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Copyright © Jeanne Marie Gagnebin, 1997

SUMARIO

Revisão.-
Nina Schipper, Mariflor Rocha e
J M Gagnebin
Capa:
Barbara Szaniecki
Apresentação 9
.
CIP-Brasil Catalogação na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ I. O Início da História e as Lágrimas de Tucídides 15

6129s Il. As Flautistas, as Parteiras e as Guerreiras 39


Jeanne Marie Gagnebin
Sete Aulas Sobre Linguagem, Memória e Histdna - III. Morte da Memória, Memória da Morte:
- Rio de Janeira . /mago Ed. 1997
da Escrita em Platão 49
192 p. /Biblioteca Pierre Menard/

TV. Dizer o Tempo 69


Inclui apéndice e bibliografia

V. Do Conceito de Mimesis no Pensamento de


ISBN 85,3/20544 t
Adorno e Benjamin 81
/. Filosofia 2 Literatura – Filosofia. 3. Filosofia grega..
L Thula. lL Série.
VI. Do Conceito de Razão em Adorno 107

cm- 100
VII. O Hino, a Brisa e a Tempestade: dos Anjos em
97-0222 C00 – i Walter Benjamin 123

Reservados rodos os direitos


Nenhuma pane desta obra poderá ser Apêndices
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da Editora
I. Baudelaire, Benjamin e o Moderno 139
1997
II. O Camponês de Paris: Uma Topografia Espiritual 155
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Fontes 185
Imptesso no Brasil
Panted in Brazil
I. O INÍCIO DA HISTÓRIA
E AS LAGRIMAS DE TUCÍDIDES

Em memória de Celso M. Guimarães

Este artigo retoma algumas aulas de um curso de filosofia da história,


dado há vários anos. A sua pretensão não é acrescentar um comentário
original aos numerosos já existentes sobre as obras de Heródoto e
Tucídides, l mas esboçar uma descrição da constituição deste tipo de
discurso que, mais tarde, será chamado de história. Três aspectos serão
ressaltados nesta análise das práticas narrativas de Heródoto e de
Tucídides: a construção da memória do passado, a questão da causa-
lidade e a posição do narrador. São estes três aspectos que emetem
a uma concepção subjacente, explícita ou implícita, das relações entre
o tempo da história dita "real" (o conjunto dos acontecimentos,
Geschichte, em alemão) e o tempo da história contada (a narração dos
acontecimentos, Geschichte, mas também Erzãhlung), isto é, a dinâ-
mica temporal que preside à história enquanto saber (disciplina,
"ciência", em alemão também Historie).
Já menciu:lamos que os discursos de Heródoto e Tucídides rece-
berão, mais tarde, o nome de história. Her6doto ficou, na tradição,
como "o pai da história", enquanto se fazia de Tucídides o primeiro

1 Utilizamos em particular a excelente tradução (com introdução de Jacqueline de Romilly)


de Heródoto e Tucídides, na Bibliotheque dela Pléiade ( Heródote, L'enquête, trad. et notes
de A. Barguet; Thucydide, La Guerre du Peloponese, trad. et notes de D. Roussel). As
traduçóes brasileiras de Mário da Gama Kury deixam muito a desejar e são, freqüente-
mente, corrigidas. Sobre Her6doto e Tucídides, citemos: François Châtelet, La naissance
de l'histoire (Paris: Minuit, 1962), v. 1, pp. 10-18; Jacqueline de Romilly, na já citada
introdução do volume da Pléiade; Marcel Détienne, L'invention de la mythologie (Paris:
Gallimard, 1981). Sobre Her6doto, o livro fundamental de François Hartog, Le miroir
d'Hérodote —Essai sur la représentation de l'autre (Paris: Gallimard, 1980). Sobre Tucídides,
Jacqueline de Romilly, Histoire et raison chez Thucydide (Paris: Belles Lettres, 1967); e
também Problèmes de la democratie grecque (Paris: Hermann, 1975).
16 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA
0 INICIO DA HISTORIA E AS LAGRIMAS OE TUCIOIDES 17
historiador crítico. Tais denominações repousam sobre atribuições
posteriores, características, aliás, de qualquer ciência em busca de seu consigo uma primeira diferença essencial entre a narrativa "histórica"
certificado de origem. Mas, nos textos de nossos primeiros "historia- de Heródoto e as narrativas míticas, a epopéia homérica por exemplo.
dores", a palavra "história" não existe (não se encontra, fora engano, Heródoto só quer falar daquilo que viu ou daquilo de que ouviu falar.
nenhuma vez na obra de Tucídides), 2 ou, então, possui um sentido O período cronológico alcançado se limita, portanto, a duas ou três
muito afastado do nosso. Pois quando Heródoto declara, nas primei- gerações antes da sua visita, pois o resto do tempo se perde no
ras linhas da sua obra, "Heródoto de Halicarnassos apresenta aqui os não-mais-visto, isto é, no não-relatável. Em oposição ao nosso con-
resultados da sua investigação (histories apodexis)...", a palavra historie ceito de história, esta pesquisa, ligada à oralidade e à visão, não
não pode ser si mplesmente traduzida por história. O nosso conceito pretende abarcar um passado distante. Tal restrição também a deli-
i mplica um gênero científico bem determinado; a palavra grega mita em relação ao discurso mítico, que fala de um tempo longínquo,
historie tem, nesta época e neste contexto, uma significação muito de um tempo das origens, tempo dos deuses e dos heróis, do qual só
.mais ampla: ela remete à palavra hictôr, "aquele que viu, testemu- as musas podem nos fazer lembrar, pois, sem elas, não podemos saber
nhou". O radical comum (v)id está ligado à visão (videre, em Latim (idein) daquilo que não vimos.
ver), ao ver e ao saber (oida em grego significa eu vi e também eu sei, Muito mais que a consciência de inaugurar uma nova disciplina,
pois a visão acarreta o saber). 3 Heródoto quer apresentar, mostrar designada posteriormente pelo nome de história, é esta oposição
(apodexis) aquilo que viu e pesquisou. Trata-se, então, de um relato crescente à tradição mítica que determina, de maneira diversa, tanto
de viagem, de um relatório de pesquisa, de uma narrativa informativa a obra de Heródoto como a de Tucídides. É interessante notar que
e agradável que engloba os aspectos da realidade dignos de menção Heródoto, quando se refere às várias partes da sua obra, não usa a
e de memória. Não há nenhuma restrição a um objeto determinado: palavra história mas sim a palavra logos (discurso) para identificá-las;
a historie pode pesquisar a tradição dos povos longínquos, as causas não fala da "história" dos Scitas, do Egito ou de Darius, mas sim de
das enchentes do Nilo ou as razões de uma derrota militar. Esta logos scita, de logos egipcio ou de logos a respeito de Darius etc. O
profusão de dados que nos parecem heterogéneos e que incomodam próprio vocabulário insiste na grande oposição entre logos e mythos,
os sérios professores atuais, preocupados em distinguir a história da na qual vai se enraizar a distinção entre o discurso científico, filosó-
geografia ou a sociologia da antropologia, esta profusão não embara- fico ou histórico e o discurso poético-mítico. Distinção progressiva
ça Heródoto, pelo contrário. O que diferencia a sua pesquisa de outras que não tem nada de necessário, nem de evidente, nem de eterno,
formas narrativas não é o(s) seu(s) objeto(s), mas o processo de como uma certa historiografia iluminista triunfante gostaria de esta-
aquisição destes conhecimentos. Heródoto fala daquilo que ele mes- belecer. Nas primeiras linhas das historiai do nosso primeiro "histo-
mo viu, ou daquilo de que ouviu falar por outros; ele privilegia a riador<;, podemos ler, ao mesmo tempo, esta imbricação e esta
palavra da testemunha, a sua própria ou a de outrem. Inúmeras vezes, I separação da palavra mítica e do discurso racional emergente: "He-
no decorrer da sua narrativa, o nosso viajante menciona as suas ródoto de Halicarnassus apresenta aqui os resultados da sua investi-
"fontes", se ele mesmo viu o que conta ou se só ouviu falar e, neste gação, para que a memória dos acontecimentos não se apague entre
caso, se o " informante" tinha visto, ele mesmo, ou só ouvido falar. 4 os homens com o passar do tempo, e para que os feitos admiráveis
Esta preocupação —que podemos relacionar com a crescente prática dos helenos e dos bárbaros não caiam no esquecimento; ele dá,
judiciária, na Grécia do século V, de audição de testemunhas — traz inclusive, as razões pelas quais eles se guerrearam" (I, 1). Heródoto
1
retoma e transforma a tarefa do poeta arcaico: contar os acontecimen-
2
tos passados, conservar a memória, resgatar o passado, lutar contra a
0 que lá invalida o titulo da tradução brasileira: História da Guerra do Peloponeso, pois
história não existe no titulo grego!
3 Cf. Emile Benveniste, Vocabulaire des institutions indo-européens, esquecimento. Tarefa essencial que a voz do poeta — numa sociedade
citado por Hartog, op.
cit., p. 272.
4
A este respeito, cf. François Hartog, op. cit., 2". pane, cap. 2; e Marcel Détienne, op. cit.,
sem escrita como o era a Grécia arcaica — encarnava, e que continuou
cap. 3. também no texto poético escrito. Tarefa que religa o presente ao
passado, fundando a identidade de uma nação ou de um individuo
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nesta religação constante: tarefa profundamente religiosa, portanto, que as conta. Falam de sucessivos raptos de mulheres: os fenícios
se lembrarmos que a religião tem a ver, primeiro, com este desejo de teriam raptado lo, filha do rei grego de Argos; em represália, alguns
"religação" e, só depois, com uma sistemática de crenças. Tarefa gregos (cujos nomes são desconhecidos) fizeram o mesmo com a filha
religiosa ou mítica de comemoração que unia o poeta arcaico, o do rei dos fenícios e, mais tarde, com Medéfa, uma outra princesa
sacerdote e o adivinho 5 e que se transmite, até os nossos dias, nas estrangeira. Vendo que os gregos arrebatam mulheres impunemente,
palavras do poeta e na preocupação "cientifica" do historiador com Páris de Tróia foi até Esparta roubar a bela Helena. Em vez de se
o passado. Heródoto também quer lutar contra o tempo que destrói conformar com este acontecimento desagradável, mas, afinal, nada
e aniquila até a lembrança dos atos heróicos dos homens, só que ele catastrófico, os gregos ficaram irados e desencadearam uma expedi-
não canta mais, ele tenta dar a razão, a causa (aitia) dos acontecimen- ção punitiva contra Tróia. Segundo esta tradição mítica, portanto, a
tos, anunciando a famosa exigência platônica de logon didonai ("dar origem das Guerras Médicas deveria ser procurada na Guerra de Trbia.
a razão"). Já dissemos que esta busca privilegia a palavra de testemu- Heródoto não esconde sua ironia. Tais narrativas, diz ele, não são
nhas vivas, que passa pelo ver e pelo ouvir. Heródoto não usa — e dignas de fé, pois mudam totalmente segundo quem as conta. Elas
quase não menciona — documentos escritos que poderiam ajudá-lo não conseguem verdadeiramente explicar, são até ridículas, pois
na reconstrução do passado. Esta Primazia da oralidade também ninguém de bom senso acreditará que estas histórias de rapto podem
sublinha a sua proximidade da tradição mítica e poética, transmitida desencadear guerras: nenhuma mulher vale uma guerra, sobretudo,
de geração em geração através de um aprendizado de cor, sem a ajuda nenhuma mulher, nos afirma o varão Heródoto, se deixa raptar
da escrita e da leitura, na imediatez da palavra falada e ouvida. contra a sua vontade (I, 4).
O ritmo narrativo das historiai também lembra o do poema épico, A estas lendas contadas de geração a geração sem nenhuma
declamado em voz alta ao público reunido em tomo do aedo: a prosa garantia de exatidão, Heródoto opõe a certeza daquilo que ele mesmo
de Heródoto está cheia de digressões maravilhosas, de anedotas sabe: "São estas as versões dos persas e dos fenícios. Quanto a mim, não
direi a respeito dessas coisas que elas aconteceram de uma maneira ou de
amenas ou pedagógicas que mantêm aceso o interesse do ouvinte (e
do leitor) . 6 Nada da arquitetura austera e argumentativa do texto outra, mas apontarei a pessoa que, em minha opinião, foi a primeira a
ofender os helenos, e assim prosseguirei com a minha narração, falando
tucidideano, escrito para ser lido no futuro, mas a fluidez de histórias
igualmente das pequenas e grandes cidades dos homens" (I, 5).
contadas, sem dúvida, para informar e ensinar, mas também pelo
Heródoto opera aqui uma partilha entre dois tipos de narrativas
simples prazer de contar. Neste rio de histórias que, como o Nilo que
que correspondem a duas formas de tempo: há uma narrativa mítica,
descrevem, transborda às vezes o seu leito e fertiliza terras não
lendária, sem cronologia possível, que remete ao tempo afastado dos
previstas pelo estrito desenho do raciocinio, nestas histórias, porém, deuses e dos homens; e há uma narrativa "histórica" (de um tempo
reina um principio novo e exigente: a busca das verdadeiras razões
pesquisável e pesquisado), com referências cronológicas passíveis de
(aitiai), das causas que Heródoto pôde, à sua maneira, verificar, em serem encontradas, que trata do tempo mais recente dos homens.
oposição às alegadas pela tradição mítica. Após explicitar sua tarefa Como o ressalta Vidal-Naquet, 8 esta oposição orienta o discurso de
de resgate do passado, Heródoto enumera algumas pseudocausas Heródoto muito mais que uma suposta oposição entre tempo cíclico
geralmente citadas para explicar a inimizade entre os gregos e os e tempo linear. Notemos também que Heródoto não duvida da
bárbaros; 7 são lendas antigas e confusas que variam segundo o povo existência deste tempo anterior, mítico e sagrado. A sua descrição do
5 A este respeito cf. J. P. Vernant, Mythe et pensée chez Ies Grecs (Paris: Maspéro, 1965); e Egito, pais que para os gregos clássicos sempre representou a autori-
Marcel Détienne, Les mattres de vérité dans la Greta archaïque (Paris: Maspéro, 1967). dade e a sabedoria de uma civilização muito mais antiga, ressalta que
6 Cf. Francois Hartog, op. cit., pp. 282 ss.
7 Os bárbaros sio os não-gregos, aqueles que falam uma lingua estranha, incompreensivel:
este tempo realmente existiu, mas está muito mais afastado do nosso
"bar, bar, bar". Nessa primeira definição, não há nenhum sentido pejorativo a priori. Que
o outro, o estrangeiro, dedlferente que é se torne selvagem e cruel, já remete a um processo 8 Cf. Pierre Vidal-Naquet, "Temps des dieux et temps des hommes", em Le chasseur noir
histórico bem determinado. (Paris: Maspéro, 1981), sobretudo pp. 81 ss.
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9
do que geralmente acreditamos. Não se trata de negar o tempo uma idéia de progresso histórico linear. Há sim, muito mais, a certeza
mítico e sagrado; trata-se, para Heródoto, de recusar os procedimen- de que qualquer excesso, mesmo um excesso de felicidade, deve ser
tos narrativos do mito para descrever o nosso tempo humano, restri- castigado, pois coloca em questão o equilíbrio cósmico (lembremos
to, finito..., enfim, "histórico"! A busca das verdadeiras razões dos que a palavra ,(Cosmos, em grego, significa "mundo" e "ordem": o
acontecimentos através do testemunho próprio ou alheio inscreve-se mundo já está em ordem e deve ser mantido nesta sua ordem
neste esforço racional — do logos em oposição ao rnythos — de escrita essencial). Vários episódios das historiai confirmam esta necessidade
da nossa história. (ananke) secular, à qual, segundo o pensamento mítico, mesmo os
Coexistem, porém, em Heródoto, ao lado do esforço de estabele- deuses obedecem; por exemplo, a famosa história de Polfcrates (III,
cimento de uma cronologia e de uma causalidade lineares, outras 39.43), tirano que tudo consegue e tenta em vão se livrar dessa sorte
tentativas de explicação muito mais antigas, ligadas ao pensamento grande demais, jogando no mar um anel muito precioso, reencontra-
que nossa razão continua designando
10 como mítico. Seguindo Vidal- do, alguns dias depois, na barriga do peixe servido à sua mesa.
Naquet e François Chátelet, devemos mencionar a crença de Heró- Polfcrates acabará assassinado vergonhosamente (III, 125), tendo um
doto numa lei cosmológica de repetição e de compensação. Esta idéia fim cruel, proporcionalmente ao seu excesso de sorte.
de repetição orienta a própria estrutura das historiai: assim, o rei Reina então em Heródoto um principio de causalidade profun-
Cresus anuncia Xerxes e a guerra de Darius1 contra os scitas anuncia damente grego e, para nós modernos, pouco "racional": ".,. o que os
a expedição de Xerxes contra os gregos.' Fundamentalmente, a idéia deuses castigam (...) é o orgulho desmedido (a hybris), a pretensão de
de repetição retoma a antiga lei de compensação e reviravolta, ligada um homem de ser mais que um homem. A narração histórica reen-
à noção mítica de vingança, que se transformará 12
no conceito de contra as lições da tragédia." 13 Mesmo se Heródoto menciona, com
justiça natural e social, na dike de Anaximandro. muita perspicácia, uma série de causas mais imediatas das guerras (um
Depois de recusar as causas lendárias das Guerras Médicas, Heró- incêndio criminoso, um juramento transmitido de geração em gera-
doto declara: "Quanto a mim, não direi a respeito dessas coisas que ção, o caráter especialmente irascível de um rei etc.), 14 a verdadeira
elas aconteceram de uma maneira ou de outra, mas apontarei a pessoa razão da derrota persa deve ser procurada no necessário castigo da
que, em minha opinião, foi a primeira a ofender os helenos, e assim ambição ilimitada de Darius e de Xerxes. É esta hybris que caracteriza,
prosseguirei com a minha narração, falando igualmente das pequenas aliás, os reis bárbaros (e alguns tiranos gregos): 15 o rei dos reis sempre
e das grandes cidades dos homens, pois muitas cidades outrora quer ir além dos limites impostos pela ordem material ou social. Esta
grandes agora são pequenas, e as grandes no meu tempo eram outrora vontade de transgressão o faz ultrapassar as fronteiras naturais para
pequenas. Sabendo portanto que a prosperidade humana jamais é deixar a Asia, seu dominio próprio, e invadir a Europa, que não lhe
estável, farei menção a ambas igualmente" (I, 5). pertence: Ciro, fundador da dinastia, constrói uma ponte sobre o rio
Temos, aqui, a convicção, ao lado da busca das causas políticas, Araxe no norte de seu império; Darius atravessa o Bósforo; Xerxes,
de que existe um processo cíclico de compensação justa: nada de enfim, ergue, por duas vezes, uma ponte sobre o Helesponte para
humano que seja estável, o pequeno cresce até se tomar grande, mas chegar à Grécia. A primeira ponte é destruída por uma tempestade
também o grande desmorona e se torna pequeno de novo. Em que manifesta claramente a recusa do mar divino. Xerxes manda
Heródoto, como no pensamento grego em geral, não há lugar para flagelar o Helesponte, como se fosse o seu escravo, e constrói uma
segunda ponte; não é por acaso que será derrotado na batalha naval
9 Ibid.
10Cf. Pierre Vidal-Naquet, op. cit.; e François Chatelet, op. cit. Deste, cf. também, Les
de Salaminas: o mar ultrajado se vinga através da frota ateniense
ldéologla (orgs. Chatelet e G. Mairet, Paris: Marabout, 1981), v.1, pp. 171 ss. vitoriosa. O rei persa tampouco respeita as leis estabelecidas pelos
11 Cf. Pierre Vidal-Naquet, op. cit.; François Chatelet, op. cit.; e, também, François Hartog,
op. cit., p. 376. 13 François Chatelet, Les ideologies, loc. cit., v. I, pp. 134-135.
12 Anaximandro, fragmentos citados por Simplicius, Física, 24, 13; cf. Pré-socráticos (Sao 14 Ibid.
Paulo: Abril Cultural, 1973 e reed.); Coleçao Os Pensadores, p. 16. 15 Cf. François Hartog, "Le pouvoir despotique", op. cit., parte III, cap. 3.
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homens: ultraja o corpo dos seus súditos, os flagela, os corta, os "mesmo" muito mais coerente e pleno do que teria feito uma simples
amputa, os tortura ou, então, os deseja demais (a palavra eros só se reprodução dos seus traços; somente a mediação pelo outro permite
aplica aos reis e aos tiranos nas historiai). Deseja-os mais ainda quando esta auto-apreensão segura de si mesmo.
lhe são proibidos pelas leis humanas: Cambisies deseja suas irmãs, o De que, pois, falam as historiai senão dos gregos através dos
faraó Mikerinos sua filha, Xerxes a mulher de seu filho etc. Imperia- bárbaros? Como o mostra o livro de F. Hartog, uma lei estrutura a
lismo e erotismo caracterizam esta vontade sem freio do soberano obra: a lei da comparação entre bárbaros e gregos, não para decidir
que, finalmente, o levará à sua perda. quemé melhor (Heródoto foi acusado de barbarophilia, de gostar
Com efeito, na análise de Heródoto, os gregos não vencem demais dos bárbaros), mas muito mais para entender como funciona
porque são melhores —sejam eles mais "civilizados" que estes bárba- o diferente. Esta estrutura forma a unidade da obra, muitas vezes
ros "selvagens", 1fi sejam eles guerreiros mais corajosos. O que funda negada pela tradição critica. Os primeiros quatro livros são dedicados
a superioridade dos gregos é que eles não obedecem ao chicote de à descrição dos "outros" — dos persas, dos egipcios, dos scitas etc. —,
um senhor despótico (o despotes persa), mas a uma regra, a uma lei os cinco últimos à história propriamente dita das Guerras Médicas.
(nomos) que eles mesmos escolheram e estabeleceram.' Ao privilegiar Muitos comentadores quiseram ver um corte epistemológico entre
a democracia, em particular a democracia ateniense, contra a monarquia um "Heródoto etnólogo", apaixonado pelo diferente, pelo maravi-
e a tirania, Heródoto não escolhe simplesmente um regime politico. lhoso, pelo exótico, e um "Heródoto historiador", relator sereno e
Defende uma concepção da sociedade humana fundada no logos, isto é, maduro da primeira vitória da racionalidade ocidental sobre as forças
no diálogo argumentativo entre iguais que procuram juntos uma regra caóticas do Oriente. Ora, como o ressalta Hartog, 19 o "Heródoto
comum de ação; a este paradigma racional e democrático se opõe uma etnólogo" e o "Heródoto historiador" são um e só pesquisador que
concepção do social baseada no poder e na vontade (para não dizer tgntá entender aquilo que é condição de convivência e também__
na vontade de poder!) do mais forte, na sua transgressão das regras possibilidade de &tierra: a diferença. Se ele é mais prolixo e está
do convívio social e na sua expansão sem limites. Este conflito, que seduzido pelo exótico nos quatro primeiros livros, é porque o outro
perdura até hoje, preside a oposição-mestra das historiai, a oposição é tão diferente que só pode provocar admiração; os cinco últimos
entre gregos e bárbaros. Uma geração mais tarde, com Tucidides, e, livros, por tratarem de "n6s mesmos, pedem um tom mais sóbrio.
depois, com Platão e a sofistica, a contradição entre nomos (lei, regra) Um pouco à imagem da sua cidade natal — Halicamassos, situada
ephysis (natureza) corroerá por dentro o belo edificio da polis atenien- na costa da Ásia, mas pertencendo à civilização grega —, Heródoto
se. Conta-se que Heródoto leu, em 445 ou 444 a.C., o seu texto em tentaria manter uma posição privilegiada de intermediário, de media-
voz alta ao povo ateniense reunido; transportados pelo entusiasmo, os dor aquele que está no meio, entre os bárbaros asiáticos e os gregos
cidadãos de Atenas lhe ofereceram um prêmio, como se fazia nos europeus, aquele que estabelece uma mediação entre dois opostos.
concursos de poesia trágica. Talvez uma das razões deste sucesso decor- Lugar mediano, singular, que o estatuto de exilado de Heródoto
resse de Heródoto ter conseguido construir através da longa descrição reforça. 20 As análises de Hartog ressaltam essa vontade explicita do
dos povos bárbaros uma imagem convincente de "n6s", dos gregos, autor de marcar a sua posição de narrador, isto é, de sujeito soberano
em particular dos atenienses. Observe-se: não uma imagem bela da enunciação: "eu vi", "eu ouvi", "eu contarei", "eu mostrarei", "eu
demais ou demagogicamente lisonjeira, mas a confrontação com o direi", mas também "eu não direi", "eu sei, mas manterei a informa-
"outro" permite, por um jogo de espelhos,' g pintar um retrato do ção secreta" etc. Estas expressões pontuam o texto e nos lembram
incessantemente que a nossa informação só provém do seu saber.
16 Esta sera a opinião de Tucidides que, por isso, desinteressar-se-a dos bárbaros, estágio
anterior da civilização. Cf. Tucidides, Guerra do Peloponeso, I, 6; e François Hartog, op. cit., Hartog também chama a atenção para o fato de Heródoto falar, às
p. 371.
17 Cf. François Hartog, op. cit., pp. 340 ss. 19 Cf. François Hartog, op. cit., pp. 373 ss.
18 Daf o belo titulo do livro de Hartog, Le miroir d'Hérodote — Essai sur la representation de 20 Heródoto tem que se exilar, pois a sua familia se opios sem sucesso ao tirano da cidade.
l'autre. Observe-se que também Tucidides sera um exilado.
24 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA
D INICIO DA HISTÓRIA E AS LAGRIMAS DE TUCIOIOES 25

vezes, nos bárbiros e em "nós (isto é, eu e os outros gregos incluin- tuições são geralmente diferentes dos costumes e instituições dos
do-se nos "nós"), mas também, muitas vezes, nos bárbaros e nos outros homens. Entre os egípcios as mulheres compram e ven-
gregos, usando esta terceira pessoa que, segundo as análises de dem, enquanto os homens ficam em casa e tecem. Em toda a parte
Benveniste, 21 rião é realmente uma pessoa, reservando, assim, ao
se tece levando a trama de baixo para cima, mas os egípcios a
"eu-narrador" um lugar à parte, a igual distáncia dos bárbaros e dos
levam de cima para baixo. Os homens carregam os fardos em suas
gregos.
cabeças, mas as mulheres os carregam em seus ombros. As mulhe-
Ora, esta posição privilegiada do narrador, que deveria assegurar
res urinam em pé, e os homens acocorados. Eles satisfazem as suas
tanto o seu poder como a sua objetividade (tão cara aos historiadores
necessidades naturais dentro de casa, mas comem do lado de fora,
futuros), esta posição mediadora e imparcial é sub-repticiamente
nas mas, alegando que as necessidades vergonhosas do corpo
minada pelo fluxo da narrativa. Se, como já assinalamos, é a lei da
comparação entre gregos e bárbaros que estrutura o texto herodotia- devem ser satisfeitas secretamente, enquanto as não-vergonhosas
devem ser satisfeitas abertamente. Nenhuma mulher é consagrada
no, esta comparação se transforma, na maioria dos casos, numa
inversão simétrica, cujo primeiro termo só pode ser o referencial ao serviço de qualquer divindade, seja esta masculina ou femini-
22
grego. Hartog observa que Heródoto quer realmente descrever os na; os homens são sacerdotes de todas as divindades. Os filhos
outros povos, narrar com generosidade e admiração os seus tão não são compelidos contra a sua vontade a sustentar seus pais,
estranhos costumes; mas ele só consegue falar deles "em grego", isto mas as filhas devem fazé-Io, mesmo sem querer.
é, com as categorias e com a lógica de compreensão de um grego do
século V. Ele, aliás, não sente nenhuma necessidade em aprender as Para ser fiel à intenção das suas historiai, o narrador Heródoto
línguas dos povos que visita. Assim, ao tentar entender o que é o tenta permanecer firmemente no lugar privilegiado do meio e da
diferente, Heródoto o transforma no "outro do mesmo", no duplo mediação, significando aos gregos que os bárbaros não são nem
inverso e simétrico do modelo primeiro — isto é, grego —, modelo piores nem melhores, mas, simplesmente, diferentes. Para descrever
sempre presente, também, quando não está explícito (sobretudo e entendé-los, recorre à oposição, à inversão, ao contrário, a todas as
quando não está explicito?). O Livro II, consagrado ao fabuloso Egito, figuras que transformam a diferença múltipla em alteridade (no
está cheio destas descrições invertidas, que deveriam, sem dúvida, nos
sentido etimológico do latim alter [outro de dois]). Esta lei de oposição
mostrar o quanto são estranhos os egípcios, mas cujo efeito consiste
binária é tão forte que, como assinala Hartog, 23 quando Heródoto
muito mais em nos remeter aos nossos costumes de gregos. Assim,
descreve um conflito entre dois povos bárbaros, um deles tende,
por exemplo, a deliciosa passagem do Livro II, 35, na qual a inversão
inexoravelmente, a se helenizar, a assumir, por exemplo, a estratégia
entre gregos e bárbaros é descrita pela inversão dos papéis masculino
dos hoplitas gregos: entre o grego e seu contrário, o bárbaro, não há
e feminino (pois a primeira e incompreensível diferença é a dos
sexos): lugar para uma terceira (quarta, quinta) possibilidade. Nesta partilha,
o eu do narrador já escolheu, talvez contra a sua vontade consciente,
Mas vou alongar-me em minhas observações a respeito do Egito, o lado grego, esse lado que não entende a lingua "bár/ba/ra", e
pois em parte alguma há tantas maravilhas como lá, e em todas tampouco precisa aprendê-Ia. Como se a bela lingua grega pudesse
as terras restantes não há tantas obras de inexprimível grandeza dizer tudo: desejo — ou hybris? — do primeiro historiador, e de outros
para serem vistas; por isso falarei mais sobre ele. Da mesma forma depois dele, de poder descrever o outro sem que este nos desalojasse
que o Egito tem um clima peculiar e seu rio é diferente por sua necessariamente da nossa gramática e da nossa terminologia, nos
natureza de todos os outros rios, todos os seus costumes e insti- forçasse a sair da nossa língua com o risco de ficarmos, talvez por
muito tempo, sem palavras.
21 CE Emile Benveniste, Problèmes de linguistique generate (Paris: Gallimard,
1966), cap. 18.
22 Cf. François Hartog, op. cit., pp. 224 ss.
23 Ibid., pp. 369 ss.
26 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA
0 INÍCIO OA HISTÓRIA E AS LAGRIMAS DE TUCÍOIOES : 27
Existem, também, várias histórias sobre Heródoto. Uma delas Quanto aos discursos pronunciados por diversas personalidades
conta que leu trechos de sua obra num concurso literário que acom- quando estavam prestes a desencadear a guerra ou quando já
panhava as provas esportivas dos jogos olímpicos; na assistência, um estavam engajados nela, foi difícil recordar com precisão rigorosa
adolescente ficou emocionado até as lágrimas: era o jovem Tucfdides. os que eu mesmo ouvi ou os que me foram transmitidos por várias
História "verdadeira" ou ficção "mentirosa"? Nada nos impede de fontes. Tais discursos, portanto, são reproduzidos com as palavras
continuar essa bela história, nos perguntando sobre as lágrimas de que, no meu entendimento, os diferentes oradores deveriam ter
Tucfdides. Por que chorou? Por que teve revelada af a sua "vocação" usado, considerando os respectivos assuntos e os sentimentos
de historiador, como pretendem vários comentadores? Ou, talvez, mais pertinentes à ocasião em que foram pronunciados, embora
porque chorava sobre esta bela imagem da Atenas democrática e ao mesmo tempo eu tenha aderido tão estritamente quanto
heróica, salvadora da Grécia inteira, imagem já prestes a desaparecer? possível ao sentido geral do que havia sido dito. Quanto aos
Ou, ainda, porque pressentia que, em breve, deveria despedir-se deste acontecimentos da guerra, considerei meu dever relatá-los, não
como apurados através de qualquer informante casual nem como
estilo amável e sereno que ainda confiava no prazer da palavra e na
tolerância da razão? Ninguém o sabe. era a minha impressão pessoal, mas somente após investigar cada
Agora, quando lemos A Guerra do Peloponeso, o que chama a nossa detalhe com o maior rigor possível, seja no caso de eventos dos
atenção é o corte radical 24 introduzido por Tucfdides em relação à quais eu mesmo participei, seja naqueles a respeito dos quais
obtive informações de terceiros. O empenho em apurar os fatos
tradição narrativa da "história", em particular em relação a Heródoto constituiu uma tarefa laboriosa, pois testemunhas oculares de
(que, por sua vez, também tinha criticado seu antecessor, o viajante vários eventos nem sempre faziam os mesmos relatos a respeito
Hecateu). Nada mais da emoção que, talvez, sentiu ao escutar o "pai das mesmas coisas, mas variavam de acordo com suas simpatias
da história" (e de tantas histórias). Tucfdides rejeita Heródoto no por um lado ou pelo outro, ou de acordo com sua memória 25
domínio das antigas tradições míticas, no mythodes que recusa por-
que, sob seus aspectos agradáveis e sedutores, ele não possui nenhu-
ma solidez ese desfaz com a rapidez das palavras lançadas ao vento. É notável, aqui, a insistência de Tucfdides em afirmar que não vai
Com ormythodes o maravilhoso tão caro a Heródoto, Tucfdides relatar as palavras realmente pronunciadas. Isto poderia ser até i m-
rejeita, também, a importância da memória, relegando ao passado a plícito se lembrarmos que os discursos proferidos o eram em assem-
antiga deusa Mnemosyne. Heródoto queria salvar o memorável, bléias ad hoc, sem relator nem secretário; mas se Tucfdides insiste
resgatar o passado do esquecimento, buscando nas palavras das nesse ponto é que ele quer ressaltar uma impossibilidade mais essen-
testemunhas a lembrança das obras humanas. Tucfdides ressalta a cial: nãóse góde acreditar na memória para garantir a fidelidade do
fragilidade da memória, tanto alheia como sua; as falhas constantes relato à realidade. Em oposição à toda tradição anterior, a memória
de memória motivam uma profunda mudança no trabalho do "his- em Tucldides riãü assegura nenhuma autenticidade. Esta desconfian-
toriador", que não pode confiar nem na sua exatidão nem na sua ça motiva a critica severa aos métodos de pesquisa de Heródoto, aqui
claramente citado, mesmo se não nomeado: perguntar às mais diver-
objetividade. Nos primeiros parágrafos da sua obra consagrados —
sas pessoas sobre um mesmo evento não traz informações, mas só
poderfamos dizer — à sua metodologia de pesquisa, Tucídides despa- ocasiona confusão, pois cada um responde "... de acordo com suas
cha juntos as suas próprias lembranças e os testemunhos dos outros,
simpatias (...) ou de acordo com sua memória". É verdade que, várias
ambos condenados A subjetividade das preferências pessoais e à vezes, Heródoto não esconde seu ceticismo em relação As versões dos
relatividade da memória: fatos ou As explicações ouvidas. Tucfdides não se contenta com um
ceticismo benevolente; exige uma reconstituição crítica dos aconte-
24 Sobre a distancia de Tucfdides em relação ao mito e à memória, cf. as páginas decisivas
de Marcel Détienne, L'invention de la mythologie, pp. 105 ss.
25 Tucfdides, La Guerra du PeloponAse, I, 22.
28 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMORIA E HISTORIA O INICIO DA HISTÓRIA E AS LAGRIMAS OE TUC(OIOES 29

cimentos, cujos critérios racionais são a verossimilhança da situação imperialismo ateniense, pois Tucfdides não cita as suas fontes nem
e a pertinência das palavras pronunciadas: menciona documentos (uma exigência "cientifica" profundamente
moderna) e s6 nos oferece o resultado da sua reflexão rigorosa.
Tais discursos, portanto, são reproduzidos com as palavras que, Enquanto Herbdoto contava inúmeras histórias, também pelo pró-
no meu entendimento, os diferentes oradores deveriam ter usado, prio gosto de contar, Tucfdides constrói a versão racional e defini-
considerando os respectivos assuntos e os sentimentos
26
mais per- tiva da história sem se deixar Levar pelo prazer da narração; dal,
tinentes à ocasião em que foram pronunciados... também, a austeridade do seu relato, no qual as emoções raramente
transparecem.
Significaria esta passagem que Tucfdides, em vez de relatar as A escrita tucidideana obedece a uma partilha que reencontra-
palavras ditas, as inventa sem dar a devida importância aos famosos mos em Platão: de um lado, a razão, a austeridade, o rigor e o
fatos?27 Talvez. No mínimo, significa que Tucfdides escreveu os seus controle; de outro, a emoção, o prazer, o maravilhoso cheio de
numerosos e famosos discursos segundo a ordem das razões históri- cores que atrai mulheres e crianças: o mythodes. De um lado, uns
cas, como o faria um filósofo político ou um observador psicólogo, poucos que conseguem compreender, analisar, ter um discurso
e não como um cronista, confiando em suas lembranças. Na ordem competente e justo, que também sabem dirigir (Péricles); de outro,
dos discursos (dos logoi) prevalece, portanto, o critério racional da os muitos, o povo que se deixa levar pelas impressões superficiais e
conveniência e da verossimilhança, amparado por uma análise da pelos encantos das belas palavras, que não sabe dirigir nem a si
conjuntura política e da natureza psicológica do orador. Na ordem mesmo e precisa da autoridade alheia. Em Tucfdides — diferente-
dos acontecimentos e das ações (dos erga) reina o critério da verifica-
mente de Platão, que resguardará o seu valor sagrado —, a memória
ção, igualmente amparado na verossimilhança racional. Tucfdides
pertence ao mythodes e ao engodo. Ela não reproduz fielmente o
não conta as várias versões possíveis do mesmo fato, para deixar o
leitor livre de escolher a que mais lhe apraz. O seu texto resulta de passado, mas dispõe dele segundo as conveniências do momento
uma escolha prévia a partir de um material que não é nem sequer presente. Assim, por exemplo, a tradição ateniense conta a façanha
mencionado, e segundo critérios cujos detalhes desconhecemos. A memorável do assassinato dos tiranos pelos heróis Harmodios e
inteligência de Tucfdides já decidiu por nós a versão racional a ser Aristogitão. Esta história pertence ao repertório das lendas que
adotada. A sua narrativa se desenvolve de maneira coerente, com uma glorificam a democracia em vigor na cidade. Na verdade, diz Tucfdi-
lógica que nos convence das suas hipóteses e das suas interpretações. des, os "tiranocidas" não obedeceram a elevados motivos politicos,
Pela primeira vez, a história humana nos é apresentada como com- mas, sim, a ciúmes amorosos bem mais comuns; prova disso é que
preensível e explicável racionalmente, com todas as suas implicações s6 um dos tiranos foi morto, enquanto o outro, mais velho e mais
e possibilidades. A trama escura e dramática da Guerra do Peloponeso poderoso, continuou reinando até que um complb de cidadãos
28
desenha-se sobre o fundo luminoso de um discurso (logos) e de uma (ajudados pela inimiga Esparta!) o derrotasse. A desconfiança em
razão (logos também) que atravessam o caos dos fatos, para deles relação à memória inscreve-se num projeto muito mais amplo, que
retirarem conclusões valiosas e ensinamentos eternos. O discernimento chamaríamos, hoje, de crítica ideológica, pois memória e tradição
de Tucfdides nos permite compreender racionalmente a história; nos formam este conglomerado confuso de falsas evidências, do qual
i mpede, ao mesmo tempo, de conceber uma outra história que aquela
ó presente tira sua justificativa. A escrita desmistificadora de Tucf-
escrita por ele. Nós não conseguimos imaginar uma outra versão da dides não poupa nem a tradição política nem a tradição religiosa.
guerra, uma outra Guerra do Peloponeso, uma outra história do
Exemplares, aqui, são as suas observações depois da dramática
26 Ibid. descrição da "peste" em Atenas:
27 Tal suspeita leva, por exemplo, R. G. Collingwood a criticar a falta de "cientificidade" de
Tucídides.Cf.ILG. Collingwood,A IANadeHistdria (São Paulo: Martins Fontes), pp. 42 ss. 28 Cf. Tucfdides, citado por Marcel Détienne, op. cit., p. 108.
30 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA 0 INÍCIO OA HISTÓRIA E AS LAGRIMAS OE TUCÍDIDES : 31

Em seu desespero [os atenienses] lembravam-se, como era natural, Mais do que uma composição a ser ouvida por um público do
do seguinte verso oracular que, segundo os mais velhos entre eles, momento da competição, ela foi feita para ser uma aquisição para
fora proferido havia muito tempo: 'Virá um dia a guerra daria, e com sempre 33
ela a peste.' Houve na época muita discussão entre o povo, pois uma
parte da população pretendia que no verso em vez de peste (loimos) Neste parágrafo famoso, Tucídides se despede definitivamente do
se deveria entender fome (limos), e naquela ocasião prevaleceu o
mythos e do mythodes para fundar um discurso racional (logos) da
ponto de vista de que a palavra era peste; isso era muito natural,
história. Ele não quer mais contar o maravilhoso (em oposição a
pois as lembranças dos homens se adaptam a suas vicissitudes. Se
Heródoto, que falava demoradamente do Egito "pois nenhum outro
houver outra guerra daria depois desta e com ela vier a fome, 34
pals do mundo contém tantas maravilhas"), nem salvar os atos
i magino que entenderão o verso à luz das novas circunstancias. 29
passados do esquecimento, como Homero e, ainda que de maneira
diferente, também Heródoto o desejavam. A sua vontade de "ter uma
O único remédio para evitar esta manipulação do passado é deixar idéia clara (...) dos eventos ocorridos" tampouco remete a uma
resolutamente os encantos da oralidade, das palavras que voam de preocupação exclusiva de fidelidade para com o passado ( motivação
boca para boca, incham-se de desejos e paixões e chegam cheias de muito mais típica do historicismo moderno). Demonstra muito mais
histórias inverificáveis. 30 Tucídides reivindica a escrita como meio de uma exigência de penetração racional e analítica deste magma infor-
fixação dos acontecimentos, fazendo da imutabilidade do escrito uma me que são os fatos do passado, para deles extrair um ktèma eis aei,
garantia de fidelidade. 31 Várias vezes, ele se define como sendo um uma aquisição, um tesouro para sempre —isto é, primeiro para o leitor
syggrapheus, aquele que escreve (graphein) junto (sun) aos aconteci- atento e futuro que IeráA Guerra do Peloponeso para tirar desta história
mentos, titulo que também se aplica aos juristas redatores de projetos antiga ensinamentos atuais. Heródoto escrevia para resgatar um
de lei ou de contratos precisos entre cidadãos. Trata-se, então, de uma 35
passado ilustre; Tucídides escreve no presente sobre o presente para
grafia que engaja a quem a escreve ou ale, uma escrita que exige uma
instruir o futuro, confiante que da história do passado possa-se
atitude prática e uma coerência a longo prazo. Não remete à tradição
aprender para o presente, pois a natureza humana continua inaltera-
poético-literária do mythodes, como o faziam ainda as historiai de
da, isto é, sempre prestes a obedecer ao desejo de poder, sacrificando
Heródoto, mas às exigências político-jurídicas de um cidadão preocu-
o interesse geral aos interesses particulares e egoístas. Inaugura, assim,
pado com o futuro. O "historiador" abandona — por Longo tempo — a
a figura da Historia Magistra Vitae, 36 desenhando estes quadros renas-
dimensão ficcional da história para consagrar-se à sua dimensão
política, muitas vezes erigida como a única verdadeiramente históri- centistas nos quais um historiador sóbrio e sábio, de pé no segundo
ca. 32 Tucídides explicita esta escolha com uma clareza exemplar: plano, olha para um jovem príncipe que decifra as regras da vida
política nos antigos livros de história.
A oralidade do texto lido em voz alta para "um público no
Pode acontecer que a ausencia do fabuloso ( mythodes) em minha momento da competição" contrapõe-se a escrita rigorosa, destinada
narrativa pareça menos agradável ao ouvido, mas quem quer que ao leitor a vir, debruçado com paciência e atenção sobre o texto.
deseje ter uma idéia clara tanto dos eventos ocorridos quanto Todos os comentadores concordam em observar que esta ruptura
daqueles, semelhantes ou similares, que a natureza humana nos decisiva em favor da escrita contra a vivacidade da palavra oral não
reserva no futuro, julgará a minha narrativa útil e isto me bastará. remete só à critica da tradição mítica (e herodotiana) mas, também,
29 Ibid., p. 109.
33 Tuddides, op. cit., 1, 22.
30 Ibid., pp. 115 ss.
34 Heródoto, Historiai, 11, 35.
31 Neste ponto não concorda com Platão, que no Fedro v2 na fixidez da escrita uma prova 35 A guerra começa em 431 a.C., Tucídides começa a redação da sua obra neste mesmo ano.
da sua rigidez arbitrária.
A sua morte o impedirá de contar o fim da guerra (404 a.C.), que ele presencia.
32 Nos debates historiográficos contemporâneos, assistimos a uma revalorização desta
36 Cf. R. Koselleck, Vergangene Zukunft. Zur Semantik Geschichaicher Zeiten (Frankfurt am
dimensão ficcional... e a uma redescoberta de Heródoto! Main: Suhrkamp, 1979), cap. 2.
O INÍCIO DA HISTÓRIA E AS LAGRIMAS DE TUCÍO IDES 33
32 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA
novo navio é enviado às pressas para alcançar o primeiro e revogar o
e sobretudo,'à critica dos usos da palavra na democracia ateniense 37
decreto de morte.
Atrás da necessidade de reformular a escrita da história, encontramos
Tais episódios preparam, na argumentação tucidideana, a conclu-
a necessidade de reformular a democracia ateniense. Para Tucfdides,
são desastrosa da guerra: a expedição de Sicilia e a derrota final. Um
uma das causas essenciais da derrota de Atenas é a cegueira do povo,
outro demagogo, orador brilhante, interessado e charmoso, o belo
que se deixa arrebatar pelos seus desejos e pela voz dos demagogos.
Alcibiades, leva os atenienses a este empreendimento fatal. Tucfdides
O único dirigente que R não fala para "agradar o povo", mas sim para ressalta a oposição entre a falta de conhecimento, a ignorãncia do
educá-lo, é Péricles (observemos que esta oposição entre agradar e
povo a respeito da grande ilha e o seu desejo ardoroso (a palavra é
educar lembra aquela que Tucfdides constrói entre Heródoto e ele 41
ecos em VI, 24) de novas conquistas. Em vez de informar os seus
mesmo). Com sua morte, começa o reino dos demagogos, que não
concidadãos sobre as dificuldades futuras, Alcibiades encoraja os seus
tem autoridade pessoal e, por isso, tentam agradar ao povo para
desejos irracionais, conseguindo, assim, vencer os conselhos de pm-
vencer na assembléia, pois "... equivalentes uns aos outros mas cada
déncia do velho Nicias.
um desejoso de 39 ser o primeiro, procuravam sempre satisfazer ao
A Guerra do Peloponeso oferece reiteradamente ao leitor estas
prazer do povo": A palavra hèdonè (prazer) ressalta o caráter afetivo
situações paradigmáticas de escolha: entre aquilo que ditam a reflexão
e emocional das decisões populares; esta falha de razão na conduta e a razão e aquilo a que levam o ímpeto da paixão e o prazer. O povo
dos negócios da cidade vai, segundo a análise tucidideana, conduzir ateniense lembra a alma platônica com os seus dois cavalos opostos,
Atenas à sua perda. Várias vezes, Tucfdides nos conta episódios que, que o cocheiro/nous consegue domar a duras penas. Este conflito entre
a rigor, não têm uma importância decisiva no desenrolar das opera-
razão e desejo motiva o uso particular que Tucfdides faz de uma
42 técnica
ções bélicas, mas que são paradigmáticos desta irracionalidade. Um muito em moda na época: o debate oratório contraditório.
dos mais característicos é a história de Mitilena, cidade de Lesbos, que Os sofistas tinham mostrado que é possível defender com igual
se absteve de apoiar Atenas; um contingente ateniense sitia a cidade, vigor uma tese X e a sua antítese Y, colocando, desta maneira, a
esperando a decisão da metrópole; com o inverno e a falta de socorro habilidade retórica acima da busca de uma verdade objetiva, inde-
do campo oposto, Mitilena se rende. Que fazer com seus habitantes? pendente da sua apresentação discursiva. O exercício dos dissoi logoi
A assembléia ateniense delibera. Clêon, um demagogo famoso pelo (discursos duplos) foi muito importante, notadamente para o adven-
seu caráter desmedido, intervém e propõe a morte de todos cidadãos to das práticas judiciárias de defesa e de acusação. Os discursos
de Mitilena; "sob efeito da cólera" (orgé), diz Tucfdides, 40 o povo vota
contraditórios do retor Antiphon eram modelos do gênero. Tucfdides
em favor da matança e envia um navio com esta ordem para a ilha.
transforma esta técnica de agôn log6n (jogo, Luta de discursos opostos)
No dia seguinte, nova assembléia: os cidadãos começavam a se num instrumento de análise política; sem precisar sair da sua objeti-
arrepender de ter votado medidas tão drásticas. Dois oradores entram vidade impessoal de narrador, ele pode, graças à construção antilógi-
em cena numa situação modelar de briga oratória: Clêon, de um lado, ca, apontar para os aspectos mais problemáticos de uma dada situação
que continua afirmando a necessidade da repressão sanguinária e, do e desvelar a trama de poderes que af se esconde. Contra os exercícios
outro, um cidadão desconhecido por nós, Diodotés, que recomenda retóricos dos sofistas, Platão propels o diálogo comum em vista de
mais sabedoria, argumentando que essa crueldade só fortalecerá o uma verdade única, recusando as antilogias que tornam qualquer
ódio dos inimigos de Atenas. Desta vez o povo escuta Diodotés; um conclusão substancial impossível, pois sempre precisam de um árbi-
37 A esse respeito, cf. Jacqueline de Romilly, Problèmes de la democratie grecque, op. cit.,
tro exterior, de um juiz que saiba compará-las e julgá-las. Em Tucfdi-
especialmente pp. 19-47; e também Francois Chatelet, op. cit., cap. If. des, este árbitro habita a própria construção textual: é o leitor futuro
38 Tucfdides, op. cit., II, 66; cf. também, Jacqueline de Romilly, Problèmes de la democratie
grecque, op. cit., pp. 30-38.
41 CL, Jacqueline de Romilly, Problèmes de la democratic grecque, op. cit., pp. 35 ss.
39 Tucfdides, op. cit. 42 Cf., a este respeito, Jacqueline de Romilly, Histoire et raison chez Thucydide, op. cit., cap.
40 Tucfdides, op. cit., II, 36; e Jacqueline de Romilly, Problèmes de la democratic grecque,
op. III.
cit., p. 33.
34 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM. MEMORIA E HISTORIA U INÍCIO OA HISTÓRIA E AS LAGRIMAS GE TUCIOIDES : 35

a quem Tucfdides fornece todos os elementos necessários de análise de Atenas ao mar desenha a trajetória da sua grandeza: inicia com a
e de decisão através da colocação em cena de discursos contraditórios; vitória de Salamina, aumenta com a constituição da Liga de Delos
ao mesmo tempo, a opinião do autor fica clara, sem que se precise de (originariamente uma confederação de cidades iguais, unidas contra
declarações explicitas. a ameaça persa, a Liga transformar-se-á no império de Atenas sobre os
As discussões antagônicas também realçam, como o sabiam mui- outros membros) e termina com a expedição de Sicilia. A análise
to bem os sofistas, que as decisões pessoais ou coletivas, na sua grande tucidideana ressalta a necessidade desta trajetória, insistindo, em
maioria, não se baseiam na força racional da argumentação, mas, sim, particular, na estreita conexão entre democracia e imperialismo ate-
no poder de cada interlocutor. Poder de persuasão, sem dúvida, que nienses. Em oposição a Esparta, que encarna a tradição e a conservação
a famosa deusa Peith6 encarna, mas também poder material e políti- do status quo, a jovem democracia representa a vontade de mudança
co, potência concreta daquele que fala, pois poder de persuasão e e a dinâmica da evolução. Aberta ás novidades técnicas, econômicas e
poder político são co-pertencentes. Em Tucfdides, também, a técnica científicas, Atenas tem que progredir sempre no seu desenvolvimento,
tão fina da exposição antagônica é inseparável de uma análise dos pois qualquer interrupção significaria um retrocesso. Orgulhosos de
poderes politicos em jogo. O que sustenta a construção retórica é a sua cidade, os cidadãos prezam comemorações, festas e monumentos
reflexão tucidideana sobre o poder, em particular a sua teoria do cada vez mais suntuosos; os metecos (estrangeiros) afluem para a cidade
imperialismo ateniense. 43 Já no começo da obra é este imperialismo que conta, sob Péricles, cerca de quatrocentos mil habitantes. A campanha
(não no sentido moderno, é claro) que leva Tucfdides a distinguir ática não pode fornecer alimentos suficientes para esta multidão: o
com uma acuidade notável entre os pretextos da guerra, as razões domínio de Atenas, graças ã Liga de Delos, sobre o Mediterrâneo oriental
alegadas, e a sua causa verdadeira mas não dita: assegura também aos seus navios a "rota do trigo", buscado até nas
planícies da atual Rússia. Há, portanto, para Tucfdides, um vínculo
As razões pelas quais eles [os atenienses e os peloponésios] rom- necessário entre a realização interna da democracia e o estabelecimen-
peram a trégua e os fundamentos de sua disputa eu exporei to da dominação, da tirania extrema. A liberdade de Atenas depende
primeiro, para que ninguém jamais tenha de indagar como os da sua superioridade constantemente renovada e assegurada em rela-
Helenos chegaram a envolver-se em uma guerra tão grande. A ção às outras cidades invejosas. Para não se tornarem escravos, os
explicação mais verídica, apesar de menos freqüentemente alega- cidadãos atenienses devem permanecer os senhores a qualquer custo;
da é, na minha opinião, que os atenienses estavam tornando-se esta dialética assume na Antigüidade feições muito reais, pois numa
muito poderosos, e isto inquietava os Iacedemõnios, compelin- guerra os vencidos são geralmente mortos ou vendidos como escravos.
do-os a recorrerem ã guerra. As razões publicamente alegadas A grandeza de Atenas repousa sobre o imperialismo externo e, dentro
pelos dois lados, todavia, e que os teriam levado a romper a trégua da cidade, sobre a escravidão. Diz Châtelet:
"
e entrar em guerra foram as seguintes....
Esquematicamente, acontece com o império o mesmo que com a
O poder de Atenas nasceu do seu papel essencial na vitória sobre classe servil. Os cidadãos asseguravam o seu bem-estar, a sua
os persas. Os atenienses venceram os bárbaros graças ã sua frota, independência e a sua segurança com tanta mais eficácia
46 que
deslocando o eixo das Guerras Médicas da terra para o mar. Esta exploram uma maior multidão de súditos e de escravos.
oposição entre terra e mar é constitutiva, na análise de Tucfdides, da
rivalidade entre Esparta (cidade mais tradicional, ligada ã terra firme) A dialética tucidideana entre dominação e liberdade lembra a
e Atenas (cidade aberta ao novo que trazem os navegantes). 45 A ligação antiga noção de hybris, tão importante para Heródoto: interesse e
43 Cf., a este respeito, sobretudo, François Châtelet, op. cit. 46 Cf. François Châtelet, op. cit., p. 261. Poderíamos acrescentar aos súditos e escravos,
44 Tucfdides, op. cit., 1, 23.
também as mulheres atenienses. Cf. Nicole Loraux, Les enfants d'Athéna, idées athéniennes
45 Ibid., I, 18. sur la citoyenneté et la division des sexes (Paris: Maspéro, 1981).
36 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTORIA
0 INICIO DA HISTÓRIA E AS LAGRIMAS OE TUCIOIDES 37

ambição, fontes de grandeza e heroismo, também conduzem as cida- trato com as mesmas. Dos deuses nós supomos e dos homens nós
des à sua perda. Atenas venceu heroicamente os persas, livrando os sabemos que, por uma lei de sua própria natureza, sempre que
gregos do jugo bárbaro, mas estabeleceu sobre os seus compatriotas podem eles mandam. Em nosso caso, portanto, não impusemos
um domínio talvez pior que teria sido o estrangeiro. Como observará esta lei nem fomos os primeiros a aplicar os seus preceitos;
um general siciliano, os belos discursos de igualdade e de liberdade se encontramo-la vigente e ela vigorará para sempre depois de nós;
transformaram em justificativas de dominação. 47 O mesmo raciocí- pomo-la em prática, então, convencidos de que vós e os outros,
nio, alias, aplicar-se-á a Esparta: se, no decorrer da guerra, tomou-se se detentores da mesma força nossa, agiríeis da mesma forma.
48

ironicamente o arauto da liberdade face a uma Atenas democrática e


i mperialista, transformar-se-á também, quando estiver vitoriosa, Na sua argumentação, os representantes de Atenas, a cidade
numa potência tiránica, sem respeito aos direitos dos seus súditos. democrática "educadora da Grécia", misturam com maestria o rigor
Entre o realismo pessimista de Tucfdides e o realismo descarado da razão e o cinismo do poder; desaconselham os habitantes de Meios
dos sofistas as semelhanças são muitas. Trata-se sempre do conflito a esperar pela justiça ou pela ajuda dos aliados espartanos, pois a
entre justiça e poder, ou ainda entre as leis sociais humanas e o direito esperança é um sentimento que só ilude e engana. A reivindicação de
natural do mais forte, a oposição entre nomos e physis. A defesa do justiça e à esperança opõem o frio realismo da dominação, que
direito do mais forte por vários sofistas encontra o seu correspondente culminará na matança futura.
real e cotidiano na prática i mperialista de Atenas, descrita por Tucfdi- O leitor futuro, a quem Tucfdides reserva a sua obra, pergunta-se
des. O famoso episódio de Meios oferece um paradigma desta prática. ao ler este episódio sangrento: como distinguir a razão que guia o
Meios era uma pequena ilha, povoada por colonos de Esparta, que discurso tão coerente dos embaixadores atenienses da racionalidade
tentou ficar neutra na primeira metade da guerra. Atenas exige sua i mposta pela força? Como distinguir a racionalidade da realidade
submissão e bloqueia o porto. Segue-se um debate altamente tenso histórica da razão dos vencedores? A grande questão hegeliana da
entre os embaixadores atenienses e os notáveis de Meios, que tentam racionalidade do real já se coloca nas páginas do primeiro historiador
expor a justeza da sua posição. Com o fracasso das negociações começa que quis compreender logicamente a história e só o conseguiu através
um sítio de um ano, no fim do qual Meios deve render-se. Os homens de uma teoria do poder e da dominação.
são massacrados, as mulheres e as crianças vendidas como escravas.
Mais tarde, Atenas repovoará a ilha com colonos atenienses.
Tucfdides demora-se no relato das negociações e nos dá aqui uma
belíssima peça de reflexão histórica e política. Mais uma vez, ele
coloca em cena discursos antagônicos: o dos embaixadores atenienses
que falam a linguagem do realismo e do poder, e o dos representantes
da Assembléia de Meios que invocam o direito e a justiça. Mas, como
estes últimos observam, desde o inicio a igualdade dos parceiros do
dialogo encontra-se negada pela presença ameaçadora das tropas
atenienses no porto. Os atenienses não só justificam esta desigualda-
de como também a consagram como uma "lei" divina e humana:

Realmente, em nossas ações não estamos nos afastando da reve-


rência humana diante das divindades ou do que ela aconselha no

47 Tucfdides, op. cit., VI, 76.


48 Ibid., V, 105.

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