, ou de provocar a revelação antecipada
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dos mistérios, que só Deus conhece, occulta Dei, os «segre-


dos de Deus».
Para a Igreja, a adivinhação parecia, não sem razão,
consubstancial ao paganismo greco-romano: desempe-
nhava, com efeito, na religião oficial e na política romanas,
um papel muito importante. Santo Agostinho fora buscar,
aliás, à cultura romana a lista dos tipos de adivinhação e
de adivinhos que perduraria durante toda a Idade Média;
encontramo-la sem modificações desde De Doctrina Chris-
tiana até Hincmar de Reims e ao Decreto de Graciano,
passando pelas Etimologias de Isidoro de Sevilha; na ver-
dade, esta lista teórica tinha como fundamento o jogo das
etimologias mais do que a observação das realidades, mas
não deixava de servir para considerar a diversidade das
formas ilegítimas de adivinhação. Sem duvidar que tenha
sido, em grande medida, estranha às práticas reais, deve
admitir-se também a sua eficácia na luta contra as «supers-
tições». Quanto a certas técnicas de adivinhação que aí são
referidas, existem, de resto, informações mais concretas
sobre as práticas reais.
Segundo esta lista, os magi, generalistas das «artes má-
gicas», observavam as estrelas; embora fossem condena-
dos, uma hábil excepção era feita, contudo, em relação aos
«magos» que foram a Belém adorar o Menino Jesus; antes
de serem transformados em reis, considerou-se que a es-
trela que tinham seguido não era um astro natural, mas
uma estrela miraculosa. Depois surgiam os nigromantici,
os necromantes, de que já se falou. Em seguida, os hydro-
mantii, que «perscrutam a água para evocar as sombras
dos demónios e observam as suas imagens enganadoras»;
os incantatores «exercem a sua arte por meio de palavras»;

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os arioli «proferem rezas maléficas em volta dos altares


dos ídolos, oferecem sacrifícios funestos e obtêm com estas
celebrações respostas dos demônios»; os haruspices
«observam as horas antes da realização de um negócio ou
de um trabalho, examinam as entranhas, as carnes e as
omoplatas do gado, predizendo assim as coisas futuras; os
auguri e os auspices observam o voo e o canto dos pássaros
(aves, donde retiram o seu nome); osgenethliaci ou mathe-
matici (sendo considerado mais «popular» o seu primeiro
nome: vulgo nuncupantur!) determinam o destino de um
homem em função da conjunção dos astros no dia do seu
nascimento. Havia também as pythonissae, ou «ventrílo-
quas», os astrologi, que «tiram os seus augúrios dos astros»,
os praestigiatores, ou osbstrigili, que «obscurecem a acui-
dade dos olhos dos homens», e, por fim, os sortilegi, que,
«em nome de uma religião fingida, exercem a ciência da
adivinhação através de sortes a que chamam 'sortes dos
santos' e prometem coisas futuras observando certas es-
crituras».
As designações «sortes dos santos» ou «sortes dos após-
tolos» (que certas fontes chamam também «sortes homéri-
cas» ou «sortes virgilianas») designavam inicialmente,
desde o século iv, uma forma de adivinhação que utilizava
as Sagradas Escrituras. Santo Agostinho condenava já
«aqueles que tiram as suas sortes das páginas do Evange-
lho». Os concílios não cessaram de repetir, durante toda a
Alta Idade Média, as mesmas proibições, retomadas em
seguida pelas capitulares carolíngias, por autores como
Hincmar (Divórcio de Lotário) ou pelas penitenciais. Por
volta de 1200, Alain de Lille afirma ainda no seu tratado
sobre n penitência:

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«Não se deve lançar as sortes em altares ou ma-


nuscritos para inquirir sobre o futuro; que ninguém
tenha a audácia de lançar as sortes no Evangelho ou
no saltério ou noutras coisas, ou de fazer qualquer
adivinhação através do que quer que seja. Se alguém
o fez, que sofra uma penitência, à discrição do padre.»

De facto, os principais responsáveis por esta prática


eram os próprios clérigos; Gregório de Tours mostra pre-
cisamente como os clérigos colocavam sobre o altar os três
livros dos profetas, dos apóstolos e do Evangelho, antes de
abrirem ao acaso, em cada um deles, uma página com um
versículo cuja interpretação devia esclarecer o futuro ou
ajudar a tomar uma decisão; caso se tratasse, por exemplo,
de escolher um bispo ou um abade, recorria-se às «sortes
dos apóstolos»... Segundo Sulpício Severo, foi desta ma-
neira que São Martinho obteve a designação como bispo de
Tours; a Vida de Santo Agostinho revela que o mesmo pro-
cesso era utilizado em Orléans: conduziu-se uma criança
que ainda não falava — sinal evidente de inocência — até
junto dos livros colocados sobre o altar; no momento em
que ela estendia a mão, o povo, «sem consulta prévia» (sic),
exclamou em uníssono: «Aignam, Aignam, Aignam, és
instituído por Deus pontífice desta cidade!» Quando a
criança abriu o saltério, o primeiro versículo que se leu foi:
«Feliz aquele que escolheste [...]» Quando abriu o dos
apóstolos, leu-se: «Ninguém pode estabelecer outro fun-
damento [...]» E na página do Evangelho: «Sobre esta pe-
dra edificarei a minha igreja [...]» Considerou-se que os
três livros estavam de acordo e confirmavam a intuição do

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povo: a vontade de Deus manifestara-se por vias diversas,


mas unânimes, a favor de Aignan, que foi imediatamente
proclamado bispo. Em todos estes exemplos — que pode-
riam multiplicar-se pelo menos até ao século xn —, não se
tratava, é claro, de «superstições»; a caução clerical impe-
dia tal qualificativo, ao passo que noutras mãos esta uti-
lização dos livros santos teria sido um sacrilégio. Usadas
de forma legítima, as «sortes dos apóstolos» eram vistas
como reveladoras da vontade de Deus: a escolha nunca se
considerava o fruto do acaso — a antiga Fortuna —, mas
a expressão da Providência divina, cujas vias ocultas se
deixavam assim adivinhar sobre o altar e nas Escrituras.
Nestas condições, a dúvida não podia atingir aqueles que
tinham justamente por tarefa estabelecer a linha divisória
entre a «religião», a deles, e a «superstição», a dos outros.
Também se designavam por «sortes dos apóstolos» de-
terminadas recolhas de respostas oraculares. Em finais do
século V, um concílio romano condenava já um certo «livro
chamado sortes dos apóstolos, apócrifo»... Conservou-se
uma dezena destas recolhas, remontando as mais antigas
ao século x; algumas, sensivelmente mais recentes, são
mesmo escritas em francês antigo ou provençal; uma de-
las, datada do século xin ou xiv, foi descoberta na cidade de
Cordes, dissimulada numa parede; compreende cinquenta
e sete versículos escritos em língua de oc; fios azuis e ama-
relos permitiam designar ao acaso versículos que convi-
nha depois interpretar... Nas sortes latinas, os fios cedem
lugar a processos numéricos, estando cada versículo nu-
merado.
Eis algumas das frases que os utilizadores do livro tira-
vam à sorte:

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«Quanto ao assunto que te ocupa, que a tua coragem


seja firme, para que consigas obter o que esperas.
»A via que procuras é recta; não temas; Deus virá
em teu auxílio e terás o que desejas.
»Como o navio no mar, quando governado, chega
ao lugar desejado, assim atingirás tu prontamente o
que esperas.
«Neste momento, afasta-te; as sortes recusam
dar-te uma resposta; noutro dia, volta, e dir-te-ão a
verdade.
«[Etc.]»

A alternância de encorajamentos e de conselhos de


prudência aproximam estas «sortes», na viragem do sé-
culo XIII, das afirmações evasivas de uma vidente moder-
na. «Supersticiosas» não o eram, sem dúvida, no sentido
dado pelos bispos merovíngios; nelas se procuraria em vão
a invocação dos demónios ou de um deus pagão, e Deus en-
contra aí o seu lugar. Mas um tal livro não oferecia a cau-
ção das Escrituras nem, sobretudo, a de um clérigo que ti-
vesse sido encarregue de lançar as «sortes»: era utilizado,
verosimilmente, por qualquer laico; no Sul de França, em
finais do século xiii ou no início do século xiv, isso era su-
ficiente para que este livro fosse clandestino...
Outros processos de adivinhação eram também citados:
por exemplo, a observação dos «dias egípcios», reminiscên-
cia da antiga adivinhação oriental. Segundo diziam os
astrologi, dois ou três dias da cada mês eram particular-
mente perigosos. A referência incessante aos «dias egípcios»
nos textos faz eventualmente pensar que esta expressão

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abrangia ainda crenças efectivas. No século xiii, o bispo de


Mende, Guillaume Durand, fornecerá mesmo um meio
mnemotécnico para lembrar os «dias egípcios» de cada mês
(1 e 7 de Janeiro, por exemplo)...
Por fim, no capítulo da «observação dos sinais», os peni-
tenciais e os cânones retomavam fielmente os exemplos
augustinianos; não se devia atribuir significação ao movi-
mento involuntário de um membro, à tosse de um homem
ou de um animal, ou ao encontro inesperado de um animal,
de um corcunda ou... de um padre. Quanto mais se avança
no tempo, mais os penitenciais multiplicam os testemu-
nhos originais acerca da importância concedida aos pres-
ságios mais variados:

«Deste fé à superstição seguinte: os viajantes, ao


verem passar da esquerda para a direita uma gralha
a grasnar, esperam fazer boa viagem e, preocupados
em chegar a bom porto, adquirem confiança quando
este pássaro, chamado ratoeiro — porque apanha ra-
tos e os come —, atravessa o seu caminho? Se assim
fizeste, cinco dias de jejum a pão e água. [...]
«Procedeste como alguns fazem quando visitam
um doente? Ao aproximarem-se da casa do doente, se
encontram uma pedra no caminho, viram-na e veri-
ficam se, por debaixo, há algum animal vivo. Se en-
contram um verme, um insecto, uma formiga ou
qualquer outro animal, declaram que o doente se cu-
rará. Se nada encontram, dizem que o doente vai
morrer. Se o fizeste ou se nisso acreditaste, vinte dias
de jejum a pão e água.»

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Os documentos narrativos fornecem também grande


quantidade de informações muito concretas sobre a adivi-
nhação, em todas as camadas da sociedade. Eginardo
disso se faz eco, a propósito de Carlos Magno. Três anos
antes da morte do imperador, multiplicaram-se «sinais
excepcionais» (prodigia) que «não deixavam qualquer dú-
viva, a ele próprio como ao seu círculo, sobre a iminência
do momento decisivo»; eclipses do Sol e da Lua, uma
mancha aparecida no Sol, um pórtico que se desmoronou,
o incêndio da ponte de Maiença, um acidente de cavalo, es-
tremecimentos sentidos no palácio, uma inscrição honorí-
fica em que a palavra princeps se tornara ilegível. «Mas a
nenhum destes presságios (superiora omnia) o rei deu
atenção; tratava-os com desprezo ou aparentava acre-
ditar que nada tinham a ver com ele.» Carlos Magno não
deixou de tomar a precaução de ditar o seu testamento, e
o próprio Eginardo não negligenciou uma exposição por-
menorizada de todos estes presságios...

Os sonhos e o Diabo

Entre os presságios, os sonhos premonitórios ocupa-


vam, como já na Antiguidade, um lugar muito importan-
te. De forma mais geral, os sonhos, enquanto «fantasmas»,
estavam para a Igreja no âmago da questão das «supers-
tições», porque estas, pelo menos até meados da Idade Mé-
dia, pertenciam ao domínio imenso do «fantasmático». No
entanto, como as «sortes», como a adivinhação, os sonhos

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eram um mundo ambíguo em que a separação entre «su-


perstição» e «religião», erro e verdade, não podia assentar-
em critérios objectivos.
No que respeita aos sonhos, o cristianismo recebeu uma
dupla herança. Em primeiro lugar, uma herança ambí-
gua, a das Escrituras, onde o sonho, interpretado por
Daniel ou José, é um instrumento positivo da revelação d i-
vina, ao passo que os oniromantes pagãos aí são despreza-
dos por Jeová. Frequentemente citado na Idade Média, o
Deuteronómio (13, 1 - 4 ) diz, por exemplo:

«Quando um profeta surgir entre vós, dizendo <|iic


teve um sonho e anunciando um sinal ou augúrio, e
se acontecer efectivamente o que ele predisse e te < 11 s
ser: 'Vamos, sigamos os deuses estrangeiros que tu
desconheces e sirvamo-los'», não escutes as palavras
deste profeta ou deste sonhador [somniatoris], pois é
Deus que assim vos põe à prova [...]»

A segunda herança era a da Antiguidade grega e roma-


na, especialmente através de uma classificação dos sonhos
que Macrobio «vulgarizara» no século v, num comentário
ao Sonho de Cipião, de Cícero. Macrobio distinguia cinco
tipos de sonhos segundo as condições nas quais eles se pro-
duzem e o sentido de que são portadores. O insomnium
(sendo o equivalente grego enupuion) e o visum — desig-
nado também segundo o equivalente grego phantasma —
não são mais que a expressão onírica de uma experiência
presente ou anterior, como, por exemplo, uma frustração
física ou psicológica; não exigem uma interpretação par-
ticular. Em contrapartida, os três tipos superiores, o

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oraculum (ou chrematismos), a visio (orama) e, principal-


mente, o somnium (oneiros) têm um valor profético, anun-
ciam o futuro, mas o seu sentido está oculto por símbolos
que é necessário decifrar.
Esta tipologia, de facto, não tem influência alguma du-
rante a Alta Idade Média; será redescoberta somente no
século XII, em particular por Alcher de Clairvaux no Líber
de spiritu et anima, cujo grande êxito se ficou a dever à
falsa atribuição a Santo Agostinho. Mas, na falta da pró-
pria tipologia, uma parte do vocabulário permaneceu;
assim, a palavra somnium, que se tornou, sobretudo na
forma do plural somnia, o termo genérico para designar o
sonho na cultura cristã, e a palavra phantasma (ou, por
extensão, phantasmata), o nome emblemático do sonho
mau, do sonho enganador, do sonho diabólico.
O cristianismo, na verdade, substituiu a tipologia antiga
por uma classificação diferente sob dois aspectos. Em pri-
meiro lugar, fez entrar o sonho (somnia) no conjunto das
experiências visionárias, através do termo visio, ora en-
globante, ora particular; um sonho não é mais do que uma
visão durante o sono. Em seguida, com Tertuliano, depois
com Agostinho, Cassiano, Gregório Magno (havendo, en-
tre estes, graus diversos de sistematização), classificou os
sonhos já não segundo a forma ou o grau de transparência
mas segundo a origem e o grau de «verdade», uma noção
cristã essencial, em particular para Santo Agostinho,
grande teórico cristão da mentira (De mendacio). A partir
de então, fez-se somente a distinção entre duas ou três es-
pécies de sonhos. Os sonhos «verdadeiros», que vêm de
Deus, os quais florescerão na hagiografía; são os sonhos
dos santos, dos monges e dos reis bondosos. Os sonhos

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«falsos», vãos e enganadores — phantasticae iIlusiones —


, enviados pelo Diabo; sonhos dos homens maus, por vezes
também dos santos (como Santo Ambrosio no deserto),
pois o inimigo procura enganá-los por todos os meios. Por
fim, os sonhos que têm origem no corpo humano e aos quais
o saber médico herdado da Antiguidade dará uma impor-
tância crescente; mas a moral cristã envolve-os tradicio-
nalmente de fortes suspeitas; sonhos provocados pela
luxúria ou o excesso de bebida, origem de poluições noc-
turnas; o Diabo, também aí, não está longe...
Em todos os casos, os sonhos eram uma matéria delica-
da, tanto mais que, tal como janelas abertas directamente
para o além invisível aos olhos do corpo, podiam revelar o
que ainda não era conhecido ou ainda não acontecera: o fu-
turo, que é pertença de Deus e que também os diabos, com
a sua grande agilidade, podem conhecer antecipadamente
e anunciar através de fragmentos aos homens adormeci-
dos. Se o sonhador ou o intérprete do seu próprio sonho ou
do sonho de outrem for um clérigo reconhecido, as autori-
dades eclesiásticas não têm de se preocupar: graças aos
topoi da tradição hagiográfica, desde os padres do deserto
a Gregório Magno, todos os clérigos, todos os monges sa-
bem muito bem, por exemplo, que a aproximação da morte
se anuncia por um sonho e que é altura, nesse caso, de
fazer penitência para surgir puro diante do Senhor. Mas
se homens «simples e incultos», «rústicos e iletrados», pre-
tendem interpretar os seus sonhos, portanto, dialogar com
o Além sem qualquer mediação clerical, então não há dú-
vida sobre a influência do Maligno.
Quando todas as garantias estão reunidas, o sonho tem
muitni; afinidades com a santidade. Mas, nos casos con-

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WAN CIAUDE SCHMITT

trários, sobretudo na Alta Idade Média, o sonho está


ligado ao «paganismo» e às «superstições»; «aqueles que
veneram os ídolos são os mesmos que vêem coisas vãs nos
seus sonhos», escreve Próspero da Aquitânia, amigo de
Santo Agostinho.
A partir do concílio de Ancira de 314, a Igreja condenou
«aqueles que observam os augúrios, os auspícios ou os so-
nhos e as adivinhações segundo os costumes dos pagãos».
Mais tarde, os textos eclesiásticos atacaram particular-
mente os conjectores somniorum, aqueles que fazem «con-
jecturas a partir dos sonhos». O concílio de Paris de 829 e,
depois, por volta de 858, nos mesmos termos, Hérard,
bispo de Tours, equiparam-nos aos outros «adivinhos, áu-
gures, feiticeiros, envenenadores e encantadores». Um
texto célebre do bispo Martinho de Braga atravessou toda
a literatura canónica do primeiro milénio, até ao Decreto
de Graciano, no século xii: condenava «aqueles que recor-
rem aos escritos oníricos (somnialia scripta), cujo título
ostenta indevidamente o nome de Daniel, e às sortes que
são chamadas 'sortes dos apóstolos'». Como estas últimas,
das quais já se tratou, os Somnalia Danielis relaciona-
vam-se, segundo a expressão de J.-C. Poulin, com os «usos
mágicos do escrito», na Idade Média, e a sua utilização não
apresentava uma menor ambiguidade; embora estes tex-
tos, atribuídos falsamente ao profeta Daniel, tenham sido
incessantemente condenados, foram com toda a evidência
utilizados também ou, talvez, sobretudo por clérigos.
Nenhum foi conservado que datasse da Alta Idade Mé-
dia; os manuscritos mais antigos remontam ao século xi; os
manuscritos posteriores, encontrados em toda a Europa,
surgem com frequência escritos em língua vulgar, o que

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parece mostrar que foram também utilizados por outros


além dos clérigos. Embora sejam comparáveis às «chaves
dos sonhos» helenísticas — como, por exemplo, a de Arte-
midoro de Efeso no século li d. C. —, decerto não derivam
delas directamente: seria necessário, pelo menos, ter em
conta intermediários árabes, tal como o célebre Livro de
Achmet. Em todo o caso, estes textos, cujas versões france-
sas dos séculos xiii-xv se intitulam Livre de Daniel, Sene-
fiance des Songes ou Des soinges et esperimens des soinges,
apresentam—se como listas de uma centena de versículos
ou mais, classificados por temas ou por ordem alfabética
da primeira palavra de cada um dos versículos. Cada ver-
sículo dá o significado das imagens oníricas:

«Falar com mortos significa uma boa notícia:


»Ver um morto ou falar com ele significa alegria ou
júbilo;
»Estar na cama com uma mulher bonita significa
ganho; com a própria mulher, querela; com uma vir-
gem, angústia; com a própria irmã, prejuízo; com a
própria mãe, saúde;
»[etc.]»

É impossível dizer qual foi a utilização real destas


listas; os textos narrativos não as referem, mesmo quan-
do falam concretamente sobre a prática dos intérpretes
dos sonhos, como, no início do século xii, a mãe do monge
Guibert de Nogent, que explicava ao filho ainda criança,
ao preceptor deste ou às vizinhas o sentido dos sonhos.
Este caso ilustra bem qual deve ter sido o lugar do sonho
no quol idinno: uma experiência comum, mas plena da an-

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gústia do sentido oculto do futuro; para obter a chave dos


sonhos, os que sonhavam dirigiam-se a homens ou, talvez
com mais frequência, a mulheres que podiam passar por
santas quando não se suspeitava que fossem bruxas.

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«Superstições» na aldeia

Novos pólos da cultura medieval

Por volta do ano 1000, as estruturas materiais e sociais


do Ocidente conheceram uma profunda mutação. Esta é
caracterizada, em primeiro lugar, pela conclusão da
conquista do espaço; o Ocidente deixa de ser o mar de ño-
restas e de terras agrestes semeadas de clareiras que ca-
racterizava a Alta Idade Média, sobretudo nas regiões do
Norte; doravante, sob a pressão demográfica e graças aos
arroteamentos, a França, como grande parte da Europa,
tornou-se um espaço quase completamente preenchido.
Este espaço organiza-se, estrutura-se em unidades que
tendem, por sua vez, a distinguir—se, a afirmar a sua par-
ticularidade e a formar entre elas múltiplas redes. Estas
transformações materiais foram possíveis através de um
controlo acrescido do espaço e dos homens. A sociedade,
empurrada para o «encelulamento», pai a retomar a expres-
são de Robert Fossier1, é apanhada nas malhas dos pode-
res laicos e eclesiásticos que, apesar da sua rivalidade,
concorrem para estabelecer uma nova ordem social. Ainda

1 Itohi'ii FoHMit'i'. Enfance de 1'Europe, Paris, PUF, 1982, 2 vols.

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JEAN-CIAUDE SCHMITT

mais do que a «feudalidade», ou seja, em sentido estrito, a


organização da aristocracia laica segundo uma pirâmide
de fidelidades e de homenagens, é o «senhorio» que aqui
importa; os laços de dependência da maioria dos homens,
livres ou servos, em relação a um senhor laico ou eclesiás-
tico que possui a terra e faz que seja trabalhada.
O nascimento da aldeia é o facto mais importante deste
período, aquele cujo enraizamento foi mais profundo; os
regimes jurídicos poderão mudar e os castelos ficar em
ruínas, mas a aldeia continuará a ser, até hoje, o traço do-
minante da paisagem rural.
Aceitemos a imagem mais tradicional: uma aldeia é for-
mada pela reunião mais ou menos densa de habitações e
de pequenas explorações em redor de uma igreja e de um
cemitério, no centro de um território limitado por outros
territórios aldeãos análogos. O nascimento da aldeia trans-
formou as modalidades jurídicas e técnicas da exploração
da terra, que não podem isolar-se de todos os outros traços
da «cultura aldeã»: formas de solidariedade e de aliança
dos habitantes, sentimento partilhado de pertença a uma
comunidade, memória colectiva que se enraiza e liga os vi-
vos aos familiares defuntos.
O quadro institucional e ideológico desta cultura aldeã
é a paróquia: um termo antigo, sem dúvida, mas que
assume neste contexto uma acepção nova e uma presença
muito mais forte. Em geral, a paróquia identifica-se com
a aldeia, o «paroquiano» com o aldeão. Assim, vê-se formar
nessa época a imagem que nos é ainda familiar da socie-
dade rural, dos seus lugares de destaque (a igreja, o cemi-
tério, as franjas arborizadas do território, os limites e as
cruzes nas encruzilhadas), das suas personagens mais


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características: o padre (sacerdos) à cabeça do rebanho


mais ou menos dócil das suas ovelhas (parrochiani), as
«velhinhas» (vetulae) sempre metidas na igreja ou no ce-
mitério e sobre as quais são lançadas as suspeitas quando
se descobre algum sortilégio... É este pequeno mundo que
os clérigos perseguidores de «superstições» passam a des-
crever nos sermões e contra o qual os juízes caçadores de
bruxas não tardarão a investir...
Em geral, uma aldeia (ou um grupo de aldeias) é do-
minada pelo castelo do senhor; na lógica social do «encelu-
lamento», um destes elementos acompanha necessaria-
mente o outro. A multiplicação dos homens e da força de
trabalho, assim como a extensão dos espaços cultivados,
permitiram aos principais detentores do poder e da terra,
os condes, a partilha de benefícios entre um número cres-
cente de guerreiros fiéis; castelões rodeados de alguns ca-
valeiros (milites) que anseiam, por sua vez, fundar uma li-
nhagem e edificar um torreão para vigiar os seus bens e os
seus camponeses. Durante toda a época feudal, esta pe-
quena nobreza encarnou um conjunto de valores, de ideais
e de mitos que pesaram mais na cultura medieval do que
o seu poder e a sua influência política reais; a literatura
cortês moldou-se, em larga medida, no círculo de condes,
príncipes e reis poderosos, mas o seu herói típico é um
simples cavaleiro que sonha com a realização de certas
proezas para conquistar o amor da dama, a esposa do seu
senhor.
Mas, para a fracção da pequena aristocracia laica que
conseguiu iniciar uma linhagem ao obter de um nobre
mais poderoso uma esposa e um castelo, o essencial estava
por Ca zei a ad m issâo pelos outros—os pares, os superiores,

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a Igreja — da legitimidade da sua linhagem, do seu nome,


do seu senhorio. Ora, foi na cultura folclórica, nas suas
narrativas míticas, nas lendas locais e no mundo prodi-
gioso das fadas que os milites encontraram a fonte da sua
legitimidade. E como precisavam de conferir às suas pre-
tensões a marca da duração, recorreram a clérigos capazes
de fixar por escrito estas tradições orais. Tal aristocracia
laica deu a estas narrativas uma interpretação que diferia
da atribuída pela Igreja oficial: onde os clérigos não queriam
ver, habitualmente, mais do que «superstições», sobrevi-
vências do paganismo e ilusões do Maligno, ela foi sensí-
vel, pelo contrário, aos valores positivos de um folclore que
tão bem servia os seus interesses. As fadas de que tantas
linhagens tiveram a pretensão de descender — como, por
exemplo, Melusina, para os Lusignan do Poitou e, pouco
tempo depois, de Chipre — não eram demónios súcubos se
não na cultura eclesiástica; para os milites como para os
camponeses, algumas delas, pelo menos, eram boas mães,
madrinhas generosas, amantes solícitas, ainda que im-
previsíveis e ciumentas.
O renascimento das cidades é o terceiro aspecto funda-
mental deste período; acompanhou o aumento demográfico
e a renovação das trocas; permitiu a emergência de novas
classes sociais, ligadas ao comércio e ao artesanato; sob o
efeito do seu modo de vida, dos seus interesses materiais,
das suas formas próprias de organização política, a socie-
dade urbana adquiriu rapidamente valores diferentes dos
da cultura rural tradicional, assim como, por exemplo, ou-
tras atitudes em relação ao tempo. A cidade é o berço da
modernidade. Mas a cultura urbana não podia nascer do
nada; com os seus primeiros habitantes, imigrados dos

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campos, a cidade recolheu, para as transformar, formas de


pensar e de crer, lendas de que fez os seus próprios mitos
fundadores, rituais que desempenharam novas funções
nos bairros, nas paróquias e nas confrarias urbanas ou na
vida pública de toda a cidade. E o caso de certas mascaradas
anuais; existiam já na cultura camponesa, mas certamente
sob formas menos fixas; introduzidas na cidade, transfor-
maram-se aí sob o efeito das hierarquias e dos interesses
próprios da sociedade urbana e de uma separação mais
fortemente marcada do tempo de trabalho e do tempo de
festa. E necessário, por conseguinte, insistir nas perma-
nências mas também nas inovações de um folclore urbano
que se afirmou na Baixa Idade Média e levou também os
detentores do poder, eclesiásticos e, por vezes, laicos, a
deslocarem o ângulo de ataque contra as «superstições», a
procurarem novos motivos para a sua condenação.
Estas transformações materiais, sociais e ideológicas
abalaram fortemente o poder tradicional da Igreja. A sua
riqueza material continuava a ser considerável, e a infl uên -
cia política dos bispos junto do rei não foi imediatamente
posta em causa. Mas os clérigos, que tinham desde sempre
o papel de conceber idealmente a ordem social, descobriam
pela primeira vez a distância que separava os seus sonhos
e as realidades; não precisaram de muito tempo para com-
preenderem que o belo esquema hierárquico das três or-
dens (no topo, aqueles que rezam, depois os que guerreiam,
em seguida a massa que trabalha para alimentar as duas
ordens superiores), criado na viragem do ano 1000 por um
punhado de bispos empenhados em reagir à primeiras
quebras do corpo social, não reflectia a diversidade das
condições sociais; nenhuma das ordens formava um corpo

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homogéneo, e as classes urbanas privilegiadas, os «burgue-


ses», impunham-se cada vez mais como um quarto pólo,
irredutível aos três outros.
Enfraquecida pelo conjunto das mutações da época, a
Igreja não podia manter a sua posição na sociedade se não
infiltrando-se nestas células novas, em particular nas ci-
dades. Pela primeira vez na sua história, interessou-se
verdadeiramente pelos laicos; já não era possível ver neles
somente uma massa informe, inculta e «iletrada»; foi ne-
cessário adaptar a linguagem da Igreja a cada grupo par-
ticular, a cada status: as mulheres, os homens, os rapazes
e as raparigas, os artesãos e os camponeses, os cavaleiros,
etc. Além disso, surgiu o interesse por cada indivíduo, pela
sua personalidade, pela sua história individual; a eficácia
da «cura das almas» tinha este preço. Em matéria de «su-
perstições», os clérigos fizeram, assim, descobertas ines-
peradas. Nas redes das suas visitas pastorais, das suas
digressões de pregação ou das suas inquisições, trouxeram
uma massa de informações de uma riqueza sem preceden-
tes sobre as lendas, as crenças, os rituais. Mas a sua ati-
tude não foi uniforme; é preciso fazer distinções consoante
as épocas e as categorias do clero.
No século XII, sobretudo, muitos clérigos sucumbiram
ao encanto do maravilhoso e agiram, ocasionalmente,
como «etnólogos», além de juízes; o historiador deve-lhes
testemunhos precisos e em primeira-mão que se sobrepõem
à repetição incansável de condenações que caracterizava,
até então, a literatura eclesiástica. E - s e surpreendido,
com efeito, por uma espécie de permeabilidade ao folclore
de uma parte, pelo menos, da cultura clerical, especial-
mente no século XII, mas em círculos bem determ i nados do

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clero; meios monásticos, que, no campo, estão em contacto


quotidiano com a pequena nobreza local dos milites; con-
tra estes, os monges defendem as suas terras mas também
esperam deles novos aderentes e doações de terras; no
Livro dos Milagres, escrito entre 1134 e 1155, o abade de
Cluny, Pedro, o Venerável, apresentou numerosas narra-
tivas respeitantes a linhagens borgonhesas da vizinhança,
em particular narrativas de fantasmas; mas não se trata
aqui de qualquer «superstição», aos olhos do abade, porque
os senhores defuntos aparecem ao seu herdeiro para lhe
exigir que faça piedosos legados a Cluny...
Os próprios cistercienses foram, ocasionalmente, finos
observadores; na sua abadia de Froidmont, perto de Beau-
vais, os monges brancos acolheram um jovem trovador,
Helinando, cuja celebridade era grande no século, mas que
a angústia da morte levara de repente a converter-se. En-
tre 1194 e 1197, colocando a sua arte profana ao serviço do
seu novo ideal de renúncia monástica, escreveu em fran-
cês os Vers de la mort, que parecem prefigurar o macabro
da Baixa Idade Média. Dele se conhece também uma espé-
cie de autobiografia espiritual, De cognitione sui, que
contém um importante testemunho sobre a aparição do
bando dos mortos, a familia Hallequini. Outro cisterciense,
Geoffroy d'Auxerre, que foi, aliás, o biógrafo de São Ber-
nardo, inseriu no seu Comentário sobre o Apocalipse uma
versão da lenda de Melusina, a narrativa da fada—serpen-
te de Langres. Deve citar-se também a obra narrativa e
didáctica do cisterciense renano Cesário de Heisterbach
(Dialogas miraculorum, c. 1220), cujas narrativas respei-
tam essencialmente às regiões do Reno Médio, m a s c o m al-
gumiis incursões no domínio francófono.

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As cortes principescas atraíam, a título de conselheiros


ou de escribas da chancelaria, clérigos que, por só-terem
recebido, em geral, as ordens menores (e não o sacerdócio),
se situavam mais facilmente entre a cultura da Igreja, que
tinham assimilado, e a dos laicos, de que se mantinham
próximos e os fascinava. A corte anglo-normanda, sob a di-
nastia dos Plantagenetas, foi sob este aspecto um brilhante
cadinho, tanto mais que o círculo real era «internacional»:
encontra-se aí Giraud de Cambrie, de origem gaulesa, au-
tor, entre outras obras, de um quadro geográfico e etnográ-
fico da Irlanda, a Topographia Hiberniae; o seu compa-
triota Gauthier Map incluiu nas suas Facécias da Corte
(De nugis curialium), entre numerosas lendas gaulesas,
algumas narrativas respeitantes aos domínios continental s
do seu senhor Henrique II, rei de Inglaterra e duque da
Normandia (1154-1189). O arcediago de Londres, Pedro
de Blois, provinha, por sua vez, de França. O inglês Ger-
vásio de Tilbury foi durante algum tempo muito próximo
do príncipe Henrique, o Jovem; após a morte deste, tornou-
- s e íntimo do rei da Sicília, Guilherme II, depois do impe-
rador Otão IV de Brunswick. Foi a este último que dedicou
as Otia imperialia (Recreações Imperiais), cujo livro III é
uma recolha de mirabilia, narrativas maravilhosas respi-
gadas pelo próprio autor durante as suas numerosas des-
locações; na Sicília, especialmente, mas também no reino
de Aries, ou seja, na Provença e no Delfinado. Citemos, por
exemplo, a história da dama do castelo de Espervel, na dio-
cese de Valence; tinha o hábito de sair da igreja antes do
fim da missa; no dia em que o marido, intrigado e impa-
ciente, a reteve à força, «quando o padre pronunciou as pa-
lavras da consagração, a dama, erguida por um espírito

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diabólico, começou a voar, levando consigo uma parte da


capela para o precipício; depois nunca mais foi vista nesta
região. Mas a parte da torre onde a capela estava construída
ainda hoje subsiste e serve de testemunho».
Gervásio de Tilbury mostra-se fascinado por esta Me-
lusina provençal, cujo carácter diabólico não lhe oferece,
porém, qualquer dúvida. E que, na transição dos séculos
XII e XIII, o tom começa a mudar. Nas escolas urbanas liga-
das aos capítulos das catedrais, em Laon, Chartres ou
Paris, a reflexão teológica, em particular sobre as «supers-
tições», intensifica-se: é o caso, em Chartres, com Gui-
lherme de Conches (m. c. 1154), depois com o bispo João de
Salisbúria (m. 1180) e, em Paris, com Pedro Lombardo,
que morreu bispo em 1160, Pedro, o Chantre, encarregue
da escola Notre-Dame até à sua morte, em 1197, Alain de
Lille, teórico da pregação e da confissão, que atribui tam-
bém uma importância considerável às «superstições» nas
suas obras. No início do século seguinte, nasce em Paris a
Universidade; é aí que se formam ou ensinam Guilherme
de Auvergne, bispo de Paris de 1228 a 1249, uma multidão
de pregadores das ordens mendicantes, o próprio Tomás
de Aquino, cujo papel na teoria das «superstições», a par-
tir do século XIII, foi decisivo.
Através da obrigação da confissão auricular anual
— decidida pelo cânone 21, Omnis utriusque sexus, do con-
cílio de Latrão IV, em 1215 —, os padres obtiveram, na
mesma época, como vimos, um meio de controlo pessoal,
íntimo, de cada fiel. Os seculares foram auxiliados e, por
vezes, suplantados nesta tarefa pelas milícias do papa for-
madas pelos r eligiosos mendicantes, franciscanos e domi-
nicanos; verdadeiros profissionais da penitência e da pre-

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gação, são também eles, como se sabe, que vão, a partir de


1222-1233, em virtude de um mandato recebido directa-
mente do papado, estabelecer o novo procedimento da In-
quisição.
A partir de então, entre a curiosidade «etnológica» e a
intenção repressiva, o equilíbrio é rompido. Disso podere-
mos convencer-nos seguindo os passos, através da região
lionesa, do Jura e da Borgonha, do dominicano lionês
Etienne de Bourbon (m. c. 1261), pregador e inquisidor,
autor de uma recolha de exempla para uso dos pregadores
onde abundam as referências a «superstições» respigadas
da vida quotidiana; ou ainda através do bispo de Paris,
Guilherme de Auvergne, que relata nas suas obras de teo-
logia prática, o De Universo e o De legibus, costumes
«supersticiosos» da sua província natal. As superstições
camponesas tornaram-se incompreensíveis para estes re-
ligiosos, formados e vivendo na cidade e já não pensando
se não de acordo com as categorias bem definidas do direito
canónico ou da teologia escolástica.
Se considerarmos os textos teóricos, canónicos ou teoló-
gicos, o material que serviu de base aos clérigos dos sécu-
los XII e XIII para conceberem a noção de superstição em
nada mudou; os mesmos textos de Agostinho, de Martinho
de Braga ou de Isidoro de Sevilha, assim como os mesmos
cânones dos concílios da Alta Idade Média, continuam a
ser o fundamento de «autoridades» que sustentam a lei da
Igreja e as verdades da razão teológica. O que muda, em
contrapartida, é o quadro formal em que estes textos pas-
sam a ser inseridos; o confronto sistemático de textos e ar-
gumentos, o pôr em causa da sua respectiva validade, a ex-
ploração de todas as suas implicações práticas e teológicas.

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Após os primeiros esforços dos canonistas da primeira


metade do século xii para unificar o direito canónico — os
de Ivo de Chartres, em particular —, Graciano publicou
em Bolonha, em 1140, o seu Decreto, que se manteve como
núcleo duro do direito da Igreja até ao início do século xx.
A Causa XXVI da segunda parte do Decreto faz a síntese,
em sete questiones, de tudo o que respeita às «supersti-
ções». Que são os sortilégios e as adivinhações? O sortilé-
gio é um pecado? Quais são os géneros de adivinhação?
Quais são a natureza e o poder dos demónios? Os que dei-
tam sortes e os adivinhos devem ser excomungados? Se o
foram por um bispo, um padre pode reconciliá-los com a
Igreja contra a vontade deste bispo? Uma penitência esca-
lonada no tempo pode ser prescrita a um moribundo?
Mesmo as três últimas perguntas baseiam-se em decisões
conciliares ou pontifícias da Alta Idade Média, mas a sua
formulação traduz preocupações novas para a Igreja;
dizem respeito à disciplina e à autoridade no seio da
hierarquia eclesiástica, concebida como uma máquina de
conquista do corpo social, aos critérios e à duração da ex-
comunhão, ao cuidado pessoal do confessor em relação aos
moribundos e às suas possibilidades de salvação, à aten-
ção particular a esta forma de prolongamento da vida ter-
restre que são as provações do Além, naquilo que está em
vias de se tornar o Purgatório.
Longe de permanecer somente teórica, a reflexão teoló-
gica e canónica sobre as «superstições» foi de imediato
posta em prática graças às transformações contemporâ-
neas do sacramento da penitência. Ainda antes e, sobretudo,
depois do concílio de Latrão IV sobre a penitência, multi-
plicnnim sr manuais para uso dos confessores, os quais,

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JEAN-CLAUDE SCHMITT

verificando o carácter ultrapassado da antiga penitência


tabelada, propunham novos meios de interrogar o peni-
tente, de penetrar nas suas intenções secretas, de provocar
a sua confissão, sendo este o caso, em particular, no que
respeita às «superstições». Vê-se isso, por exemplo, no
Líber poenitentialis de Alain de Lille ou, ainda, na quinta
Distinção do De penitentiis de Tomás de Chobbam consa-
grada aos «sortilégios e venenos».
A reflexão teórica e as suas implicações práticas, jurídi-
cas e penitenciais atingiram um novo plano na Universi-
dade de Paris, em meados do século xiii, com São Tomás de
Aquino. A concepção tomista da «superstição» depende
amplamente de Santo Agostinho, tanto quanto ao vocabu-
lário usado como às definições gerais. Mas, na Suma Teo-
lógica (Secunda Secundae, liv. VIII C sq.), Tomás de
Aquino apresenta uma visão mais restritiva da «supersti-
ção» e, portanto, um julgamento mais duro em relação
àqueles que dela se tornam culpados.
Para Santo Agostinho, as «superstições» estavam em
toda a parte, à medida da suposta omnipresença dos demó-
nios e das sobrevivências do paganismo antigo. Para ele,
o vício da «superstição» opunha-se tanto por defeito (quando
o culto prestado a Deus é indigno deste) como por excesso
(no caso da idolatria) à «virtude da religião». São Tomás
não conserva se não o excesso, sob as formas (species) da
idolatria, da adivinhação e da observação dos sinais e dos
tempos. Simultaneamente, embora retenha a ideia augus-
tiniana de comunicação com os demónios, dá à noção de
«pacto» um significado muito mais claro e forte; distingue,
com efeito, o «pacto tácito» com os demónios, simples coni-
vência do pecador leviano que não se precaveu suficiente-

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HISTÓRIA DAS SUPERSTIÇÕES

mente contra as maquinações diabólicas, e o «pacto


expresso» daquele que invoca conscientemente o Diabo.
Esta distinção era produto da evolução, havia um século,
de uma teologia moral que não cessara de insistir sobre a
importância da responsabilidade e das intenções do peca-
dor. Deixa de haver, no século xiii, fatalidade do pecado; se
alguém cai nas armadilhas do Diabo, é porque foi isso que
procurou.
Mas, ao mesmo tempo, mudavam também as conse-
quências práticas da teologia moral; o feiticeiro, a bruxa,
o mágico que fizeram com o Diabo um «pacto expresso»
deixam de ser culpados por ignorância, simplicidade ou
«rusticidade», mas antes porque são cúmplices activos de
Satã. Sobre um fundo inalterado — a concepção «ilusionis-
ta» dos ardis diabólicos ainda não é posta em causa —, o
tomismo conduziu, portanto, a um desenvolvimento consi-
derável das atitudes repressivas em relação ás «supersti-
ções» ou, pelo menos, quanto às mais graves. O conceito
clerical de feitiçaria, que a «caça às bruxas» porá em prá-
tica muito concretamente no fim da Idade Média, encontra
aqui um dos seus fundamentos teóricos.
Depois do século xiii, esta reflexão teórica prosseguiu na
Universidade de Paris segundo a via traçada por São To-
más; mas o objecto da maior parte dos debates não era
tanto a bruxaria rural — de que os inquisidores e os juízes
iam começar, aliás, a ocupar-se de muito perto — mas an-
tes a «magia negra», a alquimia e a astrologia; os maiores
sábios da época eram suspeitos, com efeito, de pretende-
rem apoderar-se dos segredos da natureza conciliando os
poderes dos demónios. E neste contexto, como se verá, que
se inserem a condenação solene pronunciada em 19 de

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JEAN-CLAUDE SCHMITT

Setembro de 1938 pela Faculdade de Teologia de Paris e os


tratados do chanceler da Universidade, João Gerson: De
erroribus contra artem magicam de 1402, De superstitiosa
dierumobseruantia de 1421, De observationedierum quan-
tum ad opera de 1425, contra o mestre Jacques Angeli, de
Montpellier, ou ainda Contra superstitionem sculpturae
leonis de 1428, contra um amuleto em forma de leão uti-
lizado pelo reitor da Faculdade de Medicina de Montpel-
lier, Nicolas Colne...
O endurecimento das posições canónicas e teológicas da
hierarquia eclesiástica ou dos grandes clérigos da Univer-
sidade encontrava ao mesmo tempo um eco, sob o aspecto
prático, na intensificação da luta contra as «superstições».
A visão dos clérigos tinha mudado; detinha-se em «supers-
tições» passadas até então despercebidas. Mas as «supersti-
ções» também já não eram sempre as mesmas, apesar de
uma aparente fixidez; as transformações da sociedade e
das condições de enquadramento do povo cristão, os próprios
êxitos da cristianização dos campos e das cidades ligavam
mais estreitamente do que no passado as «superstições» ás
formas legítimas do culto cristão.

As «crenças populares»

A partir do século xiii, pregadores (Jacques de Vitry,


Etienne de Bourbon), bispos (Guilherme de Auvergne), in-
quisidores (como Jacques Fournier, bispo de Pamiers, cuja
riqueza das investigações em Montaillou e Ariège foi

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HISTÓRIA DAS SUPERSTIÇÕES

evidenciada por Emmanuel Le Roy Ladurie) fornecem


sobre as práticas concretas testemunhos muito mais nume-
rosos e certamente mais fiéis do que no passado; nos seus
estudos e nas «disputas» universitárias, adquiriram a
preocupação do testemunho verdadeiro, da prova irrefutá-
vel; imbuídos de cultura livresca, não deixam de atribuir
grande valor ao que viram com os próprios olhos ou ouvi-
ram de testemunhas «dignas de fé». Embora os quadros
conceptuais segundo os quais julgam as «superstições»
permaneçam aproximadamente os mesmos, já não se con-
tentam com eles. As suas observações, portanto, enrique-
cem consideravelmente os conhecimentos do historiador.
Isto pode avaliar—se, em primeiro lugar, através das
múltiplas crenças e práticas relativas à adivinhação: são
estas, sem dúvida, que suscitam ainda o maior número de
condenações. Mas as diferenças são sensíveis em relação
à Idade Média: a lista dos augúrios e aruspícios pagãos não
é mais do que uma referência convencional; os pregadores
atacam mais concretamente as predições e os presságios
populares, chegando a ridicularizar por vezes a credulidade
grotesca dos espíritos considerados mais simples.
Vários pregadores — o secular Jacques de Vitry e os
dominicanos Jourdain de Saxe e Étienne de Bourbon —
contavam de bom grado o exemplum da «velha bruxa»
(vetula sortílega) que ouviu, num l. e de Maio, o cuco cantar
cinco vezes; concluiu daí, erradamente, que lhe restavam
cinco anos de vida. Mas ficou gravemente doente, e a filha
insistiu para que fizesse penitência; ela replicou que tinha
muito tempo para se confessar, pois ainda viveria mais
cinco anos. Quando já não tinha forças para dizer uma
frase inteira, limitou-se a repetir cinco vezes a palavra

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«cuco»; pouco tempo depois, incapaz de falar, conseguiu


apenas erguer os cinco dedos da mão... E foi assim que en-
tregou a alma.
Estes pregadores, homens da cidade, não podiam com-
preender a importância da «linguagem dos pássaros», em
relação à qual os etnólogos das sociedades rurais, ainda
hoje, mostram, pelo contrário, a enorme riqueza simbóli-
ca. Para Etienne de Bourbon, conceder a um cuco a pres-
ciência da hora da morte contradiz a própria ordem da
criação e tende à idolatria. Entregar-se a esta «insensata
crença» é expor-se, sobretudo, ao perigo de morrer impe-
nitente e, portanto, de ser condenado ao Inferno.
O mesmo pregador ataca ainda mais duramente os adi-
vinhos que pululam nos campos; para ele não passam de
charlatães «que nada sabem das coisas futuras», como
aquela «pobre velha» (pauper vetula) que «se tornou adivi-
nhadora» com a cumplicidade do filho; este roubou os bois
de um camponês e escondeu-os numa densa floresta;
depois foi dizer ao camponês que conhecia uma adivinha-
dora excelente (óptima divina) que saberia indicar-lhe
onde se encontravam os animais. O êxito da sua diligência
garantiu em toda a vizinhança a reputação da velha
mãe... A fraude não é menos evidente no caso daquela mu-
lher da qual um padre não conseguia afastar os seus paro-
quianos; predizia o futuro dos doentes examinando a
extensão e os «pontos» dos seus cintos; para a confundir, o
padre, que era bastante gordo, mandou levar-lhe o seu
cinto; a velha pensou que se tratava de uma mulher
grávida, cujo parto iminente previu... Para Etienne de
Bourbon, os adivinhos não passam de enganadores mesqui-
nhos, de que se deveria rir caso não pusessem em perigo a

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alma dos cristãos e não os desviassem do ensino dos pa-


dres. Mas o verdadeiro enganador, aquele que detém um
saber real e representa o maior perigo, é o mestre das ilu-
sões, o Diabo.
Meio século mais tarde, a forma como Jacques Fournier
considera os adivinhos de Ariège é muito diferente; como
não são eles, mas os heréticos, que pretende, acima de
tudo, perseguir, limita-se a relatar o que se diz dos adivi-
nhos, sem emitir juízos nem troçar das suas pretensões de
predizer o futuro. Como bom investigador, anota tudo,
tendo o seu testemunho sobre as práticas reais um extraor-
dinário valor documental . Eis, por exemplo, como Arnaud
Sicre, de Ax, falou a um inquisidor da sua visita a um «adi-
vinho sarraceno»:

«Na manhã seguinte, uma criança conduziu—me a


casa do adivinho; saudei-o da forma habitual e disse-
—lhe que devia saber por que razão eu tinha vindo.
Ele disse-me: «Eu sou Deus?» Respondi-lhe que ou-
vira dizer que ele sabia, quando as pessoas chega-
vam, a que propósito tinham vindo. Combinei um
preço de dois soldos para aquela adivinhação, e ele
pegou num livro em árabe, que pousou sobre o chão
de terra. Colocou-se ao lado do livro, mandou-me
sentar do outro lado e estendeu-me uma varinha de
madeira quadrangular com o comprimento do dedo
do meio da mão, tendo um cordel inserido numa das
extremidades. Havia sobre a varinha duas linhas
transversais que formavam a figura seguinte [aqui,
falla o desenho no manuscritol. Depois disse-me
que, enquanto ele lesse o livro, mantivesse a varinha

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suspensa pelo cordel por cima do livro, o que eu fiz. E,


então, embora segurasse com muita firmeza a vari-
nha para que não se movesse enquanto o adivinho lia,
ela agitava-se fortemente. Ele leu durante um
momento o livro, sobre o qual colocara um pedaço de
roupa da pessoa cujo destino se interrogava, depois
disse-me para deixar cair a varinha sobre o livro. E,
por muito lentamente que deixasse cair a varinha
sobre o livro, ela não permanecia lá, mas saltava
quando tombava sobre a página, ora à altura de um
palmo, ora de dois, ora de três, o que achei admirável.»

Em seguida, o adivinho falou. Disse-lhe, antes de mais,


que ele era casado; tendo o outro exclamado que não era
verdade, o adivinho reconsiderou habilmente a questão;
havia quem estivesse naquele preciso momento, afirmou,
a arranjar—lhe uma mulher... O adivinho deu—lhe também
notícias da tia e da irmã, afirmou que um sortilégio fora
lançado sobre o gado de Guillemette Maury, razão pela
qual os animais morriam, etc. No fim, Arnaud de Sicre
apreciou, ele próprio, o valor das informações que o adivi-
nho lhe dera:

«Tendo obtido estas respostas, paguei-lhe um soldo


dizendo-lhe que, em relação a metade das perguntas
que lhe fizera, ele não tinha dito a verdade, e fui-me
embora.»

O recurso aos adivinhos não implica necessariamente


uma credulidade cega: Guillemette, acerca de quem Arnaud
Sicre interrogara o adivinho, diria um pouco mais tarde

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que deixara de acreditar nos adivinhos desde que um lhe


predissera tudo ao contrário do que acontecera! Ao invés,
no momento de partir em viagem, o herético Pierre Maury,
de Montaillou, mostra-se inquieto devido à predição do
seu vizinho, o bruxo Galia; este, pegando-lhe no sapato,

«fez medições com este sapato desde a lareira até


à porta de casa do herético. E, segundo dizia o
bruxo, fazendo tal medição com o sapato, se todo o
sapato ou a sua maior parte, na última medição,
saía da porta de casa, isso significava que, se o
herético partisse, não regressaria; mas, se metade
ou todo o sapato ficassem para cá do limiar, isso
significava que, caso partisse, haveria de regres-
sar».

Ora, o sapato inteiro, ou a sua maior parte, ultrapassara


o limiar; o herético teve medo, pediu conselho e disseram-
—lhe:

«Não vos inquieteis com esses feitiços: não têm va-


lor algum.»

Por fim, partiu e, efectivamente, foi preso durante


aquela viagem...

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O desvio das práticas legítimas

Não se tratava já, nos séculos xiii e xiv, de condenar,


como no passado, as «sobrevivências» mais excessivas do
paganismo antigo; doravante, era no próprio seio das prá-
ticas legítimas que se tornava necessário perseguir as «su-
perstições», no espaço da igreja e do cemitério, na prática
dos sacramentos, ou ainda no limite, frequentemente
transposto pelos laicos, de um domínio do sagrado que os
padres desejavam reservar para si próprios.
Neste contexto, a luta contra as «superstições» relativas
ao tempo e ao espaço conheceu uma nova acuidade. Isto
verifica-se, é claro, na repetição das antigas prescrições
respeitantes ás calendas de Janeiro. Mas também na mul-
tiplicação de novos interditos, por exemplo a propósito da
vigília de São João, na noite de 24 de Junho; num sermão
para esta festa, o bispo de Paris, Maurice de Sully, vitupera
«os loucos e as loucas» que, nessa noite, acendem fogueiras
rituais; como afirma também o liturgista parisiense Jean
Beleth ou, um pouco mais tarde, Jacques de Vorágine, eles
reúnem, nesse dia, ossos para os queimar e espalhar de-
pois as cinzas nos campos a fim de afastar os animais ma-
léficos. Os clérigos viam aí um gesto sacrílego, imitando os
carrascos de São João que tinham dispersado as ossadas
da sua vítima.
Os pregadores mostram-se particixlarmente preocupa-
dos em impor o respeito devido aos santos durante as vi-
gílias das respectivas festas. Ameaçam também aqueles
que não deixam de trabalhar por ocasião das festas da
Igreja ou nos domingos; Etienne de Bourbon nota que as

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pessoas simples ignoram em geral a data das festas; na


cidade, ficam a saber que é domingo ou dia de festa
somente quando repicam os sinos das igrejas ou, ao invés,
quando cessa o ruído das oficinas dos artesãos; no campo,
quando deixam de ouvir o ruído das charruas nos campos.
As recolhas de exempla abundam em narrativas de casti-
gos sobrenaturais que atingem instantaneamente aqueles
que pretendem trabalhar ao domingo; tal como um campo-
nês da região de Lyon que queria colher ervilhas no dia do
Senhor e cuja mão ficou colada à planta; teve, assim, de ir
à igreja, e a mão permaneceu inerte durante todo o dia, até
que confessou a sua falta ao pároco; de imediato, a mão
abriu-se e as ervilhas caíram diante do altar...
Encerrado na igreja e no cemitério anexo, o espaço sa-
grado constituiu também objecto de uma vigilância acres-
cida. Nas Instruções e Constituições, o bispo de Mende,
Guillaume Durand (1286-1296), proibiu nas igrejas «os
cantos, as danças, os jogos, os julgamentos, o comércio e as
assembleias». Ataca de forma particularmente forte os
«cantos diabólicos que o povo tem o costume de entoar à
noite sobre os mortos»; ao longo dos séculos xiii e xiv, per-
cebe-se nos textos, com efeito, a concorrência encarniçada
entre a cultura da Igreja e a cultura folclórica para obter
o controlo dos lugares sagrados e, especialmente, do espa-
ço dos mortos. Os clérigos interditam aí as mascaradas e
as danças dos jovens, classe etária cujo envolvimento pró-
ximo nos ritos nupciais e na geração exige precisamente
que concilie os defuntos da comunidade. Mas, para Jacques
de Vitry, a ronda das raparigas é «um círculo cujo centro
é o Diabo». Sob a direcção de uma delas, que conduz o canto
e a dança, a qual ele compara amavelmente à primeira

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vaca de uma manada, aquela que traz o badalo, as dança-


rinas «rodam para a esquerda» (in sinistram), sinal de que
correm para o castigo eterno. A condenação das danças e
das mascaradas nas igrejas e nos cemitérios proporciona-
- n o s as mais antigas referências a tal dança, confirmadas
por Etienne de Bourbon, em Roussillon, nos meados do sé-
culo XIV, e, na Provença, por outro dominicano, Jean Gobi,
um século mais tarde, duas regiões onde estes rituais fol-
clóricos se mantiveram até à época contemporânea.
Nos séculos xi-xn, aparece e multiplica-se rapidamente
a referência a práticas «supersticiosas» e sacrílegas rela-
tivas à hóstia. Como mostrou Peter Browe, estas referências
a sacrilégios eucarísticos dividem a cronologia do desen-
volvimento do próprio culto eucarístico. No século xii, o
abade de Cluny, Pedro, o Venerável (m. 1156), é o primeiro
a mencionar, no início do De miraculis, uma narrativa ma-
ravilhosa que, transformando—se, estará muito em voga
no século seguinte entre os compiladores de exempla e os
pregadores: a de um camponês de Auvergne que, para evi-
tar que as suas abelhas morressem, roubou uma hóstia
consagrada e a colocou na colmeia; quando a abriu, encon-
trou lá o Menino Jesus! Assustado, quis enterrá-lo, mas o
menino desapareceu. O camponês contou estes factos ao
pároco, que os transmitiu ao bispo de Clermont, o qual, por
sua vez, avisou o abade de Cluny. Este pôde verificar, em
seguida, que o local, atingido de maldição devido ao sacri-
légio, ficara reduzido a um deserto. Em certas versões
ulteriores da narrativa, as abelhas, símbolos vivos da pu-
reza e da virgindade, edificam uma igrejinha de cera para
a hóstia, e é nesse tabernáculo maravilhoso que o corpo do
Cristo é solenemente levado de volta para a igreja.

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Os roubos e os usos ilícitos da hostia não deviam ser ra-


ros: o cisterciense Herbert de Clairvaux (De miraculis, III,
28) fala também de um camponês que pusera uma hóstia
na pocilga «para que os porcos não morressem nem fossem
atingidos por doenças». A partir do século xiil, os clérigos
começaram a desconfiar dos usos maléficos da hóstia; é por
receio das bruxas que Thomas de Chobbam, no início do sé-
culo, recomenda aos padres, no seu manual de confessores,
que mantenham fechadas à chave as substâncias consa-
gradas. Os prelados pedem também aos padres que se
assegurem de que os fiéis que comungam engolem a hós-
tia e não a guardam sob a língua; poderiam depois tirá-la
e usá-la para fins mágicos. A perseguição mais activa dos
bruxos e das bruxas, no fim da Idade Média, dará mesmo
à acusação de sacrilégio eucarístico uma dimensão fantas-
mática: em 1461, por exemplo, segundo as Memórias de
Jacques du Clercq, um padre das proximidades de Soissons
acusado de bruxaria teria baptizado um sapo e ter—lhe—ia
administrado o sacramento da eucaristia...
Na condenação das práticas sacrílegas, o santo óleo é
frequentemente associado à hóstia. Já em 813, o concílio
de Tours e, depois, Bruchard de Worms, no seu peniten-
cial, tinham denunciado aqueles que se cobrem do santo
óleo para resistirem à prova do fogo ou do carvão em brasa
nos ordálios. Foi dada ordem ao clero para o fecharem à
chave. No auge da Idade Média, surge principalmente a
preocupação com a venda do santo óleo, de que os próprios
padres se tornam por vezes culpados. Esta prática mostra
a contrario a importância que todos reconheciam aos sa-
cramentos do baptismo e da extrema unção, assim como a
generalização das trocas monetárias mesmo na esfera

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mais sagrada da religião. Mas a circulação do santo óleo,


dom de Deus que o bispo distribuía anualmente aos páro-
cos da sua diocese, devia ser gratuita: vender o santo óleo
era maculá-lo, era também impedir que se constituísse no
seio do clero e entre clérigos e fiéis a rede das trocas sim-
bólicas que deviam cimentar a Igreja. O bispo de Mende
denuncia, portanto, aqueles que, «sob o pretexto de qual-
quer costume, pretendem vender o santo óleo quer para
baptizar as crianças quer para reconciliar os pecadores e
os doentes quer para sepultar os mortos». Ameaça também
suspender os clérigos que desviam do uso eclesiástico as
coifinhas das crianças baptizadas; piedosamente conser-
vadas, acreditava-se que favoreciam mais tarde a vida se-
xual do rapaz ou da rapariga.
Durante o mesmo período, várias formas do culto divino
se transformara, modificando de modo sensível a relação
entre o lícito e o ilícito, a «religião» e a «superstição». To-
memos dois exemplos que, participando embora de uma
mesma evolução, apresentam traços característicos inver-
sos: o ritual da «humilhação dos santos» e o culto das ima-
gens.
Patrick Geary estudou a forma e a função da «humilha-
ção dos santos» nos mosteiros de Cluny ou de Saint-Martin
de Tours, nos séculos xi e xn. Constituindo uma forma par-
ticular do C L A M O R monástico, este ritual, perfeitamente
admitido na época, visava coagir um inimigo dos monges,
em geral um senhor laico vizinho, e pôr termo à sua hosti-
lidade em relação à abadia. Para isso, os monges colocavam
no solo, diante do altar, as relíquias do seu santo patrono
assim como a cruz e os vasos sagrados. Quando o túmulo
do santo não podia ser deslocado, era coberto de espinhos,

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que recordavam a humilhação de Cristo na Paixão. Depois,


os monges entregavam-se a uma prolongada lamentação
ritualizada, amaldiçoavam a soberba do seu inimigo e to-
mavam Deus como testemunha da sua humildade. No
espírito destes monges, o ritual tinha uma dupla função:
fazer «greve» ao serviço divino proibindo o acesso do seu
inimigo à igreja, para o obrigar a reconciliar-se com eles;
constranger também o santo, cujas relíquias eram «humi-
lhadas», a interceder junto de Deus a favor dos seus servi-
dores, em suma, a assumir também ele as suas responsa-
bilidades...
Não é preciso dizer que este ritual perfeitamente es-
tabelecido, e na prática bastante eficaz, segundo parece,
devia manter-se um apanágio dos monges, sob pena de
cair nas «superstições»; um dia, os servos da abadia de
Saint-Calais-sur-Aille, cansados das exacções que lhes
eram impostas por um nobre local, vieram fazer o seu pró-
prio clamor na igreja abacial; estenderam-se diante do al-
tar, imploraram ao santo, depois, tendo retirado a toalha
de altar, dois de entre eles começaram a bater no túmulo
de pedra que continha as relíquias do santo:

«Por que não nos defendes, santíssimo Senhor?


Por que não nos libertas, nós que somos teus escra-
vos, do nosso grande inimigo?»

Sendo membros da familia do mosteiro, eles queriam


partilhar também algumas vantagens. Mas os guardas do
santuário, alertados pelo alarido, acorreram e expulsa-
ram-nos da igreja.
Isso passava-se no século xn. Mas, no século xiii, os pró-

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prios clérigos e monges começaram a duvidar do recto fun-


damento da humilhação dos santos, mesmo quando o ri-
tual era realizado segundo as regras; a violência do rito e
o carácter mágico do constrangimento exercido sobre o
santo já não pareciam convir à dignidade do culto de Deus
e dos santos; contrariavam a representação mais intelec-
tual feita pelos clérigos, que haviam passado pelas escolas
urbanas. Considerado ilícito, o uso passou por completo
para o domínio das «superstições».
No entanto, a «humilhação dos santos» não desapare-
ceu de um momento para o outro: parece que se transferiu
para outros objectos do culto, as imagens dos santos, que
assumiam doravante funções pertencentes anteriormente
às relíquias. E o que se vê na segunda metade do século xiii,
na Légende dorée de Jacques de Vorágine, que retoma
duas narrativas hagiográficas relativas às estátuas de
São Nicolau e da Virgem.
Um judeu manda esculpir uma imagem de São Nicolau,
a quem confia a guarda dos seus bens; mas, na sua ausên-
cia, os ladrões levam-lhe tudo o que tem, à excepção da
estátua. Furioso, o judeu cobre o santo de censuras, e a es-
tátua de golpes violentos. Mas, no momento em que os ga-
tunos partilham o saque, São Nicolau aparece—lhes e,
mostrando—lhe as marcas dos golpes que recebeu, persua-
de-os a devolver o produto do roubo.
Numa segunda narrativa, uma mulher cujo filho foi
capturado por inimigos censura a Virgem, dirigindo-se à
sua estátua, por não ter protegido o filho apesar da devo-
ção que tem por ela. Decide, então, tomar o Menino Jesus
como refém:

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HISTÓRIA DAS SUPERSTIÇÕES

«Aproximou-se mais e, pegando na estátua do


menino que a Virgem tinha no regaço, foi para casa,
envolveu a imagem da criança num lençol muito
branco e escondeu-a num armário que fechou cuida-
dosamente à chave, satisfeita por ter um bom refém
em vez do filho.»

Constrangida a agir, a Virgem, na noite seguinte, apa-


rece ao cativo e abre-lhe a porta do cárcere, dizendo-lhe:

«Meu filho, dirás à tua mãe para me entregar o


meu Filho, pois eu entreguei-lhe o seu.»

Tendo obtido o que pretendia, a mulher restitui o Me-


nino Jesus à estátua da Virgem.
A narrativa da troca de crianças não deixa de evocar a
crença e os rituais relativos aos «changelins», testemu-
nhados desde esta época pelos pregadores Jacques de
Vitry e Etienne de Bourbon: para explicar a doença de uma
criança, acontecia aos camponeses suspeitarem de que os
espíritos da floresta tinham substituído a criança sã por
uma criança enferma e demoníaca; um ritual devia obri-
gar estes espíritos a levarem a criança doente e a restituí-
rem a criança roubada. Ver—se—á que os clérigos conside-
raram que neste ritual existiam todas as marcas de um
culto diabólico.
No caso da estátua da Virgem com o Menino, Jacques de
Vorágine, pelo contrário, não pensa sequer estar perante
uma «superstição». O género hagiográfico e o seu cunho
maravilhoso explicam esta aparente tolerância, num
momento om que a «humilhação dos santos» e das suas
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imagens, mesmo nas igrejas, deixara de ser aceite; em


1274, o concílio ecuménico de Lyon II condenou como
«abuso e terrível falta de devoção» o costume que consistia
em colocar no solo e cobrir de espinhos a cruz e as imagens
ou as estátuas da Virgem ou de outros santos. Em finais do
século, esta interdição é retomada, palavra por palavra,
por Guillaume Durand, destinada ao seu clero, e, no sécu-
lo XIV, o franciscano Durand de Champagne, tratando dos
sortilégios na Summa Collectionum, ainda recomenda
que não se rodeie o altar de espinhos.
Os usos «supersticiosos» das imagens religiosas apenas
se tornaram possíveis porque o culto legítimo destas ima-
gens conhecera, a partir do ano 1000, um formidável de-
senvolvimento nas igrejas do Ocidente. No decurso da Alta
Idade Média, a tradição que remontava ao papa Gregório
Magno e confirmada pelos carolíngios (em oposição ao
culto dos ícones restabelecido na Igreja Bizantina no fim
da crise iconoclasta) tendia a limitar o papel das imagens
à instrução dos «iletrados», dos laicos que ignoravam o la-
tim e não tinham, portanto, acesso directo às Escrituras.
A imagem não passava de um substituto da escrita. Mas,
po volta do ano 1000, o culto das relíquias conheceu uma
espécie de prolongamento nas imagens dos santos. Estas
últimas começam a ser acompanhadas de estátuas, ima-
gens em três dimensões, nas quais eram incorporados pe-
daços de corpos santos, atraindo para a imagem as formas
de devoção e a expectativa do milagre que caracterizavam
até então o culto das relíquias. O Maciço Central foi um dos
focos desta transformação; subsistem ainda hoje, entre
outros testemunhos, a estátua-relicário de Santa Foy, em
Conques, e também o Livro dos Milagres da peregrinação.

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HISTÓRIA DAS SUPERSTIÇÕES

A execução da estátua-relicário, o aparecimento da peregri-


nação e a redacção desta obra são factos contemporâneos:
datam da viragem do ano mil.
Ora, apesar de os monges do mosteiro serem, evidente-
mente, os principais defensores e os grandes beneficiários
deste culto, a estátua de Santa Foy, a sua posição no cen-
tro do santuário, o esplendor dos seus ouros e dos seus
olhos cristalinos, as invocações que lhe dirigia a multidão
de peregrinos, tudo isso não deixava de inquietar outros
clérigos, vindos do Norte e ignorando estes costumes;
quando Bernardo de Angers, formado na escola de Ful-
berto de Chartres, foi pela primeira vez a Conques com o
seu companheiro Bernier, não duvidou de que os rustici
daqueles lugares selvagens adoravam um ídolo comparável
aos ídolos antigos de Júpiter e de Marte. Somente a fama
dos milagres autênticos que se produziram diante da está-
tua e as aparições tranquilizadoras da própria santa o fi-
zeram mudar de opinião e o levaram a pôr a sua escrita ao
serviço daquele culto. Mas sente-se que está ainda hesi-
tante: quando os monges levaram a estátua em procissão
para reivindicar uma terra que lhes é disputada por um
nobre da região, admite que este costume «pode parecer
supersticioso»...
O desenvolvimento considerável do culto das imagens
em três dimensões, do século xii ao século xiii, varreu ra-
pidamente os últimos escrúpulos de certos clérigos, tanto
mais que os heréticos, desde o início do século xi, tinham
usado este culto como pretexto para acusarem de idolatria
os próprios sacerdotes; em 1025, o bispo Gérard de Cam-
bra i defendeu contra os heréticos de Arras a legitimidade
das imagens cristãs, e, no século seguinte, a polémica com
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os judeus — defensores resolutos da iconoclasia do Antigo


Testamento — reforçou ainda mais as convicções do clero.
Para a Igreja, a «superstição» pertencia, doravante, ao âm-
bito do iconoclasmo herético (como seria o dos huguenotes)
ou das bonecas e estatuetas de cera e de pano utilizadas em
feitiços pelos bruxos.
Mesmo para além das relíquias e das imagens, todo o
desenvolvimento do culto dos santos suscitava—à medida
do controlo cada vez mais estrito que a hierarquia eclesiás-
tica entendia impor—lhe — novas .formas de «supersti-
ções». André Vauchez mostrou como o papado instituiu,
durante o século xii, um procedimento institucional inédito
para «fazer» santos: os processos de canonização, funda-
mentando-se num inquérito oficial e submetendo a santi-
ficação ao exame exclusivo da Cúria Pontifícia. A favor
deste procedimento, observa-se paralelamente, nos crité-
rios de decisão da hierarquia, um desfavor crescente
quanto aos milagres que o candidato à santidade teria
realizado em vida; os próprios milagres post mortem impor-
tam menos do que a vida virtuosa do futuro santo: os méri-
tos, e não os milagres, são considerados os sinais mais se-
guros da santidade.
Excluído, pouco a pouco, dos critérios oficiais da santi-
dade, o milagre tornou—se, ao mesmo tempo, o discurso
teológico, uma categoria intelectual mais precisa, objecto
de definições e de discussões cada vez mais rigorosas, que
reduziam, de facto, o seu campo de aplicação. Assim, São
Tomás distinguia três tipos de milagres: supra naturam,
contra naturam, praeter naturam. Mas querer circunscre-
ver, a qualquer preço, o sobrenatural não é abrir a porta à
dúvida?

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O milagre e a aspiração ao milagre, não sendo rejeitados


pela cultura oficial da Igreja, viram—se, pouco a pouco,
marginalizados e despertavam suspeitas. E o que se pode
verificar nos inquéritos de canonização: a Forma interro-
gandi redigida no tempo de Gregorio IX, em 1232, revela
preocupações no que respeita às fórmulas encantantórias
que a personagem supostamente santa poderia ter pro-
nunciado no momento da realização de um milagre. «Quem
foi invocado e com que palavras?», devem perguntar os in-
quisidores. Era preciso ter a certeza de que o Diabo não es-
tava envolvido...
A selecção draconiana à qual "a Igreja submete os candi-
datos à santidade fica estabelecida, a partir do início do
século XII, no Tratado das Relíquias do monge Guibert de
Nogent. Este efectua uma crítica rigorosa das tradições
hagiográficas. Não poupa os monges que, por ignorância
ou cupidez, afirmam que conservam relíquias do Cristo: os
de Saint—Médard de Soissons dizem que possuem um
dente de leite; outros pretendem que têm pão que o Se n 11 o r
mastigou... Mas a verdadeira, a única «relíquia» de (Y i:; I o
não é desta natureza: segundo as palavras do próprio
Jesus, que Guibert recorda, é sacramental, é a hóstia con-
sagrada. Também os laicos se mostram excessiva me ule
dispostos a reconhecer santos por toda a parte: por ter
morrido dois dias antes da festa da Páscoa, o filho de um
cavaleiro foi venerado como um santo pelos campones< d a
região, que começaram a prestar-lhe um culto, a edificar
um túmulo e a conduzir ali os doentes... Toda a gen te, n o I a
Guibert, em particular as mulheres idosas, querem um
santo patrono para venerar: e o clero, quando não é ene,a
nado, cala se!...
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Mas esta ânsia confusa de santidade não mostra que a


cristianização fez a sua obra? Os homens mais «supersti-
ciosos» são declaradamente cristãos; a época já não é de
conversão dos pagãos. Em contrapartida, aquilo que a hie-
rarquia agora receia, por vezes em certos clérigos mas so-
bretudo no rebanho dos fiéis quando este fica entregue a
si próprio, é o objecto erróneo da devoção e a falta de
garantia, de marcas de autentificação do culto. Até ao fim
da Idade Média, e ainda muito depois, a autoridade ecle-
siástica descobrirá com estupefacção, por ocasião de uma
visita pastoral ou de uma inquisição, casos de cultos
«selvagens» de santos locais, que só para ela eram motivo
de escândalo.
Em meados do século xiii, o dominicano Étienne de
Bourbon, exercendo simultaneamente as funções de pre-
gador e de inquisidor na região de Dombes, a cerca de qua-
renta quilómetros ao norte de Lyon, onde se encontrava o
seu convento, ouviu falar de um certo Santo Guinefort, ao
túmulo do qual os camponeses levavam as crianças doen-
tes. Deslocando-se ao local, na profundeza dos bosques, a
igual distância — cerca de quatro quilómetros — de várias
aldeias, recolheu a lenda deste santo e descobriu o culto
«diabólico» que lhe era prestado: os camponeses contavam
que este santo era um galgo que salvara das mordidelas de
uma serpente o filho do seu dono; mas este, ao matá-lo in-
justamente, fizera dele um «mártir». No local desertifi-
cado do castelo, que sofrera por este crime a maldição di-
vina, os camponeses iam venerar este «mártir» e levar ao
seu túmulo as crianças doentes; ali, passavam a criança
entre os troncos de duas árvores, deixavam-na nua rodeada
de velas, depunham as suas oferendas, depois afastavam-
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- s e durante um momento; quando voltavam, pegavam de


novo na criança para a submeter a uma espécie de ordálio
mergulhando-a na água gelada de um rio que ficava perto,
o Chalaronne. Das duas uma: ou a criança morria ou en-
tão ficava definitivamente curada. Este rito visava, de
facto, verificar a identidade da criança: os camponeses
afirmavam que espíritos da floresta — «faunos» diabóli
cos, segundo a interpretação do inquisidor — tinham
roubado as suas crianças para as substituir por crianças
doentes, chamadas «changelins»; através do rito, os pais
esperavam forçar os «faunos» a restituírem—lhes as crian
ças sãs e a levarem as criaturas diabólicas; a imersão no rio
permitia garantir que a troca realmente ocorrera.

O inquisidor, horrorizado, agiu como São Martinho no


túmulo do malfeitor: mandou cortar as árvores, desen
terrar os restos do cão e queimar tudo antes de fazer um
sermão aos camponeses reunidos, para os convencer a
abandonarem a «superstição». Mas de nada serviu: este
culto foi de novo verificado entre o século xvii e inícios do
século XX.
Para Etienne de Bourbon — e também para muitos lol
cloristas do século xix que tiveram conhecimento do seu
testemunho —, o culto do Santo Guinefort era uma - sobro
vivência do paganismo»; alguns eruditos viram nele uma
herança longínqua de algum culto totémico celta ou mesmo
pré-histórico. Pelo contrário, mostrei nou tro sítio que, sol>
esta forma, se deve ter constituído nos séculos xi-xn, no
momento em que se estabeleceram as estruturas sociais o
o povoamento característico do período feudal. Desde es l a
época até à revolução industrial, o culto do Santo Guine for!.,
sofrendo evoluções, conheceu a longa duração da sociedade
rural tradicional.

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Tanto a lenda como o rito da cura permitem também


apreciar mais rigorosamente o que separava as «supersti-
ções» da religião legítima do clero; o culto dos santos e,
mais particularmente, dos mártires não é rejeitado pelos
camponeses «supersticiosos» como o era pelos heréticos. A
ideia da santidade e do mártir, assim como certas práticas
rituais — a colocação de velas e as oferendas —, pertencem
á cultura e aos ritos da Igreja. Mas era o uso que os cam-
poneses delas faziam que se tornava inadmissível; a come-
çar pela ideia de que um cão podia ser considerado um
santo. Alguns aspectos do culto evocavam demasiadamente
a antiga idolatria; a crença nos «changelins» assemelhava-
- s e a um pacto com os demónios. Outros apareciam como
a imitação sacrílega dos ritos da Igreja: por exemplo, a
imersão da criança no rio em relação ao baptismo. Por fim,
a ausência de qualquer edifício religioso e de qualquer
controlo da peregrinação por um clérigo deixava aos cam-
poneses a mais completa autonomia na organização deste
culto; o resultado não podia deixar de convencer o inquisi-
dor de que uma vigorosa admoestação, pelo menos, era ne-
cessária.
As razões da hostilidade eclesiástica encontram-se
também nas cartas que trocaram em 1443 o bispo de Saint-
-Papoul e o inquisidor dominicano Hugo Nigri, da província
de Toulouse, a propósito do culto «supersticioso» da fonte
de Planhes. Esta fonte, com fama de miraculosa, ficava
perto de uma capela dedicada aos santos Basílico e Juliano,
na qual os camponeses veneravam «o túmulo de um laico
desconhecido». O bispo e o inquisidor têm vários motivos
de preocupação: suspeitam de que os habitantes atribuem
uma virtude miraculosa à própria água, o não à graça

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divina, o que seria idolatría; mesmo supondo que a água


tivesse uma virtude natural, os outros aspectos «supersti-
ciosos» do culto bastariam para proibir a sua utilização sob
esta forma.

«Nada vale a desculpa falaciosa destes camponeses


que dizem: 'Oramos a São Juliano, que tem aqui a sua
capela'; não é isso que lhes censuramos, mas sim
acreditarem que as orações não servem para nada se
não beberem a água e não fizerem as abluções e as i n-
vocações nesta fonte pretensamente sagrada, o que
constitui uma injúria a São Juliano e à potência
divina.»

Para o bispo e para o inquisidor, o corpo venerado tem


todas as possibilidades de não ser o de um santo e, cm
particular, o de São Juliano ou o do seu companheiro que
«sofreram o martírio em Antioquia, não naque le lugar de
Planhes»... E o bispo recorda como São Martinho afastou
o culto prestado a um malfeitor venerado como santo.
E interessante opor o raciocínio rigoroso do inquisidor
dominicano à lógica das práticas cultuais que denuncia.
Há, segundo afirma, três aspectos a considerar: a origem
(principium) do culto, o que se faz (medium) e o fim que se
pretende (finem).
Sobre a «origem», é necessário duvidar, tendo em conta
a qualidade social daquele que, pela primeira vez, revelou
as virtudes da fonte: um simples boieiro cujo boi se ajoe-
lhou à beira da água e que pretendeu tratar-se de um
milagre... Mas, supondo que houve efectivamente um pro
dígio, pode ter sido realizado por anjos maus. Além disso,

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o boieiro estava só, sem qualquer testemunha; pode ter


contado uma «fábula»; não fala já Lactâncio de tais impos-
turas que estão na origem de certas «superstições»?
Os «meios» do falso culto são as «aspersões com espá-
tulas», as procissões em volta da fonte, as prostrações
diante do túmulo de um laico desconhecido, outras tantas
«superstições vãs, infames e intoleráveis», não oferecendo
o túmulo garantia alguma de autenticidade.
O «fim» é a busca da cura, o que seria um bem se os meios
utilizados não fossem maus. Certas pessoas objectaram
que a água podia curar naturalmente, ou que se devia to-
lerar tais práticas por caridade para com os pobres que se
aglomeram naquele lugar; mas o inquisidor recusa os seus
argumentos e desconfia de que também elas são dadas ás
«superstições».
A pedido do inquisidor, que se aconselhara com o arce-
bispo de Toulouse, o bispo decidiu remediar aquele abuso;
o acesso à fonte foi proibido, esta foi subterrada, ameaçou-
—se de excomunhão aqueles que perseverassem no erro e
«descobriram-se ainda muitos abusos artificiosos e supers-
ticiosos e muitos erros derivados deste culto». No dia de
São Miguel, o bispo celebrou solenemente a missa em Cas-
telnaudary e fez um sermão em que, comentando o Apoca-
lipse,

«falou das superstições, das ilusões e dos erros que,


segundo as Escrituras, devem surgir no tempo do
verdadeiro e misterioso Anti-Cristo e do imundo
Satã».

As «superstições» valem, portanto, como sinal escatoló-

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gico; sob as aparências de um regresso à antiga idolatria,


parecem mesmo precipitar o fim dos tempos; é necessário,
por conseguinte, derrotar os cúmplices do Anti-Cristo. Em
finais do século xv, o espectro crescente da bruxaria favo-
recia esta ambiência escatológica e convidava a uma con-
denação implacável das «superstições».

Os «restos» inassimiláveis:
o exército dos mortos e Dame Abonde

Se os clérigos perseguiam as «superstições» no seio das


formas mais bem aceites do culto cristão — o culto eucarís-
tico e o culto dos santos —, preocupavam-se também com
as tradições que lhes pareciam inassimiláveis porque com-
pletamente estranhas à religião cristã. Através da «caça
selvagem» e do cortejo nocturno de Dame Abonde, reen-
contramos aqui o culto dos mortos.
A partir do século xi, a Igreja manifestou uma vontade
muito mais forte de cristianização do culto dos mortos, es-
pecialmente no quadro da cultura monástica: entre 1024
e 1033, Cluny instituiu a festa dos Mortos, fixada em 2 de
Novembro, o dia seguinte à festa de Todos-os-Santos.
Esta celebração impôs-se muito rapidamente em toda a
cristandade. Tornou-se o ponto forte da comemoração li-
túrgica dos mortos, extremamente importante nos mostei-
ros; também para os laicos, com a instituição regular das
missas ditas pelos defuntos, esta comemoração impôs-se
como um traço central da vida religiosa.

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Na segunda metade do século xii, as crenças relativas às


penas purgatorias e, depois, do purgatorio como lugar
específico do Além integraram-se plenamente neste con-
texto litúrgico.
A crença nos fantasmas encontrou igualmente um reno-
vado interesse e uma legitimidade que perdera nos pri-
meiros séculos do cristianismo: os mortos que sofrem no
Além podiam muito legitimamente voltar para suplicarem
aos familiares que rezassem por eles, que mandassem di-
zer missas, que fizessem oferendas, a fim de aliviar e abre-
viar as suas provações no purgatório. Não é por acaso, por-
tanto, que as narrativas de aparições individuais de almas
do outro mundo se multiplicam a partir do século xn na li-
teratura, narrativas de milagres e EXEMPLA edificantes.
Mas, na mesma época, clérigos recolhem também nar-
rativas de aparições colectivas de mortos formando um
cortejo, um bando ou um exército de mortos. Emergem,
assim, na documentação escrita, tradições muito antigas
de que só existem, anteriormente, raros vestígios; Tácito,
na Germania, já as mencionava, mas muito obscuramente,
e a literatura eclesiástica não as refere antes do século XI.
Tratar-se-á aqui de uma velha tradição germânica que as
invasões da Alta Idade Média terão difundido em toda a
Europa ocidental e, especialmente, em França? Pode
também sustentar-se que o bando dos mortos remete
igualmente para as estruturas sociais da época feudal, no
momento em que se multiplicam estas narrativas de apa-
rições nos países renanos, no país de Gales, na França, na
Itália, na Espanha; assim, o exercitus mortuorum adquire
frequentemente a aparência de um bando de cavaleiros
malditos, representação invertida da hoste feudal. Este

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exército dos mortos aparece também nas encruzilhadas,


nas franjas dos territórios, naqueles limites espaciais a
que o «encelulamento» da sociedade feudal deu grande va-
lor simbólico.
Durante algum tempo, nos séculos xi—xn, a Igreja tentou
cristianizar esta crença; as narrativas de aparições, se-
gundo os clérigos, ilustram a expiação colectiva de almas
que penam, muitas vezes no próprio local dos seus peca-
dos. Em suma, um purgatório itinerante. Mas, no fim do
século XII, quando o purgatório nasceu como um espaço es-
pecífico do além, com um nome próprio, tal solução deixava
de ter razão de ser: então prevaleceram, definitivamente,
os traços diabólicos da Caça Selvagem.
Partindo dos testemunhos mais antigos, avalia—se bem
esta evolução desde o início do século xi até ao século xu.
O monge borguinhês Raoul Glaber, ou o Glabro (c. 9H5
-C.1050), conta no livro II das Histórias a visão do monge
Vulferius de Moutiers—Saint-Jean, na diocese de Lm
gres: na noite do Domingo da Trindade, viu a igreja do
mosteiro encher-se de homens vestidos de branco e pú r pu
ra, conduzidos por um bispo que se dizia «o bispo de mui
tos povos»; estas personagens afirmavam que vinham na
quele dia partilhar a celebração litúrgica dos monges. A
Vulferius, admirado pela presença deles, explicaram que
eram cristãos mortos na guerra contra os Sarracenos; ea
minhando para o reino dos eleitos, faziam uma paragem
naquela região para que se lhes juntassem alguns com
panheiros. E, com efeito, o bispo deles, quando o ofício reli
gioso terminou, mandou dar o beijo da paz ao monge
Vulferius, que compreendeu que não viveria muito mais
tempo...
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Raoul Glaber também conta que, na noite de um do-


mingo de 1014, um padre, quando olhou pela janela, viu
um exército de cavaleiros que vinha do Norte e se dirigia,
em ordem de batalha, para o Ocidente. Chamou-os, mas
eles desapareceram. Também neste caso, o padre, banhado
em lágrimas, compreendeu que morreria nesse ano. Quanto
a estas aparições fantásticas, Raoul Gláuber não se pro-
nuncia: conservam, para os leitores, a sua ambivalência
misteriosa...
Cerca de um século mais tarde, à porta do priorado al-
saciano de Sainte-Foy de Sélestat, um cavaleiro vassalo
dos Staufen (protectores do mosteiro) teve uma visão se-
melhante: vislumbrou um grupo de peregrinos todos de
branco vestidos, depois um bando de cavaleiros completa-
mente vermelhos; um destes últimos fez-lhe saber que os
brancos eram mortos em estado de pecado, mas que as ofe-
rendas feitas a Santa Foy os salvara das penas do Inferno;
os vermelhos, pelo contrário, mortos impenitentes em
combate, seriam precipitados nessa mesma noite «numa
montanha perto de Nivelles». Quando a aparição se desva-
neceu, o cavaleiro marcou o local com uma pedra e apres-
sou-se a fazer penitência.
A partir desta época, noutros textos, o carácter diabólico
do exército dos mortos é muito mais acentuado. Na Histó-
ria Eclesiástica, escrita por volta de 1140, Orderic Vital re-
lata com todo o pormenor a aparição, a um padre normando
chamado Guachelme, do exército dos mortos, designado
pela primeira vez familia Herlechini, o «clã Hellequin».
Isto ocorreu em 1091, no primeiro dia do ano, momento que
suscitava havia muito tempo a desconfiança da Igreja em
relação às «supesrtições»; o início do ano era, em particular,

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um momento privilegiado para a aparição dos mortos. Na-


quela noite, o padre da igreja de Bonnevaux viu passar à
sua frente um exército aterrador, conduzido por um gi-
gante que o ameaçou com uma enorme maça; personagens
a pé seguiam-no, lamentando-se; o padre reconheceu, en-
tre estas, algumas pessoas mortas recentemente. Depois
vinham padiolas sobre as quais estavam sentados anões
com enormes cabeças: dois «etíopes» diabólicos trans-
portavam uma trave sobre a qual um demónio torturava
um miserável, um criminoso que o padre igualmente reco-
nheceu. Seguia-se um bando de mulheres a cavalo, horri-
velmente torturadas, e que ele também conhecia. Depois
vinham os clérigos e os monges negros, que lhe suplicaram
que rezasse por eles. Atrás, vinham os cavaleiros, transpor-
tando estandartes negros e parecendo apressar-se para a
batalha; ao vê-los, Guachelme compreendeu que estava
perante o «clã Hellequin»: muita gente lhe dissera que o ti-
nha visto, mas ele não acreditara... O padre quis deter um
dos cavalos, mas os arreios queimaram-lhe a mão, e o ca-
valeiro tê-lo-ia matado se Guachelme não invocasse a
Virgem e se não surgisse, para o proteger, um novo
cavaleiro; este dá-se a conhecer, é o irmão do padre, a
quem pede que reze por ele para o subtrair, nesse ano, ás
provações.
Depois desta aparição, o padre ficou doente, mas viveu
ainda quinze anos. O autor conheceu-o e pôde ver as suas
horríveis queimaduras...
No século XII, as referências ao «clã Hellequin» multipli-
cam-se, especialmente em França; no continente, Gau-
thier Map menciona estas aparições no Maine e na «Pe-
quena Bretanha» (Armórica); o cisterciense Hélinand de

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Froidmont recolheu um testemunho semelhante em


Orléans:

«O povo afirma que as almas dos mortos, lamen-


tando os seus pecados, têm o costume de aparecer
com as suas vestes de vivos: os camponeses vestidos
de camponeses, os cavaleiros vestidos de cavaleiros
[•••]»

Um pouco mais tarde, Gervásio de Tilbury menciona as


mesmas tradições na «Grande e Pequena Bretanha» e na
Catalunha; a aparição ocorre com frequência nas flores-
tas, ao meio-dia ou no início da noite, quando está Lua
Cheia.
Noutras narrativas, o rei Artur (que, segundo a lenda,
sobrevivera na ilha de Avalon, para onde, ferido, tinha
sido transportado pela fada Morgana) tende a substituir
Hellequin à cabeça do bando fantástico dos caçadores e dos
cães; Etienne de Bourbon revela esta hesitação quando
transcreve a designação «popular» do exército dos mortos:
familia Allequin vulgariter vel Arturi. Está fora de ques-
tão, para ele, considerar que se trata de um «purgatório iti-
nerante»; a rejeição está já consumada, e a «Caça Selva-
gem» é interpretada como um bando diabólico que abusa
da gente simples. Um camponês que transportava lenha
nas encostas do monte Chat, na Sabóia, viu-se arrastado
pela «família de Artur» até ao interior da montanha,

«para um enorme e muito nobre palácio, onde


senhores e damas tocavam e dançavam, comiam
manjares excelentes e bebiam; no fim, disséram-
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- l h e para ir deitar-se, sendo conduzido para um


leito coberto dos mais preciosos ornamentos e no
qual repousava uma dama de maravilhosa beleza;
tendo entrado no leito e adormecido, acordou de
manhã vergonhosamente deitado sobre a lenha e
muito bem enganado».

Para o pregador, a utopia de um reino arturiano que


tem todas as características de um país de Cocanha é in-
compreensível; para ele, a narrativa ilustra, pelo contrá-
rio, o domínio dos demónios sobre os espíritos incultos e
atormentados pelos desejos da carne.
Desta forma, Etienne de Bourbon contribuiu para duas
transformações essenciais relativas ao exército dos mor-
tos: este já não é mais do que um exército de demónios e,
embora continue móvel, fica ligado a um local fixo e central
de deboches sexuais e diabólicos. Foi através de tais mu-
danças que se formaram, pouco a pouco, entre meados do
século XIII e o século x v , a imagem e o conceito do sabat das
bruxas.
As novas representações da bruxaria alimentaram-se
também de outra crença e de outra tradição narrativa: as
que respeitavam aos espíritos «femininos» da abundância
doméstica. Dispomos, sobre o assunto, de vários testemu-
nhos valiosos. Prolongam a tradição dos textos eclesiásti-
cos que, do cânone Episcopi ao Decreto de Graciano e ao
Polycraticus do bispo de Chartres, João de Salisbúria, de-
nuncia a crença no voo nocturno de certas mulheres em
companhia de Diana ou de Herodíade. Mas, a partir do
século XII, outros textos permitem compreender melhor as
realidades abrangidas pelas fórmulas anteriores, dema-
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siado rígidas: a sua convergência mas também a sua diver-


sidade atestam a difusão de tais crenças assim como a
independência destes documentos uns em relação aos
outros. Mesmo que os clérigos não renunciem aos seus
moldes de interpretação, a preocupação da verdadeira
observação tende a ocupar um lugar mais importante do
que a tradição livresca.
No De Universo (II, III, XII), Guilherme de Auvergne
evoca Satia (nome que, segundo afirma, deriva de «sacie-
dade») ou Domina Abundia, «que traz a abundância às
casas que visita». Este espírito feminino come e bebe o que
encontra nas casas, mas a quantidade nunca diminui,
sobretudo se os recipientes de comida e de bebida foram
deixados abertos para ela, e não fechados. Quando é impe-
dida de comer ou beber, não traz a abundância mas a des-
graça.
Domina Abundia não é mais do que a forma latinizada
do seu nome francês: «Dame Abonde», referida no Romance
da Rosa ou ainda por Raoul de Presles, tradutor da Cidade
de Deus, de Santo Agostinho. Este nome traduz, numa so-
ciedade de penúria, a angústia da abundância material,
que desempenha um grande papel nos rituais populares e,
especialmente, nos casamentos: no seu sermão às rapari-
gas, Jacques de Vitry afirma ter visto que, em certas re-
giões, lançam grãos de trigo sobre o cortejo nupcial quando
este volta da igreja para casa; os participantes «gritam:
'Habundantia! Habundantia!', o que significa:'Plenitude!
Plenitude!'», mas, condenando esta prática, acrescenta
que antes de passar um ano muitos lares ficam pobres e
sem quaisquer bens...
Um exemplum de Etienne de Bourbon descreve de

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forma divertida uma mascarada de jovens disfarçados de


bonae res («coisas boas»), nome dado no Jura e na região do
Ródano-Alpes a Dame Abonde e aos espíritos do seu cor-
tejo benfeitor; numa paróquia da diocese de Besançon,
«onde as pessoas acreditavam em tais coisas», alguns de-
bochados disfarçaram—se de mulheres e penetraram com
tochas na casa de vim camponês rico, cantando aos gritos:
«Por um recebido, cem retribuídos» (Unum accipe, centum
redde). Assim esvaziaram a casa de todos os bens, sob o
olhar do crédulo camponês, que dizia à mulher: «Cala-te
e fecha os olhos; ficaremos ricos, porque são as 'coisas boas'
e elas multiplicarão por cem os nossos bens». Aqui, onde o
pregador não vê mais do que ladrões hábeis que se aprovei-
tam da credulidade de alguns, não se poderá pensar numa
mascarada ritual ligada ao retorno periódico dos espíritos
benfeitores? No século xix, na mesma região, segundo
Arnold van Gennep, o folclore contemporâneo incluía na
altura dos Doze Dias a mascarada da tia Arie, que trazia
guloseimas para as crianças...
Dois outros exempla de Étienne de Bourbon atestam a
crença segundo a qual certas pessoas podiam, pelo menos
em sonhos, participar no voo dos espíritos nocturnos e das
«coisas boas». O pregador identifica estas com Diana e He-
rodíade, nomes que vai buscar à literatura eclesiástica, e
não vê nestes sonhos se não ilusões do Diabo. Mas o essen-
cial, aqui, é o que ele revela, de forma involuntária, acerca
das crenças populares, localizadas precisamente entre
Lyon, Genève e Besançon.
Na diocese de Genève, um homem dizia que à noite
acompanhava as «coisas boas» e conseguiu convencer o seu
pároco a segui-lo; acordado no primeiro sono, o pároco viu

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diante da porta uma viga que o transportou imediata-


mente para uma grande adega, onde viu uma multidão de
mulheres sentadas à mesa e salmodiando à luz de tochas
e de círios. Um grande clamor ouviu-se: «Vamos, sentemo-
- n o s e comamos». O padre sentou-se com elas, mas, con-
forme era seu hábito, fez maquinalmente o sinal da cruz;
bem lhe valeu! A ilusão demoníaca dissipou-se de imedia-
to e ele viu-se nu, numa adega da Lombardia, sentado
sobre uma pipa de vinho; por pouco não conseguia fugir an-
tes de o capturarem e de o enforcarem como um ladrão...
A outra narrativa inclui também um pároco: uma velhi-
nha (vetula) garantia-lhe que à noite, indo com as «coisas
boas», entrara em casa dele apesar de as portas estarem
fechadas; escondera-lhe a nudez enquanto ele dormia,
salvando-lhe assim a vida. Desta vez, o pároco demonstrou
à bruxa (sortílega) que era uma «tola» vítima (fatua) dos
seus sonhos, fechando-a numa sala de onde foi incapaz de
sair pelos seus próprios meios, prova de que a pretensão de
atravessar as portas fechadas era pura ilusão.
Por volta de 1280, o Romance da Rosa de Jean de Meung
especifica as condições nas quais, segundo certas pessoas
acreditavam, se podia participar no voo de Dame Abonde:
algumas, diz o poeta, que considera isso uma «loucura
horrível», crêem que os terceiros filhos vão três vezes por
semana na companhia de Dame Abonde às casas dos vizi-
nhos; de facto, somente a sua alma viaja, passando através
das portas fechadas e das paredes; o corpo adormecido per-
manece imóvel até que a alma nele se reintegre; caso se vi-
rasse o corpo durante a ausência da alma, esta não pode-
ria reentrar e seria condenada a errar perpetuamente.
Esta crença não é excepcional; mostra a ligação privile-

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giada que mantêm com o Além aqueles que são marcados


por um «sinal de nascimento»; uma posição de destaque na
ordem dos irmãos e das irmãs, ou um nascimento singular,
como o das crianças «nascidas empelicadas», ou seja,
cobertas pela membrana amniótica. No século xvi, esta úl-
tima característica distinguia os benandanti do Frioul que
Carlo Ginzburg estudou; uns deviam ir, nas Têmporas, lu-
tar contra os bruxos para assegurar a fertilidade das ter-
ras; outros tinham de participar, em letargia, numa espé-
cie de «ritual onírico» comparável àquele de que fala Jean
de Meung: a alma deixava por momentos o corpo para
assistir a um cortejo das almas dos mortos.
Em volta de Dame Abonde, vê-se assim que se entrela-
çam todas as linhas de uma crença e de um ritual agrários
que se destinam a garantir a abundância doméstica e a
prosperidade aldeã através da invocação das almas dos
antepassados mortos. Esta ligação com os mortos não é so-
mente verificada no Frioul; encontra-se já nas confissões
recolhidas em Ariège, no início do século xiv, pelo inquisi-
dor Jacques Fournier. Um padre, Arnaud de Monesple, re-
latou-lhe as afirmações feitas pelo herético Arnaud Gélis:

«Disse-me que ia, à noite, com as 'damas boas', ou


seja, as almas dos mortos, pelos caminhos e lugares
desertos, entrando por vezes nas casas, sobretudo
nas casas belas e limpas, onde bebiam bons vinhos
que ali encontravam.»

Mengarde de Pamiers relatou igualmente as palavras


de Arnaud Gélis:

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«Quando o interrogava sobre as 'damas boas', das


quais se diz que andam em carros, se isso era ou não
verdade, ele respondeu que não, mas que estas 'damas
boas' eram grandes e ricas damas que, neste mundo,
se deslocavam de carruagem e que os demónios as ar-
rastavam em carros por montes, vales e planícies.»

Almas errantes — como havia tantas nas ravinas pró-


ximas de Montaillou —, as «coisas boas» ou as «damas
boas», seguidoras de Dame Abonde, pareciam aos clérigos
renitentes ao grande «encerramento dos fantasmas»; ora,
este caracteriza, a partir do final do século xn, com o nas-
cimento do purgatório, a representação eclesiástica do
destino das almas dos mortos entre o falecimento e o Juízo
Final. Nesta época, os pregadores, conforme se afirmou,
esforçaram-se por atribuir um papel e um estatuto posi-
tivos aos fantasmas individuais que vinham suplicar aos
vivos que rezassem por eles. Mas desta «normalização»
das relações entre os vivos e os mortos era excluído o bando
das almas errantes; quer se tratasse da versão «mas-
culina» da crença — o exército dos mortos, o clã Hellequin,
a caça selvagem — ou da versão «feminina» — Dame
Abonde, as «damas boas», as «coisas boas», em quem os
camponeses viam, porém, espíritos benéficos —, a Igreja
optara por identificar as almas errantes com demónios.
Incapazes de compreender a lógica e a função destas
crenças e destes rituais, os clérigos ainda os diabolizaram
mais; identificaram os espíritos benéficos com as «lâmias»
e as «estriges» cruéis transmitidas pela tradição mais an-
tiga; aqueles ou aquelas que afirmavam juntar-se-lhes
durante o sono foram acusados de bruxos, que teriam feito

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com o demónio um pacto tácito ou mesmo expresso. Do voo


das «damas boas» ao das bruxas e, finalmente, ao crime su-
premo do sabat, só faltava um passo: os juízes e os inqui-
sidores deram—no durante o século xv.

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«Sabat» das bruxas


e «charivari»
na Baixa Idade Média

A bruxaria no fluxo da história

A velha bruxaria camponesa que consistia em lançar


um sortilégio sobre o vizinho ou os animais deste era já tes-
temunhada na Alta Idade Média; viu-se isso, por exemplo,
a propósito de Hincmar de Reims. Nos séculos xi-xn, os do-
cumentos tornam-se mais numerosos e precisos: Adhémar
de Chabannes, cronista do Poitou, relata o processo de
uma mulher acusada de ter enfeitiçado o conde de Angoulê-
me; a prova de um ordálio confirma publicamente a sua
culpa, mas ela não confessa, e o conde, antes de morrer,
perdoa-lhe; no entanto, quando o conde morreu, o filho
deste mandou queimar a bruxa.
Na narrativa do assassínio do conde da Flandres, Car-
los, o Bom, em 1127, Galbert de Bruges descreve assim a
acção e o suplício de uma bruxa semelhante:

«Quando o conde Thierry foi pela primeira vez a


Lille, uma bruxa veio ao seu encontro, descendo ao rio
junto da ponte que o conde ia atravessar e aspergin-

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do-o com água. Então, segundo se diz, o conde Thierry


ficou doente do coração e do estômago, ao ponto de se
recusar a beber e a comer. Os cavaleiros, inquietos
com o seu estado, apanharam a bruxa e, atando-lhe
as mãos e os pés, puseram-na sobre palha e feno a ar-
der e queimaram—na.»

Os sortilégios permitiam explicar todas as formas da


«adversidade biológica»: a doença, a morte e, sobretudo, a
impotência sexual. Na sua autobiografia, o monge Guibert
de Nogent conta que o seu pai, depois de se casar, esteve
durante sete anos sem descendência devido a um malefí-
cio de uma madrasta invejosa; mas foi também uma «mu-
lher velha» que conseguiu pôr fim a estes artifícios. Os
monges e os clérigos acreditavam, pois, na eficácia dos sor-
tilégios tanto como os laicos, nobres ou plebeus. Quanto às
autoridades públicas, infligiam a morte pelo fogo aos cul-
pados, pelo menos quando não eram ultrapassadas pela
populaça, sempre pronta a lapidar aqueles ou aquelas que
se tornavam suspeitos de malefícios.
Nas narrativas de malefícios que acabo de citar, nunca
está em causa o Diabo e um pacto feito entre este e as bru-
xas; só o maleficium, o facto de prejudicar através de sor-
tilégios, é tomado em conta. E grande o contraste com as
representações clericais da bruxaria, tal como se desenvol-
veram no século XIII sob o efeito de vários factores.
Alguns destes factores relacionam-se com a situação da
Igreja, que se sentia ameaçada, tendo sofrido o choque das
heresias populares, dos cátaros ou dos valdenses. Ora, a
arma preparada para afastar este perigo, a Inquisição,
assume uma importância crescente nos assuntos da Igreja

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e na relação que a hierarquia eclesiástica mantém com o


mundo laico. Assim, a partir de 1258-1260, o papa Alexan-
dre IV ordenou aos inquisidores que se interessassem não
só pela heresia mas também por «sortilégios e adivinha-
ções com aparência de heresia». Esta decisão elevava, por
assim dizer, as «superstições» ao nível superior dos crimes
contra a fé e teve consequências práticas muito importan-
tes; doravante, os culpados de «superstições» foram, tal
como os heréticos, submetidos à obrigação da confissão;
deveriam confessar aquilo que deles se esperava. Ora,
como se viu, a teologia escolástica estabeleceu, ao mesmo
tempo, a noção de pactos expressos e tácitos com o demó-
nio: as bruxas, a partir de então, já não podiam ser consi-
deradas como vítimas inocentes de um diabo hábil que se
aproveitava da sua simplicidade; foram declaradas culpa-
das e, pior ainda, deveriam convencer-se disso e confessá-
- l o . Por volta de 1270, uma Suma do Ofício da Inquisição,
redigida no círculo do bispo Benoit de Marselha, enrique-
ceu-se com um capítulo sobre «a forma e a maneira de in-
terrogar os áugures e os idólatras». Em 1320, o papa João
XXII aumentou ainda mais o poder dos inquisidores; em
particular, todos os sortilégios que recorriam aos sacra-
mentos foram tratados, a partir de então, como actos he-
réticos. No mesmo período, entre 1307 e 1323, Bernardo
Gui, célebre inquisidor de Toulouse, pôde acrescentar,
pois, aos capítulos do seu Manual do Inquisidor consagra-
dos aos cátaros, aos valdenses, aos pseudo-apóstolos, aos
beguinos e aos judeus, um capítulo inteiro sobre os «bru-
xos, adivinhos e invocadores dos demónios». Através das
perguntas que previa fazer aos suspeitos ou da fórmula de
abjuração que os culpados deviam pronunciar, vê-se como
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a hierarquia eclesiástica descobriu, no início do século xiv,


não os factos, que conhecia havia muito tempo, mas o seu
carácter horrível, do qual até aí não suspeitara: o inquisi-
dor refere, com efeito, «todas as adivinhações e invocações
dos demónios, sobretudo quando incluem em relação a es-
tes últimos um testemunho de adoração ou de veneração,
sinais de homenagem, a oferenda de um sacrifício ou a
imolação de uma vítima».
O espectro dos ardis diabólicos era tão forte entre os clé-
rigos que, também depois de meados do século xiii, para
muitos cientistas que eram igualmente clérigos, como
Alberto Magno (1193-1280), em Paris, ou Rogério Bacon
(1214-1294), em Oxford, a descoberta dos «segredos» da
natureza levava ao estabelecimento de um saber oculto
que alguns, sobretudo os seus adversários, estavam pron-
tos a equiparar à magia. As ligações que esta nova ciência
tinha com os autores árabes ou judeus reforçava ainda
mais as suspeitas de demonolatria e de heterodoxia que
recaíam sobre os astrólogos e os alquimistas. As primeiras
reacções importantes foram, em 1270 e 1277, as do bispo
de Paris, Etienne Tempier, adversário resoluto da intro-
dução da ciência e da filosofia árabes na cultura cristã. Em
1327, na bula Super illius specula, o papa João XXII con-
denou os mágicos que procuram «encerrar os demónios em
espelhos, em anéis, em frascos, para deles obterem res-
postas». Grandes cientistas como o catalão Raimundo Lu-
lo (1235-1315) ou Arnaldo de Villanova (1235-1313), mé-
dico e alquimista de Montpellier, foram incomodados ou
condenados. Em Paris, o alquimista João de Bar chegou
mesmo a ser queimado em 1390; as suas afirmações, qua-
se palavra por palavra, encontram-se na condenação de

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vinte e oito «erros» pronunciada pela Universidade di


Paris, em 19 de Setembro de 1398, enum opúsculo osen lo
pelo chanceler da Universidade, João Gerson (1363 M'.',!))
contra os «erros relativos à arte mágica». Estes textos ce
lebres, que continuarão a ser citados nos séculos xvi c x vi i,
descrevem precisamente um instrumento de magi; i en< on
trado numa câmara: era composto de uma roda montai lo
sobre quatro pés, com uma aâmpola no centro ostentando
caracteres e nomes desconhecidos; servia para fumigaç» >en
adequadas a evocar os espíritos a fim de ter a revelação < li
tesouros escondidos.
Os «erros» condenados especificam, além disso, as alie
mações atribuídas aos mágicos: que «fazer um pacto I aci lo
ou expresso com os demónios não seria idolatria ou uma
forma de idolatria ou de apostasia».

«Erro! [Exclama Gerson.] Consideramos que lia


pacto implícito em toda a observação supersticiosa
cujo efeito não deve esperar-se racionalmente nem
de Deus nem da natureza [(art. 3). Que] pretender
por artes mágicas encerrar os diabos em pedras,
anéis, espelhos ou imagens consagradas em seu nome
não é idolatria; [erro, mais uma vez (art. 4). E tam-
bém erróneo acreditar] que as imagens de bronze, de
chumbo, de ouro, de cera branca ou vermelha, ou de
outra matéria, tendo sido baptizadas, exorcizadas e
consagradas, ou, mais propriamente, amaldiçoadas,
segundo estas artes mágicas, em certos dias, têm vir-
tudes admiráveis recitadas nos livros de tais ciências
Kart. 21); é igualmente falso dizer que] a inteligência
que move o céu penetra na alma racional como o corpo

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do céu penetra no corpo humano [(art. 26), ou] que os


nossos pensamentos intelectuais e os nossos quere-
res interiores são imediatamente causados pelo céu,
e que por uma cabala mística pode conhecer-se os
pensamentos [(art. 27)].»

A partir do início do século xrv, o nascimento do estado


monárquico moderno desempenhou também um papel
determinante na evolução das atitudes em relação às
«superstições» e à bruxaria. Durante muito tempo, a re-
pressão dos malefícios era prerrogativa do poder público,
real ou condal. O direito romano, redescoberto a partir do
século XIII, só podia encorajar tais intervenções, que o esta-
belecimento por escrito dos direitos consuetudinários per-
mitiu igualmente codificar; nos Coutumes du Beauvaisis,
Filipe de Beaumanoir (1246—1296) distingue os «bruxedos»
que, atentando contra a fé cristã, dependem da jurisdição
da Igreja, podendo esta, contudo, recorrer ao braço secular
para mandar prender e julgar os culpados, e aqueles que
provocaram morte de homem: tal crime submete imedia-
tamente os culpados à justiça secular e ao castigo supremo.
No século XIV, bruxos e bruxas compareciam, portanto,
consoante os casos, perante os tribunais laicos, os proviso-
rados episcopais ou o tribunal da Inquisição. Os registos
do Châtelet de Paris dão testemunho, em 1390-1391, do
processo de Margot de La Barre, cujos malefícios tinham
provocado a impotência de um homem, ou de Jeanne La
Brigue, que utilizou a magia para seduzir um homem e de-
pois matá-lo com ajuda do demónio Haussibut, que invo-
cara em nome da Trindade. Por outro lado, o provisorado
de Mende, para citar apenas o exemplo desta diocese, foi

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o palco, de Novembro de 1347 a Setembro de 1350, do


interminável processo de um padre que renunciara ao es-
tado eclesiástico, Olivier Pépin, acusado de se dedicar às
artes mágicas, de utilizar livros proibidos, de se servir de-
les para fazer conjurações e sortilégios, especialmente a
pedido dos inimigos do bispo e com a finalidade de preju-
dicar este último; fabricara uma imagem de cera e, se a ti-
vesse quebrado, o bispo, à distância, teria experimentado
grandes sofrimentos. Pépin foi condenado a fazer peni
tência durante quinze anos e a ser exposto num patíbulo
erguido na praça pública de Mende. Mas apelou ao papa
contra o procurador do bispo, Guérin de Châteauneuf; ele
próprio recorreu ao rei, que, mediante dinheiro, coníi rmou
o seu bom renome...
O episódio é interessante não só pela extensão do
processo mas também pelo esclarecimento que proporei o
na sobre a rivalidade e os interesses contraditórios de <li
ferentes justiças e poderes em relação à bruxaria
1350 é uma data charneira na história da b r u x a r i a
Parece, na verdade, que foi neste momento que t o d a s •>:.
temas que, separadamente, respeitavam à bruxaria se
reuniram num único estereótipo da bruxaria, bode
expiatório, talvez, dos grandes medos da peste negra. A
mobilização dos poderes do Estado conferiu uma eficácia
temível a imagens que, à medida da sucessão dos proces
sos — alguns obscuros, outros mais retumbantes como, no
fim do reinado de Filipe, o .Be/o, os dos Templários, do bispo
de Troyes, Guichard, ou do bispo de Cahors, Hugues (Íe
rand —, se impuseram no espírito das vítimas bem como
no dos juizes. O rigor sistemático dos procedimentos e a
logica implacável do direito explicam, em grande parte, o
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carácter cumulativo e irreversível da construção desta


imagem.
Em 1436, Claude Tholosan, juiz do Delfinado, escreveu
um tratado, Ut magorum et maleficorum errores, sobre os
erros dos mágicos e dos bruxos; aí relata a sua experiência
de mais de cem casos, para se dedicar, em seguida, en-
quanto juiz laico, a uma espécie de confronto com a justiça
da Igreja; a gravidade das faltas «religiosas» dos bruxos
parece-lhe demasiado grande para permitir a indulgência
prevista pelo direito canónico; os bruxos não são apenas
heréticos, mas idólatras e apóstatas, de uma apostasia
«pérfida» que exclui a misericórdia; sinais que podem
parecer inocentes revelam, de facto, a gravidade dos seus
crimes; a colheita das plantas do São João, a utilização da
arte dos curandeiros, bem como a simples crença em feiti-
ços para impedir casamentos devem suscitar graves sus-
peitas e a diligência do juiz. Uma denúncia tão severa de
«superstições» consideradas tradicionalmente mais be-
nignas mostra até que ponto as autoridades laicas, tanto
como as eclesiásticas, se haviam tornado intransigentes.
Na representação que os juízes, mas também o povo e os
próprios acusados, faziam da bruxaria, os fantasmas do
voo nocturno das bruxas e dos seus deboches diabólicos —
esboçados pela ideia do pacto expresso e enriquecidos pela
diabolização da caça selvagem e do cortejo de Dame Abon-
de — corresponderam à principal acusação do maleficum.
Faltava—lhe dar—lhes um nome, o de sabat, evocando si-
multaneamente a «superstição judaica» e os conventículos
dos heréticos. Este nome aparece no século xv, ao mesmo
tempo que se dissipam entre os próprios letrados as últi-
mas dúvidas relativas à realidade das bruxas. O sabat,

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longe de ser apenas um sonho enganador inspirado pelo
Diabo, considerava-se doravante uma realidade: as bruxas
deslocam-se realmente através dos ares, para aí presta-
rem homenagem a Satã e com ele copularem.
Esta convicção, até então combatida pela Igreja na tra-
dição do cânoneEpiscopi, impôs-se aos autores eclesiásti-
cos na segunda metade do século xv; para não ter de
contradizer a autoridade do cânone, que se considerava
quase tão antigo como a própria Igreja, Jean Vincti,
teólogo parisiense e inquisidor em Carcassone, efectua no
Tratado contra os Invocadores dos Demónios uma subtil
distinção entre as «antigas bruxas», que se relacionam
com o cânone Episcopi, e as «novas», que formam uma
«seita demonolátrica». A mesma distinção será retomada
em 1486 pelos autores do célebre Martelo das Bruxas,
Jacques Sprenger e Henri Institoris, dominicanos de Colo-
nia, os quais calculam que as «novas bruxas» apareceram
exactamente em 1400...
A contestação radical do cânon eEpiscopi deve-se ao do-
minicano Nicolas Jacquier, autor, em 1485, do Flagellum
haereticorum («O Chicote dos Heréticos»): as bruxas
formam, para ele, uma verdadeira contra-Igreja. Imedia-
tamente depois, grandes processos de bruxaria, em Arras
(a Vauderie de 1459) e em Lyon (em 1460), pareceram dar-
- l h e razão. Por volta de 1490, Pierre Mamoris, cónego de
Saintes e professor na Universidade de Poitiers, é um dos
primeiros a utilizar sistematicamente a palavra sabba no
Flagellum maleficarum. Mas, em 1484, já a bula Summis
desiderantes de Inocêncio VIII fizera a síntese de todo o sa-
ber demonológico acumulado durante dois séculos: esta
bula caucionou com a autoridade pontifical o lançamento
da caça às bruxas.
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Cultura urbana e «superstições»

Embora os camponeses continuassem a atrair sobre


eles as acusações complementares de ignorância e de des-
crença, o renascimento das cidades no dealbar do segundo
milénio e o nascimento de uma cultura urbana abriram
para a Igreja uma segunda frente na luta contra as «su-
perstições». Por diversas razões, esta cultura urbana era
uma cultura camponesa urbanizada. Mas, na cidade, tudo
era diferente: a organização de um espaço mais denso e fe-
chado, uma demarcação mais forte do tempo, uma maior
diversidade dos grupos sociais e das formas de sociabilidade
através das quais cada um deles afirmava a sua identidade.
Foi neste contexto que a Igreja se preocupou com «supers-
tições» que lhe pareciam, simultaneamente, prolongar ri-
tos anuais antigos, exaltar o corpo, o riso e a devassidão
contra a austeridade moral por ela promovida, assim como
provocar desordens que constituíam ocasiões para pecados
e crimes.
Durante muito tempo, pensou-se que a Festa dos Lou-
cos, celebrada na altura da festa dos Santos-Inocentes (28
de Dezembro) e da Circuncisão (l. e de Janeiro), não era
mais do que uma sobrevivência das festas pagãs do solsti-
cio de Inverno e das calendas de Janeiro. Era assim que a
consideravam, de facto, as autoridades eclesiásticas, como,
por exemplo, a faculdade de teologia de Paris, que, em
1444, condenou a paródia dos ritos litúrgicos que tinha
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lugar nas igrejas em 28 de Dezembro, entre danças e


homens disfarçados «de mulheres e de leões».
Na realidade, a Festa dos Loucos aparece apenas no sé-
culo XII e num contexto urbano completamente novo: o dos
capítulos de catedrais cujos membros, os cónegos subme-
tidos todo o ano à autoridade do bispo, se entregavam uma
vez por ano a divertimentos colectivos na igreja, elegendo
um falso bispo e conduzindo-o em cortejo até à catedral.
Em 1198, o bispo Eudes de Paris denuncia a festa fatuorum
dos seus cónegos, mas, na mesma época, igualmente em
Paris, Jean Beleth refere-a na Suma dos Ofícios Eclesiás-
ticos como um costume regular. Em Lille, a Festa dos Lou-
cos ou dos Inocentes, celebrada pelo clero local e respecti vo
«bispo dos loucos», é mencionada nas contas desde 1301,
pois dá lugar ao pagamento de uma contribuição.
A partir do século xiii, a festa estende-se a outros gru
pos festivos, as abadias de juventude e os grupos de jovens
artesãos: a confraria da Epinette de Lille, citada desde
1220, os Coqueluchiers d'Evreux (c. 1325), a confi aria da
Mère-Folle de Dijon, os Conards de Rouen e de Evreux,
Malgouverne de Mâcon, etc., elegem também um «rei», uni
«abade» ou um «príncipe dos tolos», entregam—se ajustas
e a mascaradas, fazem um desfile no primeiro dia do ano.
Pouco a pouco, passam a organizar a vida festiva das cida-
des, especialmente por ocasião do Carnaval. O seu papel é
então admitido e mesmo apoiado financeiramente pelas
autoridades municipais, que se preocupavam somente
com as desordens e os excessos eventuais. Quanto à repro-
vação moral do clero, que não pode esperar a interdição de
grupos festivos tão ciosos dos seus privilégios, mantém-se
tácita ou tem de se limitar a repetir ritualmente prescrições
incapazes de modificar o curso das coisas...

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Estas prescrições visara também o Carnaval, que, em


Fevereiro (numa data que varia em função da Páscoa), se
festeja precisamente antes do grande jejum da Quaresma.
Quaisquer que sejam as tradições antigas que presidiram
ao seu nascimento, o Carnaval é, como a Festa dos Loucos,
uma inovação da cidade medieval.
A Quaresma, por seu lado, foi definida pela Igreja desde
o século vi. Mas é somente no século xn — a primeira men-
ção data de 1142 e diz respeito a Roma — que a estrutura-
ção ainda mais forte do tempo urbano, opondo mais firme-
mente o trabalho e a festa, o gordo e o magro, dá origem ao
Carnaval.
O Carnaval nasceu contra a Quaresma: durante a Alta
Idade Média, a Quaresma começava somente após o Do-
mingo da Quadragésima, e o jejum era limitado aos qua-
tro domingos da Quaresma; no século IX, a Igreja decidiu
tornar contínuo o jejum durante quarenta dias e transfe-
rir para o início da Quaresma, durante quatro dias, a pos-
sibilidade de refeições gordas. A oposição de dois períodos,
gordo e magro, tornou-se mais marcada; favoreceu uma
espécie de personificação destes tempos contrastados e
como que inimigos; uma tradição literária que surge no sé-
culo XIII, a de la Bataille de Caresme et Charnage, exalta
o triunfo efémero de um Carnaval truculento, risonho e
comilão, sobre a velha descarnada e rabugenta que perso-
nifica a Quaresma. Mikhaïl Bakhtine viu no primeiro a
imagem do «vil corporal», que é para ele o princípio da cul-
tura popular, e na segunda a alegoria da moral da Igreja,
adversária do riso e das alegrias do corpo, que identifica
com os vícios de gula e luxuria.
Aoposição da Igreja ao charivari foi ainda mais enérgica,

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porque esta manifestação colectiva de escárnio que, pelo


menos em França, respeitava essencialmente ao casa-
mento de viúvos e viúvas, lhe parecia atentar contra a
dignidade do sacramento do matrimônio. O charivari não
é mencionado antes do início do século xiv e aparece, pri-
meiro, num contexto urbano ou mesmo parisiense; a sua
primeira descrição, acompanhada de miniaturas, encon-
tra—se numa interpolação do Romance de Fauvel, de Ger-
vais du Bus, e o autor deste acrescento, um tal Chaillou de
Pestain, pertencia sem dúvida ao meio da administração
e dos oficiais da corte do rei.
O herói do romance — cujo nome, Fauvel, é composto
pelas iniciais dos vícios de flatterie (adulação), avarice
(avareza), vilenie (vilania), vanité (vaidade), envie (inveja)
e lâcheté (cobardia) — é retratado sob a forma de um cava-
lo; não tendo conseguido casar com Fortuna, une-se à Va
Glória, mas «com a mão esquerda», sem proclamar os ba
nhos do casamento e sem que um padre tenha abençoado
a união. No preciso momento em que, chegada a noite, pre
tende juntar-se no leito à sua nova esposa, desencadeia
—se a algazarra e o cortejo de máscaras de um assustador
«chalivali»; o autor compara este cortejo ao bando dos mor-
tos conduzido pelo próprio Hellequin.
Esta presença de Hellequin corrobora uma das inter-
pretações do charivari propostas pelos etnólogos: para es-
tes, o alarido e as máscaras do charivari simbolizariam ri-
tualmente o protesto dos mortos da comunidade contra
um novo casamento que podia lesar a memória do cônjuge
defunto e os direitos dos filhos do primeiro matrimónio.
Mais uma vez, é o grupo dos jovens que organiza o charivari,
não só porque tem o encargo da organização das festividades

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da comunidade mas porque, na maior parte dos casos, o


casamento de um estrangeiro ou de um viúvo com uma ra-
pariga do bairro ou da aldeia exclui esta do stock forçosa-
mente limitado daquelas que os jovens podiam pretender.
No entanto, se os jovens parecem, mediante o charivari,
querer impedir tais casamentos, esperam sobretudo um
desagravo simbólico, uma espécie de reaquisição da espo-
sa; que o marido pague a bebida, e tudo voltará à ordem!
Decididamente, o charivari era, como a algazarra que
acompanhava os eclipses da Lua, a consagração popular
de uma «conjunção difícil».
A Igreja não era completamente estranha ao apareci-
mento do charivari; a importância que concedeu, a partir
do século XII, ao casamento, definido como um sacramento
administrado unicamente pelos padres, contribuiu sem
dúvida para a expressão de uma outra concepção de tal
aliança: a concepção de um casamento que não ficasse
mais sob o controlo dos padres do que sob o dos mortos, que
garantiam o respeito pelas normas ancestrais da comuni-
dade.
Também aqui, o nascimento das cidades e das aldeias,
consideradas como comunidades de vivos e de mortos fixa-
dos num mesmo espaço, encontra-se como pano de fundo
de novas práticas culturais. Mas a sua lógica própria esca-
pava à Igreja, que não tardou a multiplicar contra o cha-
rivari condenações tão numerosas como vãs.
As primeiras são exactamente contemporâneas da in-
terpolação do Romance de Fauvel; em 1329-1330, o sínodo
de Compiègne condena «os jogos chamados charivari» e
ameaça de excomunhão aqueles que neles participam; em

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HISTÓRIA DAS SUPERSTIÇÕES

1337, o sínodo de Avignon denuncia a origem «pagã»


destes «jogos indecorosos» e as suas «máscaras de demó-
nios»: acusa o charivari de se opor ao sacramento do ma-
trimónio ou à bênção que o padre dá às segundas núpcias;
preocupa—se, por fim, com as violências às quais certos
charivaris dão lugar, os «rancores e os ódios» que suscitam
entre actores e vítimas, os «ferimentos e homicídios» que
por vezes se seguem.
Quanto a este ponto, a preocupação com a ordem por
parte da Igreja juntava-se à das autoridades seculares; na
época moderna, bispos e polícias defenderam uma causa
comum ao denunciarem, como escreverá o padre J.-B.
Thiers, «a canalha e a gente sem importância» que subtrai
dinheiro aos recém-casados, não só nas segundas núpcias
mas em quase todos os casamentos, e que, mesmo quando
não se mascaram, fazem uma algazarra intolerável. Nu uca
as autoridades eclesiásticas tinham reconhecido ao cha ri
vari a função de consagração dos casamentos que de lacto
era a sua; agora, já não atacavam sequer o seu carácter sa
crílego que durante muito tempo haviam denunciado; re
provavam, por sua vez, a perturbação da ordem pública e
os atentados contra a vida privada.
O facto de a Igreja ter considerado a cidade como o loca I
onde velhas «superstições» podiam ainda ressurgir sob
formas inéditas não impediu as élites urbanas, laicas o
mesmo clericais, assim como o próprio povo, de pensar a
cidade como o novo ponto de referência da cultura o da
religião. Desde sempre, mediante a recordação da roma
nidade, se identificara a oposição da «religião» e da «su-
perstição» com a da «urbanidade» e da «rusticidade»; mas
a concentracção da sociedade medieval sobre a terra havia

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JEAN-CLAUDE SCHMI77"

tornado muito teórica, durante longos séculos, tal dupla


identificação. Esta, a partir do século xii e do desenvolvi-
mento da cidade medieval, pôde, pelo contrário, reencontrar
toda a sua força.
Desde então, a condenação das «superstições» não visou
somente a salvaguarda da verdade da fé ou a conformidade
dos comportamentos religiosos a uma norma clerical. Tra-
tou-se igualmente de efectuar um juízo cultural e de ex-
primir, pela irrisão ou pelo anátema, o sentimento da sua
superioridade. Mesmo antes do Romance de Fauvel, é isso
que, em 1276, se encontra em Arras, na representação
(sem dúvida sobre um estrado ao ar livre como nos misté-
rios contemporâneos) do Jeu de la Feuillée, de Adam de La
Halle; vê-se aí aparecer, com sinetas a soarem desenfrea-
das, uma figura grotesca e mascarada como um diabo bar-
budo, Croquesos; é o enviado do clã Hellequin, o velho
exército dos mortos diabolizado pelos pregadores e que a
cultura burguesa nascente estava em vias de transformar
em personagem de comédia, o antepassado de Arlequim.
No fim da Idade Média, a literatura jocosa colecciona
igualmente «superstições» camponesas oferecidas à curio-
sidade divertida de um público urbano, laico e letrado; Les
Evangiles des quenouilles põem em cena algumas velhas
camponesas que todas as noites, ao serão, se reúnem para
fiar a lã e trocar as suas receitas de curandeiras ou as suas
informações sobre adivinhação e bruxaria; encontrar uma
lebre é mau presságio, diz uma, é preciso exorcizá-lo
voltando atrás três vezes no caminho; para outra, se uma
mulher grávida traz a criança do lado direito e se apraz em
comer caça ou aves, ou em escutar relatos de torneios, isso
pressagia que ela espera um rapaz; outra afirma que, para

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HISTÓRIA DAS SUPERSTIÇÕES

dominar o marido, deve colocar-se as suas camisas sob o


altar no ofício da sexta-feira santa e fazer que ele as vista
no domingo seguinte. E uma das suas companheiros vai
mais longe: para arranjar dinheiro sem o marido saber,
deve abrir-se o cofre com um pedaço de palha apanhado na
noite de São João...
Não menos de duzentas e cinquenta receitas são assim
postas na boca destas mulheres por um autor masculino
que pertencia, sem dúvida, ao círculo do duque de Borgo-
nha. Já não se trata aqui de denunciar as «superstições» a
maneira da Igreja, e, de resto, o propósito do autor é isento
de qualquer agressividade. Mas, ao estudar estas receitas,
Madeleine Jeay não deixou de mostrar a ambiguidade
desta obra e do seu projecto ideológico: o efeito de acumu-
lação visa apenas reforçar no leitor um sentimento de su-
perioridade cultural fortemente tingido de misoginia.
As «superstições» estavam a perder o seu estatuto pro-
priamente religioso; a cultura letrada, laicizada e urbana
fazia-as passar progressivamente à categoria de «crenças
vãs», «sobrevivências» do obscurantismo popular e rural
mais que do paganismo. Traíam uma carência cultural e
já não uma ausência de fé. A rejeição persistia, mas em no
me de novos critérios que revelavam a emergência de uma
ordem ideológica diferente, laicizada e racionalista, cuja
crítica não pouparia durante muito tempo a própria reli
gião oficial; esta, na época do Iluminismo, cedeu à Razão
o lugar do juiz e do moralista para se juntar em silêncio,
aos olhos do filósofo, às mais vulgares «superstições».

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