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LATIM MEDIEVAL
E RENASCENTISTA
C o or dE n aç ão E di t or i a l
C o n C E ç ão gr á f iC a
PRINT BY
KDP
i n f o gr a f i a da C a pa
Carlos Costa
i n f o gr a f i a
Mickael Silva
iSBn
978-989-26-1959-0
iSBn d igi ta l
978-989-26-1960-6
doi
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1960-6
© ou t u b ro 2020, I m pr e n s a da U n i v e r si da de de C oi m b r a
LATIM MEDIEVAL
E RENASCENTISTA
(Página deixada propositadamente em branco)
SUMÁRIO
NO TA PRELIM INAR
DE FER N AN DO D E CASTRO PIRES DE LIMA
Director do Museu de Etnografia e História do Porto
PREFÁCIO
9
10 LATIM MEDIEVAL E RENASCENTISTA
10
I. LATIM MEDIEVAL – HAGIOGRAFIAS 11
(6) Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal, ed. de Carlos da Silva
Tarouca, S.J., Lisboa, 1952, Vol. I, p. 98.
(7) «Aqui falia e amoesta Duarte Gualuam autor, quamto se deue escusar as
maldiçõões dos pais e das mãys», pp. 161-3 da ed. do Conde de Castro Guimarães.
(8) Canto III, est. 69-74. Na obra citada na n. 5, Lindley Cintra recorda, na
sua n. 139, que ainda dentro do séc. X V I Duarte Nunes de Leão reagiu contra a lenda
de Afonso Henriques, classificando tudo de fábulas.
(10) Op. cit., p. 162. Cf. também J. Matoso, op. cit., p. 355.
11
12 LATIM MEDIEVAL E RENASCENTISTA
(11) Cf. Jüan Bastardas Perera, Particularidades sintácticas del Latin Medieval,
Barcelona, 1953, pp. 179-180.
(12) Cf. Albert Blaise, Manuel du Latin Chrétien, Strasbourg, 1955, p. 163.
(13) Numa frase no final do § 3 da Vita de Ordonho. Sobre esta construção,
leia-se Chr. Mohrmann, Études sur le Latin des Chrétiens, Roma 1961, Vol. I, pp. 38-39.
(14) Sobre o assunto, leia-se M. de Paiva Boléo, Os nomes dos dias da semana
em português, Coimbra, [1941], especialmente pp. 22-23. Outras observações sobre o
estilo dos dois autores, nomeadamente o emprego do cursus rítmico (embora nem todos
os exemplos tenham valor probante) podem ver-se em J. Matoso, op. cit., pp. 337-342.
(15) Seguimos o texto dos PMH, baseado no Ms. Alcobancense 24 (da Biblio
teca Nacional de Lisboa), com as variantes de Ms. Alcobacense 414 (B. N . Lisboa),
e do Ms. 365 da Biblioteca Municipal do Porto e dos A cta Sanctorum. Os poucos desvios
ou correcções que tivemos de fazer, incluindo o aproveitamento de algumas variantes
dos PMH ou ainda do Ms. Iluminado 184, da B. N. Lisboa, que também consultámos,
encontram-se todos registados em nota. Sobre a tradição manuscrita desta hagiografia,
veja-se J. Matoso, op. cit., pp. 326-331.
12
I. LATIM MEDIEVAL – HAGIOGRAFIAS 13
IN C IP IT L IB E R D E V IT A S A N C T I
RVDESINDI EPISCO PI E T CONFESSORIS
Incipit prologus
Explicit prologus
14
I. LATIM MEDIEVAL – HAGIOGRAFIAS 15
Começa o Prólogo
Termina o Prólogo
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16 LATIM MEDIEVAL E RENASCENTISTA
2. Factum est autem, cum supradictus comes gutier cum rege ranemiro
ordonii regis filio apud colimbriam, ut fertur, esset in expeditione, et coniux
eius ilduara remaneret apud salam, nequaquam cessans a proposita oratione.
Erat autem sala uilla Regia, ab ecclesia que super montem cordubam in honore
sancti Saluatoris fuerat consecrata, distans fere per duo miliaria. Que per
supercilium montis uiam sibi precepit parare, quatenus et diuina officia cele
brantes ualeat auscultare, et a deo propositam petitionem inpetrare. Nam cum
cotidie per precipitium montis quasi recto itinere ad ecclesiam sancti saluatoris
accederet, nullius iumenti subleuata seruicio, nec militum uel dominarum, ut
mos est, sustentata obsequio; sed discalciatis pedibus incedebat subnixa spiritu
sancto.
3. Verumtamen cum iam cogeretur, partim itineris difficultate, partim
uigiliis crebris et alimonie parcitate, ante altare sancti saluatoris prostrata,
crebro singultu et assidua percussione pectoris, ad dominum sic loquitur: Domine
deus rex eteme glorie, qui hominem de limo terre ad ymaginem et similitu
dinem tuam dignatus es formare, et de costa lateris eius adiutorium simile
sibi, qui eidem pro abel, quem iniquus frater sola inuidia interfecit, seth dignatus
es restaurare; qui in specie trinitatis apparens abrahe sarram sterilem uisitasti,
et auferens opprobrium ancille, nato ysaac letificasti; qui annam in silo orantem
ab heli sacerdote ebriam uocatam, et post duos annos nato samuele in templo
tibi presentasti; qui helisabeth nonagenariam cum conciperet matre tua uirgine,
sed pregnante spiritu prophétie inquientem, unde hoc ut ueniat mater domini
mei ad me, honorasti; exaudi me ancillam tuam et prole, quam ad laudem et
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I. LATIM MEDIEVAL – HAGIOGRAFIAS 17
(1 ) Ramiro II de Leão, filho de Ordonho II, sucedeu a seu irmão Afonso IV,
que abdicou, por 930; e veio, por sua vez, a abdicar em favor de seu filho Ordonho III
em 950-51. À data do nascimento de S. Rosendo, ocupava o trono Afonso III, filho de
Ordonho I, que reinou de 866 a 910 ou 912. Na discutida cronologia dos reis leoneses,
seguimos os dados do Diccionario de Historia de Espana, desde sus orígenes hasta el fin del
reynado de Alfonso X III, Madrid, 1952. Sobre Ramiro II, veja-se E. Sáez, «Ramiro II,
rey de «Portugal» de 926 a 930», Revista Portuguesa de História, III, 1947, 271-290.
Dada a complexidade deste período, e, por outro lado, o facto de ser este último o mais
importante dos reis leoneses, compreende-se que Ordonho, ao compor esta biografia
dois séculos volvidos, se tenha equivocado nos nomes dos monarcas.
(2 ) Perto de Santo Tirso.
(3 ) A expressão condensada do texto, auferens opprobrium ancille, alude ao
nascimento de Ismael, filho da escrava Agar, e ao de Isaac, filho de Sara (Gen. 16-21).
(4 ) Sam. 1.
(5 ) Lc. 1.43.
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I. LATIM MEDIEVAL – HAGIOGRAFIAS 19
dignai-Vos alegrar-me com uma descendência que eu possa oferecer para louvor
e honra do vosso nome, como Abraão a Isaac». Tendo posto fim à oração,
prostrou-a um doce sono, e, para que não duvidasse que a sua petição havia
de realizar-se, é advertida por uma santa visão angelical, de que havia de ter
um filho santificado por Deus, que observaria no decurso da sua vida os preceitos
de Deus (6), e havia de libertar dos laços do diabo, pelos cuidados pas
torais, enorme multidão de gente.
4. Despertando, então, do sono, dirige mensageiros ao marido, para ele
voltar para junto dela, não, de modo algum, a passo lento, mas o mais depressa
possível. Este obedeceu imediatamente ao recado, e, tendo regressado para junto
dela e tomado conhecimento da revelação, por narrativa da esposa, conheceu-a
no tempo legítimo, e ela concebeu no sexto dia antes das calendas de Março (7),
conforme a revelação divina.
Como se aproximassem os dias do parto, deu à luz um filho, prometido
por Deus, de nome Rosendo, no sexto dia antes das Calendas de Dezembro (8),
não com grande atribulação de dores, mas com uma certa doçura suave
e exaltação. Apesar de ter nascido na vigília dos Santos Facundo e Primitivo,
contudo, em honra do seu nascimento ou por remissão dos próprios pecados,
exaltou condignamente, enquanto foi vivo, a festividade dos mesmos mártires,
tanto com ofícios eclesiásticos como com distribuição de alimentos, e legou
aos Celanovenses esta observância em rito perpétuo.
Nascido ele do modo que dissemos, convocam os clérigos pobres junta
mente com os sacerdotes, mandam chamar também os vizinhos e parentes,
celebram um banquete, e oferecem o filho a Deus, diante do altar de S. Salvador,
conforme o voto que tinham feito. E então também deram liberdade a escravos
e escravas, segundo afirmam, e aliviaram, com os seus bens, a miséria e indigência
de algumas viúvas. Além disso, fizeram voto de metade da herança que
se chama Salas, na qual se cumpriu a promessa. Nesse mesmo lugar, segundo
se diz, edificaram, para servir de testemunho, uma igreja em honra de Deus
e de S. Miguel, príncipe dos anjos, e chamaram bispos, para a consagrarem.
5. Mas, aproximando-se o tempo em que se devia libertar da culpa do
primeiro pai por meio das águas da regeneração, o pai e a mãe tomam a firme
resolução de que recebesse o sacramento da fé no local onde tinha sido pro-
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fuerat. Cum ergo uas lapideum, in quo per aquas baptismatis regeneraretur,
plaustro ueheretur, diuina prouidente gratia, cum ante ualuas ecclesie Sancti mi-
chaelis, quam nuper dedicauerant, transiret, fractum est plaustrum, et uas,
quod fons uulgo dicitur, in ecclesia est inuentum, et usque in hodiernum diem
honorifice custoditum. Quod diuina dispensatione fieri, postquam parentes
intellexerunt, puero ibi baptizato, ecclesiam cum supradicta hereditate ecclesie
sancti saluatoris, que est super montem cordubam, ubi repromissus fuerat, iure
testamenti liberam dederunt. Creuit autem puer indolis egregie; et non nugis et
derisionibus, sicut fit in pueris, uoluit primam loquelam informare, sed litterali
studio traditus, uerbum dei meruit discere. Ad ultimum uero uigore castitatis
armatus, humilitate non uiciosa circumuallatus, pacientia corroboratus, caritate
supra quam dici potest sublimatus, ad sacrorum ordinum apicem meruit
peruenire. Creuit etenim eius fama, et eius bonitate tota replebatur yspania.
6. Interea sedes dumiensis ecclesie orbata est suo antistite. In qua populo
plaudente et omni clero deum cuius reuelatione fiebat laudante, rege ordonio
iamdicti ranemiri regis filio, cum omni milicia annuente, rudesindus non sponte
sed quasi coactus x v i i i .0 etatis sue anno ordinatur episcopus. Cuius sedis
cathedram dum optineret quantum ecclesiam augmentaret, quam honeste cleros
tractaret, quam diligenter ecclesias restauraret, uiduis et orphanis, aduenis et
peregrinis, de reditibus proprie hereditatis quam familiariter ministrauerit, pro
sui magnitudine nemo sufficienter posset describere. Erat enim uultus eius
angelicus, et sermo dulcedine, predicationis mellifluus. Sed non multo post, ut
fertur, rege ordonio prefato concedente, mendumensis ecclesie sortitus est digni-
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I. LATIM MEDIEVAL – HAGIOGRAFIAS 21
metido por Deus através do anjo. Ora, quando a pia de pedra, na qual havia
de ser regenerado por meio das águas do baptismo, era transportada num
carro, por providência da divina graça, ao passar diante dos batentes da Igreja
de S. Miguel^ que há pouco haviam consagrado, o carro quebrou-se, e a pia,
que vulgarmente se chama fonte, foi encontrada na igreja, e até ao dia
de hoje guardada com todas as honras. Os pais, depois que entenderam
que isso acontecera por determinação divina, baptizaram ali o menino e desvin
cularam por direito testamentário a Igreja com a supradita herança da Igreja
de S. Salvador, que fica no Monte Córdova, onde tinha sido prometido. Ora
o menino cresceu dotado de um carácter notável, e quis formar as suas primeiras
falas, não com ninharias e brincadeiras, como costuma suceder na infância,
mas, entregando-se ao estudo das letras, foi merecedor de aprender a palavra
de Deus. Armado até ao máximo pelo vigor da castidade, couraçado de
humildade não viciosa, robustecido de paciência, sublimado por uma caridade
acima do que se pode dizer, mereceu chegar ao cume das ordens sagradas.
Cresceu, portanto, a sua fama, e toda a Hispania estava repleta da sua bondade.
6. Entretanto, a sé da Igreja Dumiense ficou privada do seu prelado.
E aí, com o aplauso do povo, e louvores de todo o clero a Deus, por cuja reve
lação isto sucedia, e com a concordância do rei Ordonho (9), filho do supra
dito rei Ramiro, e de toda a sua milícia, Rosendo é ordenado bispo aos dezoito
anos de idade, não por sua vontade, mas quase obrigado. E, enquanto
ele esteve de posse da sé desta catedral, ninguém poderá descrever suficiente
mente, tal é a grandiosidade da sua acção, quanto aumentou a Igreja, quão hon
radamente tratou os clérigos, quão diligentemente restaurou igrejas, quão amigà-
velmente abasteceu as viúvas e órfãos, estrangeiros e peregrinos, com as rendas
da sua própria herança. O seu rosto era angelical e a conversação deleitosa pela
doçura da sua prática. Mas não muito depois, segundo se diz, por concessão do
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tatem, quam totius bonitatis mirifice fecit illustratam. Non post multum autem
tempus, rege Santio supradicti Regis ordonii fratre suadente, et comite com-
postellane prouintie cum populorum frequentia enitente, ipso uero reclamante,
et se idignum ad tantum opus dicente, quamvis invitus tamen hyriensem apos-
tolice sedis optinuit cathedram.
Eo tempore quo beatus rudesindus hyriensem ecclesiam regebat, et galle-
cia, ut asserit, cum gallecia iam fere tota inuaderetur a normanorum multitudine,
et portugalensium prouincia uastaretur a sarracenorum fortitudine, et rex santius
memoratus in toletanis partibus teneretur cotidiana uinearum et segetum de
populatione, et ostium a Christianorum finibus expulsione, rudesindus, quia
regalibus ut diximus erat ortus natalibus, regias uices in secularibus, episcopales
uero in ecclesiasticis meruit optinere. Sed dei misericordia, que nullum in se
confidentem deserit, illum protegente, et que facienda essent illi consulente,
portugalensium patriam liberauit a paganorum perfidia, et galleciam tutam
reddidit a gallorum superbia. Post hec autem uolens cum seculi pompis episco
patum relinquere, et solitariam uitam ducere, aliquanta monasteria, ut asseritur,
fecit construere quam ad ultimum in somnis deica amonitio studuit amonere,
ut in limie partibus in sacti saluatoris honore monasterium faceret edificare,
in uilla uidelicet que uulgo appellabatur uillare, cuius nomen postea idem
episcopus in eius edificatione fecit transmutari, et cellam nouam decreuit appel
lari. Quam uillam, sicut in testamentis monasterii reperimus, eiusdem episcopi
auus nomine ermigildus cognomento menendus, regali uidelicet linee propinquus,
ex regis adefonsi munificentiis est adeptus. Nam cum eidem regi v u . annorum
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somnis fuerat reuelatum, pro anime sue remedio libenter tribuit, ac firmissimo
testamento, quod usque hodie penes nos haberetur, concessit. Qui statim ad hec
beatus episcopus rudesindus regem ranemirum memorati sancii regis natum,
qui tunc imperabat, petiit, et ei sui cordis archana patefecit, cui ultro assensum
prebuit, et non multo post priuilegium, quod actenus apud idem cenobium
retinetur, condonauit, uidelicet, non regibus, non episcopis, non archiepiscopis,
non principibus, non cuilibet homini, nisi tamen deo, et summo romano pon
tifici, quantumlibet uidelicet ad fidei sacramentum pertinet obedire precepit,
insuper et adminiculum multorum prediorum impendit. Ad quem locum mox
reuersus episcopus sanctus, ualde est letificatus, eoquod ille locus tam uineis,
quam pomiferis arboribus, siue segetibus esset decoratus, atque planitie dilatatus
pratis ac obtimis aquis irrigatus, ubinam utiles monachorum habitationes, matre
eius ylduara sibi auxiliante cepit edificare, et ecclesiis prope sancti martini
oraculum, quod ibi olim, ut fertur,fuerat extructum decorare, quod
actenus ex sinistra ecclesiarum parte cernitur restauratum constare. Quarum
excellentiorem edificauit in honore sancti saluatoris, secundam in honore
sancti Petri, terciam in honore sancti iohannis apostoli, domino dedicari
uoluit, fecit et intra monasterii claustrum prope promptuarium non longe
ab eisdem ecclesiis, sancti michaelis archangeli oraculum, uisu ospitio-
lum paruulum, miro lapideo opere tabulatu, oculis ualde admirabile cernentium.
Ecclesiis itaque peractis, et omnibus necessariis edifitiis consumatis, uidelicet,
que monachis in claustro sanctam uitam ducentibus sufficerent, et hospitibus
et peregrinis quietem et refrigerium darent. Septimo igitur anno expleto, et
inchoante, ut fertur, octauo, omnibus ut diximus que ad monasterium pertinent
completis, monachos ex diuersis partibus aggregauit, religionis habitum sibi
applicuit, et sic factus monachus abbatem sancti stephani franquilam petiuit,
cui olim idem cenobium pater eius gutier ordonii regis nutu restaurandi causa
exhibuit, ex quo abstracto sibi associauit, et sui ac totius monasterii sub regula
sancti benedicti patrem et rectorem, sicut in testamentis resonat, constituit, sub
cuius ditione mirifice deo militauit. Quamuis enim humilitatis causa sub abbatis
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iacuit prostratus. Deinde surgens monasterium ingressus est. Cum autem mona
chi se prepararent ad celebrandum misse officium, conuocatis omnibus ad
capitulum, et quod sibi uisum fuerat postquam dixit; ut post canonicas horas
nemo quamuis gradu celsior, prestolaretur, sed officium misse in constitutis
horis celebraretur, tali reuelatione monitus firma sanctione instituit.
10. Accidit eodem tempore, ut regina aragunti, que sanctam uitam
ducebat, monasterium quod saliceta uocatur edificauit, magno teneretur lan
guore. Hec autem, cum infirmaretur, ad consubrinum suum episcopum nuncios
direxit, quatenus eius presencia et sanctis orationibus uisitaretur. Quod audiens
episcopus, fusis ante deum precibus, iter ingressus est. Cum autem montem qui
sandin dicitur ascenderet, angelorum uoces gloria in excelsis deo cantantium,
suaui modulatione cum audiret, in terra prostratus et iterum sursum eleuatus,
secum euntibus sic est orsus. Reuertamur fratres ad monasterium, quia regina
iam huius uite terminauit cursum, et a deo meruit obtinere triumphum. Qui
reuersi, nuncium miserunt, et ita reperit, sicut episcopus dixerat. Post non multum
uero temporis uir deo deditus, cum iam uideret se erumnas huius seculi terminare,
et post huius peregrinationis exilium propriam hereditatem recuperare, conuo
catis in unum fratribus, eos sic sancto sermone et melíflua locutione fuit admo
nitus: Ea fratres, nexibus huius carceris, et de periculo exilii presentis iam
liberor. Quamobrem sancte professioni, cui deo adiuuante regulariter semitis,
hoc cenobium cum hereditatibus et seruientibus deo cui digne militatis, et uobis,
qui eo protegente sanctam uitam ducitis, ab omni parte, tam a regia quam
episcopali siue a qualibet liberum relinquo. Seruos et liberos, mobiles et ignobi
les, ex qualicumque regione, sanctam et huius professionis uitam cupientes
ducere; quod uidelicet monasterii substancia potuerit sufficienter capere, in
hoc cenobio ritu perpetuo iubeo recipere. Non enim deus personarum prosapia
congratulatur, sed contritione cordis et obediencia in bonis delectatur. Cumque
ualde a langore urgeretur, adstantibus cunctis fratribus cum episcopis qui aderant,
ceperunt unanimiter dicere cum lacrimarum suspiriis: Domine pater, prouide
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I. LATIM MEDIEVAL – HAGIOGRAFIAS 33
prostrado até lhe parecer ouvir ite, missa est. Depois, levantou-se e entrou no
mosteiro. Ora, como os monges se preparassem para celebrar o ofício da missa,
convocando todos a capítulo, depois de lhes contar a sua visão, instituiu com
firme propósito, advertido por essa tal revelação, que, depois das horas canó
nicas, ninguém, ainda que de grau muito elevado, aguardasse, mas que cele
brasse o ofício da missa às horas prescritas.
10. Sucedeu pela mesma altura que a rainha de Aragão, que levava
uma vida santa e edificou o mosteiro que se chama Salzedas, foi tomada por
um grande abatimento. Ora, tendo ela adoecido, dirigiu mensageiros ao seu primo
bispo, para que a assistisse com a sua presença e as suas santas orações.
Ouvindo isto, o bispo fez as suas preces perante Deus e meteu-se ao
caminho. Porém, ao subir o monte a que se chama Sandim (26), e ouvindo
vozes de anjos a cantar gloria in excelsis Deo com suave modulação, caiu por
terra, e, levantando-se novamente, começou assim a dizer aos que iam consigo:
— «Voltemos, irmãos, ao mosteiro, porque a rainha já terminou o curso desta
vida, e mereceu obter de Deus o triunfo».
Voltaram eles e mandaram um mensageiro, e ele achou ser assim como
o bispo dissera.
Ora, não muito tempo depois, este homem consagrado a Deus, como iá
visse que se lhe acabavam os desgostos deste século, e que, depois do exílio
desta peregrinação, recuperara a herança que lhe era própria, reuniu os irmãos,
e advertiu-os assim, em santa prática e dulcíssima fa la :— «Coragem, irmãos,
eis que sou libertado das cadeias deste cárcere e do perigo do presente exílio.
Por isso, deixo à santa profissão, na qual, com o auxílio de Deus, servis,
segundo uma regra, este convento com suas heranças, tanto para os que servem
a Deus, para quem honrosamente pelejais, como para vós, que, sob a sua pro-
tecção, levais uma vida santa; deixo-o livre por todos os lados, tanto pelo dos
reis como pelo dos bispos, como por qualquer outro. E mando receber neste
convento, em rito perpétuo, servos e livres, nobres e plebeus, de qualquer
terra que sejam, que tenham o desejo de levar a vida santa desta profissão,
quantos, naturalmente, os bens do mosteiro forem suficientes para comportar.
Pois Deus não se compraz com a nobreza das pessoas, mas deleita-se com a
contrição do coração e a obediência nos bons».
E, como a prostração apertasse muito, os que estavam ali, na presença
de todos os irmãos e bispos, começaram a dizer unânimemente com suspiros e
(26) Das muitas localidades deste nome, esta deve ser a que se situa na pro- -
vinda de Orense. . '
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(27) 1 de Março.
(28) Ramiro III. Cf. supra, p. 27, n. 20.
(29) A mesma história figura na «Vida de Santa Senhorinha», PM H , I, p. 50
(infra, pp. 137 e 155).
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36 LATIM MEDIEVAL E RENASCENTISTA
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nosso senhor, o bispo Rosendo, emigrou deste século e agora os anjos levam-no
com hinos e loas para as alturas». Mandaram a Celanova e achou-se que o
santo varão falecera naquele dia e hora, conforme lhes dissera a bem-aventurada
serva de Cristo. Foi pois sepultado honrosamente num sarcófago de pedra,
junto da Igreja de S. Pedro, onde são concedidos os benefícios de Deus a quem
os pede, para honra e louvor do seu nome. Que vive e reina com o Padre e
o Espírito Santo pelos infinitos séculos dos séculos. Amen.
O tempo e os períodos de vida do bem-aventurado bispo Rosendo dis-
tinguem-se resumidamente assim:
Quando a era ia em 945 anos, o mesmo santo varão veio ao mundo no
sexto dia antes das calendas de Dezembro (30), em dia de quinta-feira. Depois,
no dia 13.° antes das calendas de Maio (31), na quarta-feira depois da Páscoa,
no decurso da era de 963 anos, tomou o grau episcopal. Daí, passando a era
de 973 anos, começou a edificar o mosteiro de Celanova, onde mais tarde, no
dia das calendas de Março, ou seja, numa quinta-feira, ao completar-se a hora,
correndo a era de 1015 anos, emigrou para junto de Cristo, do Qual, na hora
conveniente, segundo parece, obteve honrosamente o seu óbolo do descanso,
segundo aquele passo do Evangelho: «Tendo entardecido, disse o Senhor ao
procurador da sua vinha:— Chama os operários e dá-lhes o salário (32)».
Pois que este santíssimo varão desde a primeira hora do dia, isto é, desde a
primeira idade, trabalhou dignamente na vinha do Senhor. Depois do fim do
dia, mereceu sem contestação receber os dignos prémios, segundo o supradito
preceito do Senhor. E que o seu auxílio sempre nos acompanhe, por Aquele,
que sendo Deus, vive e reina com Deus Padre em unidade com o Espírito Santo,
pelos séculos dos séculos. Amen.
(30) 26 de Novembro.
(31) 19 de Abril.
(3 2 ) Mt. 20.8.
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VITA
PROLOGVS
Mirabilis Deus in Sanctis suis, dicit Propheta Dauid: sed multis modis
mirabilis in Sancto suo Rudesindo fuit. Nam mirabilis fuit in eius conceptione:
mirabilis in baptismo: mirabilis in uita: mirabilis in morte: mirabilis post
mortem. Ideo uisum est mihi postquam miracula eius legi, alia a uidentibus
audiui, alia a personis honestis accepi, illa omnia in codice scribere, et in
duobus libris diuidere; ita ut quae in uita sua fecit in primo inueniantur, et quae
post mortem, in secundo.
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I. LATIM MEDIEVAL – HAGIOGRAFIAS 39
VIDA
PRÓLOGO
( 1) Ps. 67.36.
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40 LATIM MEDIEVAL E RENASCENTISTA
LIBER I
DE VITA EI VS E T OBITV
CAPVT I.
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LIVRO I
CAPITULO I
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42 LATIM MEDIEVAL E RENASCENTISTA
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I. LATIM MEDIEVAL – HAGIOGRAFIAS 43
aos monges de Celanova que sempre de futuro celebrassem aquele dia com
esmolas especiais, todos os anos.
2. Lembrava-se Ilduara de que tinha recebido de um anjo a boa
nova, e por isso, desde o dia da concepção do filho, começou a edificar uma
igreja junto de Salas. Depois chamou bispos para a consagração e dedicou-a a
S. Miguel Arcanjo e a todos os anjos.
Ora, como afluíssem parentes e amigos ao baptismo do menino, aprouve
aos pais que fosse baptizado na Igreja de S. Salvador, no Monte Córdova,
porque aí tinha a mãe dele recebido a revelação de que conceberia. Procuraram,
por conseguinte, uma grande pia de pedra e puseram-na em cima de um carro,
para se transportar para essa Igreja de S. Salvador. Mas, quando os bois iam
a puxar a pia de pedra, o carro quebrou-se com o peso, e, enquanto os servos
preparavam um novo carro, a pia baptismal foi encontrada dentro da Igreja
de S. Miguel, há pouco edificada. Ao verem este prodígio, todos se admiraram
profundamente; por sua vez, os pais da criança reconheceram que era vontade
de Deus que ela fosse baptizada na Igreja de S. Miguel. E assim se fez. E a pia
baptismal, de pedra, conserva-se até à data na Igreja (2).
3. Rosendo, desde a sua infância que não queria saber de brinquedos
de crianças, nem das vaidades do mundo, mas meditava na lei de Deus dia e
noite, e esforçou-se por segui-la, a tal ponto que dele podemos dizer que não
deu o seu espírito a nenhum prazer, como Gregório Magno disse do Padre
S. Bento (3). Aprendeu fàdlmente as letras e as artes liberais e adiantou
muito nas Sagradas Escrituras, pois em idade juvenil mostrava o juízo dum
ancião.
A sua conversa doce e suave acariciava e atraía; o verbo, potente e eficaz
na sua boca, tudo conseguia. Era modesto, ponderado e austero, sem ser desa
gradável, alegre e jucundo sem leviandade, de rosto sossegado e estatura
mediana. Ainda na adolescência, de tal modo se evidenciou pelas suas virtudes,
que a sua fama se divulgou por toda a Hispânia. Na verdade, era conhecida a
sua castidade, modéstia, misericórdia para com os pobres, generosidade para
com os amigos, piedade para com Deus, caridade para com todos.
(2 ) A pia foi redescoberta por J. A. Pires do Lima (cf. o artigo desse inves
tigador intitulado «Santos da Porta» e publicado em O Tripeiro, V. Série, Ano I, n.° 6,
Outubro de 1945, pp. 134-135, e, do mesmo autor, «S. Rosendo, Nun’Âlvares
do Século X », Ocidente, Lisboa, IV, 1938.
(3 ) Diálogos, Livro II, in Patrologia Latina, LXVI, 126 (devemos esta iden
tificação ao Doutor Cruz Pontes).
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44 LATIM MEDIEVAL E RENASCENTISTA
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(5 ) Reminiscência de Le. 1 0 .3 8 -4 2 .
(7 ) Ps. 19.8.
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suas fronteiras (8). Foi recebido como vencedor com regozijo geral pelos
cidadãos de Compostela. Pouco depois, morre o rei Sancho. Sabendo disto,
Sisnando quebra as algemas, e foge da prisão, e, na própria noite do Natal de
Nosso Senhor Jesus Cristo, atacou Rosendo, que estava a descansar com os
cónegos. Levava na mão uma espada desembainhada, com que o ameaçava de
morte, se não deixasse o bispado e abandonasse a cidade. Rosendo censurou
com palavras graves a temeridade dele, profetizando que em breve sobreviria
a Sisnando uma morte violenta. O que assim sucedeu, como lhe tinha sido
predito. Saiu ele sem demora de Compostela, e refugiou-se contente no mosteiro
de S. João de Cabeiro (9), que tinha edificado.
(8) Sobre estes sucessos, vide Damião Peres, História de Portugal, Portucalense
Editora, 1928, I, p. 456.
(9 ) S. João de Cabeiro é uma freguesia do Concelho de Redondela, província
de Pontevedra.
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C A P V T IL
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I. LATIM MEDIEVAL – HAGIOGRAFIAS 49
C A P ÍT U L O II
(10) A frase, tal como está no original latino, transcrito nos PM H , não faz
sentido. Devem ter escapado ao copista algumas palavras, talvez porque se repetia o
nome de Celanova, que originou o salto. A nossa conjectura, baseada na informação da
Vita de Ordonho, que diz cuius nomen postea item episcopus in eius edificatione fecit
transmutari et cellam nouam decreuit appellari, encontra a sua confirmação no MS. Ilum.
184 da Biblioteca Nacional de Lisboa, onde se lê: Statim inceptum est aedificium
monasterii, quod Rudesindus Cellanoua uocauit, et extunc Villare amisit nomen suum,
et Cellanoua ab omnibus uocatum est, uocabulo monasterii. Foi este o texto que tra
duzimos.
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I. LATIM MEDIEVAL – HAGIOGRAFIAS 51
oração. E, visto que reconheceu ter este seu mosteiro sido escolhido por Deus,
com o fim de, nele, muitos se libertarem dos laços do pecado e do poder de
Satanás, quis, por esse motivo, que todos os frades que nele vivessem se apressas
sem para o cume da perfeição evangélica. E ele, santo como era, ultrapassava
a todos no exemplo e na doutrina, atento aos salmos, vigílias e obediências,
sendo Abade Franquila, a quem em tudo obedecia, apesar de fazer as vezes de
rei, governando nas partes da Galiza. Erigiu muitos mosteiros desde os alicerces,
reedificou uns, restaurou outros e reconduziu-os ao seu estado anterior. Para
esse efeito, era de grande ajuda o Abade Franquila, com outros clérigos de vida
prática e santa.
7. Passados já muitos dias, certa vez...........
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I. LATIM MEDIEVAL – HAGIOGRAFIAS 53
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54 LATIM MEDIEVAL E RENASCENTISTA
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C O M E Ç A O L IV R O I.° D O S M IL A G R E S
DE S. ROSENDO BISPO E CONFESSOR,
QUE FORAM FEITOS POR DEUS, POR
SEU INTERM ÉDIO, DEPOIS DA MORTE
D E L E , E P U B L IC A D O S P O R M E S T R E
ESTÊVÃO, M ONGE DE CELANOVA, CONHE
CIDOS POR ELE ATRAVÉS DE QUEM OS VIU
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56 LATIM MEDIEVAL E RENASCENTISTA
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I. LATIM MEDIEVAL – HAGIOGRAFIAS 57
onde vivíamos como era permitido, e nos entregaste, não para servir a Deus,
como prègavas, mas aos tiranos? Se és santo, liberta-nos». Depois de os
frades terem terminado a oração, nesse mesmo dia, depois do jantar, o supra
dito Pedro, quando estava a repousar no seu leito, rebentou pelo meio com
grande estrondo, e imediatamente morreu como here je. Advertida da sua
morte, Elvira ergueu-se, e, com passos rápidos, sem ser levada por nenhum
jumento, com um medo enorme do santo prelado Rosendo, chegou a Vila Nova.
E de motu proprio procura o Abade Pelágio e transfere-o honrosamente para
o mosteiro, reintegrando-o em todos os seus bens.
2. Segundo se afirma e me referem santos varões, que estiveram pre
sentes, o conde Raimundo (4) enviara doente para este mosteiro certo soldado
do rei, que se chamava Munho Vasques. Tratavam-no no convento com
todas as honras, e serviam-lhe o que era necessário. Mas, certo dia, pediu
coisas supérfluas, e não obteve do dispenseiro o que pedira, porque era um
exagero (5 ); tratou-o mal e desonestamente, postou-se, num ataque de fúria,
diante da dispensa e mandou a um negro que quebrasse as portas e trouxesse de
lá o que queria, castigando enèrgicamente o monge, se ele se opusesse. Assim
que os monges souberam disto, tanto eles como o dispenseiro acorreram ao
sepulcro do santíssimo varão Rosendo e rogaram-lhe com muitas lágrimas que
defendesse, junto com eles, a sua casa, que ele mesmo dera aos pobres, não
aos soldados. Nessa mesma hora o militar ficou mudo, e no dia seguinte morreu.
3. Certa vez, uma mulher, que no campo perdera a luz dos olhos,
ficando cega por muito tempo, e banhara de lágrimas os templos de muitos
santos, foi advertida em sonhos de que se apressasse a ir ao sepulcro de
S. Rosendo. Então ela, depois de perguntar a muitos pelo nome escutado, que
nunca ouvira noutra parte, e de avançar aos poucos de país em país, penetrou
finalmente na região do Limia. Interrogando os habitantes dessa mesma terra,
é aconselhada por eles a dirigir-se a Celanova. Entrou, pois, em Cela-
nova, e fez vigília diante do túmulo do santo varão. Ao dealbar, a mesma que
fora cega começou a ver o brilho do sol. Com a vista assim recuperada, volta
para casa. Um ano depois, encontra-se diante do sepulcro do santo varão (6)
com um filho atormentado pelo demónio, cega como antes, porque não observara
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58 LATIM MEDIEVAL E RENASCENTISTA
uigiliam sancti rudesindi ceu uouerat non obseruauit, ante sepulcrum sancti
ubi reperitur. Peractis itaque uigiliis ipsa iturum illuminatur, et puer a demone
liberatur.
4. Item in temporibus abbatis petri quendam cecum multi qui adhuc
supersunt sanctam uitam ducentum uiderunt. Qui ut strictiorem uitam * duceret,
et peccata sua ieiunio et oratione, nec non et carnis maceratione, diutius
fleret, ferreis circulis accintus est. Cum autem came supercrescente armille
ferree, quibus brachia circumdabantur, iam penitus cooperirentur; et circulus, quo
uenter cingebatur, ob ulcera ex fractione camis tumenda, non uideretur, magno
et intolerabii dolore affidebatur. Quippe cum nec medicina foueri, nec alicuius
instrumenti poterat auxilio consolari. Visis itaque, nam prope monasterium
morabatur et monachis ut poterat famulabatur, que per sanctum uimm fiebant,
miraculis; ante illius tumbam nocte tota excubans, aurora superueniente iacuit
semiuiuus. Sole uero iam oriente, ligamina ferrea fracta sunt, sancti rudesindi
medicina superueniente, et ipse sanus factus coram sepulcro deum laudans
a monachis est inuentus.
5. Postea uero cum supradictus cecus ligaminibus ferreis per sanctum
rudesindum solutus, solitariam uitam in monte, qui sandim dicitur, duceret,
uxor eius ceca effecta est. Hec autem dum cotidie ante sarcofagum sanctissimi
uiri preces funderet, officia quoque diei ac noctis diligenter audiret, die appro
pinquante manus ante basilicam solito more cepit abluere. Cum uero proprias
manus uideret, timens ne malignus spiritus eam illuderet, domum reuersa est.
Sed cum ex consuetudine ad ecclesiam nocte ueniret, et orationem ex more
deo cum lacrimis funderet, arcessito sacristario se uidere confessa est. Ipse
autem inquiens: uade et deo gratias redde. Iam ad secundam horam sole
ascendente, nono anno sue cecitatis, per beatum rudesindum illuminata, cunctis
prebuit miraculum.
6. Eodem fere tempore cum quedam mulier iuxta parietem dormiret,
peccatis exigentibus, a serpente inuasa est. Que, dum valido dolore torqueretur,
et uicinarum ecclesiarum ante limina prosterneretur, ante sepulcrum tandem
sancti episcopi presentatur. Itaque monachorum adiuta precibus, et sanctissimi
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(7) Seguimos a variante dos Acta Sanctorum e do Cod. Alc. 113: iterum.
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tes ante sancti ubi sepulcrum cum in nocte super suam filiam uigilarent, Huius-
modi preces cum lacrimis fuderunt: Sancte rudesinde, christi confessor, qui
lepore non delectaris uerborum, sed suspiria et gemitus consideras intentionum,
uide nostram afflictionem; et ut adtendas miseram nostri conuersationem. Sanc
tissime rudesinde, uel huic nostre misere filie finem uite impone, uel ab hoc
nequam spiritu, tuo iuuamine defende. Hac simplici oratione finita, in terram
cecidit puella, uelut mortua. Tunc spiritus, qui ei dominabatur, ululans exiuit
ab ea: ipsa uero cum parentibus domum sospes reuertitur.
10. Nuper etiam in partibus decie, sicut a monachis didici, quidam
homo iniuste oppressus, in potestate cuiusdam militis tenebatur uinculis alligatus.
Cum autem eum tortores iussu domini uehementer affligerent, et ab eo quod
non habebat sub questione querent, intempeste noctis silentio, sic locutus est:
Sancte rudesinde christi confessor, uide cruciamentum, et corporis passionem,
quam iniuste patior: libera me, pater sanctissime; ego enim iam proposueram
presentiam tue sepulture uisitare. Hec postquam dixit, sommo grauatus aliquan
tulum dormire cepit, atque in ipso sommo sanctum rudesindum sic loquentem
meruit audire: Surge homo, surge; nil timeas, sed securus incede; uerumtamen
quod uouisti, operibus comple. A sommo igitur expergefactus, sancto rude-
sindo manum eius tenente, inter uigiles tutus exiuit. Non post multum uero
temporis ad sepulcrum sancti rudesindi ueniens cum cereis et oblationibus
hec, ut ei euenerant, ordine narrauit.
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(10) Seguimos a variante dos Act. Sanet, e do Cod. Alc. 113: uiri.
(11) Na província de Pontevedra.
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I N C I P I T CAP I T V L A T IO IN LIBRO I I . C
VIRTVTVM SANCTI RVDESINDI EPISCO PI
[20.] De celle noue monasterio a rege Portugal ensi leso, iterumque recuperato.
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[17.] Das vestes de certo dbade que foram furtadas, e depois encontradas.
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11. Factum est autem, ut quadam die, sicut ab his, qui in tempore
petri abbatis uidere, didici, quidam miles nomine Munio fulgur, boum cellenoue
greges temere inuaderet, atque sub sua ditione transmearet. Quod postquam
monachis non ignotum est omnibus, ante sancti rudesindi tumbam flexis
poplitibus huius rei defensorem atque ultorem obnixius tam singultibus
implorant quam precibus. Cumque eadem die eidem una ex his ad edendum
prepararetur, posita mensa de ea ab ipso gustaretur, ualido languore dei ultione
corripitur. Qui prope se infelicem considerans, aut suis ab intimo corde
deplorans: Cunctis reintegratis bubulis, domino meo rudesindo episcopo munus
ex meis facultatibus quam totius deferte, quoniam quidem eiusdem ira coartor
ualidissime. Quamuis autem secundum quod dixerat adimpleretur, tamen eadem
ebdomada illius corpus in ipso cenobio sepulture impenditur.
12. Sub eodem iam dicti abbatis tempore miraculum gestum est aliud
mirabile, quod ad quodam uenerabili monacho me recognosco agnouisse, qui
se a beato, qui uiderat, memorabat audisse: fatebatur enim quod quadam
dominice natiuitatis sollempnitate orraca regina cum non minima militum multi
tudine cellam nouam deuenisse, quatenus tante sollemnitatis offitia debita
ueneratione in tali loco plenius posset auscultare, et ob hoc a deo maiorem
anime subleuationem impetrare. Inter hec autem cum a monachis nocturnale
officium digne celebraretur, contigit ut pro necessariis, qui ad tantum diem
pertinere noscuntur, thesauri domus a sacrista peteretur. Cumque in ipsius
ascensu itineris, quidam miles eiusdem regine consederent cum aliis, illius
horam clamidis, casu accidente, pedibus conculcauit. Moxque aduersus dei
seruum maximo furore infremuit, ac contumeliosis uerbis male tractauit. Qui
protinus, dei iuditio, inuasus ab inimico, in ima pauimenti ab excelso inter
officia celebrantes proicitur, et huc illucque pessima uexatione a cunctis agitari
conspicitur. Itaque quomodo uel quare id actum fuerat, perterritis omnibus,
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11. Sucedeu que certo dia, conforme soube por aqueles que o viram,
no tempo do Abade Pedro, um militar, de nome Munho Fúlgur, assaltou
audaciosamente as manadas de bois de Celanova, e as passou para o seu domínio.
E assim que isto foi conhecido pelos monges, puseram-se todos de joelhos diante
do túmulo de S. Rosendo, implorando afincadamente, tanto com soluços como
com preces, o defensor e vingador desta causa. No mesmo dia, preparam
àquele homem uma das vacas para comer; põem-lhe a mesa, e, ao prová-la,
por vingança de Deus, é tomado por violenta enfermidade. Ele considera-se
muito desgraçado, e, chorando sobre os seus males, do fundo do coração diz:
— «Restituo todos os bois e levai ao meu senhor, o Bispo Rosendo, o mais
depressa possível, um presente segundo as minhas disponibilidades, pois que sou
violentamente constrangido pela sua ira». Porém, apesar de se ter feito con
forme dissera, na mesma semana o seu corpo é entregue à sepultura, no pró
prio convento.
12. No tempo do citado abade, realizou-se um outro admirável milagre,
de que me lembro de ter tido conhecimento por certo monge venerando, que
se recordava de o ter ouvido de um bem-aventurado, que o presenciara. Decla
rava ele, que em certa solenidade do Natal do Senhor a rainha Urraca (12)
chegou a Celanova com não pequena multidão de soldados, para, em tal lugar,
poder escutar melhor e com a devida veneração os ofícios de tão grande cerimó
nia, e com isso alcançar de Deus maior elevação da sua alma. Entretanto, quando
o ofício noctumo estava a ser condignamente celebrado pelos monges, aconteceu
que o sacristão se dirigiu à casa do tesouro, para as coisas necessárias, que se
sabem pertencer a tão grande dia. Quando ia a subir por esse mesmo caminho,
como estivesse certo soldado da mesma rainha sentado com outros, calcou com os
pés, por acidente casual, a fímbria do manto dele. Imediatamente se exaltou com
a maior fúria contra o servo de Deus e o tratou mal com palavras injuriosas. E, por
sentença divina, foi logo assaltado pelo inimigo e caiu lá do alto, em baixo,
no pavimento, no meio dos que celebravam os ofícios, e aqui e além o vêem
agitado pelos mais fortes tormentos. Assim, ao divulgar como e porquê aquilo
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com cadeias, por uma inspiração divina, o meu professor dirigiu-se ao sepulcro
de S. Rosendo, acendeu uma vela, e, de joelhos, recitou uma oração para que,
se eu estivesse predestinado junto do Justo Juiz para o grau sacerdotal, ele
mesme me prendesse com os seus liames de virtude, e se dignasse abrir-me o
espírito para aprender. Conforme depois ouvi dele amiudadas vezes, sosseguei
mais, e não muito depois tomei de bom grado o hábito da profissão monástica,
do mesmo convento.
16. Também de modo algum se deve calar aquilo que abertamente
declaro ter visto. Certo servo deste mesmo convento, de nome João, ficou radi
calmente privado do uso de todas as partes do corpo, por causa não sei de
que doença. Por isso, como não visse, nem ouvisse, nem sentisse nada, foi
levado pelos pais, na minha presença, ao túmulo de S. Rosendo. E aí esteve
jazente o tempo de recuperar a sua integridade física.
17. De facto, quem quer que estivesse em tribulações, pelo que quer
que fosse, e implorasse S. Rosendo de coração sincero, bem podia conseguir
que sucedesse segundo o que tivesse pedido; pois vimos muitos pedir e receber
sem demora. Por isso quero expor um desses casos, que penso será suficiente
para quem crê. Havia um monge, que se dizia abade de S. Cláudio de Leão,
e que chegou casualmente a Celanova. E aí ficou o tempo que lhe foi permi
tido, segundo me contam os que ainda vivem, e que concordam em que isto
sucedeu nos passados três anos, pois que eu não estava presente. Entretanto,
como mandasse certo monge, que lhe era desconhecido, no seu cavalo, não sei
com que incumbência, pensou que ele fugira, porque não chegou no dia mar
cado. Neste comenos, as suas vestes foram levadas por qualquer estranho. Por
tal motivo, começou a atormentar-se em excesso, dizendo que não sabia o que
havia de fazer. Finalmente, dirigiu-se ao sepulcro de S. Rosendo, e disse-lhe,
como se falasse com outro qualquer: — «S. Rosendo, que mal fiz eu algum
dia a vós ou aos vossos? Porque me quisestes despojar quando eu estava em
vosso poder? Se sois santo, restituí o que tirastes, já que o não guardastes».
Depois, como o tal nosso monge voltasse da caminhada a que fora mandado,
por um sinal divino, encontrou o ladrão longe do mosteiro, tirou-lhe as vestes
e entregou-as àquele. Assim, sucedeu que no dia em que invocara S. Rosendo,
recuperou as vestes, e três dias depois, recebeu o cavalo incólume.
18. Atestam os monges, que estão presentes, que, nos passados cinco
anos, um rapazinho, de nome João — estava eu então ausente — foi tomado
por um demónio, cujo aspecto agora vejo com muita frequência. Como já há
tempos sofresse deste tormento, não sentia prazer em nada. Por isso, a mãe
leva-o à Igreja e apresenta-o aos que celebravam missa pelos altares. Por último,
como não alcançasse saúde alguma, a sua progenitora é aconselhada por alguns
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quoddam ipsius cenobii opidum sandinum nomine, quod prope fluuium consis
titur amogie, ualido cum exercitu obsedit; quem rudesindus beatissimus
episcopus intolerabili tonitrui celestis coruscatione mirabiliter pepulit. Siquidem
anna iamdicti monasterii opida comes ipsius regis uelascus, uidelicet sancte crucis
et montis leporarii, fraude sibi rapuit: insuper illius suasione, rex prefatus sancti
rudesindi uirtutem parui pendit, cum birretum castrum infra monasterii cautum
dolatis lapidibus firmiter edificauit, eique tradidit, qui etiam cunctam fere su-
pradictam cenobii hereditatem militibus ad sibi seruiendum erogauit. His ita
gestis, pelagius abbas ficarii, abbatis sobrinus cum aliquantis monachis cenobium
ob tantam persecutionem deserit, regem femandum petit, qui illum honeste
tractauit, ac ei samonense monasterium tradidit. Interim uero cum edificandi
causa iam dictum castrum prepararetur, facta est contentio inter monasterii
homines ac regis famulos eo quod segetes ad equorum opus seccarentur. Ad hec
autem quidam rusticus garsias nomine regis iussu cum plerisque ad suos uenit
defendendum, magnoque fastu clara uoce se cum beato rudesindo dixit pugnatu
rum. Qui in eadem pugna lancea percussus, obiit peregrinus, et eodem die
monasterio est delatus, et in sequenti sepultus. Quo igitur signo sancti anti
stitis potentia cunctos qui audierant ualde perterruit, sed ipsius regis sicuti
Pharaoni ad maioris cumulum sue damnationis cor obdurauit, quatenus maris,
id est, magni populi uoluentur fluctibus: aut cum symeone subleuatus, lapidis
frangeretur percussionibus, sicuti postea rei probauit euentus: preualebat siqui
dem circumcirca iniquitas, et multorum refrigescebat caritas; ita ut opprobrii
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celle noue hereditatis a supradicto abbate ius plenarie recipitur. In quo uidelicet
opido, quamdiu permansit, monasterii signa, uti prius uel postea sunt audita,
nullus audire potuit. Velascum uero comitem, qui tam peruerse rei auctor
extiterat premaximus, non multo post cum sibi complicibus deiectum uidimus,
ubi caput reclinaret minime habentem. Cuius eciam maiorinus, nomine adefonsus
bos, qui multa mala intulerat, diu ante crepuit medius: per omnia benedictus
deus, qui superbos humiliat, et confidentes in se ab omni pressura liberat; qui
cum patre et spiritu sancto uiuit et regnat per omnia secula seculorum amen.
Era M.a CC.a X.a tam uita Beati Rudesindi quam uirtutes ab Ordonio
sunt edite.
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recebe com direito plenário toda a herança de Celanova. E nessa cidade, todo
o tempo que permaneceu, ninguém pôde ouvir os sinos do Mosteiro, como antes
ou depois se ouviram. Quanto ao conde Vasco, que tão perversamente fora o
causador do acontecimento, vimo-lo não muito depois derrubado com os seus
cúmplices, sem ter onde reclinar a cabeça. E também o seu mordomo (26),
de nome Afonso Boi, que tanto mal acarretara, algum tempo antes rebentou
pelo meio.
Em tudo é bendito o Senhor, que humilha os soberbos e livra de todas
as aflições os que nele confiam. Que com o Pai e o Espírito Santo vive e reina
por todos os séculos dos séculos. Amen.
N a era de 1210 tanto a vida como as virtudes do bem-aventurado
Rosendo foram publicadas por Ordonho.
(26) Seguimos a lição dos Act. Sanct. Sobre este milagre, veja-se o que ficou
dito no prefácio.
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23. Silentio non est tegendum, quod nostris temporibus plerisque manet
cognitum. Quidam canonicus iacobensis ecclesie, petrus nomine, cum legionis
atque portugalis regum legatione fungeretur, fortuitu iam infirmus cellam
nouam ingressus est; ubi etiam ita a languore perurgetur, ut ulterius conuales-
cere nullatenus putaretur. A quo tamen monasterii abbas multis exoratur pre
cibus, quatenus ante sancti rudesindi tumbam presentari mereretur. Qui continuo
ad abbatis imperium quorumdam manibus sustentatus, ab ecclesie sacrista est
coram bono uiro delatus. Mox que ante illius sepulcrum prosternitur, et pre
tanto dolore brachiis monumentum, uentre simul adherente, amplectitur; quous
que singultu ac prece diutina, peractis uigiliis, per somni soporem a sancto
rudesindo sanitatem consequitur; uti ab eis qui hec adhuc ab eo audire didici.
24. Reticendum penitus non est necesse, quod nuper archidiacono celle-
noue pelagius nomine, cunctis liquet accidisse; nam cum quedam in eius naribus
infirmitas, que uulgo spunlia dicitur, nasceretur, pre tante pestis deformitate
tribulabatur, ac se nimis uerecumdabatur. Ob hoc siquidem duabus uicibus
cellam nouam uenit; et pestis locum, sancti rudesindi sepulcro multotiens con
fricando adhesit; ac cum magnis singultibus psalmos recitauit, in quorum fine
taliter infit: O beate rudesinde, mihi, queso, peccatori miserando subueni, uita
mortis periculum, dona salutis adminiculum. Verum enimuero cum in ipsa
ebdomada se ad officium misse celebrandum prepararet, sicuti postea ab eo
audiui, ita pestis illa ad tactum aque, quam abluendi causa per manus faciemque
fuderat, radicitus abstrahitur, quatenus pristine sanitati, dei uirtute, per sanctum
rudesindum redderetur.
25. Apud portugalem in monassterio fontis archadie, quidam monachus,
munio nomine, ualde a quaternis urgebatur febribus. Nam cum per unum annum,
nec per ecclesiarum uisitationem, nec per medicorum operationem subleuaretur,
demum in somnis a sancto rudesindo amonetur, quatenus si in eius honore flexis
genibus dominicalis oratio a cunctis monachis deo funderetur, continuo sanitati
redderetur. Quod ita factum est, sicut a quodam honesto nostri monasterii
agnoui monacho; qui illuc positus tam ab eodem, quam ab omnibus monachis
hec audisse fatebatur.
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os monges à sua prece e, orando com eles, recebeu de Deus a saúde, por
intermédio de S. Rosendo, segundo afirma o guardião da mesma Igreja, que lhe
prestou serviço nalgumas coisas.
30. Sucedeu que um dos monges de Celanova, por nome Munho, se
dirigiu às bandas do mar, para trazer peixe aos frades. Aí mesmo, encontrou
por acaso o seu abade, Pelágio Ficário, a cuja companhia se agregou, de forma
a estar mais seguro e melhor em tudo. E, enquanto os servos de um clérigo,
que o tinham recebido dignamente no hospício, transportavam o abade com
alguns num barco, da outra margem do mar, para o lugar para onde estava
para ir, o supradito Munho vê-se ficar, por engano, com alguns servos do abade.
Os marinheiros, quando voltaram, e não encontraram o seu amo, que então
se afastara para longe, por causa de qualquer negócio, não quiseram, a rogo
nem a dinheiro, transportar o mesmo monge com os restantes, conforme lhes
ordenara o seu senhor; mas voltaram para a outra margem do rio e começaram
a dormir no barco. Vendo isto, o monge, oprimido pela angústia na sua alma,
pois que naquele lugar não (32) podia encontrar de algum modo outro trans
porte, declara aos demais, que estavam com ele, o seguinte: — «É preciso,
meus caríssimos irmãos, implorarmos esforçadamente o auxílio de S. Rosendo,
com todas as veras da nossa alma. Assim como eu não desdenho de suportar
tão grandes trabalhos em proveito dos frades dele, assim ele se faça nesta
hora de necessidade nosso piedoso auxiliar». Maravilha! Ajoelham, recitam
preces, e eis que vem ter com eles, de onde estava, o barco em que os mari
nheiros dormiam, sem que mão alguma o guiasse. Entrando nele com os
outros, e levando os peixes, segundo soube pelo próprio, com um só remador,
passou ao outro lado. Em tudo seja Deus bendito, que tantos milagres opera
pelos méritos do santíssimo Rosendo. Que vive e reina com o Padre e o Espírito
Santo por todos os séculos dos séculos. Amen.
(32) Seguimos a variante dos Act. Sanet. e do Cod. Ale. 113: non.
(33) Segundo a conjectura que se lê em PM H , I, p. 33: Nec solus scripsit.
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LIBER IV
[34.] De alio ceco puero de canderee, qui ad sancti tumulum lumen a domino
impetrauit.
[40.] De monacho Sancti Facundi nomine Sanctio priuato lingue offitio sibi
per sanctum pontificem restituto.
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LIVRO IV
[38.] De como certo homem, por nome Miguel, da paralisia das pernas e das
tíbias, foi restituído à saúde.
[4L] De certa mulher que cegou de uma grande doença, que depois mereceu
alcançar a vista.
[42.] Do paralítico que não era transportado senão num carro, por mãos alheias.
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31. Quia uero longum est scribere omnia, quae per senium suum
mirabilia Deus dignatus est operari. Aliqua tamen de multis huic opusculo
dignum duximus inserenda, quae a pluribus et uiris religiosis audiuimus: qui
se propriis oculis uidisse fideliter testabantur. Vir ergo quidam, peccatis
exigentibus, diu possessus a daemone uenit ad monasterium Cellae-nouae,
ubi corpus B. Rudesindi in B. Mariae Dei Genitricis ecclesia requiescit. Qui
cum ante ipsam ecclesiam deuenisset, et se cito arreptum, a quo solitus erat,
daemone, cognouisset; accepit cultrum, quem in uagina tenebat, et pueris
circumstantibus dedit, dicens: Custodite hoc et ducite me ad fores ecclesiae,
ubi iacet corpus S. Rudesindi, et obseruate me: quia sine dilatione sum a
solito daemone inuadendus. Quo dicto, et pueris fugientibus prae timore,
statim, quod dictum fuerat, opere adimpletur. Arripitur, in terram prosternitur,
conteritur grauiter et uexatur. Quod uidentes pueri qui prius fugerant territi,
occurrerunt tam ipsi quam alii. Superuenientes autem monachi, deferunt
illum ad tumulum beatissimi Rudesindi, eiusdem auxilium attentius implo
rantes: ut eidem dignaretur misero misericorditer misereri: sicque tenentes
et constringentes illum, ne penitus disceperetur a daemone, comminabantur
ei modis quibus ualebant, ut exiret, et ab eo discedere debuisset. Cumque
sic diu teneretur, et ab ipsis monachis interrogaretur, quam ob caussam
ipsum hominem ingrederetur; coepit loqui, et dicere, audientibus omnibus,
qui adstabant: Pro nulla re alia hominem sum ingressus, nisi pro uoto quod
uouit B. Mariae, ut iret ad domum eius; et facere non curauit. Sed et dum
egressus fuero ab illo (nam egrediar) nisi statim iter arripuerit, et uotum
soluere festinauerit; mox iterum arripiam, et quasi proprium possidebo.
Si autem uotum exoluerit, potestatem in eum ulterius non habebo. Cum uero
iterum interrogaretur, qualiter uel qua hora deberet exire, sic respondit:
Cum fuerit tempus Missae celebrandae apprehendite illum per pollicem digitum,
et per nares ipsum fortiter constringentes, tenete: et sic ab eo recedam, numquam
ad illum de cetero reuersurus. Quod factum est. Nam cum ad Missam
campanae pulsari, et se monachi coeperunt ad eius officium praeparare; monachi,
qui aderant, apprehendentes eum, sicut ipse dixerat, et collum eius stola beati
Pontificis circumdantes, cum tempus accessit ab eodem daemone praenotatum,
clamans atque discerpens confusus exiit et discessit. Sicque homo per sancti
Pontificis merita liberatus, ad uotum beatae Virgini persoluendum sanus et
incolumis se preparauit; et ita per Dei misericordiam liber cum magno gaudio
ad propria remeauit.
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nomen Domini Iesu Chrissti qui per Sanctos suos tam magna mirabilia dignatus
est operari. E t ita, ut in illa uisione supra praeceptum fuerat, ad propria reuersus
est cum salute.
35. Homo quidam, Petrus Nunionis nomine, de Milmanda, cum ali
quando comederet piscem, qui turta ab omnibus nominatur; accidit ut os piscis
in eius gutture uersaretur: quod cum diu ui uel aliquo ingenio non posset
extrahi nec deglutiri (quia, pro posse in multis et palam aduersabatur monasterio
Cellae-nouae) tandem uenit ad sepulcrum B. Rudesindi, necessitatis angustia
coarctatus: confisus tamen ipsius posse beneficio per Dei gratiam sanari. Dumque
ad idem monasterium uenisset, rogauit monachos, ut illum introducere digna
rentur, ubi erat corpus iam dicti beatissimi Confessoris. Cui cum praesentatus
fuisset; dictum est ei ab aliquibus, qui adstabant: Amice, recordare, quia
isti loco fuisti multoties aduersatus. Quapropter poenitere primum: deinde
promitte fideliter, quod de cetero emendaberis: et uere credimus, quod per
B. Rudensindum dabit tibi Dominus sanitatem. Quibus dictis, culpam cognouit:
emendationem promisit, et cum adstantibus pro merenda sanitate pariter exorauit.
Cumque in oratione aliquamdiu permaneret, dixerunt ei quidam: Tussite, si
modo potestis. Cumque hoc faceret, exiuit spina, quae illum grauiter affligebat: et
ita sanus effectus a Domino, per beneficium sanctissimi Rudesindi, rediit in
domum propriam, a malitia et inquietudine, quam prius monasterio exhibebat,
de cetero emendatus.
36. Puella quaedam habens in facie grauissimum apostema, uenit ad
monasterium, Dei pietatem per S. Rudesindi merita implorare: cuius facies
ita iam erat inflata, ut ab inflatione illa oculi clauderentur, et caput ac
tota facies in tanta rotunditate intumuerat, quod accedentes uix poterant illam
prae horrore nimio intueri. Excreuerat etiam in ipsius faciei parte sub imo oculo
rum quidam tumor ad instar parui pomi, qui uidebatur quasi initium totius infla
tionis. Quae puella, cum ad beati Confessoris Christi tumulum esset ducta; et
sancti annulus, qui in eius translatione ab ipsius digito receptus fuerat in ipsa
tumenti facie poneretur, paullatim cum dolore coepit decrescere tumor ille; et sic
est usque ad quintum diem per Dei gratiam et Sancti eius famuli auxilium
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glorificou o nome do Senhor Jesus Cristo, que por intermédio dos seus santos
se dignou operar tamanhos prodígios. E assim, tal como lhe fora advertido
na visão acima, voltou a casa com saúde.
35. Um homem, de nome Pedro Nunes, de Milmanda (35), uma vez que
estava a comer um peixe, a que todos chamam truta (36), sucedeu-lhe que
uma espinha se lhe meteu na garganta. E como, durante longo tempo, se não
pudesse extrair ou engolir, à força ou por qualquer habilidade (pois que, à conta
de ter poder em muitas coisas, era abertamente adversário do Mosteiro de
Celanova), acabou por vir ao túmulo do Bem-aventurado Rosendo, coagido pela
angústia da necessidade e confiado, mesmo assim, em que podia, por benefício
dele, ser curado pela graça de Deus. Tendo vindo ao mesmo Mosteiro,
rogou aos monges que se dignassem mandá-lo entrar para o sítio onde estava
o corpo do dito e santíssimo Confessor. Quando o levaram lá, disseram-lhe
alguns que ali estavam presentes: — «Amigo, recordai-vos de que muitas vezes
fostes hostil a este lugar. Por isso, arrependei-vos primeiro; depois, prometei
fielmente que vos emendareis o resto do tempo; então acreditamos de verdade
que Deus vos dará a saúde por intermédio do bem-aventurado Rosendo». Dito
isto, reconheceu a sua culpa, prometeu emendar-se e orou juntamente com os
presentes para merecer a saúde. E, tendo permanecido algum tempo em
oração, disseram-lhe alguns: — «Tossi, caso possais». Feito isto, saiu a espi
nha que tanto o afligia. E assim curado pelo Senhor, por benefício do
santíssimo Rosendo, voltou para sua casa, emendado para o resto do tempo da
malícia e intranquilidade que anteriormente testemunhara ao Mosteiro.
36. Certa rapariga, que tinha na face um abcesso gravíssimo, veio ao
Mosteiro, implorar a piedade de Deus pelos méritos de S. Rosendo. A sua
face estava já de tal forma inchada que, com a inflamação, os olhos se tinham
fechado, e a cabeça e toda a face haviam-se entumecido até ficarem tão
horrendas, que quem se aproximava mal podia olhar para ela, tal era o
horror. Tinha crescido também na parte do rosto, por baixo de um dos olhos,
um tumor semelhante a um pequeno pomo, que parecia ser como que o ponto
de partida de toda a inchação. Essa rapariga foi levada junto do túmulo do
bem-aventurado Confessor de Cristo e foi-lhe posto na face inchada o anel do
Santo, que lhe fora tirado do dedo por ocasião da trasladação. Aos poucos,
o tumor começou a decrescer com a dor. Assim foi por cinco dias minorado
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minoratus; quod uix posset in ipsa muliercula doloris illius uestigium inueniri.
Pro quo Christo et eius sanctissimo Praesuli laudes referens plurimas, ad propria
rediit cum salute.
37. Quidam Clericus in Limia a Villa Larcyroa manum habebat, reflexis
in palmam utrisque digitis, penitus inutilem et contractam. Qui cum famam
miraculorum S. Rudesindi auribus percepisset; recuperandae sanitatis fide
concepta, uenit ad eius monasterium et sepulcrum. Sed cum ad beatum fuisset
praesentatus, monachi, qui aderant, sancti Pontificis annulum et ipsius alias
Reliquias deducentes, in ipsam manum clausam super inflexos et nimis adstrictos
digitos posuerunt; et facta oratione pro eo, illum ante Sancti tumulum reliquerunt.
Cum autem ad eum redierunt post aliquod diei spatium, inuenerunt digitos illos
mobiles, qui paullo ante in palmam defixi, ut diximus et aridi tenebantur. Quos
cum tentantes tetigissent; absque ullo dolore, primo pollicem leuauerunt; deinde
alii ipsum subsequentes extensi atque directi; annulus cum capsula argentea,
in qua est, plane in palma manus mirabiliter est inuentus. Quo uiso miraculo,
cuncti, qui aderant, cum ipso sanato Clerico Deo et Sanctis eius pro tanto
beneficio dignas gratias retulerunt.
38. Aliud quoque miraculum, quod multis, qui supersunt, est cognitum,
non duximus reticendum: ut quamuis indigni et peccatores; per nos tamen ea,
quae a certis testibus audiuimus, cognita et probata Dei mirabilia praedicentur.
Erat igitur homo quidam, nomine Michael, cuius crura et tibiae a iuuentute ita
erant iunctae pedibus et curuatae, ac si fuissent adinuicem ingenio aliquo ex
industria glutinatae. Vnde per multum tempus sic mansit inutilis; et ipse pene
membris omnibus destitutus, quod de salute corporis, quasi iam penitus dispe-
raret: sed inspiratione diuina, quae nomen sancti sui Confessoris uolebat apud
homines amplius confiteri, intrauit cor matris eius, ut duceret illum ad monas
terium S. Rudesindi. Cumque ductus fuisset, et ad Beati sepulcrum intromissus,
fuit ibi per dies aliquot persistens in orationibus et uigiliis. Quadam uero die,
cum more solito mane ante tumulum alienis manibus duceretur ibique solo
inter columnas monumenti iactaretur; accidit, ut a Conuentu Missae officium
ageretur. Quod cum fieret, miro modo coepit angustiari nimium, et magnis
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peia graça de Deus e auxílio do seu santo Servo, a ponto de mal se poderem
encontrar na mulherzinha vestígios daquele sofrimento. Por isso, dando muitas
graças a Cristo e ao seu santo Prelado, voltou a casa com saúde.
37. Certo clérigo de Limia, de Vila de Laredo (37), tinha uma mão
completamente inutilizada e contraída, com os dedos dobrados para a palma.
Tendo recolhido em seus ouvidos a fama dos milagres de S. Rosendo, ganhou
fé de que recuperaria a saúde, e foi ao seu Mosteiro e sepulcro. Levaram-no ao
bem-aventurado Santo, e os monges que estavam presentes trouxeram o anel
do Santo Pontífice e outras relíquias suas e colocaram-nas na própria mão
fechada, sobre os dedos dobrados e demasiado apertados. Depois de orarem
por ele, deixaram-no diante do túmulo do Santo. Quando, porém, voltaram
ao pé dele, depois de certo espaço de tempo, encontraram-lhe móveis aqueles
dedos que pouco antes se enclavinhavam, mirrados, na palma, conforme disse
mos. Tentaram tocá-los, erguendo primeiro, sem dor alguma, o polegar, depois
os outros, que vinham a seguir, distendidos e direitos; o anel com a cápsula
de prata, em que está, foi encontrado maravilhosamente à mostra na palma
da mão. Depois de contemplado este milagre, todos os que estavam presentes
deram, com o próprio clérigo, as merecidas graças a Deus e aos seus Santos,
por tão grande benefício.
38. Também não entendemos que se deva calar outro milagre, que é
conhecido de muitos que ainda vivem, para que, apesar de indignos e pecadores,
sejam contudo apregoados por nós aqueles prodígios de Deus, conhecidos e pro
vados, que ouvimos de testemunhas seguras. Havia pois, um homem, de nome
Miguel, cujas pernas e tíbias desde a juventude estavam tão juntas aos pés e
recurvadas, como se tivessem sido coladas de propósito uma à outra, por qual
quer engenho. Por causa disso, ficou assim inutilizado por muito tempo, e
estava quase privado do uso de todos os membros; pelo que era da saúde do
corpo, por assim dizer, já desesperara de todo. Mas, por inspiração divina, que
queria que o nome do Santo Confessor fosse mais largamente apregoado
entre os homens, entrou no coração da mãe dele a ideia de o levar ao
Mosteiro de S. Rosendo. Transportado e introduzido junto do sepulcro do
Bem-aventurado, ficou lá alguns dias, persistindo em orações e vigílias. Porém,
certo dia, como, segundo o costume, fosse levado de manhã por mãos alheias
para diante do túmulo, e aí ficasse deitado no chão, entre as colunas do sepulcro,
sucedeu que o Convento estava a realizar o ofício da Missa. No decurso dela,
começou a angustiar-se excessivamente de modo espantoso, e a chamar em gran-
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des vozes, dizendo: — «Socorro, frades, socorro, que eu estou a ser dilacerado
e torturado, como se fosse devorado pelos cães». E, clamando estas coisas com
voz muito áspera, começou a erguer-se e a agarrar-se às colunas do próprio
sepulcro. Os frades, acorrendo de todos os lados, viram-no apoiado nos seus
pés, a clamar, e viram os seus ossos a ranger fortemente, e viram-lhe correr
sangue das articulações. E assim, pelos méritos e intercessão do Santo Confessor
e pela misericórdia de Cristo, ficou distendido e recuperou a saúde.
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C A P V T II
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39. Entendemos que se deve inserir neste opúsculo outro milagre que
soubemos ter acontecido, por verídica narração de duas freiras, mulheres
bastante religiosas e dignas, do mosteiro de Tomino. Elas relataram-no,
conforme sucederaj^f, a D. Fernando, terceiro Abade de Celanova, e, por
fim, a todo o convento. Ora pois, nas partes de Toronho (39), certo militar
de Cerveira fez prisioneiro, com os seus soldados, um homem qualquer seu
inimigo, segundo dizia. Depois de o capturarem, entraram no citado Mosteiro,
para se albergarem; e aí começaram a macerá-lo e a maltratá-lo diante das
freiras e diante de todos, molestando-o com pancadas e outros castigos.
Pegaram nele, de pés ligados e braços estendidos na lança, por baixo da
túnica, à maneira de crucifixo, e atiraram-no dura e àsperamente para o chão,
lançando-se sobre os braços dele e sobre a lança. Porém, as freiras, ao
verem tudo o que se fazia, prostraram-se com grandes choros e soluços diante
do altar que aí estava erigido em honra do bem-aventurado Confessor Rosendo,
rogando muito devotadamente o auxílio da divina misericórdia, que não
abandona ninguém que nela confie, para que, pela intercessão do santíssimo
Confessor, libertasse, pela sua divina clemência, aquele desgraçado homem,
que, fora de dúvida, esperava a morte pela manhã. E até uma delas, pela amar
gura que lhe ia no coração, indo para arrancar do própio altar os panejamentos
que estavam sobre ele, dizia assim: — «Ó Bem-aventurado Rosendo, se não vos
dignardes socorrer-nos e libertar aquele desgraçado homem, desnudarei com
pletamente o vosso altar». E tendo-se aqueles homens apercebido disto, alguns,
exaltados pelo espírito do orgulho e pelo ímpeto do furor e da crueldade, diziam
assim: — «A Deus e a S. Rosendo desafio, em como este homem não fugirá
nem se evadirá esta noite». A estas palavras, por intermédio do seu bem-aven
turado Confessor Rosendo, a misericórdia de Deus libertou de tal modo aquele
homem, que a túnica de que estava revestido à maneira de crucifixo, como dis-
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semos, ficou na lança com as citadas cordas. Quando despertaram, pela manhã,
e não encontraram o homem, retiraram-se confundidos do Mosteiro, dizendo
a todos os que lá estavam: — «Guardai bem as relíquias do santíssimo Rosendo».
Então as freiras, com todos os que estavam presentes e viram, chorando
abundantemente de alegria, entoaram graças e louvores multimodos a Deus e
ao seu santíssimo Pontífice. A Quem seja dada honra e glória pelos séculos
dos séculos.
40. Também no nosso tempo vimos um monge, por nome Sancho, que
habitou por muito tempo no Mosteiro de S. Facundo. O venerável varão, pro
fundamente religioso desde o primeiro período da sua vida, tendo solicitado
e obtido licença do seu Abade, dirigiu-se para o Convento de Celanova. E quando
já aí morava há bastante tempo e se salientava bastante pelos seus sagrados
costumes, sucedeu-lhe perder o uso da língua de tal maneira, que estava com
pletamente privado de toda e qualquer loquela. Porém, como permanecesse
mudo por largo espaço de tempo, afligia-se extremamente com tristeza e dor,
querendo muitas vezes bater no túmulo de S. Rosendo com o báculo em que se
apoiava, para deste modo insinuar que o mesmo bem-aventurado Confessor,
se quisesse, lhe restituiria a saúde. De onde resultou que, quando a congrega
ção dos monges, que dava graças a Deus na Igreja, ia para sair do coro, o
encontraram junto do túmulo do santo Pontífice Rosendo, a começar um
responso, que, mal ele o começou, todos entoaram em coro, e deram graças
a Deus, que tantos benefícios concede ao mundo por intermédio do seu san
tíssimo Confessor.
41. Lemos estas palavras de Salomão: «O filho sábio é a glória do
seu pai» (40). Por isso é muito digno de veneração e admiravelmente glorioso
honrar conjuntamente em tão sábio filho, ou seja, no bem-aventurado Rosendo,
a sabedoria de Deus Padre e exaltar sempre a sua glória. A sabedoria de
seu filho mostrou-se bem patente, quando a si mesmo se consagrou sàbiamente
como templo de Deus, segundo o que diz o Apóstolo: «Templo de Deus
vivo, que sois vós» (41). E a sabedoria desse templo, ilustrada pela santidade,
virtude, milagres, sinais e prodígios, restituiu inteiramente à saúde muitos
membros de doentes que estavam detidos por várias enfermidades (não um
só, como o que se salva na piscina do Evangelho) (42). Desses vamos divulgar
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(43) Ginzo, hoje na província de Orense. Cf. P.® Avelino Costa, O Bispo
D . Pedro e a Organização da Diocese de Braga, Coimbra 1959, vol. I, p. 330.
(44) Mc. 8. 24.
(45) Fernando II de Leão, filho de Afonso VII.
(46) Reminiscências claras de Ps. 43, 24-25, que os monges intercalam na
sua oração.
(47) Emendando para nos a palavra non do texto.
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et patrimonium dissipare; sed etiam hic sub alis tuis non dimittimur Domino
deseruire. Haec et his similia dum monachi dicti monasterii dicerent lacrimantes,
praedictum Baronem diabolus arripuit; ipsumque in ignem, inuitis et retrahen
tibus militibus suis, misit. Cumque ipsum spumantem et strepentem iidem milites
ab igne extraherent, diabolus ex ore eius loquens, sic dicitur e circumstantibus
adhuc uiuentibus respondisse: Permittite me comburere depraedatorem santissimi
Rudesindi, Dominus enim me constituit ultorem et maiorinum ipsius. Terram
enim ipsius temere depraedatus est: et nunc etiam hic irreuerenter ueniens in
umbra sua monasterium, quod ipse Sanctus construxit, ausus est inuadere,
et bona ipsius atrociter dissipare. Milites igitur accipientes praedictum Princi
pem, strepentem, ut supra dicitur, et spumantem, ipsum circa B. Rudesindi
tumbam in ecclesia posuerunt: ibique tota nocte illa iacuit semiuiuus. Mane
autem facto, ipsum iterum diabolus arripuit. Cumque interrogaretur a circum
stantibus, quo pacto ipsum dimitteret, sic respondit: Nisi primum cunctam
rapinam restituat, et homagium faciat ipse et milites eius, quod numquam
terram et monasterium istud ingrediatur, ut noceat; ipsum aliquatenus non
dimittam. Milites igitur uocantes Abbatem et monachos cum Principe praedicto,
pro eo fecerunt homagium supra dictum. Quo facto, sanus et incolumis factus est
eadem hora; restitutisque rapinis integris omnes cum magno timore a monas
terio recesserunt. Per omnia benedictus Dominus, qui beatissimi Confessoris
sui sic dignatus est iniurias uindicare. Arnen.
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Eis que já não basta devastar a terra pátria e o vosso património, mas mesmo
aqui, sob as vossas asas, não nos consentem servir a Deus». Enquanto os monges
do dito Mosteiro diziam, lacrimosos, estas palavras e outras semelhantes, o diabo
arrebatou o citado barão e deitou-o ao fogo, apesar da oposição dos seus
soldados, que o puxavam. E, como os mesmos soldados o retirassem da fogueira,
a espernear e a estrebuchar, dizem aqueles dos circunstantes ainda vivos que o
diabo, falando pela boca dele, respondeu: — «Permiti-me queimar o ladrão
do santíssimo Rosendo, pois que o Senhor me constituiu vingador e meirinho
dele (48). Pois saqueou audaciosamente a sua terra, e ainda agora, vindo irre
verentemente aqui, à sombra dele, ousou invadir o Mosteiro, que o Santo
em pessoa erigiu, e dissipar os seus bens atrozmente». Então os soldados
pegaram no dito Príncipe, a estrebuchar, como acima se diz, e a espumar,
e pousaram-no junto do túmulo do bem-aventurado Rosendo, na igreja; e aí
ficou jazente, semi-morto, toda aquela noite. Quando amanheceu, de novo
o diabo o arrebatou. E, interrogando-o os circunstantes por que modo o largaria,
respondeu assim: — «Só se antes restituir tudo o que roubou e ele mesmo
e os seus soldados prestarem menagem, em como jamais entrará nesta terra
e neste Mosteiro para fazer mal; até lá não o largarei.» Os soldados então,
chamando o Abade, e os monges, com o citado príncipe, prestaram por ele
a menagem acima referida. Prestada ela, ficou são e incólume na mesma hora,
e, depois de ter restituído integralmente a presa, todos se retiraram do Mosteiro
com grande temor. Em tudo seja bendito o Senhor, que assim se dignou vingar
as ofensas do seu santíssimo Confessor. Amen.
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(Página deixada propositadamente em branco)
I. LATIM MEDIEVAL – HAGIOGRAFIAS 111
APÊNDICE
112 LATIM MEDIEVAL E RENASCENTISTA
V IT A B E A T A E SE N O R IN A E V IR G IN IS
112
I. LATIM MEDIEVAL – HAGIOGRAFIAS 113
VIDA DA BEM-AVENTURADA
V IR G E M S E N H O R IN H A ( 1 )
Querendo nós, meus caros, narrar aos ouvidos dos fiéis os louvores de
Deus e as suas virtudes, apraz-nos a vida venerável da santíssima virgem
Senhorinha, que, em matéria de louvores a Deus omnipotente, Nosso Senhor
Jesus Cristo, decorreu cheia de virtudes. E, para a podermos dignamente
investigar e propalar, imploremos com preces humildes e com devoção ao
mesmo Deus e Nosso Senhor Jesus Cristo, criador e governador de toda a
criatura, para que Ele, de quem procede todo o bem, no qual os olhos de
todos esperam, e que lhes dá alimento no tempo oportuno (2), se digne
abrir-nos as portas da sua misericórdia, a fim de que Ele mesmo, com a
sua virtude e graça, nos faça cumprir o que o esforço do nosso coração
tiver empreendido em seu louvor; pois é Ele quem ensina ao homem a ciência
e enche de bênçãos todo o ser animado (3 ); e só a Ele pertence conceder que
se saiba o ignorado e se exponha numa linguagem clara o que se conhece e
entende.
Pois que esta bem-aventurada virgem, nascida de pais nobres e cristia
níssimos, regenerada e confirmada pelos sacramentos da Igreja, sempre se
esforçou, desde a infância, em todo o tempo, por agradar a Deus, tanto pela
fé, como pelos seus costumes e vida. Ornou com os costumes o seu propósito
e, conforme o voto que fizera a Deus, guardou, imaculada, a alma e o corpo.
Depois do nascimento dela, como a mãe tivesse falecido, o conde
Avulfo, pai da virgem, triste e melancólico com a morte recente da esposa,
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manda que lhe tragam a filha pequenina, para se consolar. Quando a viu
nos braços da ama, suspirou, como é costume de quem sofre, e, chorando,
chamou-lhe Senhorinha, pondo-lhe um deminutivo tirado da pequenez do
corpo. E, por entre lágrimas, disse-lhe também: — «Filha, ofereço-te ao Cristo
Deus e ao mesmo te encomendo; que Ele dirija o teu caminho, à sua vista».
À ama disse tam bém :— «Vai; cuida dela e guarda-a e acalenta-a com
todo o zelo».
Finalmente, educada pela ama, como convinha, na casa paterna, aprouve
ao pai afastar a filha de casa. Logo a entregou aos cuidados de uma religiosa
de nome Godinha. Esta recebeu-a de bom grado, adoptando-a como filha
espiritual, e o seu nome, porque não é ignorado pelas pessoas religiosas, não
se duvida de que é verdadeiro; porque quando (4) ... perece como um malvado;
e o justo busca a sociedade dos justos. Pois tais são os que uma pessoa
acarinha, assim se pensa que ela é. Portanto, a religiosa, como era dotada de uma
certa habilidade e de um firme engenho, tentou semear e lançar nos ouvidos da
donzela quão grande era a glória da vingindade, e como era um sacrifício
honroso e agradável oferecer a Deus um corpo santo e casto e uma alma
imaculada. Dizia ela: — «A fecundidade enche o mundo, enquanto a virgindade
enche o paraíso; a castidade associa-se com os anjos, enquanto a concepção
e o parto adjudica os filhos com dor e trabalho; a beleza honesta recebe o Rei
dos anjos por esposo, que lhe prepara o tálamo no reino celeste; a glória da
virgindade junta no céu muitos irmãos com Cristo, cujas arras e amor, ao
mesmo tempo que tocam a mão ou o coração de cada virgem, imediatamente
expulsam o amor mundano, de modo a não mais subsistir memória dele. Na
verdade, não há esposo algum semelhante a este em todo o orbe das terras.
E quem quer que por amor dele sofra na terra angústias, dificuldades e tor
mentos, gozará na celeste mansão dos banquetes jucundíssimos da eterna
glória. Este Esposo é o criador dos anjos, este o senhor dos céus». Isto dizia
frequentemente a mestra à discipula. E de tal modo lhe imbuiu disso a alma,
que esta se incendiou e inflamou de amor divino. Pois soltava grandes suspiros
e derramava copiosas lágrimas, e, voltando-se para Deus, disse: — «ó altíssimo
criador de todas as coisas, oxalá vos agrade, Senhor, receber no número e com
panhia das vossas servas os cantos desta paupérrima pecadora, e que ela alcance
amar só a Vós, a Vós temer, a Vós servir, a Vós agradar e buscar aquilo que
pertença à vossa honra, à vossa glória, à vossa virtude, à vossa vontade.
Pois Vós conheceis os arcanos dos corações, e nunca vos apraz o coração
(4 ) Lacuna no original.
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Dei ingredi uult, ut ea postea benedici merearis. Ille enim filius est altissimi
imperatoris, cuius filia et sponsa uocari filia tua merita est. Postero autem die,
cum primum illucesceret, pater filiam conuenit, quem ipsa benigne excipiens
(timebat tamen in iram eius incurrere, statuerat enim uotum seruare) ac
amplexa, ait: Quare tam cito huc, pater mi? At ille Angelico monitu, uoto, et
benedictione filiae laetus, hilari uultu libentique animo: Ego, inquit, filia mea,
huc accedo, ut quoniam uiam Dei ingredi studes, ea, quae tibi sunt necessaria,
praeparem. Quo audito se ad pedes patris proiicit, dicens: Gratias tibi ago
ingentes, Iesu Christe Rex potentissime, tu enim Domine, qua es misericordia, et
clementia ineffabili, gemitus, et preces ad te clamantium exaudis. Tum pater e
solo eam leuans, ac benedicens, ait: O Domine Iesu Rex etemae gloriae, qui
super Apostolos tuos Spiritum Sanctum emisisti, emitte, obsecro, gratiam tuam
super hanc puellam, ut ipsa toto corde te et ore confiteatur, te unice diligat,
te desideret, te amplectatur, ac animo laeto, et uoluntario usque ad extremum
iudicii diem te ita cupiat, ut una cum caeteris uirginibus in coelesti beatitudine
te ipsum accipere, ac cum sua praeclara lampade tibi obuiam procedere me
reatur. Tunc praesentes omnes dixerunt: amen. His ita actis, pater et filia, et
omnes qui aderant, ad Ecclesiam se conferunt, et sancta nutrix, cui uirgo erat
curae, posuit super altare uelum, quod moniales gestare solent, et a sancta puella
illico acceptum flexis genibus in signum uirginitatis capiti suo imposuit, et
omnes flentes, ac ipsa cum magna alacritate animi Deum immortalem collau
darunt, qui sapientiam paruulis, qui foemineo sexui admodum debili fortitu
dinem et animum praestat. Itaque admonitus ab Angelo pater, excogitabat, quas
terras, quae praedia filiae ad uitam humanam sustentandam relinqueret. Reliquit
igitur tres Ecclesias, ex quibus alimentum existeret, et ad quas recreandi animi
gratia se conferret: dicebat nanque pater, quodsi ipsa interdum ex alia Ecclesia
ad aliam ueniret, commodius posset in proposito perstare, idque ad exitum
perducere, quia si semper uno in loco commoraretur, forte taedio, et fastidio
affecta ocyus relinqueret ordinem, et aliquid minus rectum admitteret, ut aliis
mulieribus accidisse aiebat, idque uolebat propter mobilem animum, fragilemque
mulierum conditionem: uerebatur enim ne filiae propositum aliquo scandalo
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ritual. Abençoa a tua filha, que quer seguir as vias de Deus, para depois mere
ceres ser abençoado por ela. Pois que Ele é o filho do altíssimo Imperador, do
qual foi digna de ser chamada filha e esposa a tua filha».
Ora, no dia seguinte, logo ao dealbar, o pai foi ter com a filha; ela rece-
beu-o bem (apesar de temer incorrer na sua ira, decidira perseverar no seu voto)
e, abraçando-o, diz: — «Porque vindes tão cedo aqui, meu Pai?» Devido à adver
tência do Anjo, alegrou-se com o voto e bênção da filha e, de face risonha e
bem disposto, diz: — «Eu, minha filha, venho aqui para te preparar o que é
necessário, já que te esforças por seguir o caminho de Deus». Ouvindo isto,
lança-se aos pés do pai, dizendo: — «Dou-Vos as maiores graças, Jesus Cristo,
rei potentissimo, pois que Vós, Senhor, com a vossa misericórdia e clemência
inefável, atendeis os gemidos e preces dos que clamam por Vós». Então o pai,
levantando-a do chão e abençoando-a disse: — «Ó Senhor Jesus, rei da eterna
glória, que mandastes o Espírito Santo sobre os Apóstolos, mandai, peço-Vos,
a vossa graça sobre esta menina, para que ela Vos reconheça de todo o seu
coração e boca, só a Vós ame, só a Vós deseje, só a Vós abrace e Vos ambi
cione de ânimo ledo e voluntário, até ao dia do juízo final, de modo que mereça
receber-Vos juntamente com as demais virgens na beatitude celeste, e, com a
sua lâmpada brilhante (6), avançar ao vosso encontro». Então todos os presen
tes disseram: — «Amen». Feito isto assim, pai e filha, e todos os que estavam
presentes, dirigem-se para a Igreja. A santa ama, que cuidava da donzela,
pousou sobre o altar o véu que as monjas costumam trazer, e, recebido este,
de joelhos, acto contínuo, pela santa menina, impôs-lho sobre a cabeça em
sinal de virgindade, e com lágrimas de todos, mas com grande alegria espi
ritual da própria, louvaram a Deus imortal, que dá sabedoria aos pequenos,
e fortaleza de ânimo ao sexo feminino, que é tão débil.
Assim advertido pelo Anjo, o pai meditava que terras, que prédios
deixaria à filha, para sustentar a sua vida humana. Deixou-lhe, portanto, três
igrejas, das quais lhe viria o sustento, e às quais se dirigiria para recreio
de seu espírito. Pois o pai dizia que, se ela entretanto viesse de uma igreja
para outra, podia mais comodamente persistir no seu propósito, e levá-lo a
bom termo, porque, se morasse sempre no mesmo lugar, talvez que, tomada
de tédio e enfastiamento, abandonasse mais depressa a ordem e admitisse
algo de menos correcto, como dizia que sucedera a outras mulheres; e queria
que assim fosse, por causa da mobilidade de ânimo e da fragilidade da condição
feminina, pois temia que o propósito da filha fosse maculado por algum
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(11) Cf. Ps. 54.23: iacta super Dominum curam tuam, et ipse te enutriet.
(12) Cf. Ps. 50.18-19.
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seja, a came, alicia o homem a tomar e comer o que é proibido, e deixar o que
é salutar à aima, conforme diz o Apóstolo: «A carne tem desejos contrários
ao espírito, e o espírito contrários à carne» (13). Razão por que, se fizeres
abstinência, então a came desejará o contrário, ou seja, alimentação requintada
de came e peixe e outras coisas que costumam excitar o apetite, além dos
melhores vinhos; mais ainda, se de noite quiseres levantar-te para te consa
grares à oração, ou fazer outra coisa semelhante, imediatamente te vem ao
encontro a carne, como que dizendo: — «Não sabes que as noites foram feitas
por Deus para descanso dos homens, e o dia para trabalhar? Uma vez que é
noite, descansa e dorme». Suponhamos ainda que já estás a orar, de pé ou
ajoelhada; então a came te sugerirá: — «Senta-te, tola, senta-te, que recitarás
a Deus as tuas orações sentada, tal como em pé; por isso, antes estejas sentada
e descansada, e não te importes tanto com isto. Se, pelo contrário, quiseres
fazer vigília, perderás a luz dos olhos, abaterás o teu corpo». E deste modo
a carne não será serva, como deve, mas senhora, pois a carne deve ser regida
pelo espírito, e não o espírito pela came». Então disse Senhorinha à ama:
— «Senhora mãe, que desde agora a serva seja escrava da senhora, de modo que,
quando a minha vida chegar à adolescência, a carne se não exalte de soberba.
Se desde já eu macerar a minha came com a escassez de comida e de bebida,
e a castigar com muitas flagelações, sei de certeza que a criada se submeterá
à senhora, e nunca se rebelará contra ela, e depois Agar obedecerá à sua
senhora, e Ismael, por sua vez, a Isaac, seu senhor» (14).
A partir de então, já a virgem se servia de uma alimentação em extremo
moderada e leve, pois às quartas e sextas-feiras se refazia com pão e água,
e em toda a quaresma jejuava, excepto em três dias da semana (aliás parca
e moderadamente); todos os dias flagelava a sua carne durante o tempo em
que podiam recitar-se os sete Salmos penitenciais; no restante tempo do ano,
abstinha-se de carnes e de vinho; mais ainda, chegava ao ponto de em cada
dia se alimentar com uma única refeição, excepto aos domingos, em honra
da santíssima ressureição de Jesus Cristo. Esta era a vida que a virgem
levava até à idade de quinze anos (tempo em que cada um mostra o seu
carácter e o estado de vida que prefere escolher); e então a bem-aventurada
virgem, entendendo que todas as coisas do mundo são efémeras e caducas,
e sujeitas às mudanças do tempo, escolheu o caminho direito, abandonando
o oposto, e, esquecida das passadas canseiras, esforça-se por aspirar a uma
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aspirare, omneque uitae tempus in Dei obsequio ponere conatur. Nam cum
ipsa sentiret carnem non satis esse domitam, nec obedientem, sed sibi adhuc
cum ea, tamquam cum fera aliqua indomita, esse pugnandum, sibi ipsi uim
infert, lumbos suos fortitudine cingit, brachia Dei misericordia firmat, et tunc
ad Dominum clamans: Ne, Domine mi, ne me, inquit, superbia, nec manus
peccatoris moueat. Tum ad acerbiorem uitae statum, per ieiunia, orationes
aspirare contendens, proposuit se, dum uiueret, non alio cibo usuram, nisi pane
exigua aqua confecto; cinere, et sale admixto, ita ut tertia pars esset ex farina,
tertia ex sale, aliauero tertia ex cinere, quo cibo semel in die tantum utebatur,
dominicis diebus exceptis. Cumque eius manus essent admodum largae, ac
propensae ad eleemosynas pauperibus erogandas, erant non minus paratae ad
corpus propter Deum uerberandum. O nouum Virginis martyrium! ita se ipsa
uerberibus afficiebat, ut corpus, cilicium, et pauimentum sanguine madefecerit,
quem ipsa diuino amore inflammata libenter aspergebat; tantumque operae
et temporis in oratione ponebat, ut genua ipsius callum contraxerint; innumeris
colaphis, et uulneribus faciem afficiebat: hoc martyrio in corpus suum assidue
utebatur, quod sic maiorem cruciatum subiit, quam si semel unico supplicio,
neceque esset affectum, quemadmodum Martyres, quorum alii decollati, alii
in flammam coniecti, alii in crucem acti, alii per humum tracti, et dilaniati sunt,
atque idipsum etiam Virgines perpessae sunt. Ast cruciatus, quo haec suum
corpus afficiebat multo maior atque acerbior extitit, quod tamen corpus me
ritum est esse altare, ex quo Deus multa, optimaque sacrificia accipit. Ac hoc
modo uicit haec Virgo mundum, et diabolum, faucesque eius pede suo con-
culcauit, ita ut postea nec caro, nec daemon unquam eam tentauerit, ac ita
spiritum suum mundauit, ut omne malum, et peccatum radicitus stirpauerit, in
illoque plantauit uineam rosas ferentem, ex quibus odor Deo effaretur sua-
uissimus, sacrificiumque Deo acceptissimum offerretur, uineamque suam ita
mundauit, ut nulla prorsus herba inutilis appareret. Quod cum aduerteret dia
bolus, angore nimio conficiebatur, quia non poterat semen suum uineae Dei
mandare, nec id unquam consequi sperabat. Cum Deus Optimus Maximus
huius Virginis merita mundo patefarece, et hanc praeclaram stellam, eiusque
clarissimos radios hominibus ostendere uellet, ut opida finitima eorumque
habitatores honore afficirentur, factum est, ut Godina eius nutrix in febrim
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I. LATIM MEDIEVAL – HAGIOGRAFIAS 129
maior abstinência de vida, por amor divino, e por pôr todo o tempo da sua
vida ao serviço de Deus.
Na verdade, como sentisse que a carne não estava suficientemente domi
nada, nem obediente, mas que ainda então tinha de lutar com ela, tal como com
qualquer fera indómita, a si mesma faz violência, cinge os rins com fortaleza
e os braços firma-os na misericórdia de Deus, e então clama pelo Senhor,
dizendo: — «Que a soberba, Senhor meu, que a mão do pecador não me
abale» (15). Então, esforçando-se por aspirar a um estado de vida mais áspero,
por meio de jejuns e orações, propôs-se não usar, enquanto vivesse, de outro
alimento, senão pão feito com pouca água, cinza e sal misturado, de modo
que um terço fosse de farinha, um terço de sal, e outro terço de cinza: alimento
de que se servia só uma vez ao dia, exceptuando aos domingos. E, sendo as suas
mãos bastante largas e propensas a distribuir esmolas aos pobres, eram não
menos prontas a castigar o corpo por causa de Deus. Ó novo martírio da
virgem! De tal modo se fustigava a si mesma que umedecia o corpo, o cilício
e o chão com o sangue que ela de boa vontade derramava, inflamada de amor
divino, e punha tanta aplicação e tempo na oração, que os seus joelhos ganharam
um calo. Castigava o rosto com inúmeros golpes e ferimentos. Usava assidua
mente deste martírio para com o seu corpo, de modo que assim suportou maiores
torturas de que se tivesse sofrido por uma só vez um único suplício e a morte,
como os mártires, dos quais alguns foram degolados, outros lançados às chamas,
outros crucificados, outros arrastados pelo chão e dilacerados, e isso mesmo
também sofreram as virgens. Mas os tormentos com que esta verberava o seu
corpo foram muito maiores e mais duros, mas também o seu corpo mereceu
ser um altar, do qual Deus aceitou muitos e óptimos sacrifícios. E, desta maneira,
venceu esta virgem o mundo e o diabo e calcou aos pés as suas fauces, de tal
modo que depois nem a carne nem o demónio a tentaram nunca; e a tal ponto
limpou o seu espírito que extirpou radicalmente todo o mal e pecado, e nele
plantou a vinha que dá rosas, das quais havia de evolar-se um aroma suavís
simo a Deus, e oferecer-se-lhe um sacifício muito aceite. E de tal modo limpou
a sua vinha, que nunca mais lá apareceu uma erva inútil. Ao perceber isto, uma
enorme angústia afligou o diabo, porque não tinha podido mandar a sua semente
para a vinha de Deus, nem esperava nunca consegui-lo. Como Deus Óptimo e
Máximo quisesse revelar ao mundo os méritos desta virgem, e mostrar aos
homens esta preclara estrela e os seus claríssimos raios, a fim de que as cida
des vizinhas e os seus habitantes se honrassem, sucedeu que Godinha, a sua ama,
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foi tomada por febres, de que em breve morreu. Para a sepultar, a bem-aventu
rada virgem mandou fazer um sepulcro na Igreja de S. Jorge, junto do qual
mandou que fosse também sepultado o seu corpo, pois dizia ela que não era
coerente que quem na vida tinha sido tão unido ficasse separado na morte pela
distância da sepultura.
Direi como se retirou desta vida, depois de primeiro ter narrado alguns
dos muitos milagres que Deus fez por causa dela, quando ainda era viva. Na
verdade, quando Senhorinha vivia na terra, e no céu lhe estava já preparado
o tálamo, sucedeu que, quando a virgem estava entregue à oração e à contem
plação das coisas divinas, veio ter com ela uma serva, a quem a virgem disse:
— «Vai buscar água límpida para beber». Trouxeram-lha imediatamente da
fonte, benzeu-a a virgem por sua mão, e logo se mudou em vinho. Chegou-a aos
lábios e compreendeu que era vinho. Censurou a serva, julgando que estava
a ser iludida por ela, e, guardando cuidadosamente o vinho, tomou a mandá-la
à mesma fonte, e, depois de ela partir, mandou também outra, para seguir a
primeira e observar cuidadosamente o que ela fizesse no caminho. Aquela assim
fez com toda a diligência, e, de volta da fonte, dizem ambas: — «Fomos até à
fonte, como mandastes, e lavámos as mãos na mesma água de que aqui tra
zemos um pouco». A criatura de Deus, dando fé às palavras da serva, recebeu
a água e, benzendo-a com a mão, fez o sinal da Santíssima Cruz, e então a
água muda-se em vinho, como anteriormente. Então, finalmente, a serva de Deus
conheceu que era um milagre, que Deus efectuou por seu intermédio, e ordenou
à serva, sob juramento, que não dissesse aquilo a ninguém, enquanto fosse
viva. Mandou-lhe que convocasse todos os habitantes daquele lugar (pois
todos eram mulheres), e disse-lhes a Santa: — «Bebamos deste vinho, que Deus
nos deu por sua infinita misericórdia». Então benzeu o vinho e bebeu cada
uma abundantemente. Contudo, de regresso a casa, admiravam-se de a Santa,
contra o seu costume, beber vinho. Aquela, ficando na sua cela, deu tantas
graças a Deus, quantas eu não posso recordar. Assim as dava: — «Meu Senhor
Jesus Cristo, estas obras partiram da vossa piedade, que Vós, Senhor, quisestes
mostrar para salvação e saúde da vossa serva. Vós, Senhor, fizestes do nada
a água e os restantes elementos. Vós, Senhor, separastes a água de todas
as coisas. Vós, Senhor, colocastes muito firmemente a água sobre a terra. Vós,
Senhor, mandastes o vosso espírito sobre a água. Vós, Senhor, destes a
água aos que dela vivem. Vós, Senhor, procurastes na água todos os que
de Vós se separaram. Vós, Senhor, libertastes da água Noé, vosso servo. Vós,
Senhor, fizestes atravessar a água ao povo de Israel, quando passou o mar.
Vós, Senhor, quiseste^» que os crimes do género humano fossem expiados pela
água. Vós, Senhor, em Caná da Galileia, mudastes a água em vinho, na
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mutasti; tu, Domine, hodie in signum seruae tuae aquam in uinum uirtute tua
conuertisti: tibi igitur soli sit uirtus, gloria, honor, imperium, potestas, et
gaudium in saecula saeculorum amen. Cum adhuc in terris degeret Virgo, uoluit
Deus aliud miraculum per eam semis suis demonstrare. Nam uerno tempore
cum frumentum colligitur; areaeque componuntur, accesserunt agricolae a
Praeposito Ecclesiae, in qua Virginis corpus postea sepultum est, euocati ad
frumentum ex palea excutiendum, et in horrea deferendum: delato iam ad
aream frumento, domum se quisque eorum confert ad refectionem sumendam,
ut uiolentius, ac neruosius omnem conatum ad rem adhiberent: erat tunc
coelum serenum, diesque adeo clarus, ut nullus undique nubem aliquam con
spicari, ac prospicere potuerit, unde pluuiae protenderentur. Refecti uero coloni
continuo duas areas frumenti triuere, in tertiam uero cum iam nimio labore
incumberent, ut diligenter rem expedirent, die claro existente, ecce tonitrum
horrendum insonuit, quod ingens nimbus statim consequitur. Agricolae uero
aream deserentes domum confestim se contulerunt, et loquebantur de uirtutibus,
et miraculis Dei et Sanctorum eius; inter quos erat sacerdos, qui eidem
Ecclesiae praeerat, et aegre, molesteque ferens pluuiam ad Virginem accessit,
et clamans: Non, inquit, uides, Domina, quae fecit nobis Deus? Quam iniuriam
nobis intulit? hodie clarus dies, splendensque existebat, nunc, erepta luce, tene
bris, et caligine offunditur: operarii, Domina, relicta area, fugerunt, triticum
copia pluuiae amittitur, et siquidem ita effectum est, pereat totus mundus.
Haec sacerdos, ut insanus, effutiebat. At Virgo, qua erat patientia et fide
in Dominum, sic intulit: Magna, inquit, fili, est Dei pietas, ac misericordia,
idcirco irascitur Deus in sceleratos, ut postea opem et auxilium ferat; minatur,
ut postea sua pietate, et clementia utatur. Surgens uero Virgo ad limen usque
peruenit, ex quo aream prospicere, ac intueri posset. Quam uero fiduciam in
Domino ipsa habuerit, nemo sciebat. Ast ubi primum ipsa accessit, Dei mise
ricordia benigne praesto fuit; omnes namque admirati stupebant; claritas
quippe solis ab area non discedebat, ita ut nec in aream, nec circum eam
pluuia caderet, et ita toto die effectum est, donec totum triticum mundatum,
et in horreum delatum fuerit. Dico uobis, amici, tale esse hoc miraculum, ut
illud, quod Deus fecit per Gedeon, uel illud, quod per Sanctam Scholasticam
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presença dos vossos discípulos, Vós, Senhor, hoje, pelo sinal da vossa serva,
transformastes a. água em vinho, pela vossa virtude. Por isso a Vós somente
se dê a virtude, glória, honra, império, poder e regozijo pelos séculos dos
séculos. Amen».
Quando a virgem ainda vivia na terra, quis Deus mostrar aos seus servos
outro milagre, por seu intermédio. Ora, na estação estival, quando se colhe
o trigo e se arranjam as eiras, chegaram lavradores de mando do prelado da
Igreja, na qual depois foi sepultado o corpo da virgem, chamados para separar
o trigo da palha e levá-lo para os celeiros. Quando o trigo fora já levado para
a eira, cada um deles se dirige para casa, para tomar uma refeição, a fim de
empregarem com mais violência e músculos todo o seu esforço na acção.
Estava então o céu sereno, e o dia de tal modo claro, que ninguém podia avistar
de parte alguma uma nuvem de onde caísse a chuva. Ora os colonos, uma vez
refeitos, imediatamente malharam duas eiras de trigo, e, quando já andavam
na terceira, com excessivo trabalho, para despacharem o serviço com diligência,
fazendo dia claro, eis que reboou um horrendo trovão, a que imediatamente
se seguiu um aguaceiro enorme. Os lavradores abandonaram a eira e dirigiram-se
apressadamente para casa; e falavam das virtudes e milagres de Deus e dos seus
Santos. Entre eles havia um sacerdote, que estava à frente da mesma Igreja, que,
suportando dificilmente e a custo a chuva, foi ter com a virgem, e, clamando,
disse: — «Não vêdes, senhora, o que nos faz Deus! Que injustiça nos fez? Estava
hoje um dia claro e esplendoroso; agora, fugiu a luz, e ensombra-se de trevas
e névoa; os trabalhadores, senhora, abandonaram a eira e fugiram, o trigo
perde-se com a abundância da chuva, e, se na verdade assim sucedeu, o mundo
inteiro perecerá». Estes disparates soltava-os ele como um louco. Mas a virgem,
com a paciência e fé em Deus que tinha, declarou: — «Grande é, meu filho,
a piedade e misericórdia de Deus, e por isso se irrita com os celerados, para
depois lhes dar ajuda e auxílio; ameaça, para depois usar da sua piedade e
clemência». Então a virgem ergueu-se e chegou até à soleira da porta, de onde
podia avistar e observar a eira. Porém, quanta confiança ela tinha em Deus,
era coisa que ninguém sabia. Mas, logo que ela chegou, a misericórdia de
Deus mostrou-se benignamente, e todos, admirados, ficaram estupefactos, pois
a claridade do sol não se afastava da eira, de modo que nem na eira, nem à
volta dela, caía a chuva, e assim sucedeu todo o dia, até que todo o trigo foi
limpo e levado para o celeiro. Digo-vos, amigos, que este milagre foi tal como
aquele, que Deus fez por intermédio de Gedeão (16), ou aquele que fez por
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miraculum hoc Diuae dixerunt* quae gratias Deo agens uocat Procuratorem
Ecclesiae ad seruandum panem a Deo missum. O amici, quanta est Dei
clementia, quanta eius misericordia! a nullo alio id esse factum, nisi a Deo,
qui Abraham agnum ad sacrificandum dedit, Eliae panem cum indigeret, filiis
Israel manna in deserto, quis ignorat? Ipse enim Dominus Sanctae Virgini
hunc panem suministrauit. Postea Diua commeatus huic Ecclesiae relinquens,
statutum iter fecit. Et ut adhuc Deus manifestaret Virginis uirtutem fami
liaribus eius, euenit, ut cum ipsi iter facerent, lacum magnum, cui nomen
Carrezeda, ranis refertum offenderint, tunc praecepit Diua clericis, ut solebant,
canere, quod ipsi libenter exequi uolentes, propter coaxantes ranas non mutuo
se audiebant, quod aduertens Diua, manum tollens: Vermes, inquit, mali, et
infructuosi, ac inutiles, silete, et obstare nolitote Dei obsequio. Ecce silent
ranae, et lacum deserentes alio petunt. In hoc miraculo similis fuit Virgo
Diui Martini, qui mergos a paludibus abire, et alias terras petere iussit,
qui statim Diuo obtemperantes, deuolarunt. Quod siquis ratiocinari uellet,
ranam et mergum speciem Doemonis referre comperiet: uterque inutilis est;
mergus enim danum infert, rana uero coaxat. Cum fama huius Diuae diuul-
garetur, ad eam ueniebant infirmi, pedibus ac manibus capti, quos cum manu
attingeret, ualetudinem recuperabant. Hoc tempore contigit, aut praedictus
Rudesindus Episcopus Dominus, et huius Diuae studiosus, ex hac uita in
illam foelicissiman excesserit, et cum tunc Senorina horis matutinis uacaret,
easque cum coeteris monialibus compleret, audiuit coelitus suauissimas, iucun-
dissimasque Angelorum uoces, quaerensque quidnam hoc esset, diuina reuela-
tione intelligit esse animam huius Episcopi, quam Angeli Deo offerebant.
Tunc Virgo dixit suis sociis: Audistisne quidquam? Minime, illae. Tunc
Virgo ex famula uocata quaerit, si quid audierit. Cui famula, audio, inquit, in
coelo uoces, quid autem sit, ignoro. Tunc Virgo Dominus noster Episcopus
Rudesindus a morte ad uitam, ex labore ad quietem est translatus, idcirco
Angeli per aerem ascendunt canentes, et dicentes Gloria in excelsis Deo,
ac maxima laetitia perfusi animam Episcopi deferunt. Hora autem, in qua
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declaram que este milagre era da Santa, e ela, dando graças a Deus, chama ο
procurador da Igreja para guardar o pão mandado por Deus. Ó amigos, quão
grande é a clemência de Deus, quão grande a sua misericórdia! Quem ignora que
não foi feito por nenhum outro, senão Deus, que deu a Abraão o cordeiro para
ser sacrificado, a Elias o pão, quando estava na necessidade, aos filhos de
Israel maná, no deserto? Por conseguinte, o próprio Deus ministrou à santa
virgem este pão. Seguidamente, a Santa, tendo deixado à Igreja estes manti
mentos, realizou o trajecto estabelecido. E, para Deus tornar ainda mais
manifesta a virtude da virgem aos seus íntimos, sucedeu que, quando iam a
caminho, deram com um grande lago, cheio de rãs, chamado Carrazeda. Então
a Santa ordenou aos clérigos que cantassem, como costumavam. Querendo
eles, de boa vontade, cumprir, não se ouviam uns aos outros, por causa do
coaxar das rãs. Apercebendo-se do facto, a Santa ergueu a mão e disse:
— «Calai-vos, vermes maus, estéreis e inúteis, e não ponhais obstáculo ao serviço
de Deus». Eis que as rãs se calam e abandonam o lago, em busca de outro.
Neste milagre foi a virgem semelhante a S. Martinho, que mandou os mergu
lhões afastar-se dos pântanos e buscar outras terras, e eles, obedecendo imedia
tamente ao Santo, levantaram voo. Porque, se se quiser raciocinar, encontrar-se-á
que a rã e o mergulhão apresentam características do demónio: um e outro são
inúteis; o mergulhão causa danos, e a rã coaxa.
Como a fama desta Santa se divulgasse, vinham ter com ela enfermos,
tolhidos de pés e mãos, que, quando lhes tocava com a mão, recuperavam a
saúde.
A este tempo sucedeu que (17) o supradito Bispo Rosendo, superior e
devoto desta Santa, partiu desta vida para aquela que é toda felicidade. Estava
então Senhorinha ocupada em matinas, e, como as rezasse com as demais
monjas, ouviu, vindas do Céu, vozes suavíssimas e agradabilíssimas de anjos.
Procurando saber o que era, compreendeu por revelação divina que era
a alma deste Bispo que os anjos apresentavam a Deus. Então disse a
virgem às suas companheiras: — «Ouvistes alguma coisa?» — «Nada»
— responderam elas. Então a virgem perguntou a uma serva que cha
mara se ouvia alguma coisa. — «Oiço vozes no céu — declarou ela — mas
ignoro o que seja». Respondeu a virgem: — «O nosso senhor Bispo Rosendo
passou da morte para a vida, do labor para o repouso, e por isso os anjos sobem
nos ares a cantar e a dizer «Glória a Deus nas alturas», e, inundados pela maior
alegria, levam a alma do Bispo». Tomou-se nota da hora e do dia em que isto
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138 LATIM MEDIEVAL E RENASCENTISTA
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obsecrare debetis, ut ipsa, qua est bonitate, pro nobis preces Deo adhibeat,
et pro omnibus, qui in illa habent fiduciam, ut et illi, qui angustiis et angoribus
premuntur, subleuentur et ab omnibus animi et corporis periculis eruantur,
multisque bonis cumulentur, et in patriam coelestem ascendere mereantur,
in qua ipsa cum Deo et caeteris uirginibus uiuit in aeternum, amen. Haec beata
Virgo cum ad aetatem quinquaginta et octo annorum peruenisset, ex hac uita
migrauit anno Domini millesimo uigesimo. Nunc dicam miracula aliqua a
Diua post mortem facta, ut ab iis, qui uiderunt, accepi, nullo tamen modo
omnia, quae Deus per illam fecit, et facit, enarrare potero. Iudaeus quidam
ex Zamora in hanc terram ueniens, mercemque uenalem ad collum portans,
accessit ad Ecclesiam huius Diuae, paloque in pariete affixo mercem appendit,
et ascendit ad sepulchrum Sanctae Senonnae; admonentibus autem omnibus,
ut descenderet, nolebat. Ast illa hora Doemon in illum ita erupit, ut pro mortuo
haberetur. Postmodum uero loquitur Iudaeus, clamans, ait, Magnus est Christia
norum Deus, et quam maxima eius potentia, qui et in coelis, et in terris
regnat! Deinde sic dicebat: Ecce Diua haec humata regnat, et quod uult facit
inter uiuos, et mortuos. Postea uero mercem iterum assumens, ut erat interno
caligine offusus, fugit, et omnibus ei obuiam factis id, quod sibi euenerat,
enarrabat, usque dum Toletum, ubi habitauerat, reuersus est, et morbo affectus,
a diabolo, a quo deceptus erat, uita priuatur, et in spurcissimas inferorum
tenebras detruditur. Eo tempore Dominus Paius Archiepiscopus Bracharensis,
ut uisitationis munus obiret, Brachara discedens, uenit ad Ecclesiam huius
Diuae ad orandum, et inter alia multa miracula, quae ei sunt dicta de hac
Virgine, audiuit etiam, quod ipsa in sepulchro adhuc sit toto corpore integra,
et tanquam dormire uideatur: qui hoc experiri cupiens congregauit plebem,
eamque uolens exhumare audiuit uoces caeci cuiusdam a Sancta illuminati,
qui clamare coepit: Video, inquit, manus Archiepiscopi, et uideo Archiepisco-
pum. Ex quo Archiepiscopus ipse magna admiratione est affectus, et qui
aderant ex caeco quaesiuerunt, quid hoc esset, et quare clamaret? Quibus ille,
Ego, inquit, semper a natiuitate fui caecus, et uidi manum, quae oculos meos
tetigit, et Archiepiscopum, et sepulchrum Sanctae Senonnae aspicio. Quod
Archiepiscopus animaduertens maximis laudibus Diuam extollit, deinde ape
riendi sepulchrum uoluntatem penitus abiecit, quod Deus clausum esse uult,
nequis sciat quid in illo contineatur. Hoc autem esse uerum ab iis, qui uiderunt,
accepimus. Erat quidam nomen Syluester habitans in opido Castelli Vima-
ranensis, a Doemone uexatus accessit ad Sanctae Senorinae sepulchrum sperans
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amigos e devotos, que com a sua bondade, faça preces a Deus por nós e por
todos os que nela têm fé, a fim de que, mesmo aqueles que estão oprimidos
por angústias e aflições, sejam aliviados e libertos de todos os perigos da alma
e do corpo, e cumulados de muitos bens, e mereçam ascender à pátria celeste,
na qual ela vive para sempre com Deus e as demais virgens. Amen. Esta
bem-aventurada virgem, tendo chegado à idade de cinquenta e oito anos, emigrou
desta vida no ano do Senhor de 1020.
Agora vou referir alguns milagres feitos pela Santa depois da morte, tal
como os soube por aqueles que os presenciaram; contudo, de modo algum
poderei narrar tudo o que Deus fez e faz por seu intermédio.
Certo judeu veio de Zamora a esta terra, trazendo ao pescoço mercadoria
para vender. Chegou à Igreja desta Santa, e, espetando um pau na parede, pen
durou dele a mercadoria e subiu para o sepulcro de Santa Senhorinha. Todos
o aconselharam a descer, mas ele não queria. Mas, naquela hora, o demónio
irrompeu nele de tal maneira, que foi tido por morto. Pouco depois, o judeu
põe-se a clamar, dizendo: — «Grande é o Deus dos cristãos, e que imenso é o
seu poder, que reina no céu e na terra!» Depois, dizia assim: — «Eis que esta
Santa, apesar de enterrada, reina, e faz o que quer entre os vivos e os mortos».
Depois então, pegando novamente na mercadoria, como estava ofuscado pelas
trevas interiores, fugiu, e narrava a todos os que encontrava o que lhe sucedera,
até que regressou a Toledo, onde habitava, e, contraindo uma doença, é privado
da vida pelo diabo que o iludira, e precipitado nas imundas trevas infernais.
Nesse tempo, D. Paio, Arcebispo de Braga, tendo saído de Braga para
cumprir o dever da visítação, veio à Igreja desta Santa para orar, e, entre
muitos outros milagres, que lhe referiram àcerca desta virgem, ouviu também
que ela se conservava até então com o corpo todo intacto no sepulcro, e parecia
estar a dormir. Desejando fazer a experiência, congregou a plebe, e, ao querer
exumá-la, ouviu as palavras de certo cego, a quem a Santa deu a visão, que
começou a clamar dizendo: — «Vejo, as mãos do Arcebispo e vejo o Arcebispo».
Pelo que o próprio Arcebispo ficou tomado de grande admiração, e os presentes
interrogaram o cego, o que era aquilo e por que clamava. Diz-lhes ele: — «Eu fui
sempre cego de nascença, e vi a mão, que tocou os meus olhos, e o Arcebispo,
e distingo o sepulcro de Santa Senhorinha». O Arcebispo, ao ter conheci
mento disto, deu os maiores louvores à Santa. Depois pôs completamente de
parte o desejo de abrir o sepulcro, que Deus quer que esteja fechado, para
ninguém saber o que nele está contido. Isto soubemos nós por aqueles que
o viram, que foi verdade.
Havia um certo homem, de nome Silvestre, que habitava na cidadela do
Castelo de Guimarães, e, que, atormentado pelo demónio, veio ao sepulcro de
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Santa Senhorinha, esperando que conseguiria a libertação. E então é que ele era
violentamente atormentado. Porém, quando estava a rezar, leva a mão ao peito,
fica liberto, e nunca mais foi atormentado, segundo soube por vizinhos.
Um clérigo, de nome Paio, prelado desta Igreja, afirmou-nos que veio ao
templo da Santa um homem oriundo do reino de Leão, que estava inchado
como um odre. Cumpridas as horas de véspera, acendeu velas e deitou-se de costas
ante o sepulcro da Santa, pois que não podia deitar-se nem dormir de outro
modo. Estava então a Igreja tão cheia de gente, que já não podia caber lá
ninguém. Ora, quando todos dormiam, esse doente inchado viu uma mulher
vestida de branco que lhe disse: — «Dormes, homem?» Replicou ele:
— «Como hei-de eu dormir, se sou afligido por tanta dor?» Toma-lhe a mulher:
— «Volta-te para o lado direito, e logo ficarás são». Pareceu-lhe que ela mesma
lhe dava uma faxa que, mal ele a tocou, reboou um tal clamor do seu ventre, que
todos despertaram do sono. E ele expôs-lhes o desfecho do caso, e proclamou
que foi completamente liberto da doença, por intercessão de Santa Senho
rinha. Então, erguendo as mãos ao Céu, todos deram graças a Deus e à Santa.
Nesse tempo em que o mesmo clérigo (conforme por ele mesmo soube
mos), estava à frente desse templo, veio de Zamora a esta Igreja certo homem,
que tinha ouvido os milagres da Santa. Trazia no jumento um filho coxo de
nascença, a ponto de ter os joelhos repuxados para o peito; e os médicos não
podiam dar-lhe remédio. Depois de terem estado na Igreja da Santa cerca de
dezasseis dias, o pai dele dirigiu-se com outros lavradores para as vinhas da
Santa, a fim de trabalhar, deixando o filho na eira, para guardar o trigo. O pai
fez assim, para que ele e o filho merecessem o alimento que lhes havia de ser
ministrado pela Igreja da Santa. Quando o coxo, portanto, assim foi deixado,
apareceu-lhe uma mulher que lhe disse: — «Dá-me a vara que trazes, menino».
E ele, ao querer entregá-la, ergueu-se incólume, e então a mulher desapareceu.
O rapaz soltou uma exclamação, e os que trabalhavam na vinha acorreram e
perguntaram o que era. Então o menino expôs tudo o que lhe sucedera, e cele
braram acções de graças a Deus e à sua Santa. Retiram-se o pai e filho são para
a sua pátria, e aquele que viera coxo no jumento fez o percurso por seu pé.
O supradito clérigo afirmou que dois adolescentes cegos de nascença
vieram aqui, de lugares muitíssimos distantes, porque conheceram, pela fama
e pelo que ouviam, os milagres desta Santa. Ao chegarem a Lisboa, interroga
vam onde estava sepultado o corpo de Santa Senhorinha. Foi-lhes dito que se
dirigissem ao Arcebispado de Braga, junto do rio que se chama Basto, perto do
qual estava sepultado o corpo de Santa Senhorinha. Vindo com suas mulheres
também, chegaram à Igreja, e contaram ao clérigo Paio tudo o que lhes
acontecera. Quando o sol declinava no poente, os outros regressaram a casa,
ficando os cegos com as mulheres perante o sepulcro da virgem. E, embora ambos
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144 LATIM MEDIEVAL E RENASCENTISTA
infra uidebitur, maiori animi studio orabat; nam peracta prima noctis uigilia,
et accensis adhuc ad tumulum Virginis candelis, caecus, qui amicior Dei erat,
audiuit tonitruum ita uehemens, ut tota aedes sibi corruere uideretur, exci-
tauitque socium, qui excitatus, Quid est, inquit, hoc? Tum deuotus: Totam
domum hanc candelis accensis plenam uideo: ac iam ipse illuminatus prae
nimio gaudio, et laetitia gestiens cymbala pulsauit. Tunc omnes clerici, et
Ecclesiae mercenarii excitati uiderunt caecum illuminatum, et pro tanto bene
ficio Deum et Diuam admirantur. At caecus tanti beneficii memor per multum
tempus ex eleemosynis sibi erogatis candelas, et oblationes emens, omnia ante
sepulturam Diuae offerebat. Tandem saluus et incolumis domum euasit. Acce
pimus praeterea ab eodem clerico, et ab aliis mulierem quandam, cuius uenter
per duos annos tumidus erat, ad sepulchrum Diuae se grauidam existimantem
accessisse, et in admirationem rapta, quod tandiu partus differretur, Virginis
opem implorat. Cum ipsa simul cum marito, et foeminis eius uicinis ad sepul
chrum orationi uacarent, eique multas oblationes offerret, ut partui subueniret,
peracta supplicatione, sensit in uentre tumultum magnum fieri (nemo sane
sciebat, quid in utero gestaret) idque uicinis dixit, quae partum instare putantes,
eam domum redire cogunt, quo cum peruenisset, emisit ex aluo ingentem
anguem, quo uiso omnes uehementer obstupuerunt, qui cum fugere conaretur,
interficitur, et qui aderant Deo et Sanctae gratias retulerunt. Ex opido Vima-
ranensi mater et filia in sacellum Diuae se contulerunt: mater multiplici
partu confecta, ne deinceps pariat, obsecrat; filia uero sterilis foetum implorat:
intercedente Diua, uoti compotes euadunt. Nobilis ac praepotens uir ex intimis
Regis familiaribus, eique a consilio, cum iuxta templum Diuae transiret cum
exercitu ad hostes, qui eius castellum obsiderant, propulsandos, Diuae Ecclesiam
non ingressus est: cumque ab Ecclesia non longius abesset, stetit equus ibi
immobilis, ita ut nullis flagellis moueretur. Ipse nobilis rei causam cognouit,
et ad templum Diuae se contulit, et suae temeritatis (quod scilicet templum
Diuae non sit ingressus) ueniam et auxilium contra hostes implorat, et meritis
ipsius Diuae, superatis hostibus, uictoriam reportauit. Regnanti Alfonso His-
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I. LATIM MEDIEVAL – HAGIOGRAFIAS 145
orassem, contudo, um deles, como abaixo se verá, orava com mais fervor de
alma. Com efeito, passada a primeira vigília da noite, e estando ainda acesas
as velas junto do túmulo da virgem, o cego, que era mais amigo de Deus, ouviu
um trovão tão veemente, que todo o edifício lhe parecia desabar. Acordou o
companheiro, que, uma vez acordado, lhe disse: — «Que é isto?» Respondeu-lhe
o devoto: — «Vejo esta casa toda cheia de velas acesas». E logo com a vista
recuperada, com imenso gáudio, exultante de alegria, tocou os sinos. Então, todos
os clérigos e os assalariados da Igreja despertaram e viram que o cego
recuperara a visão, e por tão grande benefício admiraram a Deus e à sua Santa.
O cego, lembrado de tão grande benefício, durante muito tempo comprava
velas e oblações pagas com esmolas que lhe davam, e tudo depunha perante
o sepulcro da Santa. Finalmente, voltou a casa são e incólume.
Soubemos além disso pelo mesmo clérigo, e por outros, que certa mulher,
cujo ventre havia anos estava inchado, veio ao sepulcro da Santa, pensando que
estava grávida, e, tomada de admiração por o parto levar tanto tempo, implora
o socorro da virgem. Estando ela ocupada a orar junto do sepulcro, juntamente
com o marido e mulheres suas vizinhas, e fazendo-lhe muitas oferendas, para
que socorresse o seu parto, terminada a súplica, sentiu levantar-se um grande
tumulto no seu ventre (ninguém sabia ao certo, o que trazia no útero) e disse-o
às vizinhas. Supondo o parto iminente, forçam-na a regressar a casa. Ao che
garem lá, lançou do ventre uma enorme serpente. Vendo isto, todos ficaram pro
fundamente espantados. Quando o animal tentava fugir, matam-no, e os presentes
deram graças a Deus e à Santa.
Da cidadela de Guimarães, dirigiram-se mãe e filha ao templo da Santa.
A mãe, abalada pela multiplicidade de partos, roga que não continue a dar
à luz; por sua vez, a filha estéril implora fecundidade. Por intercessão da
Santa, vão-se embora, tendo obtido a realização dos seus votos.
Um varão nobre e poderoso (19) dos familiares íntimos do rei, e do seu
conselho, quando passava junto do templo da Santa, com o exército, para
expulsar o inimigo que estava a cercar o castelo, não entrou na Igreja da Bem-
-aventurada. Quando não estava muito longe da Igreja, o cavalo parou aí,
imóvel, de tal maneira que não havia chicotada que o pusesse em movimento.
O mesmo nobre reconheceu a causa do facto, e dirigiu-se ao templo da Santa,
implorando vénia para a sua temeridade (ou seja, o não ter entrado no seu
templo), e auxílio contra os inimigos. E, pelos méritos da mesma Santa, vence
os inimigos e alcança uma vitória.
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panianim Regi nuntiatum est praedictae Senorinae fratrem una cum aliis
sociis opes alienas spoliare paupertate coactum. Quam ob causam Rex illum
in uincula coniiciendum sanciuit. Verum cum hominis pedibus uincula et
catenae admouerentur, tanquam luteae frangebantur. Id custodibus ad Regem
deferentibus, quaesiuit, an ipsi huius rei causam scirent? Tum custodes:
Domine, audiuimus huic uiro esse sororem eximia uirtute praeditam, cuius
orationibus id fieri, ne frater in carcere detineatur, suspicamur. Tunc Rex
talem foeminam uidere exoptans, illam ex Archiepiscopatu Bracharensi,
Toletum honeste et honorifice uenire iussit, quam ad Regem ingressam,
sic ipse aloquitur: Cum te nonnisi ex fama ac uirtute tua cognoscam, quicquid
uolueris pete, et omnia praestabo. Tum Senorina humilime petiit, ut Ecclesia
sibi a patre relicta concedatur. Rex uero admiratus quod plura non petiisset,
Ecclesiam concessit, et fratem ipsius liberauit, et asylum Diuae donauit cum
diplomate ad Ecclesiam perutile. Et Senorina ad eamdem Ecclesiam honori
ficentissime reuersa est. Haec et alia multa fecit miracula, et facit Deus per
intercessionem Sanctae Senorinae, quibus breuitatis causa supersedendum putaui,
ad laudem omnipotentis Dei, qui uiuit et regnat in saecula saeculorum. Arnen.
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Quando o rei Afonso reinava nas Espanhas, foi-lhe anunciado que o irmão
da supradita Senhorinha, juntamente com outros companheiros, saqueava
riquezas alheias, coagido pela pobreza. Por este motivo, o rei ordenou que o
metessem na cadeia. Porém, quando aproximavam as algemas e cadeias dos
pés do homem, quebravam-se como se fossem de lama. Como os guardas refe
rissem o facto ao rei, perguntou-lhes este se sabiam a causa. Responderam-lhe
os guardas: — «Senhor, ouvimos dizer que este homem tem uma irmã dotada
de excelsas virtudes, por cujas orações suspeitamos que isso sucede, para que
o irmão não seja detido no cárcere». Então o rei, desejando ver tal mulher,
mandou-a vir honesta e honrosamente do Arcebispado de Braga a Toledo. Assim
que chegou junto do rei, fala-lhe ele assim: — «Como te não conheço senão
pela tua fama e virtude, pede o que quiseres, e tudo te darei». Então Senhorinha
pediu-lhe muito humildemente que lhe fosse concedida a Igreja que o pai lhe
deixara. O rei, admirado por ela não pedir mais coisas, deu-lha, libertou
o irmão dela, e concedeu direito de asilo à Santa, com um diploma extre
mamente útil à Igreja. E Senhorinha regressou à mesma Igreja com todas
as honras. Estes e muitos outros milagres fez e faz Deus por intercessão de
Santa Senhorinha, os quais entendi passar adiante, por abreviar, em louvor de
Deus Omnipotente, que vive e reina pelos séculos dos séculos. Amen.
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A L IA SA N C T A E SE N O R IN A E
V IT A E X A C T IS SA N C T O R V M
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O U T R A V ID A D E S A N C T A SE N H O R IN H A
D O S «A C T A SA N C T O R V M »
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facto mesmo de lhe ter chegado aos ouvidos que a virgem lhe notificava o seu
desprezo, multiplicando-se muito mais amplamente a violência da sua paixão,
converteu, com tenaz energia, o brando desejo da vontade num obstinado afecto
desesperado. Mas, porque em vão a solicitude do ardoroso adolescente perdia
o contínuo deslizar do tempo, seguindo o seu próprio conselho, é impelido a ir
ter com o conde Hufo, pai da virgem, a quem revelou com lágrimas nos olhos,
com sentimentos ardentes, preces atentas e suspiros de amor, todos os acidentes
da sua paixão, rogando-lhe que se dignasse conceder-lhe em casamento a filha
sumamente querida. O conde, surpreendido com a angústia do nobilíssimo
jovem, e considerando os seus dotes, ilustres pela origem e preclaros pela natureza,
despediu-o com benevolência, para dar tempo ao tempo, com a promessa de
que falaria à filha com parecer favorável, para a apressar para o laço do matri
mónio. Enxugou o valente conde com prudente consolação as lágrimas do per
turbado jovem, o qual, encomendando-lhe a sua salvação, saiu da presença dele
profundamente consolado. Então o conde subiu até ao convento, mandou chamar
Senhorinha, e, com palavras humanas e suaves, propôs-lhe, com prudente
brevidade, o casamento com aquele grande, acrescentando de quanto ardor
amoroso, de quanta ilustração do sangue se acompanharia o afecto deles.
Ouviu a sagrada virgem a proposta do pai, e respondeu-lhe deste modo, com
uma constância acima da sua idade: — «Eu tomei por Esposo Nosso Senhor
Jesus Cristo, a quem é feio desprezar, e nefando perturbar os seus amplexos;
e por isso, é iníquo, para perturbação da alma do Esposo, admitir outro; de tal
modo que nem as instâncias paternas, nem o desejo do jovem, nem as riquezas
do mundo, nem a vã nobreza poderá separar-me da união com Cristo, Esposo,
amante, nobre e rico». Calou-se o pai, tendo ouvido as palavras da bem-aven
turada virgem, proferidas com um espírito veemente de fervor; e convidou-a
a levar até à perfeição o seu santo propósito, prometendo à virgem que poste-
riormente jamais trataria daquele ou de outro casamento.
3. De tal modo o Esposo da virgem recebeu com agrado esta deferência
do conde Hufo, pela qual se conformou com a vontade da filha, que na noite
seguinte se deu ao trabalho de aplaudir a resignação do conde; e por isso lhe
mandou em sonhos um anjo, para lhe referir o assentimento da divindade e lhe
ordenar que Senhorinha tomasse o mais depressa possível a religião monástica.
Obedecendo à ordem de tanta inspiração, ao romper do dia, o conde foi ao
mosteiro, e, depois de referir a vontade de Deus à abadessa Godinha, como
também à filha Senhorinha, e de proclamar o oráculo proferido pela voz angé
lica, acto contínuo destinou que a sagrada virgem vestisse o hábito da ordem
beneditina. Feito isto tudo com extrema alegria, Senhorinha, lançando as mãos
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ao arado (1), de tal modo cresceu em perfeição, que foi não só o exemplo, como
também a admiração de todas as outras monjas. Lia cuidadosamente os actos
dos mártires, em cujo estudo e meditação dos eternos tormentos passava dia e
noite, com tal dilúvio de lágrimas, que ardia no desejo do martírio e trabalhava
com todas as suas forças para fugir às penas eternas. Esta ansiedade da vontade
pelo martírio de tal modo enfraqueceu a sua constituição física, principalmente
porque o estado de clausura proibia os seus desígnios, que caiu numa doença
melancólica. A bem-aventurada Godinha, com aquela prudente santidade e
habilidade monacal, de que era dotada, logo que soube da causa deste facto,
visitou a virgem enferma e proferiu, entre outras, estas palavras, à guisa de
consolação: — «Irmã caríssima, esta nossa vida monástica, se se tomar na
sua severidade, que mais é senão um verdadeiro martírio? Na verdade, se
examinares os feitos dos mártires, descobrirás em nós um martírio mais dura
douro do que neles. Eles travam uma luta temporária, nós, uma contínua; eles
são arrastados para a sua paixão, ao passo que a nossa é sem dúvida ofertada
com felicidade e com resignação voluntária. Portanto, filha caríssima, se dese
jas cumprir o martírio, estás no ginásio, estendida no pó como lutadora, anda
pois e, atleta valente, exercita as tuas armas de defesa na luta contra os companhei
ros, que são os três inimigos da alma. Aqui encontrarás cruzes e paus para vencer;
aqui rodas, roldanas e prensas para dominares; aqui cavaletes de tortura, cordas e
grelhas, para subjugares; aqui, finalmente, encontrarás, fora de dúvida, outros
géneros de instrumentos de tortura para dominares. Portanto, porque presumes em
solicitar outro martírio? Cumpre a vontade de Deus, e gozarás de todas as bênçãos».
Amparada por estes conselhos, contente com a consolação e entrinchei
rada no seu presídio, a sagrada virgem buscava diligente aquela nova expiação
de luta, com vários exercícios de penitência; em cuja continuação alcançou o
termo da sua vida, de modo a por vezes ser tida por mártir em toda a parte.
4. Nessa época, a santíssima Godinha, abadessa do convento, tia
materna de Senhorinha, e mestra do seu bom carácter, largou a vida temporal,
e abordou à eterna, carregada com felicidade do fardo das virtudes. Sucedeu-lhe
merecidamente no lugar, Senhorinha, por sufrágio concorde das monjas. No
encargo deste ofício, de tal modo se comportou a sagrada Madre, que se não
desviou nem o mais pequeno ápice do peso da antiga austeridade. Teve ela a
admirável graça dos milagres; pois muitas vezes transformava a água em vinho,
expulsava tempestades das eiras, e executava outros prodígios com as suas
orações. Transferiu o convento do lugar de Vieira para Basto, onde, como as
virgens se afligissem com a falta de pão, com a intervenção da oração da santa
153
154 LATIM MEDIEVAL E RENASCENTISTA
breui Deus saturauit famelicas. Quid magis? Cum aliquando iter perageret
Abbatissa iuxta Carrazedum, sociis aliquibus sacrae Congregationis Virginibus,
et in loco diuinum recitare officium statuisset amoeno, sic a rauco ranarum
strepitu eius fuit impedita deuotio, quod in oratione nec minimum persistere
potuerit. Tunc Senorina garrulas animalium molestorum uoces consopire dis
ponens, ne in ceterum perstreperent imperauit: quod euenit, nam ulterius nullum
huius generis in termino illo conspectatur entoma.
5. Erat ergo sacrae Virgini carissimus B. Rodesindus, et propter cognatio
nis uinculum, et ob sanctitudinis piaculum, quae in causa fuere, ut aliquando
beatus uir Senorinae frueretur alloquiis. Euenit autem, ut statuto tempore
Rodesindus monasterium adiret, quatenus sacram Abbatissam uisitando con
suleret, et ab ea aliquid consulendo edisceret: ad quorum colloquium cum
ambo accederent laetabundi, et de rebus spiritualibus loquerentur adinuicem;
duo opifices, qui coenobii tegumenta uerrebant, Sanctorum colloquia in pessimam
partem traduxere fallaces. Vix in eorum corde fuit exorta temeritas, quando
in ipsorum corpore daemonum est ingressa caterua, quae miseros opifices
pertorquens, e tecto in peristylium praecipites propulsauit, ita ut in parte
homines contusi, miserabiliter protinus animas eructarent. Quod infortunium
Rodesindus et Abbatissa intuentes, utriusque orationibus, et sancti Abbatis
manuum impositione, alter et alter opifex, cum spectantium admiratione, uitam
Deo miserante recepit.
6. Demum transactis aliquot annis, cum Senorina quadam die cum
suis sacris Virginibus in choro Completorii officium integra deuotione persol-
ueret, concentus dulcissimi in aeris regione ab omnibus auditi magna cum
animorum fuere laetitia: quos cum non caperet Virginum coetus, ad Matrem
post absolutum Officium conuenit, ut de psallentium melodia causam exqui
reret ab Abbatissa. Quae illis de obitu Rodesindi, in coelum ab Angelorum
agminibus translati, rationem felicissimam aperuit. Tunc sacrae Virgines horam
et diem signantes, postmodum ueritatis apicem inuenerunt. His et aliis Sancto
rum operum illustrationibus ad ultimum uitae limitem sanctissima Virgo peruenit.
Nam quadam die cum in oratione persisteret, dulcissimam hanc uocem audiuit:
Veni electa mea, quia concupiuit Rex speciem tuam. Qua audita protinus
154
I. LATIM MEDIEVAL – HAGIOGRAFIAS 155
Abadessa* em breve Deus saciou as famintas. Para que hei-de dizer mais?
Uma vez que a Abadessa fazia caminho por Carrazedo* tendo por companheiras
algumas virgens da sagrada congregação* como resolvesse recitar num lugar ameno
o ofício divino* de tal modo a sua devoção foi impedida pelo rouco estrépito
das rãs* que não podia* de modo algum, persistir na oração. Então Senho
rinha ordenou que se afastassem as vozes palradoras dos daninhos animais*
e mandou que não continuassem a fazer barulho de futuro; o que aconteceu* pois
posteriormente não se avistou insecto (2) algum deste género naquele lugar.
5. Ora muito caro à sagrada virgem era o bem-aventurado Rosendo*
quer pelos laços de parentesco* quer em vista da expiação para alcançar a san
tidade* o que foi causa de que algumas vezes o bem-aventurado varão gozasse
da conversação de Senhorinha. Sucedeu porém* que no tempo marcado Rosendo
chegou ao Mosteiro* a fim de visitar a sagrada Abadessa* para a consultar*
e com ela aprender alguma coisa* escutando-a; e, como ambos encetassem*
jubilosos* esse colóquio* e falassem alternadamente de coisas espirituais* dois
operários que varriam a cobertura do convento* levaram na pior conta a conversa
dos Santos. Mal no seu coração surgiu a audácia* logo no seu corpo entrou
a multidão dos demónios* que, retorcendo os desgraçados operários, os atirou
de cabeça para baixo* do telhado ao claustro (3), de modo que os homens
ficaram em parte contusos, e logo miseravelmente lançaram fora as suas almas.
Como Rosendo e a Abadessa vissem este infortúnio* com as orações de um e
e de outro e a imposição das mãos do santo Abade* um e outro operário* ante
a admiração dos espectadores* pela misericórdia de Deus, recuperou a vida.
6. Finalmente* volvidos alguns anos* certo dia em que Senhorinha exe
cutava em coro com as suas sagradas virgens o ofício de completas com inteira
devoção* todas ouviram* com grande gáudio das almas* umas harmonias dulcís
simas nas regiões aéreas e* como a congregação das virgens não as entendesse* foi
ter com a Madre* depois de executado o ofício* para indagar da Abadessa
a causa da melodia dos salmodiantes. E ela desvendou-lhes a felicíssima
causa do falecimento de Rosendo* levado ao céu por legiões de anjos. Então as
sagradas virgens tomaram nota da hora e do dia e vieram a descobrir que era
o supra-sumo da verdade. Ilustrada por estas e por outras obras santas, a san
tíssima virgem chegou ao último limite da vida. Pois certo dia, quando persis
tia na oração* ouviu esta dulcíssima voz: «Vem* eleita minha, porque o Rei dese
jou a tua beleza» (4). Ouvida ela, imediatamente se preparou para o caminho*
155
156 LATIM MEDIEVAL E RENASCENTISTA
ERA M CLXVIII.
156
I. LATIM MEDIEVAL – HAGIOGRAFIAS 157
(Página deixada propositadamente em branco)
I. LATIM MEDIEVAL – HAGIOGRAFIAS 159
(Página deixada propositadamente em branco)
I. LATIM MEDIEVAL – HAGIOGRAFIAS 161
Sabemos de, pelo menos, três biografias medievais em latim de Santa Se-
nhorinha. Duas vêm nos Portugaliae Monumenta Historica, no volume Scriptores. A
primeira assenta num manuscrito do Colégio da Graça, copiado no séc. XVI ou
XVII; a segunda provém de um apógrafo de Santa Cruz de Coimbra, e consta dos
Acta Sanctorum.
A referência comum ao milagre ocorrido por ocasião da tentativa de abertura
do túmulo da Santa pelo Arcebispo de Braga Dom Paio fornece um terminus post
quem entre 1118 e 1138 – ainda que admitamos, na esteira do P.e Mário Martins,
que essa narrativa é apenas etiológica: tratar-se-ia de explicar por que razão
nunca ninguém verificou se o corpo estava intacto ou não1.
Outro elemento de datação importante é o que decorre da observação do
Prof. José Mattoso, de que a “trilogia dos inimigos da alma”, ensinada por Santa
Godinha à sua discípula, só foi fixada pelo De anima de Hugo de S. Vítor, o que
nos conduz perto da segunda metade do séc. XII; outro tanto sucede, segundo o
mesmo historiador, com a insistência na mortificação corporal 2 .
Por outro lado, a alusão, exclusiva da segunda biografia, ao milagre da cura
do futuro rei D. Afonso II, levado por seu pai em pequeno junto do túmulo da
Santa, data-a de c. 1200 e, ao contrário do exemplo anterior, tem confirmação
histórica na escritura de D. Sancho I que estabelece os limites do couto de Santa
*
Publicado em Actas do 1º Ciclo de Conferências do Congresso ‘São Rosendo e o séc. X’, Santo Tirso
(1992), 127-137.
1
Peregrinações e Livros de Milagres na nossa Idade Média (Lisboa 21957) 61 (daqui em diante citado
como Peregrinações).
2
Religião e Cultura na Idade Média Portuguesa (Lisboa 1982) 388 e nota 79; 375-376, nota 42 (daqui
em diante citado como Religião e Cultura).
162 LATIM MEDIEVAL E RENASCENTISTA
Senhorinha, doado pelo monarca como preito de gratidão por esse benefício.
O facto foi já observado por D. António Xavier Monteiro3.
A terceira biografia está datada da era de 1441 (A.D. 1403) e tem até nome de
autor – Frei Vasco Martins, como diz o cólofon. Também sabemos o incipit, que
era Gaudens et laeta loca paradisi. Tudo isto é revelado por Jorge Cardoso, Agiológio
Lusitano II (1657) 681, o qual afirma também que todos os biógrafos se aproveita-
ram dessa obra. Mas, como o texto desapareceu, nada mais podemos conjecturar
acerca desta última hagiografia, a não ser que, a ser verídica a observação de Jorge
Cardoso, ela não divergiria muito das outras, salvo no prefácio, que é exclusivo seu.
No meio desta transmissão vem ainda inserir-se uma quarta versão, esta em
português medieval, que foi preservada pelo P.e Torquato Peixoto de Azevedo, em
16924. A ela se referem expressamente, como sua fonte de informação, três autores
do séc. XVII: Fray António de Yepes, Frei Luís dos Anjos e Frei Leão de S. Tomás5.
A comparação desta com a primeira das versões latinas publicadas por Alexandre
Herculano, a que, por comodidade, daremos a sigla A, proposta por A. Xavier Mon-
teiro6, mostra que a tradução foi feita a partir de um arquétipo comum. E dizemos
assim, porque A foi copiado no séc. XVI-XVII, conforme já vimos, e manifestamente
introduziu, segundo foi reconhecido, designadamente, pelo Prof. Diaz y Diaz7, mo-
dificações de estilo. Podemos mesmo falar de uma coloração humanística no texto,
quer ao adjectivar Deus de Óptimo Máximo, quer ao empregar Diva para designar a
Santa. Além disso, a versão portuguesa apresenta preenchida uma lacuna que figura
em A, quando se lê: quia cum .... perversus perit; et iustorum iustus societatem quaerit.8 Diz
o texto em vernáculo: “porque a Escritura diz que com os bons anda o bom e com os
maus anda o mau”, que é certamente derivado de Ps. 17.27 = 2Reg. 22.27: et cum electo
electus eris et cum perverso perverteris. Esta diferença funciona, portanto, como aquilo
que, em crítica textual, se chama um erro separativo. Outro tanto pode dizer-se
da ausência da tal coloração humanística, pois se encontra sempre Deus e Sancta.
Diversos os prólogos, mas idênticos a vida e o elenco dos milagres até à morte da
Bem-aventurada. Depois disso, falta a frase de A que refere a data do acontecimento,
3
Santa Senhorinha de Basto (Cabeceiras de Basto 1982) 30-35 (daqui em diante citado como Santa
Senhorinha). Cf. Mário Martins, Peregrinações 62-63.
4
Memórias Ressuscitadas da Antiga Guimarães (Porto 1845) 444-476. Devo o conhecimento desta obra,
bem como das dos autores seiscentistas citados a seguir, ao Rev. Prof. J. Geraldes Freire.
5
Respectivamente, na Crónica General de la Orden de San Benito, t. V. (1613-1621) 365, 367; Jardim
de Portugal (1626) 151; e Benedictina Lusitana, Tratado I (1651) 176. Destes, só o segundo não explicita
de que língua se trata. (Em todas as transcrições que fizemos, actualizámos a grafia e a pontuação).
6
Santa Senhorinha 5.
lndex Scriptorum Latinorum Medii Aevi Hispanorum (Madrid 1959) 237, apud J. Mattoso, Religião e
7
e começam de imediato os milagres póstumos, dos quais sete pela mesma ordem;
seguidamente, há omissão de um e colocação diversa de outro9. Vem depois o mi-
lagre relativo à prisão do irmão e à ida da Santa a Toledo, chamada por D. Afonso,
rei de Portugal, Castela e Leão (numa série de incompatibilidades de tempo e de
lugar que não tem crédito junto dos historiadores10).
Mas, para além deste, a versão portuguesa contém ainda mais nove milagres
que não figuram em nenhum outro texto. O último comporta uma referência
cronológica importante: é o caso da cura de uma cegueira ocorrida no tempo
D. Sancho de Portugal, quando o reino estava interdito, conforme se afirma ex-
pressamente. Ora, como essa situação se verificou, com intermitências, no tempo
de D. Sancho II (portanto, já no séc. XIII), no decurso da década de 30, alcançamos
aqui um terminus post quem bem posterior aos outros11.
Tal não significa, contudo, que a redacção provenha toda dessa época, embora seja
pouco provável que existisse uma versão per linguagem, como então se dizia, anterior
a esse período. Um livro de milagres é sempre, como se sabe, um livro em aberto.
Perante estes dados, e não tendo podido examinar os manuscritos ainda sub-
sistentes, e dispondo apenas da cópia da versão portuguesa transmitida pelo P.e
Torquato d’Azevedo, não poderemos tirar conclusões definitivas sobre a história
do texto, uma vez que há dúvidas que não podiam ser dissipadas senão pela aná-
lise directa dos apógrafos. Alguns aspectos podem, porém, ser analisados. É o que
vamos fazer seguidamente.
Um é a fidelidade da transcrição do P.e Torquato d’Azevedo. Tem ele o cuidado
de afirmar, ao concluir esta parte do seu trabalho12: “Isto é o que continha aquele
antigo papel dos milagres de Santa Senhorinha, que foi trasladado na mesma frase
antiga”. E assim é, com efeito, quanto ao emprego de inúmeras formas arcaicas,
como ca, sanhudo, sendo (particípio de sedere, ainda com o sentido de “estar senta-
do”), moimento, e tantas outras. Mas já quanto às formas que traduzem o helenismo
latinizado de thalamus, que uma vez aparece como Tuimbo (p. 447) e outra como
Tumbo (p. 458), poderá pensar-se que o autor não entendeu correctamente a grafia
do copista. Efectivamente, a forma thalamus dera em português arcaico taambo
9
São, respectivamente, o da mãe demasiado prolífica e da filha estéril e o de D. Gonçalo de Sousa
(não nomeado em A).
A. C. Xavier Monteiro, Santa Senhorinha, 21, notas 2 e 3, comenta que o Alfonso Hispaniarum regi
10
não pode ser Afonso III o Magno, que deixou de reinar em 990, e que no séc. X houve dois reis deste
nome: Afonso IV, que reinou em Leão de 925 a 930 (logo, morreu quando a Santa tinha cinco anos) e
Afonso V, que governou de 999 a 1027 (portanto, muito posterior à sua morte). Os reis do tempo dela
foram Sancho I (995-967) e Ramiro III (967-982). Quanto à ida a Toledo, só foi tomada aos mouros em
1085 por D. Afonso VI. “Senhorinha e Gervásio viveram um século antes!” – conclui.
11
Agradecemos estes dados sobre o interdito à Prof. Maria Helena da Cruz Coelho.
12
Memórias Ressuscitadas da Antiga Guimarães, 476.
164 LATIM MEDIEVAL E RENASCENTISTA
13
Segundo o Prof. J. G. Herculano de Carvalho, a quem devo estes dados, a data da composição
desta conhecida obra de espiritualidade tem de ser posterior a 1383 e, provavelmente, a 1385. Do séc.
XV serão os manuscritos alcobacences em que a obra se conserva. Os exemplos são das pp. 31, 87 e
88 da edição de Bertil Maler, Orto do Esposo (Rio de Janeiro 1956), vol. I, Texto Crítico.
14
Os passos referidos figuram, respectivamente, nas pp. 142 e 468 das edições citadas.
Veja-se, a este respeito, Aires Augusto de Nascimento e Saúl António Gomes, S. Vicente de Lisboa
15
que Escrever seu nome no catálogo dos Santos; pois os prelados canonizavam então os
de suas dioceses, que o Papa Alexandre III no mesmo tempo reservou para si e seus
sucessores17. Se o epitáfio esteve gravado ou não, as transformações sofridas pelo
templo, que foi reedificado em 1634, não o comprovam. Cardoso, escrevendo alguns
anos depois disso, só refere o manuscrito de Lousada, conforme acabámos de lembrar.
Voltando ao Ms. A, pensa D. António Xavier Monteiro que terá existido no séc.
XII uma versão portuguesa, que lhe teria servido de fonte, bem como da já mencio-
nada versão de 1403 por Frei Vasco Martins18 . Tudo quanto sabemos dos começos
da prosa portuguesa leva-nos a duvidar desta possibilidade. Como também nos
leva a pôr em causa uma informação contida no códice do Convento da Graça, ou
seja, a de que as vidas dos Santos eram lidas, a instâncias da virgem, na língua
materna (vitae sanctorum ad instantiam virginis sermone paterno legebantur – p. 122).
A Vita dos Acta Sanctorum atribui à própria Santa a leitura directa e cuidada daque-
les livros (exacte martyrum acta legebat – p. 152). Por sua vez, a versão portuguesa
conservada traduz o Ms. A: “rogava que lhe lessem ameúdo a vida dos Santos e
das Santas, as quais ler [sic] perante si per linguagem” (p. 453).
Dos derivados da outra versão portuguesa perdida, desenvolveram este tópico
Yepes, afirmando claramente que Godinha lhe ensinara as letras, e que a jovem
“así dió en revolver muchos libros, y entre ellos manoseaba diferentes veces los que
trataban de vidas de Santos” (p. 366); Frei Luís dos Anjos, que refere que a mestra
“encomendou-lhe a lição das vidas dos Santos” (p. 148); e Frei Leão de S. Tomás,
que assevera: “Em outro exercício se ocupava a Santa mui importante pera gente
religiosa, com que crecem e se aumentam todas as virtudes, que é a lição dos li-
vros devotos e vidas dos Santos. Nesta lição se ocupava todas as horas que podia”
(p. 172). Por sua vez, Jorge Cardoso também observa: “Dava-se muito à lição de
livros spirituais, porque conhecendo sua mestra (como tão provecta na virtude) o
grande fruto que dela se tira (pois por este meio fala a alma com Deus) a instruiu
neste santo exercício cabalmente. Empregando Senorina o melhor do dia e noite em
passar os olhos com atenção pela vida e paixões dos Santos Mártires” (pp. 669-670).
Do confronto de todas estas versões de um episódio muito marcante da ha-
giografia – pois é a causa directa da melancolia de Senhorinha, por não poder
imitar aqueles feitos, e da intervenção da ama, para lhe demonstrar que a vida
claustral é uma forma de martírio que ultrapassa os outros na sua longa duração
– resultará que deve ter havido duas versões: a que transformava Senhorinha em
ouvinte (ou por se julgar que as monjas não sabiam ler ou por achar excessiva
17
Agiológico Lusitano, Tomo II, 680-681. Veja-se também A. Xavier Monteiro, Santa Senhorinha, 26-28.
18
Santa Senhorinha, 42.
166 LATIM MEDIEVAL E RENASCENTISTA
tanta precocidade na menina entrada aos oito anos em religião) e lhe negava o
conhecimento do latim, e a que a fazia possuidora de um e outro dote19.
Escreveu a propósito o Prof. José Mattoso, e com muita razão, que esta hagiogra-
fia “deve ser empregada para estudar a espiritualidade e os costumes das monjas
beneditinas no fim do séc. XII, ou princípios do seguinte”. E prossegue: “Desta
narrativa hagiográfica não se deduz claramente que soubessem ler latim. Parece
até que as Vidas dos Santos lhes eram lidas em português”20. Depois do confronto
que fizemos, julgamos, porém, que, para a presumível data de redacção da Vita, o
facto é possível, mas pouco provável; para a dos acontecimentos narrados, ou seja,
para o séc. X, é inverosímil 21. Não quisemos, no entanto, deixar de registar a dis-
crepância de versões, que pode ser relevante para a história da língua portuguesa.
Também será interessante fazer a análise de alguns milagres que apresentam
pequenas, mas significativas diferenças. Trata-se de um grupo de três, do género
a que o P.e Mário Martins chamou expressivamente “milagres vagabundos”, pois
circulavam acerca de vários Santos22. São todos operados em vida e contados geral-
mente em sucessão: o do Sol na eira, o dos sacos de farinha e o das rãs de Carrazeda.
Refere o primeiro que, estando já debulhado o trigo de duas eiras do prelado
da Igreja, faltava apenas uma, quando desabou uma violenta tempestade. Por
intercessão da Santa, porém, logo (traduzo) “a claridade do Sol não se afastava
da eira, de modo que nem na eira nem à volta dela caía a chuva, e assim sucedeu
todo o dia, até que todo o trigo foi limpo e levado para o celeiro.” E o narrador
comenta, com aquele tom de oralidade que é um dos encantos desta hagiografia:
“Digo-vos, amigos, que este milagre foi tal como aquele que Deus fez por intermédio
de Gedeão, ou aquele que fez por meio de Santa Escolástica, irmã de S. Bento, que,
a fim de o seu irmão, S. Bento, não sair de ao pé dela, derramou lágrimas, pedindo
a Deus chuva”. A comparação prossegue, e o narratário volta a ser interpelado:
“Julgai vós qual destes milagres é mais valioso, se o que Deus fez por causa de
Senhorinha, retendo as chuvas no ar para que não descessem sobre a eira, se o
de derramar aguaceiros, a rogo de Escolástica. Eu, por mim, digo que aquele que
é Esposo de uma e de outra fez isso mesmo, a rogo de cada uma”23.
19
Há um certo anti-feminismo latente nalguns passos da Vita, como naquele em que o autor louva
Deus por ter dado, neste caso, “sabedoria aos pequenos e fortaleza de ânimo ao sexo feminino, que é tão
débil” (p. 118), e ainda mais nos temores, atribuídos ao Conde Avulfo, de que a filha mudasse de propósito
“por causa da mobilidade de ânimo e da fragilidade da condição feminina” (ibidem, tradução nossa).
20
Religião e Cultura, 375-376.
É geralmente aceite, depois dos trabalhos dos Profs. Lindley Cintra e Avelino Costa, que os
21
mais antigos textos em prosa escritos em português são o testamento de D. Afonso II, datado de 1214,
e a “Notícia de Torto”, que se coloca entre 1214 e 1216. (Agradecemos a confirmação destes dados à
Doutora Maria José Moura Santos). Acerca do segundo destes textos, veja-se L. F. Lindley Cintra, “Sobre
o mais antigo texto não-literário português: a Notícia de Torto”, Boletim de Filologia 31 (1986-1987) 21-77.
22
Peregrinações, 62, onde cita diversos paralelos para um desses milagres.
23
Pp. 133 e 135.
I. LATIM MEDIEVAL – HAGIOGRAFIAS 167
24
Crónica General de la Orden de San Benito, 368.
25
Benedictina Lusitana, 176.
26
Apud Mário Martins, Peregrinações, 62. O passo de Suetónio figura em Divus Augustus 94. 10.
27
P. 137.
28
Religião e Cultura, 387 e nota 75.
168 LATIM MEDIEVAL E RENASCENTISTA
que sempre fala, e nunca se cala pera que sequer nos lugares em que o direito e
a Santa Regra mandam guardar silêncio, o guardassem”29.
Deixámos para o fim o milagre dos sacos de farinha, situado na altura em que a
Santa sai do primeiro para o segundo convento e o prelado vem adverti-la de que
se vai embora sem deixar mantimentos para os operários. Quando amanheceu,
porém (e traduzo), “encontraram à entrada da Igreja seis fardos de boa farinha,
tantos quantos poderiam transportar seis camelos, e até se encontraram as pega-
das dos camelos, mas quem os levou, ou tornou a trazer, é coisa que se ignora”30.
O autor da versão A logo se extasia perante a clemência e misericórdia divina
e, como pessoa versada no Velho Testamento, que prova continuamente ser, cita
o cordeiro do sacrifício de Abraão, o pão de Elias, o maná do deserto.
Que os sacos se acharam repletos de farinha à porta do convento, referem-no
também os Acta Sanctorum (com extrema brevidade), a Monarquia Lusitana, Yepes,
Jorge Cardoso, mas sem fazer conjecturas sobre o meio de transporte. Não assim
a versão portuguesa e Frei Luís dos Anjos, que repetem o intrigante pormenor dos
camelos, que nada indica fossem conhecidos na Arquidiocese de Braga, na época
medieval (note-se que o mesmo parece ter sucedido na Roma imperial, pois o
mesmo Plínio, que descreve o animal, suas espécies e particularidades em várias
partes da História Natural, sobretudo no Livro VIII, não refere que ele tenha sido
exibido na Cidade Eterna em jogos de circo, como sucedera com panteras, tigres,
girafas, rinocerontes e outros), pelo que nos parece provável que a sua presença no
texto derive de reminiscências bíblicas literárias, como Isaías 60.6, ou provenientes
de narrativas de peregrinos aos lugares santos, surpreendentemente numerosos
nesses recuados tempos31. Quem, porém, dá a chave da origem da história – ainda
que sem camelos! – é Frei Leão de S. Tomás, que escreve: “apareceram logo ao ou-
tro dia muitos sacos de farinha à portaria do Mosteiro (como em tempo do nosso
29
Benedictina Lusitana, 175.
30
P. 135.
Exemplo muito conhecido é o de S. Teotónio, que foi lá duas vezes. Outros podem ver-se em
31
32
Benedictina lusitana, 174.
Dialogorum Liber II, caput XXI, De ducentis farinae modis famis tempore ante viri Dei cellam inventis.
33
faltam na tradução portuguesa, a qual logo passa à frase introdutória dos mila-
gres post mortem, sabidos por testemunhas presenciais (observe-se, no entanto,
que a tal frase relativa à cronologia figura em Frei Leão de S. Tomás). Um último
acrescento, segundo julgamos, é o milagre da libertação do irmão e subsequente
ida de Senhorinha a Toledo, de que já falámos, e que, evidentemente, se reporta de
novo ao tempo de vida da Santa. Encerra com um cólofon que serve para terminar
todo o conjunto e que traduzo: “Estes e muitos outros milagres fez e faz Deus por
intercessão de Santa Senhorinha, os quais entendi passar adiante, por abreviar, em
louvor de Deus omnipotente, que vive e reina pelos séculos dos séculos. Amen.”38
Apenas dois outros autores mencionam o episódio de que estávamos a tratar:
o da versão portuguesa, que o desloca para outro ponto, e Frei Leão de S. Tomás,
que o coloca em último lugar, mas na parte dos milagres em vida, “porque me pa-
rece que tem circunstâncias dignas de reparo”. Este entretece na narrativa várias
considerações. Por exemplo, o cair dos grilhões postos ao irmão da Santa, quando
preso a mandado do rei de Leão é comparado com a libertação de S. Pedro da prisão,
feita pelo Anjo. Aqui, porém, a comparação é surpreendentemente a favor da Santa,
porque, sem sair do Mosteiro, “o mesmo que o Anjo obrou com Pedro falando, obrou
Senhorinha com seu irmão, desejando”. O narrador apoia-se em largas citações de
um Salmo, de Cassiodoro, de Isaías, e novamente de um Salmo. Retomada a história,
conta a ida à presença do rei, mas sem indicar o local. Finalmente, anota os mesmos
dados que figuram em A, acrescidos do sítio da sepultura 39. Em capítulo seguinte,
começam os milagres depois de morta. O que significa que a história relativa à
libertação do irmão se encontra aqui no local que lhe era próprio.
Julgamos que tudo isto servirá para comprovar que a versão A pressupõe um arqué-
tipo perdido, donde ela derivou juntamente com as outras, e acrescentos posteriores.
Por vias diferentes chegámos, afinal, às mesmas conclusões que o P.e Mário Martins:
“O tom da vida maior de Santa Senhorinha lembra, mesmo, um sermão de festa, desde
o prólogo até ao começar dos milagres sucedidos após a sua morte. Estes últimos têm
a aparência de um apêndice, feito pelo mesmo pregador ou por outro qualquer”40.
Fosse ou não um arranjo da hagiografia inicial para servir de sermão, a Vita
decorre num ambiente de uma pureza sobrenatural, no meio de frases que “nunca
foram, talvez, ditas pela Santa, então demasiado jovem” – como observa Mário
Martins 41 – mas entretecido de referências bíblicas, que procuram dar suporte a
uma prática ascética apontada como a via da perfeição. Tão-pouco faltam os ingre-
dientes românticos: a ternura do pai, o arrebatamento do jovem nobre que insiste
em desposar a menina, o sonho de origem divina, a sugerir ao Conde o destino a
38
P. 147.
39
Benedictina Lusitana, 176-177.
40
Peregrinações, 65.
41
Alegorias, símbolos e exemplos morais da Literatura Medieval Portuguesa (Lisboa 1975), 27.
I. LATIM MEDIEVAL – HAGIOGRAFIAS 171
PREFÁCIO
1 Vejam-se, para além das muitas citações directas da Bíblia, as indirectas — ainda mais reveladoras —
de que damos exemplos nas notas, 3, 6, 10, 13, 18, 25, 36, 49. O seu conhecimento de, pelo menos, Eneida I.
81-123, transparece na descrição da tempestade marítima.
2 Sobre a influência bíblica, leia-se. por exemplo, o artigo de Christine Mohrmann, “Le dualisme de la
Latinité Médiévale”, Revue des Études Latines 29 (1951), 330-348, especialmente p. 341. Da mesma grande
especialista é a expressiva afirmação de que o latim cristão está “saturado de elementos bíblicos” (Latin Vul
gaire, Latin des Chrétiens, Paris, 1952), p. 30.
Note-se ainda, neste autor, a preocupação de mostrar alguns conhecimentos do grego, ao dar a etimolo
gia popular do nome do Santo (2) e ao empregar um helenismo, logo seguido da tradução, eucharis graciosa
(26). (Nas citações da Vita Sancti Theotonii utilizaremos os números dos parágrafos introduzidos por Á.
Herculano).
3 Para um análise pormenorizada deste e de outros aspectos, leia-se o ensaio com que J. Geraldes Freire
contribuiu para a colectânea de estudos Santa Cruz de Coimbra do século x ia o século ** (Coimbra, 1984),
com o título “Problemas literários da Vita Sancti Theotonii”, pp. 85-117.
4 Vide Christine Morhmann, Études sur le Latin des Chrétiens, I 2 (Roma, 1961), pp. 323-349 (“Das
Wortspiel in den Augustinischen Sermones”).
1
174
De resto, é o próprio escritor que nos dá conta das suas preocupações, quando, ao
exaltar a castidade do Santo, a põe em paralelo com a de José do Egipto, principiando nestes
termos: “Quem estiver lembrado da arte retórica compará-lo-ia com o castíssimo José e,
seja-me lícito dizê-lo, à parte a majestade do ministério, não o acharia inferior“(9).
A Vita é um livro declaradamente apologético, que usa de condimentos literários para
amenizar a leitura. Entre estes, o lugar de mais relevo pertence à descrição da segunda viagem
a Jerusalém, que compreende, para além de um itinerário dos Lugares Santos, a já referida
tempestade marítima, que comporta uma tromba de água. Ambos os assuntos estão devida
mente estudados, pelo que nos limitaremos a remeter o leitor interessado para o trabalho de
J. Geraides Freire e o de Mário Martins5. Ambos estes especialistas têm dúvidas, se se trata de
uma narrativa de visu, feita por quem acompanhou o seu mestre na peregrinação, ou de
outiva6. Supomos, no entanto, que o próprio texto contém a resposta, ao dizer, a propósito
do prodígio do monstro marinho, que “tinha uns olhos que, segundo nos contava o Santo,
pareciam tochas de luz acesa“(10). O sicut nobis sanctus referebat deste passo exclui a dúvida.
Este episódio vai, aliás, juntar-se a outros que definem a mentalidade religiosa da
época. Visões, possessões diabólicas, milagres, tudo nos coloca num tempo em que o fantás
tico povoa as imaginações, a dois passos do real. A ponte entre os dois estabelece-se por
várias vezes através da alegoria, como é o caso da visão do monge de Claraval, de uma
planura no meio do mar “com uma multidão não pequena de homens vestidos de branco, e
ele à frente de todos mantendo a ordem “ (30). E logo o hagiógrafo refere a explicação do
próprio vidente: a planura é o claustro do Mosteiro, o mar é o mundo ou a cidade de
Coimbra, o Padre Teotónio o regedor do rebanho que lhe está confiado7.
Mas não é menos curioso observar as relações do poder espiritual com o poder tempo
ral, em que avulta a superioridade daquele sobre este. São quadros diversos, que se prendem
com o valor histórico deste documento. Essas relações ora são de estima e respeito, ora de
conflito perigoso entre uma ética que não se desmente e uma tentação latente do poder
absoluto. Assim, era tão estimado pelo Conde D. Henrique e D. Teresa, que ambos queriam
que ele fosse elevado ao sólio episcopal (5). Mas a mesma Rainha, quando lhe manda dizer
que apresse a missa, para conveniência própria, recebe a resposta peremptória de que havia
5 O primeiro, na colectânea citada na nota 3, onde dá também bibliografia sobre os tópicos usados no
prefácio (p. 96, nota 8) e sobre as descrições dos lugares Santos na Idade Média (p. 112, nota 15), e enumera
os lugares comuns da hagiografia: aspecto físico, voz, maneiras, qualidades naturais, virtudes, aspiração à
perfeição cristã, devoções, tacto humano e sobrenatural como superior, dedicação, acção como director espiri
tual (pp. 112-113). O segundo, no livro Peregrinações e Livros de Milagres na nossa Idade Média (Lisboa,
21957), cap. VIII, para além das referências bibliográficas, analisa e traduz a parte relativa à rota mediterrânea,
a que chama Ma nossa narração marítima mais antiga, pois deve datar da segunda metade do século x if (p.
148), notando também que a descrição da tromba marítima é “a mais antiga que nós encontramos em Portu
gal” (ibidem).
6 Mário Martins, op. cit., p. 148, escreve cautelosamente que o religioso “segundo parece, não peregri
nou com o Santo à Palestina”. J. Geraldes Freire, op. c[t., p. 111, pensa que “ou foi uma das muitas pessoas
que o acompanharam, e a algumas das quais o próprio D. Teotónio pagou as despesas, ou o redactor terá
visitado noutra ocasião os locais que tão minuciosamente descreve”, mas acaba por se inclinar para a
afirmativa.
7 O passo foi analisado por Mário Martins, Alegorias, Símbolos e Exemplos Morais da Literatura
Medieval Portuguesa (Lisboa, 1975), pp. 27-28.
2
175
outra Rainha mais nobre do que ela para servir (6); e um dia em que lhe escutava, em Viseu,
juntamente com Fernão Peres de Trava, uma pregação contra o adultério, a ambos “fez sair
apressadamente da igreja, corando de vergonha” (6). Uma negativa formal a deixá-la entrar
no Mosteiro de Santa Cruz ouviu um dia em Coimbra a Rainha D. Mafalda, pois que “lá
dentro havia outra Rainha”e “não era próprio da ordem nem dos costumes aceites que uma
mulher entrasse no habitâculo dos que fugiam do mundo” (19), o que valeu a D. Teotónio
muitas perseguições por parte da soberana. É, no entanto, para acudir à mesma Rainha que o
Santo, excepcionalmente, abandona a clausura, para ir, com a sua bênção, levar a bom termo
o nascimento de um infante (19). Também certo dia precisara de sair do Mosteiro, ao encon
tro de D. Afonso Henriques e seus barões, para os increpar, por terem aprisionado cristãos
moçârabes, que logo são libertos e ficam sob a protecção dos cónegos (17).
Precisamente as relações com o nosso primeiro rei são um dos aspectos mais interessan
tes da narrativa; salva-lhe a vida, numa intervenção miraculosa (18); dá-lhe conselhos, e “com
paternal àfecto frequentemente o censurava e advertia” (26). O passo transforma-se numa
pequena arte de governar com justiça, através da qual se adivinha o temperamento violento e
irrequieto do filho do Conde D. Henrique. Mas, apesar disso, “ todas as vezes que o rei estava
para cometer algum feito grandioso, sempre vinha ter com o homem de Deus e se encomen
dava às suas orações com grande empenho” (27). Esta frase vem na sequência do belo episó
dio da conquista de Santarém, durante o qual S. Teotónio, prevenido pelo rei, sob segredo,
faz preces e penitências com os seus monges para que empresa tão difícil seja bem sucedida
(26). O pedido de auxílio espiritual repete-se com a batalha de Ourique, a tomada de Lisboa e
a de Alcácer (27). Com isto chegamos a um dos pontos mais importantes da hagiografia, sob
o ponto de vista histórico: nenhuma outra intervenção espiritual é mencionada, a propósito
daquele combate, senão as orações do Santo. Por isso, este texto foi um dos pontos de apoio
na famosa polémica de Alexandre Herculano acerca do milagre de Ourique8.
As numerosas referências a D. Afonso Henriques deixam entrever de mais maneiras a
profunda estima recíproca entre o Rei e o Santo. Assim, uma vez que lhe constou que o
monarca se encontrava em perigo de vida, D. Teotónio ficou tão abalado que nunca mais a
sua saúde se recompôs (27). Por sua vez, a morte do Santo fez com que o Rei fosse “tomado
por uma grande dor, a ponto de perder as cores do rosto ”(31).
Também a propósito desta figura histórica nos é oferecida uma série de informações
não menos curiosa, relativamente à famosa auestão que tão bem se resume no título do
célebre opúsculo de Paulo Merêa: De “Portucale” (civitas) ao Portugal de D. Henrique9. D.
Afonso é chamado por duas vezes nobilis infans Portugalis (11,17), infans dux Portugalis
(11). No mesmo passo, ao fazer referência a D. João Peculiar, dizendo qui eo tempore
Colimbrie magister scolarum erat, qui postmodum Portus Gaie factus episcopus, fornece-nos
uma das formas mais interessantes do nome da cidade, que alterna com o mais alatinado da
frase tempore clarissimi infantis A. Henrici comitis et regine Tarasie filii, qui tunc infans dux
Potugalis erat, sed processu temporis et diuini muneris largitate, post tocius pene Lusitanie et
ex parte Gallecie rex est effectus illustris (11). Da forma do latim bárbaro passámos rapida-
8 Cf. Arlette Darbord, “Alexandre Herculano et la Bataille dOurique: Histoire d’une Polémique”,
Arquivos do Centro Cultural Português 22 (1986), 263-345.
9 Publicado primeiro na revista Biblos 19 (1943) e depois, em edição revista, pela Portucalense Editora
(Porto, 1967).
3
176
mente a uma reminiscência clássica que mostra a antiguidade da identificação do reino com a
LusitâniaI01
.
De registar, também, os vários títulos com que D. Afonso Henriques vai sendo apeli
dado: infans, dux, comes, rex. No passo, já citado, em que o Santo sai do Mosteiro para lhe
exprobrar a prisão de cristãos (17), é chamado infans, mas D. Teotónio, ao dirigir-se a ele,
invoca-o como rex; e, conforme se referiu acima, assinala-se noutro ponto a sua passagem de
dux a rex (11). Sobre a justeza deste último título, precisa-se mais adiante merito rex
uocaretur(79,).
Interessantes ainda as relações com Claraval, de onde S. Bernardo lhe manda o báculo
(28) que costuma figurar na inconografia do primeiro prior de Santa Cruz.
O livro é uma obra de exaltação, mas também de formação moral Esta dupla intenção,
panegírica e catequética, é bem patente na descrição da carreira eclesiástica do Santo, no
comprazimento em enumerar os deveres do hostiário, do subdiácono, do diácono, do sacer
dote (3), terminando com uma frase que deixa transparecer a frequência, ao tempo, da prática
da simonia. E pode dizer-se, de um modo geral, que esta tonalidade moralizante se reflecte em
toda a biografia.
Á obra do discípulo anónimo fo i guardada no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra até
que Alexandre Herculano a levou, com muitas mais, para a Biblioteca Municipal do Porto,
onde se conserva. Mas, precisamente porque o seu valor era grande para os cónegos regrantes
de Santo Agostinho, cedo se fizeram traduções para o português. Conhecem-se actualmente
três, uma do séc. XIV, outra do XVII e uma terceira do xvin. A mais antiga, anónima, veio a
ser publicada por António Cruz no seu livro Anais, Crónicas e Memórias Avulsas de Santa
Cruz de Coimbra (Porto, 1968); a segunda foi feita por D. Timóteo dos Mártires (Coimbra,
1650); a mais recente deve-se a D. Joaquim da Encarnação (Coimbra, 1764) e veio a ser
reeditada na mesma cidade em 1855 e, por ocasião do nono centenário de S. Teotónio,
novamente em 1982n .
Se o primeiro dos tradutores é geralmente fiel ao texto, embora acuse pequenas diver
gências, e, por outro lado, antecipe o relato do milagre do globo estrelar (o que pode fazer
pensar na existência de mais de uma cópia do manuscrito latino), os outros dois fazem
acrescentos, sobretudo D. Joaquim da Encarnação, que introduz aditamentos bem mais
extensos do que o original
Nesta nova versão do Ms. 52 da Biblioteca Municipal do Porto, procurámos transmitir,
em linguagem dos nossos dias, o conteúdo de um texto venerável, que se situa nos alvores da
nacionalidade, e dessa época remota e insegura lança ainda uma estranha luz sobre a insegu
rança da nossa.
M a r ia H e l e n a d a R o c h a P e r e ir a
10 A Vita Sancti Frutuosi, datável do séc. vil, fala, em termos clássicos, de Mérida como a capital da
Lusitânia, e distingue essa província da Bética (cf. M. Diaz y Diaz, La Vida de San Fructuoso de Braga
(Braga, 1974), pp. 98 e 100). Alguns séculos mais tarde, a Sancta Senorinae Vita ex Actis Sanctorum intitula
D. Sancho 1 «o primeiro rei da Lusitânia com esse nome» {primus huius nominis Lusitaniae rex).
11 Podem ver-se mais pormenores em J. Geraldes Freire, op. cit.y pp. 92-93.
4
177
1. Devendo invocar-se Deus até nas mais pequenas coisas, como diz o Filósofo \ muito Prólogo
mais preces temos de lhe endereçar no caso de varões sublimes que, depois de haverem
calcado o diabo, receberam já a coroa da segurança. E quem duvida de que D. Teotónio
pertence a esse número? Quando ele há pouco nos deixou e ascendeu, de ânimo já alegre, à
Jerusalém celeste, que buscava com toda a devoção e admirava na terra, foi com uma dor
intolerável que a seta da saudade dele nos amarfanhou. É por isso que quantas vezes me
esforço por começar a falar, outras tantas se me enchem os olhos de lágrimas, se me embarga
a voz e os soluços me interceptam as palavras ao escrever1 2. Que hei-de eu fazer? Hei-de
acrescentar mais lágrimas? Mas a Sagrada Escritura o proíbe. Por isso não chorarei a sua
morte, porque creio que ressuscita com Cristo. Sei de certeza que ele está com Cristo. Por
tanto, hei-de alegrar-me e regozijar-me, porque foi arrebatado, para que o mal não alterasse o
seu espírito, porque a sua alma agradara a Deus? Mas não posso suportar a saudade da sua
ausência, e a sua afeição por tão grande homem dilacera o meu espírito. Não posso dissimu
lar a dor que sofro. Contudo, não é a situação dele que eu lamento, mas a minha, porque,
quanto mais feliz ele é, tanto mais eu sinto a dor, por me faltar tão grande bem. Restaurarei
5
178
pelas letras a sua memória; contudo, de tal modo julgo que não estou à altura de tamanho
varão, que será mais sensato admirar um tal homem do que falar dele. É que pequenos
engenhos não aguentam grandes matérias, e, quanto maior e mais excelente for o que se tem
para dizer, tanto mais se fica esmagado, porque se não pode explicar por palavras a magni
tude dos factos, e temo que vá talvez ofender aquele cuja vida venerável eu não expuser
dignamente. Pois quem houve de mais excelso entre os sacerdotes do que o meu senhor, que
ilustrou as nossas terras ocidentais com as suas virtudes, quase como se fossem estrelas? E
quem há de mais insignificante entre os clérigos do que eu mesmo, a quem não valem águas
correntes de ciência nenhuma, a quem a custo humedece uma ténue gota de um pobre fio de
água, sem que nada dimane de fonte própria? Mas, conquanto desespere de estar à altura da
tarefa, quando ergo os olhos do espírito para o Remunerador dos bens, pelo qual se soltou a
língua dos mudos, que torna eloquentes as línguas das crianças3e que, quando quer, até pela
boca dos irracionais diz a verdade, logo me sinto mais robusto para relembrar a sua memória.
Pois entendo que seria crime e inveja calar-se uma pessoa por completo acerca de tão grande
padre e abafar com um silêncio infrutífero um homem único nos nossos tempos.
Portanto, com o dom da graça, pelo qual ele se juntou aos coros dos santos, tentarei
escrever um pouco sobre o seu carácter, naturalmente que por alto, e dando, por assim dizer,
grandes saltos. Consciente, de facto, da incapacidade própria, e medindo a brevidade do meu
engenho, deixo os seus actos santíssimos para descrever em plenitude aos mais velhos e, por
isso, mais sabedores. Disponho-me, no entanto, a escrever, tendo Cristo por guia, mesmo em
estilo inculto, quer para dar satisfação à minha dor, que é a maior e principal causa de ter
empreendido esta obra, quer para servir para a edificação dos Irmãos, pois será certamente
uma consolação, segundo creio, não despicienda, que se tome manifesta, pela leitura, aos
presentes e aos vindouros, uma luz que houve entre nós.
O espírito, tomado pela magnitude da dor, não manteve, talvez, a ordenação de um
prefácio. Por agora, baste, a esse respeito, o que ficou dito.
tanti uiri inalcric adco mo inparem iudico, ut consultius quo foro et inuidiam iudico, de tanto patre omnino re-
mihi sit talem uirum mirari quam loqui. Grandes enim ticcro, ct singularem nostris temporibus uirum infructuo
materias ingenia parua non sulTcrunt, Et quanto maius so silentio premere. Dono igitur gralio, per quam ille san
et excellentius fuerit quod dicendum est, tanto magis ob
ruitur, qui magnitudinem rerum uerbis non potes explica ctorum choris admixtus e s t, pauca de cius moribus scri
re : Et timeo no fortassis illi inpendercm iniuriam, de quo bere temptabo, transcurrendo scilicet, et, ut ita dicam ,
non digne loquerer tam uencrabilcm uitain. Quid cuim' magnos saltus dando. Nam proprie iucrcie conscius, et in
inter sacerdotes domno meo excellentius, qui suis uirlu- genii inei brcuilatem mensurans, sanctissimos illius actus
tibus, quasi quibusdam stellis, partes nostras occiduas il- senioribus meis ac per hoc sapientioribus plenarie descri
lustrauit. Quid ucro inter cleros meipso inbecillius, cui bendos relinquo. Hoc autem christo duco ideo scribere,
nullius scicncio irrigua fluenla succurrunt, quem uix stil tametsi inculto sermono, dispono, ut ct dolori meo sa
licidii pauperis alenuata gutta perfundit, nichil de pro tisfaciam , quo maxima ct principalis est suscepti operis
prio fonte respirans? Sed quanquam me ydoneum ad is causam, ot edificalioni fratrum seruiam. Erit enim conso
ta despero, cum in largitorem munerum occulos mentis al- latio quidcin, utoppinor, non conleinpnonda, cum lumen,
jollo, per quem aperta est lingua mutorum, qui linguae quod inter nos fuit, presentibus et futuris lectione mani
infancium facit disertas, quiquo ucrilatcm suam , cum festum fiat. Mens occupata magnitudino doloris, fortassis
uolucrit, etiam per ora iumentorum n arra t, ad recolon- non tenuit ordincip prephationis, De qua nunc tantum di
dam illius memoriam protinus robustior fio. Scelus nam- xisse sufficiat.
6
179
2.0 varão de tão venerável memória, D. Teotónio, foi o primeiro pai do Mosteiro de Nascimento
e educação
Santa Cruz de Coimbra. Porém, a fim de podermos conhecer, com mais evidência, por que
modo veio, por chamamento da divina graça, ao que havia de ser, para a profissão regular e
governo do mesmo Mosteiro, não sem que isso fosse para a salvação de muitos, é forçoso que
consideremos primeiro atentamente, durante algum tempo, qual foi a sua origem e lugar de
nascimento, quais os mestres que o instruíram nas letras, e também a maneira como viveu no
século.
Ora ele foi oriundo da província da Galiza, da cidade de Tuy, do lugar de Ganfei, e
nascido de pais honestos e justos, a saber: teve por pai Oveco e por mãe Eugénia. Esta linha
genealógica tão venerável, exaltou-a ele com os seus piedosos costumes, adornou-a com as
suas honestas acções, de tal modo que não foi sem um tal ou qual grande presságio do
Espírito Santo que recebeu o nome grego de Teotónio, que em latim significa ‘divino’. Foi, na
verdade, divino e santo aquele que, em qualquer lugar em que tenha vivido, desde a primeira
infância, sempre se fundou na firmeza da fé católica, e teve a sua vida cheia de costumes e
virtudes santíssimas. Educado religiosamente pelos cuidados diligentíssimos dos pais, quando
chegou à idade adequada para aprender, foi entregue aos estudos espirituais das letras.
Depois, transcorrido o lapso de tempo em que já se encontrava a meio caminho entre a
infância e a adolescência, veio para Coimbra com seu tio materno, D. Crescónio, bispo de
Coimbra, que foi seu mestre. Aí, sob a direcção de Telo, arquidiácono da mesma cidade,
varão prudente e discreto, aprendeu de cor e com perfeição, em relação ao tempo, a prática
eclesiástica da leitura e, simultaneamente, do canto. Mais tarde, tendo falecido o citado bispo,
dirigiu-se para a cidade de Viseu, e, devido à sua rectidão e em atenção ao falecido Bispo, é
recebido na ^ da Bem-aventurada Maria sempre Virgem, que à data era sufragânea da
diocese de Coimbra, na qual Deus lhe conferiu a graça, à vista do clero e do povo de toda a
cidade. Na verdade, como tivesse passado já por completo o tempo da infância e tivesse
chegado à bifurcação da letra pitagórica4, abandonou sem hesitar o ramo esquerdo, com os
prazeres do século, e começou, com todas as suas forças, a ansiar pelo direito, com celestial
2. liir uilo ualdo ucncrabnu» donnus thcotonius colim- bus ct uirlutibus plenam habuit. Qui diligentíssima paren
bricnsis monasterii sancte crucis primus pater fuit. Ul au- tum cura religiose nutritus, cum adetatem discipline con
' m qualiter ad regularem professionem, eiusdemquo mo- gruam pcrucnit, spiritualibus litterarum studiis traditus
laslerii procurationem , non sino multorum salute, eum est. Deinde intcruallo temporis exacto, cum iam inter pue
diuina gratia, ad quod futurum cral, uocante, accesserit, ritiam adolcsccntiamque medius esset, cum auunculo suo
cuidentius cognosccro possimus ; prius ncccsse est u n d e, colimbriensi episcopo domno crcsconio, qui magister eius
quo natus loco, quibusuo docloribus eruditus est litteris, fuit, colimbriam ucnit : Ibiquo sub tello archidiacono eius
quomodo etiam in scculo conucrsatus fu erit, paulisper dem ciuitatis, prudenti et discreto uiro, legendi simul ct
alculius consideremus. Fuit itaque de prouiucia gallccic, cantandi usum ecclesiasticum pro statu temporis memori
ciuitalc tudensis, uico ganfei oriundus, honestis quidem ter ct plenarie didicit. Postea memorato episcopo defun
iustisque parentibus, patre scilicet oucco, et eugenia ma cto, uisiensem pcciil urbem. Qui, pro sua simplicitate ct
tre, progenitus. Quam gcncalogic religiosissimam lineam episcopi defundi gratia, recipitur in sedo beate mario sem
ille piis moribus extulit, probis actibus exornauit, Adeo per uirginis, que tunc temporis erat sub colimbria diocc-
ut non sine magno quodam sancti spiritus presagio grcce si, Ubi siquidem contulit ei dominus gratiam in conspe
tcolonius, quod latine diuinus resonat, uocarctur. Vere ctu cleri ct totius populi ciuitatis. Nam cum iam ad ple
diuinus ille fuit ct sanctus, qui quocumque abincuntc ela num transacto tempore surgcnlis infancic ad biuium pi-
te conucrsatus fuerit loco, semper catholico fidei firmita ctagoricc littcrc pcrucnissct, incunctanter sinistrum ramum
te fundatus cxtilil, uitam quoque suam sanctissimis mori cum secuti uoluptale dereliquit, ct ad dextrum cepit cum
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de tudo o que de provável podia inventar-se e por isso nunca quis ter na sua casa nem um
leito, ou banco, ou mesmo um escabelo em que repousasse ou se sentasse. Como disse S.
Gregório7, tinha esta qualidade própria de um santo, pois, como estão sempre longe das
coisas ilícitas, afastam de si muita coisa, mesmo sendo lícita. Portanto, para não incorrer em
culpa por causa de qualquer mulher, nunca queria ter com elas, sem testemunha, uma con
versa ou mesmo uma confissão particular, pois dizia que, se fosse preciso falar de qualquer
assunto mais íntimo, nenhuma havia tão pouco humana que não tivesse tal ou tal mulher em
quem confiasse, que devesse vir juntamente com ela à confissão. Amava, contudo, todas as
mulheres como se fossem irmãs, mas, precavendo-se delas como de um inimigo, conforme
dissemos, afastara radicalmente de si todas as familiaridades deste género.
Com este procedimento, afeiçoara a si, não só os príncipes e todos os concidadãos, mas
também todos os da mesma província, de tal modo que o veneravam com espantosa ami
zade, tal como um pai e mestre reverendo das almas de um e outro sexo. Foi, portanto,
vencido pelos rogos de todos os seus condidadãos e sobretudo por ordem de D. Gonçalo,
Nomeação bispo de Coimbra, a quem pertencia, como dissemos, a Igreja de Viseu, e extremamente
para prior
da Sé de
contrariado, como depois se evidenciou, que ele tomou conta do priorado da mesma Igreja.
Viseu Devido à sua prudente discrição, enriqueceu-a de bens temporais, como livros, paramentos,
sinos, cruzes e cálices de prata dourada, e também com muitos testamentos, e elevou-a, por
forma admirável, às alturas das honras que, actualmente possui, elevou os clérigos, ajudando-
-os e honrando-os, e — o que é mais do que tudo isto — tornou-os ricos de costumes
honestos.
5. Mas, porque a honra temporal não lhe proporcionava prazer nenhum, e entendia
que não era uma honra, mas um ónus, procurou o sacerdote de Deus um artifício salubér
rimo, por onde pudesse libertar-se dessa situação. Partir para Jerusalém, entregando em paz o
priorado ao seu companheiro, o presbítero Honório. Porém, quando voltou de lá, não quis
tornar a recebê-lo, conquanto fosse instado pelos rogos de todos e pelos pedidos do próprio
Honório. Com esse passou ele todo o resto da vida em tal unanimidade e concórdia que se
probabiliter fingi polerat et ideo in domo sua nequo le et maxime domni gundisalui colimbricnsis episcopi iussio-
ctum ucl scamnum, auteliam scabellum quo quietem ca n e , ad quem , ut dixim us, uisiensis pertinebat ecclesia,
peret uel sederet, aliquando habere uoluit. Ilabcrcl quip dcuiclus, nimiumque, ut postea claruit, inuitus ipsius ec-
p e, ut ait beatus gregorius, sancti uiri hoc proprium, clcsie prioratum suscepit, Quam sua prudenti discretione
Nam ut semper ab illicitis longe su n t, a se plerumque temporalibus bonis, uideliccl libris, ucstibus sacris, si
etiam licita abscidunt. Ne ergo aliquam per feminam in gnis , crucibus ct calicibus argenti deauratis, testamentis
curreret culpam , nunquam cum eis remoto teste collo quoque plurimis ampliauit, et ad culmen honoris, quod
quium ucl etiam priuataro confessionem habero uolebat. in presentiarum possidet, mirabiliter euexit, clericos iu-
Dicebat enim si aliquid familiarius loquendum esset, nul uando, honorando sublimauit, ctquod his omnibus maius
lam esso tam inhumanam, quin haberet talem ucl taleni e s t, honestis uile moribus ditauit.
feminam cui se credens ad confessionem pariter ueniro de Sed quia temporalis honor nullum sibi conferebat ob
buisset. Omnes tamen feminas ut sorores diligebat, sed lectamentum, neque enim honorem inlclligcbal esso sed ho-
ea s, ut diximus, quasi hostem caucns, huiusmodi fami nus, quomodo indo sacerdos dei se posset expedire, salu
liaritates a se funditus absciderat. Quibus rebus non so berrimam fraudem quesiuit. Nam iherosolimam abiens,
lum principes cunclosquo ciues, ucrum etiam comprouin- consorti suo honorio presbítero prioratum in pace dimisit.
cialcs omnes ita sibi douinxerat, ut eum miro afleclu uc- Sed inde rediens, cum amplius recipere noluit, quamuis
nerarcnlur, utpote patrem ct reuerendum magistrum ani omnium precibus, ct ipsius honorii obsecrationibus, plu
marum ulriusquo sexus. Omnium igitur ciuium precibus, rimum rogaretur. Cum quo ita unanimiter ct concorditer
10
183
julgaria que ambos eram irmãos direitos. Mas depois não quis ter outro lugar cimeiro deste Recusa de
cargos
século; Efectivamente, foi muitíssimas vezes implorado, com preces e exortações, pelo Conde8 honorificos
Henrique e pela sua nobilíssima esposa, a Rainha Teresa, com a concordância do clero e de
todo o povo, a assumir o ofício da cura pastoral, ou seja, o episcopado, mas nunca quis dar o
seu assentimento. Pois considerava que tudo o que era mundano era vil e caduco, ao mesmo
tempo que nocivo. E por isso, fugindo das honras temporais como de uma peste, conservava-
-se numa espécie de fortaleza de humildade e, guardando-a ele mesmo, pregava a virgindade
do espírito e do corpo e a penitência dos delitos. Pois nunca parava de semear no povo
palavras abundantes em fruto de fé. Ora advertia todos sobre obras piedosas da religião
cristã, ora confirmava outros na confissão da Santa Trindade, ora convidava os demais, com
promessas do reino celeste; mas feria os devassos e os adúlteros e os clérigos malfeitores com
o gládio do anátema, sem temer ninguém. Esses, ou se emendavam logo, ou, se acaso não Efeitos da
sua pregação
queriam acabar por se emendar, retiravam-se para longe da sua vista. Tamanha era, na
verdade, a autoridade do sacerdote, que até os príncipes da terra receavam ofendê-lo. Pois a
fama conta que certo dia, na Igreja de Viseu, quando ele estava a pregar, à citada Rainha e ao
Conde8 Fernando, que a esse tempo era seu amante, e não seu legítimo marido, os fez sair
apressadamente da igreja, corando de vergonha. Contudo, nunca lhe estranharam esta
liberdade.
6. Aconteceu ainda que num sábado em que, já revestido dos paramentos, queria oferecer
A resposta
as salutares hóstias em honra da Mãe de Deus, segundo o costume, a Rainha, que estava à à Rainha
porta, lhe mandou dizer por um mensageiro que devia celebrar a missa com brevidade e a
correr. Respondeu ele — conta-se — que havia no céu outra Rainha que era muitíssimo
melhor e muitíssimo mais nobre, à qual se dispunha, com aqueles extremos de veneração, a
dizer as solenidades da missa, lenta e demoradamente; mas que estava no seu poder ouvir a
missa ou afastar-se de todo em todo. Quando referiram à Rainha estas palavras, logo ela
reconheceu a culpa do seu pecado e proclamava repetidamente que era miserável e pecadora,
reliquum uile lempus deduxit, ut ambo penitus germani gius a conspectu cius recedebant. Tanla enim erat aucto
fratres crederentur. Sed nec aliud scculi huius fastigium ritas sacerdotis, quod etiam principes terre cum ucrcban-
deinceps habere uoluit. Sepissime namque hcnrici consu tur otrendere. Siquidem fama refert, quadam dic in eccle
lis cl uxoris cius nobilissime regine tarasic precibus etex- sia uisiensi, eo predicante, memoratam reginam, et con
orlationibus exoratus fuit, consencicnlc clero et omni po sulem fernandum, qui eo tempore contubernalis cius, non
pulo , ut pastoralis cure officium , hoc e s t, episcopatum uir legitimus erat, rubore uerecundic suffusos dc ecclesia
suscipere, sed nunquam assensum prebere uoluit. Uilia festinanter exisse. Nec tamen pro hoc ab cis unquam no
enim et caduca, pariter ctnociua, mundana omnia repu tatus fuerit.
tabat, Idcoquc temporales honores quasi pestem fugiens, 6. Accidit preterea ut, cum in una sabbatorum, iam sa
in quadam humilitatis arce se cxpcctabilcm conscruabat, cerdotalibus uestimentis indutus, salutares hostias in ho
mentis corporisquo uirginitalcm, et delictorum penitenciam nore dei genitricis ex more olTcrrc voluisset, et regina,
custodiens prcdicabat ; Siquidem nunquam cessabat in ple que pro foribus astabat, ci per nuncium misisset ut cur-
be uerba ucritatis fructu fldoi redundanda seminare. Nunc sim breuiter missam peragere debuisset, respondisse fer
omnes do pio Christiane religionis opero commonebat, nunc tur : aliam in celo reginam esso longe meliorem, longc-
alios dc confessione sancto trinitatis conformabat, nuno re que nobiliorem, cui illa cum summa ucncrationc traclim
liquos de promissione regni cclestis inuitabal, fornicalore*- cl spacioso sollcmpnia misse peragero disposuisset. In po-
ucro cl adulteros, cotorosque malefactores, anathematis gla testato ucro cius esse ucl missam audire, ucl penitus dis-
dio feriebat, neminem formidans. Qui aut stalim se emen cedcro. Quod cum regine relatum fuisset, illa stalim rea
dabant, aut si forte se emendaro aliquando nolebant, lon tus sui culpam cognoscens, se miseram, se peccatricem.
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184
enquanto D. Teotónio dizia a verdade, era justo e santo. Depois da missa, chama-o junto de
si e, logo de espírito humilhado, se lançou aos seus pés9. Erguendo-se a instâncias do sacer
dote, pede-lhe com lágrimas de penitência, roga-lhe humildemente que reze por ela. Adeverte-a
ele de que não deve tornar a proferir tão imprudentemente palavras vãs contra o culto divino;
prometeu-lhe a Rainha emendar-se, sem qualquer dúvida. Por conseguinte, nunca o santo
varão fazia acepção de pessoas, nunca antepunha nada aos ofícios divinos, para que os não
celebrasse alguma vez com menos pompa, ou sem a devida honra, ou mais à pressa do que o
costume. Mas com todas as suas entranhas amava o reino de Cristo, ele, que não temia o
principado terreno. Era assim, portanto, que, conforme disse mais acima, a todos advertia,
assim que se apressava a levar a todos para o reino de Deus. como se a todos tivesse gerado.
Prática das 7. Mas ele, pessoalmente, não era um relator esquecido da palavra de Deus. Acudia aos
obras de
misericórdia pobres, visitava os doentes, oferecia hospitalidade, apaziguava-os com carícias, regozijava-se
com os felizes, chorava com os infelizes10. Dava aos indigentes a maior parte do seu trabalho
e de tudo o que tinha: o resto, guardava-o para se vestir modestamente. As suas próprias
vestes, dava-as depois, com fins caritativos, sobretudo às viúvas. Todas as sextas-feiras11 tinha
o costume de celebrar missa por todos os fieis defuntos na Igreja de S. Miguel Arcanjo, que
fica extramuros no cemitério da mesma cidade. Nesse dia, quer por respeito do sacerdote,
quer em memória dos que lhes eram queridos, aí confluía o ajuntamento solene de todo o
povo da cidade, a oferecer devotamente, como é costume daquela região, dádivas numerosas
e variadas. D. Teotónio, sem nada reservar para si de tudo isto, depois da missa e da procis
são geral do cemitério, distribuía, contente e quase sem o verem, tudo a todos os indigentes.
Costume que ele sempre teve ao praticar boas acções, pois procurava com todas as forças que
pudesse ficar oculto o que fazia. Mas por mais que os santos varões procurem ocultar estes
actos, queiram ou não, vêm todos a ser patentes. Se entre tais e tamanhas virtudes quiser
celebrar a sua castidade, talvez pareça supérfluo, visto que sempre houve nele, conforme
domnum ucro thcutonium ucridicum cl iuslum assidue pro habebat indigentibus tribuebat, Hcliquam ucro partem in
clamabat clsnncluin. Quo ad sc post missam uocalo, hu usus ucslimcntorum sibi moderate relinebat, Ipsa posimo-
miliato mox spiritu, ad cius genua prouoluitur, ct ad cx- duin ucslimenta intuitu miserationis maxime uiduis tribue
ortacioncm sacerdotis erecta penitentiam lacrimabiliter po bat. Inomniquoquc feria y i .‘ cxmore suo in ecclesia bea
poscit , orationem pro sc ab eo fieri humiliter peciit, Ac ti michaelis archangcli, que foras murum in ccmitcrio
ne deinceps erga cultum diuinum tam incauto ociosa ucr- eiusdem ciuilatis est, pro cunctis fidelibus defunctis mis
ba proferret, ab eo amonila, cum mcliorationo sui indu sam celebrabat : Ad quam eo dic , ct pro rcucrcntia sa
bitanter promisit. Nunquam enim uir sanctus personas cerdotis , ct pro carorum suorum memoria, sollcmpncs
hominum suscipiebat, nunquam diuinis ofliciis aliquid tocius urbis populorum conucnlus confluebant, Plurima ct
proponebat, quo minus uidclicct ornate, aut indecenter, diuersa , ut illius regionis inoris e s t, deuole offerebant.
seu festinantius solito , aliquando ea celebraret. Ycre to De quibus omnibus donnus theutonius nichil omnino sibi
tis uisceribus diligebat christi regnum, qui terrenum non rcscruans, post missam et generalem ccmitcrii processio
formidabat principatum. Sic igitur, ut superius dixi, cun nem, cunctis indigentibus Ictus et peno inuisus omnia dis
ctos ammonebal, sicquc omnes in regnum dei inducere tribuebat. Qui mos illi semper fuit in bonis operibus ex
festinabat, ac si cunctos genuisset. ercendis, Tolis enim uiribus elaborabat, ut posset esse oc
7. Sed nec ipse uerbi dei obliuiosus relator erat, Subuc- cultum, quod faciebat. Sed quando in sanctis uiris latent
nicbat pauperibus, uisilabal languentes, prouocabat ospi- ista qucrcnlibus nolint cuncta produntur. Si inter tales
e io , lcuibat blanditiis, gaudere cum gaudentibus, flere lanlasquo uirtutes castitatem in illo predicarc uolucro,
cum flentibus. Maiorem partem sui laboris, cl tocius quod fortasse superfluus uidear, cum in eo ut supra diccro cc-
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poral, para salvar a nação egípcia, que outrora estava a perecer; este obteve para os povos a
boa e superabundante medida da palavra de Deus e da fé, libertando muita gente da fome
espiritual e do jugo da condenação do demónio. Aquele teve filhos da carne; este, ao que
contam, foi imaculado desde o ventre da sua mãe. Por isso nunca se pôde encontrar nele
qualquer suspeita de culpa, em assuntos destes. Excelente varão, que de tal modo viveu no
seu século que nunca um maldizente sequer ousou inventar alguma calúnia acerca dele! Coi
sas que, pela sua extrema grandeza, e devido à pequenez do meu engenho, confesso não poder
descrevê-las; pois o que se ousa para além das forças sucumbe no meio do próprio esforço,
deixá-lo-ei de momento e voltarei já a minha pena para a sua segunda partida para
Jerusalém.
Segunda 10. Abrasado, portanto, em virtudes e com saudades dos Lugares Santos, sem se lem
viagem a
Jerusalém brar da casa, nem dos parentes, nem dos criados, nem dos haveres, nem de coisa alguma que
pretencesse ao século, saiu da pátria com não pequena multidão de peregrinos e tomou
novamente o caminho, há tanto desejado, de Jerusalém, pois o devoto varão percorrera já o
mesmo itinerário. Depois de ter chegado a salvo, ao fim de dez semanas, guiado por Deus, ao
porto de S. Nicolau, aí permaneceu seis semanas seguidas, por ter cessado de soprar o vento
favorável. Não se manteve, contudo, ocioso, mas, conforme se provou com toda a certeza,
tanto quanto aí estanciou, como em toda a sua peregrinação, testemunhou a sua beneficiência
aos pobres, e, com a sua palavra e ao mesmo tempo com o exemplo, incitou às obras de
misericórdia os concidadãos e os que iam para Jerusalém e — coisa que não foi menos cara a
Deus — restaurou sempre a paz e a concórdia entre os dissidentes. É que todos sabiam que ele
era justo e santo e por isso, respeitando-o quase como a um pai, estavam atentos à sua
exortação, calavam-se e obedeciam-lhe com a maior diligência. Finalmente, soprou uma brisa
propícia, e embarcou. Para que hei-de referir os peregrinos a favor dos quais pagou a passa
gem e aqueles que, só por respeito a Deus, levou consigo, para lhes dar alimento? Depois
disto, os marinheiros desfraldaram as velas ao vento, em direcção a Jerusalém.
dam cgipti nalioncm seruauit ; Isio bonam ct conferiam non possessionum, non alicuius rei, que ad seculum per
ucrbi dei fidciquo mensuram populis erogando, mullos a lineret, memor, cum non modica peregrinorum turba pa
fame spirituali, cl iugo demoníaco dampnalionis delibera- triam egrediens, diu desideratam ihcrosolimorum uiam (te
uil. Ille filios carnis habuit, iste, ut ferunt, ab utero ma nuo arripuit. Jam enim eandem uirdeuotus peregerat uiam.
tris immaculatus cxlilit. Unde nulla unquam culpc suspi Cum autem post decem cbdomadas ad portum sancti ni-
cio , in eo de rebus huiusmodi reperiri potuit. Obtimum cholai sospes, deo ducente, uenissct, prospero uentorum
uirum, qui ita uixil in seculo, ut numquam de illo etiam cessante comcatu, sex ibidem continuis ebdomadibus mo
maledicorum quisquam aliquid auderet confingere. Ita ges ratus est. Non tamen ociosus, Sed, ut certissime proba
sit in mundo, ut non iam de mundo, sed ucre regularis tum fuit, lain ibi positus, quam in tota sua peregrinatio
esse uidcrctur. Quis autem possit explicaro bonorum ope ne pauperibus beneficentiam exibuit, atque exemplo suo
rum suorum magnitudinem, ct quomodo in eadem ciuita- puriter ct uerbo, ct ciues, ct ihcrosolimara euntes ad mi-
te morum ornamentis pollens, per quadraginta ct eo am sericordic opera prouocauit, ct quod non minus deo ca
plius annos, cunctorum ciuium uerbo ct exemplo in deum rum fuit pacem ct concordiam inter dissidentes semper rc-
prouocauil affectus ? Que, quia magna ualdo sunt, et pro forinauil. Omnes enim cum iustum ct sanctum esso scie
brcuilatc ingenii m ei, fateor ea cuuolucro non possum ; bant , ct ideo quasi patrem illum colentes, ad exorlalio-
ausa enim ultra uires in ipso conatu succumbunt ad pre- nem cius intenti tacebant, diligculissimequo obtempera
sens prctcrmillam, ct ad secundam profectionem illius in bant. Tandem itaque aura flante secunda conscendit. Quid
iherusalein iam nunc stilum conucrtam. narrem peregrinos pro quibus naulum dedit, ct quos so
10. Igitur succensus uirtulibus, ct desiderio sanctorum lo dei respectu pascendos secum misit ? Post hec autem
locorum, non domus, non propinquorum, non clientum, naucleri ucla uentis comiserunt, ihcrosolimam petentes.
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Mas quando, ao fim de alguns dias, navegavam ao largo do Cabo Málea, devido a uma Tempestade
maritima
súbita tempestade marítima, começaram todos a estar em grande perigo. É meu desejo con
fiar à memória a maneira como se houve, para que, a partir do perigo que se avista numa
parte da peregrinação de tão excelso homem, facilmente se reconheça, por comparação, quan
tos e quão graves perigos sustentou em terra e mar em nome de Cristo. Por conseguinte,
quando a quilha navegava junto ao Promontório do Málea, o céu entenebreceu-se de súbito,
e eis que uma nuvem, com a violência dos ventos e um terrível fragor, lançou sobre eles a
obscuridade e, revolvendo o mar desde as profundezas, movia procelas que caíam como um
monte de água, e ora mergulhava a nau nas profundezas, desequilibrada pela massa das
ondas, ora de novo a erguia das profundidades a pique até aos cumes mais altos e cristas das
vagas e, novamente, abrindo as ondas, a derrubava e — coisa espantosa de se dizer — aspirava
às alturas a água do mar, como se fosse por um canal bem visível, a que os navegantes
chamam ‘cifo’.
Mas os marinheiros, que já antes haviam percebido que era uma tempestade, logo que
a nau principiou a andar à roda no meio da procela das vagas, e num repente se quebrou o
mastro e caiu às ondas, começaram a colher as velas, a prender cabos e antenas e a dispor
todos os aparelhos do leme e da mastreação do navio, para não serem soltos pela violência
das águas, e a lançar fora o vasilhame, para o barco ficar mais leve. Não podiam, contudo,
alcançar o sossego, por pouco que fosse. Pois o mar vinha e encapelava-se sobre aqueles
homens, apavorados pelo temor da morte.
Mas ao terror um terror ainda maior se segue: pois acrescentava-lhes ainda mais o
medo da morte o aparecimento, perante todos os que estavam no mesmo perigo marítimo, de
um animal monstruoso e muito temeroso, de tal modo apavorante, que não podiam
compará-lo a nenhum outro animal. Tinha uns olhos que, segundo nos contava o Santo,
Sed cum post dies aliquot per malcas nauigassent, cun quod dictu mirabilo est, aquam do mari tanquam per ma
cti subila maris tempestate periclitari ceperunt. Qualiter nifestum canale, quod naulc cifum uocant, in sublime tra
autem gestum sit memorie comcndare cupio, ut cx peri hebat. Sed cl nautc iam antea cognita lcm|>cstatc, cum
culo, quod in parto peregrinationis tanti uiri cernitur, fa primum nauis inter procellas ilucluum rotari cepisset, et
cile per similitudinem agnoscatur, quanta et quam grauia cum summa^clcritale arbore abscisa cl in undis proiccta,
in terra marique pericula pro chrisli nomine sustinuerit. ceperunt ucla deponere, rudentes antempnasque ligaro,
Igitur carina per collum malco nauigante, subito cclum cunctaquo gubernaculorum cl nauis armamenta, ne a ui
contenebra Ium est, et ccce nubes cum uiolei\tia uentorum maris solucrcnlur, componere, et ut nauis allcuiarclur,
iacluram uasorum facere. Nec tamen ucl modicam quie
cl terribili fragore cos desuper obumbrauit, Que uerso tem habere poterant. Ibat enim mare et intumescebat su
funditus equore, procellas instar aquosi montis dependen per eos, timore mortis perterritos. Sed et terribilibus ter
tes exagitabat, et modo naucm undarum molibus turba ribiliora succedunt : Nam prclcrca melum mortis augebat
tam in profundum demergebat, modo de preci pili profun uisa cunctis in eodein maris periculo monstruosa quedam
do rursus ad superiores ucrliccs et undarum cumulos ex et ualde terribilis bestia, adeo formidolosa ut nulli eam
tollebat, iterumque apertis undis in una dcicicbat, atque, bcslio comparare possent, Cuius occuli sicut nobis san-
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pareciam tochas de luz acesa. Uns diziam que era um dragão, outros um monstro, outros o
demónio. Porque hei-de demorar mais? Já lhes tinha sido tirada toda a esperança de salvação.
Quando as ondas ferozes se embraveciam para os matar, e tinham os membros amorteci
dos pelo temor, e já todos estavam perturbados pela própria presença da morte e pela visão
do monstro, e estavam preparados para morrer, todos desejaram a paz uns aos outros, implo
rando, com lágrimas, o auxílio do Omnipotente a fim de que, quem entregara os seus corpos
a tão pavoroso trespasse, lhes recebesse as almas com toda a benignidade, ou os libertasse
pela sua mesericódia.
D. Teotónio, porém, prostrado em oração e também a chorar, e todo voltado para
Deus, depois de ter rezado salmos e ladainhas, invocou deste modo o Senhor da vida e do
espírito, dizendo: “Senhor, Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus vivo, Filho de Santa Maria,
que com o Pai e o Espírito Santo és um só Deus na Suprema Trindade e verdadeira unidade,
socorre-nos, pois que estamos no supremo perigo, a fim de que, arrebatados às ondas do mar
embravecidas, mereçamos ver o glorioso sepulcro da tua santa Ressureição, que viemos para
venerar e oscular, dos confins do mundo, e para te darmos graças pela nossa libertação.”
A todos exortava e, consolando-os com as palavras que podia, aconselhava-os a que se
confessassem uns aos outros e se perdoassem de todo o coração e a que, crendo e orando,
depositassem toda a sua confiança em Deus, anunciando-lhes que, se perseverassem, em breve
sobreviria a clemência do Redentor. Coisa que sucedeu mesmo, pois, enquanto isto se passava
no navio, Deus omnipotente, que de um modo espantoso aterrorizara os seus espíritos, de
modo mais espantoso ainda mostrou a sua misericódia para com eles. Eis que inesperada-
mente o sopro da brisa começou a ser mais calmo, as moles de água se alizam pouco a
pouco, e o mar se toma tranquilo.
cius referebat, apparebant quasi ledo ignis accense. Alii es in summa trinitate et ucra unitate, succurro nobis in
eam drachoncm, alii monstrum, alii demonem esse dice suppremo periculo constitutis, quatinus ex scuicntibus ma
bant. Quid diu inmoror? Jam ablata erat spes omnis sa ris fluctibus eru ti, gloriosum scpulchrum tuo sancte re
lutis, Cum igitur in eorum morto feroces fluctus seuirenl, surrectionis , pro quo de finibus mundi ucncrando ct os
ac resolutis timore mcnbris iam cuncti ex ipsa presentia culando uonimus, uidere mercamur, et lue liberationi gra
mortis ac uisionc bestie fuissent turbati, etiam morti pa tias agamus. Orlabalur etiam cunctos, et quibus uerbis
rati , omnes sibi pacem dederunt, omnipotentis auxilium poterat consolando ammonebat, ut alterutrum confitcntcs
cum lacrimis deprecantes, ut qui eorum corpora in tam sibi ex corde demitterent, ct totam in deum credentes et
pauenda morte tradiderat, conim animas benignissime sus orantes spem suam ponerent, dcnuncinns cis si pcrscue-
ciperet , aut cis opem liberationis misericorditer inpcndc- rassent in proximo clementiam redemptoris affuturam.
rct. Domnus autem thcolonius in oratione quoque cum la Quod et facium est. Nam dum hcc in naui agerentur,
crimis prostratus, ac totus ad deum conucrsus, post salmos omnipotens deus, qui eorum mentes mirabiliter terruerat,
et Ictanias dominatorem uite ac spiritus inuocauil hoc mo mirabilius cis misericordiam suam exibuit. Ecco enim cx-
do : Domine, domine, inquit, iesu chrislo fili dei uiui, fili inspcracto flatus auro cepit placidior fleri, paulalimquo
sancte marie, qui cum patre cl spiritu sancto unus deus elisis aquarum molibus, redditur maro tranquillum. No-
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Começou, portanto, a nascer para eles uma nova luz. Aqueles que estavam já entregues
à morte admiram todos a quietude das ondas. Todos, por conseguinte, bendisseram, exultan
tes, o Deus do céu, dando-lhe os devidos louvores e entoando, com elevação, o Gloria in
excelsis Deo, por o Deus de misericórdia se ter dignado libertá-los deste transe mortal.
Confesso que me excedi muito. Não sei por que modo é que, por me custar a omitir o
perigo em que esteve o homem de Deus, me afastei da minha brevidade. Mas já vou tornar
ao meu plano.
Uma vez liberto do mar de Málea com todos os que estavam consigo no navio, três Chegada
à Terra
semanas depois de ter embarcado no porto de Bari, atravessou o mar e aportou à cidade de Santa
Jafa, e, por um caminho extenso e cheio de anfractuosidades, passou pelo sepulcro do mártir e descri
ção dos
S. Jorge, até que chegou a Nazaré, que criou o Senhor Salvador. Daí seguiu pela via que lugares
sagrados
conduz ao Tabor, onde o Senhor se transfigurou. Subiu ao seu cume, e daí esteve a observar
com o máximo cuidado muitos lugares, que o Senhor santificara com a sua passagem.
Descendo daí, dirigiu-se apressadamente para Samaria, viu o sepulcro de S. João Bap
tista e dos Doze Profetas, de Eliseu também e de Abdias. E, apressando o passo, parte para o
poço sobre o qual o Senhor se sentou com fome e sede, e se saciou com a fé da mulher
samaritana. Depois de adorar em cada sítio o Redentor do mundo, subiu contente à celebér-
rima colina, de onde se avista Jerusalém, há tanto desejada. Os habitantes chamam-lhe Monte
da Alegria, pelo facto de ser aí que os peregrinos sentem uma alegria inefável com a visão da
cidade. Ajoelhado nesse local, com quanta satisfação exultou, quantas graças deu a Deus,
declararam-no as lágrimas misturadas com a alegria.
Entrando, portanto, com alegria, na Cidade Santa, deliberou ver primeiro a cruz no
Monte Calvário, onde o preço do mundo, Cristo, foi pesado na balança da cruz13. Prostrado
ua igilur lux cis cepit oriri. Mirantur omnes morti iam In cuius ucrlicem ascendens, aspiciebat diligentissime lo
dediti fluctuum pacem. Omnis igilur deum ccli exultan ca plurima, que dominus suo itinere sanctificaucrat. Un
tes deum benedixerunt, laudes ei debitas referentes, et de descendens festinus perrexit samarinm, uidil scpulchrum
gloria in excelsis deo nobiliter decanlanlcs, quod cos mi beati iohannis bablistc cl xum prophetarum, hclisci quo
sericors deus dignatus sit de hoc mortis articulo liberare. que et abdic. Conciloquo gradu proficiscitur ad puteum,
Excessi fateor mullum. Nescio quo enim paclo dum peri super quem Dominus residens, esuriensque ct sicicns, Sa
maritane mulieris tide saciatus est. Et adorato per singu
culum uiri dei omittere piguit a breuilalc cuolulus sum. la loca mundi redemptore, Ictus ascendit in collem ccle*
Sed iam nunc ad propositum redeo. Liberatus ilaquc de berrimum , quo diu desiderata conspicitur ihcrosolima.
pelago malce cum omnibus quisccum erant in naui, post Aeole montem gaudii uocanl eo quod ibi peregrini de ui-
trium cbdomadarum dies ex quo in portu barensis ciuila- sionc ciuitatis gaudium ineffabile concipiant. Ilie autem
tis naucm ascendit, mare transiuit appulsus ad urbem flexis genibus, quanta cxultauil Icticia, quanlasquc deo
yoppem, longissimis uiarum anfractibus circumiuit per gratias egit, admixte gaudio lacrimo declararunt. Haris
scpulchrum beati georgii martiris, quousquo pcrucnit na- ilaquo sanctam ciuilalcm ingressus v del iheran it prius ui-
zarcth, que nulriuit dominum saluatorcm. Inde abiit per dere crucem in monte caluarie, ubi precium mundi Chris
uiam, que ducit in tabor, quo transfiguratus est dominus. tus instatura crucis appensus fuit, Ante quam corde toto
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diante dela de coração e corpo inteiro, adorou-a, como se visse o Senhor nela pendente.
Recordava a sentença de morte ou de maldição proferida contra si e contra todo o homem,
devido à desobediência do primeiro homem, mas também de propiciação e piedade do Filho
de Deus, do qual lera que “por nós se fez maldito, para nos redimir da maldição”14 e que
suportara naquele mesmo lugar escarros, insultos, chicotadas, bofetadas, a coroa de espinhos,
a flagelação, a cruz, os cravos, o fel, o vinagre, a lança e a morte.
Terminada a oração, e tendo aí deposto a cruz que levara, segundo o costume dos
peregrinos, desceu um pouco para a esquerda, para o lugar do Gólgota, onde, segundo a
fama, o sangue que corria do lado de Cristo quebrou uma pedra duríssima. Daí, em breve
espaço, voltou-se para o sepulcro da Ressurreição e, ao ver o próprio local do corpo, no qual
o Senhor estivera jazente, era como uma pessoa sequiosa a lamber com a boca as almejadas
águas da fé. Ocorria-lhe a lembrança apropriada de meditar acerca do Senhor Salvador, a
saber, como, depois de tanto que tinha suportado, repousava naquele mesmo sepulcro; e
pensava como, mediante a sua descida aos infernos, causara um gáudio indizível e imenso aos
desgraçados aos quais Cristo, acorrentando o poder da morte, trouxera consigo das
profundezas.
Daí foi conduzido ao meio do mundo, ou seja, ao lugar onde José de Arimateia depôs
o corpo do Senhor, tirado da cruz, antes de o colocar no sepulcro, e aí orou com mais fervor,
recordando aquela frase de David: “Deus, nosso rei, operou a salvação antes dos séculos, no
meio da terra”15. Daí se voltou para a esquerda, para a Vera Cruz, por algum tempo, e, ao
ver o tronco do lenho, em que os membros do Senhor estiveram cravados com pregos, de
quantas lágrimas, de quanta dor aí derramou, é testemunha o mesmo Senhor, a quem orava.
Finalmente, chegou ao local onde Helena encontrou a Vera Cruz. Depois de ter rezado,
conforme a devoção o ditava, pelos mencionados oratórios, o santo varão recolheu-se final-
cl corpore prostratus, quasi pendentem dominum cerne- meditandi memoria, quomodo scilicet post tanta que pertu
rcl, adorabat, Recordabatur mortis siue maledictionis sen lerat, in ipso sepulchro requieucrat, ac per illius descen
tentiam in se ct in omnem hominem prolatam per inobe- sum ad inferos, ineffabile magnumquo gaudium cogitabat
dicnciam primi hominis, Sed ct clementiam propiciacionis miserorum, quos captiuato mortis imperio chrislus ab infe
ac pietatis filii dei de quo legerat, factus pro nobis male ris sccum eduxerat. Inde iam ad medium mundi deducius,
dictum ut nos a maledicto redimeret, Qui loco eodem, quo iiidelicct loco ioscph abarimatya corpus domini, cum
sp u ta, probra, colaphos, alapas, spineam coronam, fla de cruce deposuit, antequam sepulcro locarclur, attendus
gella , cruccm , clauos, fel, acetum, lanceam, morlein-
que pertulerat. Explctaque oracione, ac pro consuetudi orabat, Memorans illud dauiticum : Deus autem rex nos
ne peregrinorum cruce, quam portabat, ibi deposita, des ter ante secula operatus est salutem in medio terro. De hinc
cendit paululum ad Icuam in golgatha locum, ubi, sicut in sinistram paululum se ad ucram cruccm conucrtit, ct ui-
fama est, de latere christi sanguis decurrens petram duris dens ligni stipitem, quo membra domini clauis aflixa fue
simam prerupit. De hinc breui spaciolo ad sepulchrum re rant, quid ibi lacrimarum, quod doloris effuderit, testis est
surrectionis conuersus, eluidens ipsum corporis locum, in ipse dominus, quem rogabat. Tandem uenit ubi helena ue-
quo dominus iacuerat, quasi sicicns desideratas aquas fidei ram repperit cruccm ; Cumque aliquandiu, prout deuolio
ore lambebat. Occurrebat sibi congrua de domino saluatore dictassct, per memorata oratoria uir sanctus orassct, poslrc-
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mente à hospedaria16. E, enquanto o seu espírito o levava pelo que vira todo aquele dia e
noite, dormiu e repousou na paz da sua alma.
No outro dia, quem poderá dizer com quanto cuidado e desejo percorreu, a rezar, os
santos lugares de Jerusalém? Entrou pois no templo do Senhor e, depois de ter feito oração,
saiu pela porta chamada Especiosa, e subiu a Sião, ao lugar exacto da Ceia, onde o Senhor
lavou os pés dos discípulos e disse “A paz seja convosco!”, e deu o lado a palpar ao discípulo
que duvidava. E foi aí também que desceu o Espírito Santo sobre cento e vinte almas de
crentes. E voltando pela Via Sacra, por onde os apóstolos levaram o corpo da Mãe de Deus,
entrou na igreja se S. Pedro do Canto do Galo, e no sepulcro de Tiago, irmão do Senhor,
desceu ao Vale de Josafat, orou junto do sepulcro da Virgem Santa Maria. Daí subiu até ao
oratório de Getsamani, onde o Senhor, no sopé do Monte das Oliveiras, orou ao Pai. Daí
avançou até ao sítio do qual o evangelista Lucas disse: “Afastou-se deles o espaço de uma
pedrada”17. Subiu a direito ao cimo do mesmo Monte das Oliveiras, de onde o Salvador
ascendeu aos céus. Daí foi pela aldeia de Betfagé e pelo lugar onde o poldro indómito recebeu
o freio do Senhor; desceu a Betânia, ao sepulcro de Lázaro e à casa hospitaleira das sua
irmãs.
Depois disto continuou para Belém e, entrando na pequena gruta do Salvador, adorou
suplicante o sagrado albergue da Virgem, em que Cristo nasceu; de modo semelhante, como
se se tratasse de um animal dotado de senso, o estábulo onde o boi conheceu o seu dono e o
burro a mangedoura do seu Senhor.
Viu também aí o lugar onde Herodes na sua fúria matou as criancinhas, em vez de
Cristo.
Para que hei-de contar com quanta devoção correu às águas do Jordão, maculadas pela
nódoa de todo o género humano, e purificadas pelo baptismo de Cristo? Também não passou
à frente o lugar da quarentena, onde o Salvador do mundo quis insinuar com a quaresma, ao
ser tentado por Santanás, que todo o tempo da nossa vida é milícia, em que nunca paramos
de ser tentados. Daí, passando pela fonte amaríssima, que outrora Eliseu adoçou com sua
sapiência, até Jericó, viu junto da estrada o local dos cegos que, ao receberam a vista, prefigu
ravam os mistérios de ambos os povos crentes no Senhor.
mo sc in hospicium recepit. Et dum mens cius tota dic illa iusdem montis oliucti, de quo saluator celos ascendit. In
ct nocte per ea que uiderat ducebatur, in pace inidipsum de per uiculum bclhfagc, ct locum, in quo lasciuiens pul
dormiuit ct requieuit. Altera ucro dic cum quanto studio lus domini frena suscepit, descendit in belhaniam ad sc
ac desiderio sancta iherosolimorum loca orando circumie pulchrum lazari, et hospicium sororum eius. Post hcc
rit, dicere quis potest ? Nam ingressus in templum domi perrexit bethlccm, et in speculum saluatoris introiens, sa
ni , ct post orationem per portam , que dicitur speciosa, crum uirginis diucrsorium , quo chrislus natus e s t, sup
egrediens, ascendit sion ad locum duntaxat cenc, ubi do pliciter adorauit, ct similiter tanquam prudens animal sta
minus pedes discipulorum lauit, et pax uobis d ix it, du- bulum ubi agnouit bos professorem suum, et asinus presepe
bilantiquo discipulo latus palpandum prebuit. Ibi etiam domini sui. Uidit ct locum ib i, quo scuicns herodes pro
super centum xx.‘ credentium animas spiritus sanctus des christo paruulos interfecit. Quid narrem cum quanta dc-
cendit. E t conucrsus per uiam sacram , qua dei genitri uocione ad iordanis aquas locius humani generis labo ma
cis corpus apostoli detulerunt, intrauit ecclesiam beati pé culatas, ct a christi babtismalc mundatas, concurrerit?
tri do galli cantu, ct ad scpulchrum iacobi fratris domini, Nec prctcrmisil locum quarenteno, ubi saluator mundi
dcsccnditque in uallcm iosaphat, orauit ad scpulchrum temptatus a sathana , totum milicie nostro tempus , qui
sancte marie uirginis, De quo ascendens transiuit ad ora nunquam temptari desistimus, quadragenario suo uoluit
torium gelhscmani, ubi dominus in radice montis oliucli insinuare. Inde per amarissimum fontem, quem olim he-
orauit ad patrem. Inde progressus ucnit in locum, de quo liseus sua dulcorauil sapiência, icricho pertransiens, ui
ait luchas euangelista : Auulsus est autem ab eis quantum dit iuxta uiam cecorum loca, qui receptis luminibus utrius-
iactus est lapidis. Itcctoque itinere subiit in ucrticcm e- que populi credentis in dominum sacramenta prcmiscrant.
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Seria muito demorado, se eu quisesse contar com que ardor percorreu Caná e Cafar-
naum, familiares aos milagres de Cristo, e dizer com quanta admiração viu o Lago Tibería-
des, que o Senhor santificou atravessando-o no transporte marítimo; e o local solitário, onde
com cinco pães e dois peixes muitos milhares ficaram saciados. Direi somente que em cada
um dos lugares santos julgava ver a Cristo, e que dava dos seus haveres, conforme podia,
para alívio das despesas, distribuía esmolas aos pobres, e o que a eles dava, alegrava-se por o
ter ofertado a Deus.
Tendo em conta a fadiga do leitor, pouco referi acerca dos Lugares Santos, que ele
percorreu com tanto cuidado, que ninguém o poderia arrancar dos primeiros, se não tivesse
pressa em ver os outros. Muitos foram os dias em que fez a sua mansão junto do sepulcro do
Senhor, devido ao ardor da sua fé, não para estar em repouso, mas para orar e trabalhar no
serviço de Deus. Atentando na sua santidade, os cónegos regulares do mesmo Sepulcro,
encomendavam-se com muito empenho às orações dele, e deram-lhe reciprocidade nos seus
benefícios. De bom grado o admitiam também na sua comunidade, se quisesse habitar com
eles, e lhe davam a custódia do sepulcro, coisa que eles haviam compreendido que desejava
acima de tudo. Dizia ele, porém, que de modo algum podia fazê-lo, se não voltasse primeiro
às Espanhas, a ordenar a sua casa.
Por conseguinte, encomendando-se a Deus omnipotente por toda a Jerusalém e em
toda a parte dos Santos Lugares, cada vez com mais afinco, despediu-se dos cónegos e de
todos os servos de Deus, e regressou a Jafa, onde anteriormente aportara. Daí foi arrastado
pela violência dos ventos pelas ilhas da Grécia, passou muitos trabalhos no percurso, ora nos
navios, ora a pé, ora transportado num burrinho; finalmente, moído e debilitado, regressou à
Hispânia, à sua casa e aos seus campos, para num futuro próximo voltar a Jerusalém e junto
do glorioso sepulcro muito devotamente aguardar o fim dos seus dias. Contudo, aí foi rece
bido pelos seus concidadãos com grande glória; e aqui encerrarei eu também o percurso da
primeira parte desta obra.
Longum csso si ucllcm enarraro quo ardore luslrauerit perunt. Communem etiam societatem uiuendi nolentes ei
chanaan et capharnaum , signorum christi familiares, et dabant, si cum illis habitare ucllct, et custodiam sepul-
dicere cum quanta ammiraliono uiderit lacum tyberiadis, chri : Quod cum pre omni negocio desiderare cognoucrant.
quem sub mcrccde nautica dominus transfretando sancli- Ille uero se hoc facere minime posse dicebat, nisi prius
ficauit, et solitudinem, in qua de quinque panibus et duo ad hispanias rediens, domui sue disponeret. Igitur per to
bus piscibus mulla milia saturata sunt. Uoc tantum di tam ilierosolimam ubique locorum sanctorum, iterum at
cam, quod per singula loca et sanctitates christum se ui- que iterum attentius se omnipotenti deo comendans, ca
dere credebat, et de facultatibus suis prout habero pote nonicis quoque et cunctis seniis dei ualc faciens, rcuer-
rat refrigeria sumptuum offerebat, elcmosinas pauperibus sus est ioppem, ubi prius appulerat. Unde nimietatibus
faciebat, et quicquid in illos conferebat contulisse in deum uentorum per insulas grecie dcueclus, multos in itinere la
letabatur. Lectoris fastidio consulens, pauca commcmora- bores passus siquidem nauibus, nunc pedibus, nunc asel
ui de sanctis locis, que illo tanto studio circuiuit, ut a
primis non posset abduci nisi ad reliqua festinaret. Die lo deportatus, attritus tandem et debilitatus ad domum
bus autcin mullis ad sepulcrum domini ex ardore fidei propriam agrosque in hispaniam rcmcauit : Futurum rur
mansionem habuit, non in refectione quidein, sed in ora sus ut in proximo ihcrusalcm rediret, et ad gloriosum scpul-
tione et dei opere. Cuius sanctitatem eiusdem sepulcri ca chrum, lioem dierum suorum deuotius expect aret. Ycrutn-
nonici regulares adtendentes, in eius orationibus attendus plamcn eo a ciuibus suis in magna gloria recepto, ego
se comcndarunt, cumque reciproce insuis beneficiis rece quoque hic prime partis huius operis spacium coartabo.
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de passar além-mar e, como já se adiantou, aguardar o fim dos seus dias junto do sepulcro do
Senhor. Eles, porém, contrapunham-lhe que era mais útil que ele vivesse nesta parte ocidental
do mundo, onde o nome de Cristo mal fora trazido, segundo a regra dos santos padres, e que
mostrasse aos homens ignaros a fórmula da vida honesta, do que ir a Jerusalém, à qual Deus
proporcionou a sua presença e com inúmeros milagres sanou a religião de toda a dúvida da
fé. Aquele lugar — diziam eles— viu Cristo menino envolto em paninhos a vagir no presépio,
a estrela que por cima brilhava, e ainda os Magos a adorarem a Deus, e os pastores a virem
durante a noite, para verem o Verbo feito carne. E deste modo lembravam ainda muitas
manifestações das virtudes do nosso Redentor. Como que vencido por elas, o homem de
Deus deu finalmente o seu assentimento e tornou-se companheiro deles e em tudo partilhou a
sua sorte. Sem detença, distribuiu fielmente os bens que no século adquirira por justos proces
sos. Uma parte dividiu-a pelos pobres; uma parte entregou-a à igreja de Viseu; e uma parte
ainda levou-a consigo para os haveres do futuro mosteiro, para que, daquilo que aos pobres
distribuirá, disso mesmo também ele vivesse, como pobre voluntário, ele que se arrolava no
número dos irmãos pobres, por amor da pobreza. Pobre em espírito18, seguia um Senhor
pobre. Deste modo se deserdava na terra, para se tornar herdeiro no céu.
E assim, na era de 1170, ou no ano da incarnação do Filho de Deus de 1132 entrou na
congregação, a saber, no tempo do ilustríssimo infante Afonso Henriques, filho do Conde
Henrique e da Rainha Teresa, que sendo então infante era senhor19 de Portugal, mas com o
andar dos tempos e pela generosidade divina, depois se tornou rei ilustre de quase tqda a
Lusitânia e de parte da Galiza. Firmados na sua autoridade e na do venerável Bernardo,
bispo de Coimbra, e confiados no conselho dos restantes homens bons de um e outro estado,
começaram a construir, nos supracitados banhos, um mosteiro em honra de Santa Cruz e da
Bem-aventurada Maria Mãe de Deus, no quarto dia antes das calendas de Julho20, na vigília
abeundi, et, ut premissum est, finem dierum suorum ad unde pauperibus subministraret , inde et ipso tanquam
sepulchrum domini prestolari. Ucrum ilii e contra utilius pauper uuluntarius uiueret, qui so in numero pauperum
esse memorabant in hao occidua mundi parle, ubi uix no fratrum paupertatis amore constituebat : Pauperem enim
men christi pcrlalum est, eum iuxla sanctorum patrum dominum pauper spiritu sequebatur, Qui ideo seexereda-
regulam uiuere, et ignaris hominibus formulam honeste bat in terra, ut heres inucnirctur in ceto, igitur sub Era
uite monstraro, quam iherosolimam ire , cui presentiam m .' c . ' l x x .*, vclab incarnatione (ilii dei anno m.Dxxx.°ii.# · ,
suam dominus exibuit, et innumeris miraculis totam re in unum conucncrunl, temporo uidclicct clarissimi infan
gionem ab omni fidei ambiguitate sanauit. Quo chrislum, tis A. hcnrici comitis ct regino tarasio filii, qui tunc in
inquiunt, infantem uidil pannis inuulutuni in presepe ua- fans dux porlugalis erat, sed processu temporis ct diuinl
gientem, stellam desuper fulgentem, magos pretcrca deum muneris largitate, post tocius pene lusitanic cl ex parte
adorantes, ct pastores nocic ucnicnlcs, ut uidercut ucr- gallecic rex est effectus illustris. Cuius auctoritate robo
bum quod factum /utfrat. In .hunc quoque muduiu etiam rati, et ucnerabilis B. colimbricnsis episcopi, ceterorum-
memorabant eiusdem nostri redemptoris plurima uirlutum quo bonorum utriusquo ordinis consilio freti, insupramc-
insignia. Quibus homo dei tanquam deuictus tandem as moralis balneis monasterium in honore sancto crucis cl bea
sensum prebuit, seque participem eorum cl consortem iu te dei genitricis m arie, construere ceperunt dic uu.° ka-
omnibus effecit. Nec mora, ea que in scculo iustis modis lendas iulii, in uigilia apostolorum petri cl pauli. Sexto
acquisierat, lidelilcr disponsnuil : Partem enim dispersit
pauperibus dedit, Partem uisicusi ccclcsic contulit, Par
tem quoque rebus futuri monasterii sccuin adiunxil. Ut • Lege xSc/xxxSii .9
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dos Apóstolos Pedro e Paulo. No dia sexto antes das calendas de Março seguinte21, no início
do jejum, foram armados cavaleiros de Cristo, com o propósito de viverem em comunidade,
como os apóstolos, sendo eles não iá doze mas bem setenta e dois. Se alguém desejar saber
mais pormenores sobre a localização do Mosteiro e suas isenções, leia-se a obra de Mestre D.
Pedro Alfardo. Para mim, seja suficiente ter feito esta breve narrativa, para revelar o caminho
e modo de conversão do homem de Deus.
Congregados assim os irmãos, foi conselho simultâneo e voz única de todos, com Eleição
grande aplauso de toda a comunidade, entregar o cargo a D. Teotónio. Muitas e repetidas para o
priorado
vezes se proclamou indigno do peso de tal encargo, mas a virtude da obediência se lhe opu
nha. Foi contra vontade e a contragosto que o aceitou, e logo todos, naqule mesmo lugar, o
confirmaram.
Sob a administração deste novo padre, a vasta piedade de Deus ilustrou com os dons Qualidades
do prior
da sua graça, em breve tempo, o novo mosteiro, nobilitou-o com homens bons e religiosos, e
não o tornou menos amplo em posses do que famoso em virtudes. Efectivamente, foi nos dias
dele celebérrimo em fama, muito iminente em religião. Foi nele que, para me referir a tudo o
que pertence a este tema, D. Teotónio se elevou maravilhosamente até ao cume da santidade.
Sobre as suas santíssimas acções, para que homem tão excelso não fique oculto, ele, que
deverá ser imitado por todos os modos, tratarei em poucas palavras e com brevidade,
havendo tanto que dizer. Ao expor este assunto, nada acrescento, nada exagero, à maneira
dos encomiastas, como quem quer ganhar as boas graças dos homens, mas dou graças por
que no nosso tempo merecemos ter um pai assim; temo-lo, de facto, pois em Deus tudo está
vivo. E, como diz S. Jerónimo22, tudo o que é levado para Deus conta-se no número da
família.
12. Ora desde o princípio começou a caminhar à frente dos outros com os grandes méritos
da sua vida, pela austeridade no viver, pela singularidade da abstinência e pela virtude da
porfiada oração, pois com frequência dirigia preces a Deus. Se alguma vez cessava de orar,
autem Kalcmlas inartii sequentis ia capite iciunii, non dit. Fuit enim in diebus cius fama celeberrimum, religio
iam xi;.“ sed ferme Lxx.aii.° armati sunt milites christi ne ualdc conspicuum, In quo ut id ad quod omnia quo
apostolorum proposito communiter uiuerc sub habitu et dicta sunt pertinent eloquar domnus Iheolonius ad culmen
regula beati aguslini. Siquis ucro do situ loci et libertate saaclitatis mirabiliter exercuit. De cuius sanctissimis acti
monasterii plenius nosso desiderauit, legat dictatum don- bus , ne tantus uir lateat, qui modis omnibus fuerit imi
ni petri alfarde magistri : Mihi autem hoc breuiler dixisse tandus , pauca de pluribus breuiter attingam. In quibus
sufliciat ad uiam modumque conucrsionis uiri dei patefa exponendis nichil addo, nichil in maius extollo moro lau
ciendam. Congregatis itaque fratribus, consilium simul et dantium , uel ut ab hominibus gratiam promereri uclim,
uox una omnium fuit cum omni gratulatione totius con sed gratias ago, quia nostris temporibus talem patrem ha
gregationis curam domino T. commi Itero. Cumquo ille ad bere meruimus, immo habemus. Deo enim uiuunl omnia,
tanti regiminis pondus iterum ac sepius so proclamaret in Et, ut ait beatus iheronimus, quicquid in deum transfer
dignum , uirlutc tandem obcdicnlie opposita, inuilus no- tur, in familio numero computatur.
lensquo suscepit, ceteris sub ipso in eodem loco firmanti 12. Itaque ab exordio magnis uile meritis ceteros anteiro
bus stabilitatem. Sub quo nouo patro nouum monasterium cepit grauitate uito , singularitate abstinendo, et uirlulo
magnis breui tempore larga dei pictas sue gratic muneri continuo orationis, frequentor enim deum precibus exora
bus illustrauit, bonis uiris et religiosis nobililauil, Nec mi bat. Si quando uero ab oratione cessabat, nunquam do
nus amplum possessionibus quam clarum uirtulibus red manibus cius sacra Icctiò deponebatur. Maxime tamen psal-
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nunca a sagrada leitura saía das suas mãos. Dedicava-se principalmente aos Salmos. Na
verdade, todos os dias, além das horas canónicas e do ofício divino, que executava com
perfeição, com temor e veneração divina, percorria todo o saltério, e depois ocupava-se dos
demais exercícios de boas obras ou de quaisquer tarefas úteis ao Mosteiro. Nunca se entre
gava às seduções do vício ou às vaidades do século, mas sempre aquele coração teve recolhi
mento, tranquilidade, silêncio e paz. Finalmente, fora do costume do nosso tempo, abaixara-
-se a uma tão grande humildade, que parecia desejar ser o mais pequeno de todos e o último
dos servos de Deus. Além disso, tanto o abrasara o fervor da instituição canónica, que pare
cia que a própria ordem lhe fugia e que por todo o mundo ele a procurava. Daí vem que por
esse motivo ele mandasse emissários a Compostela, e mais frequentemente além dos Montes
Pirenéus, ao Mosteiro de S. Rufo, certamente porque soubera que ele nisso estava à frente dos
demais.
Em congregação, o varão de tal modo vivia cheio de Deus com tal temperança e
compostura que nem no hábito, nem nas acções, nem no próprio caminhar se lhe via motivo
de repreensão, a ponto de nem um murmurador nem um caluniador poder notar nele, ao
vê-lo, qualquer coisa que antes ou depois não fosse segundo a regra, de tal maneira se tomara
cumpridor da sua regra. Muitos louvam nele as muitas ocupações, mais ainda as virtudes:
uns, a humildade, que é a primeira virtude dos cristãos; outros, a santidade, inocência, auste
ridade, religião e ardor da fé, que todos fizeram nele seu domicílio. Eu louvarei ainda
mais nele o facto de estar sempre ligado aos seus frades por um vínculo de caridade, que era
como se fosse de real irmandade. De facto, não pensava em os tratar como se fossem dele,
mas como o rebanho do Senhor. A todos servia por ofício de caridade. Se era preciso fazer
alguma coisa, não ordenava, mas exemplificava-a com toda a humildade e reverência.
Antecipava-se, por sua vez, em serviços, benefícios e honrarias. Não exigia o lugar superior.
Nunca mandava. Governava sem soberba. Nunca repreendia desabridamente. Contudo, se
visse alguém a prevaricar ou a proceder de modo alheio à dignidade, ou entregue a conversas
modie ojvcram dabat. Siquidem colidic prêter canonica' lur , in tantum ut ne susurronum quidem ucl criminato
oras cl diiiinuin o Ilici um, quod cum timore et ucneratio- rum quisquam occulis in eo posset notare, quid ante uel
no diuina competenter complebat, lotum psalterium pro retro regulariter non fuisset, adeo sui ordinis executor ef
currebat , dcindo ceteris bonorum operum oxerciliis, aut fectus erat. Mulli mullas in eo laudant occupationes inmo
quibuslibet utilitatibus monasterii uaccabat. Nullis unquam uirtutes. Alii humilitatem, quo prima Christianorum uir—
ditiorum illecebris autscculi uanilatibus incumbebat, Sed tus est. Alii sanctitatem , innocentiam, grauitalem, reli
semper illi cordi sccrolum, mansuetudo, silcnciumquc, et gionem, et ardorem fidei, quo omnia ineo domicilium si
pax fuit. Denique prêter consuetudinem nostri temporis in bi fecerant. Ego amplius laudabo in eo, quod cum fratri
tanta se humilitato deiccerat, ut minimus omnium appeti bus suis caritatis uinculo, uclul quadam germanitate, sem
uiderelur, et ultimus scruorum dei. Tanlus prole rea ca per astrictus erat. Non enim cos quasi proprios , ecd ut
nonice institutionis cum feruor accenderat, ut ipsum or domini gregem tractaro meminerat : Omnibus caritatis of
dinem, quasi toto orbe fugientem, persequi uiderelur. In ficio seruiebat. Si qua facienda erant, non prccipicbat, sed
do est quod huius rei gratiam misit ad conposlelam, fre demonstrabat cum omni humilitate cl rcucrcntia. Inuiccm
quentius ultra pircncos nvmtcs ad monasterium sancti ru cos obsequio beneficio, cl honoro prcucniebal. Superio
fi , quod uidcliccl inidipsum celeris prostare cognouerat. rem locum non exigetat. Nunquam imperabat. Sino su
In congregatione autem uir deo plenus sic uiucbat, et ita perbia gubernabat. Nunquam temero reprehendebat. At
temperatus cl modificatus erat, ut nec in habitu suo, nec tamen si quos deliquentes, aut secus quam dignum erat
in actu, aut etiam in ipso incessu reprehensibilis uidere agere uidissct, aut uanis confabulationibus uacantcs repe-
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vãs, por zelo da rectidão, censurava-o e castigava-o igualmente. E por vezes corrigia-os assim
severamente para incutir terror nos outros, principalmente nos jovens, a fim de que não
tentassem fazer nada do género, mas antes se emendassem e caminhassem para serem melho
res. Antes, contudo, conforme disse, advertia-os secretamente, com o piedoso afecto de um
pai, e castigava-os. Assim, pois, com a censura canónica, punia os desobedientes, e aos que
eram obedientes incitava-os a melhorarem. Se por acaso sabia que alguns se tinham exaltado,
concertava-os com palavras muito brandas, de acordo com o Evangelho, lembrando com
frequência aquele dito de Apóstolo: “Que o Sol não se ponha sobre a vossa ira”23. Coisa que
lhe vimos cumprir consigo mesmo, até ao dia da sua morte. Pois, se a necessidade da disci
plina contra alguém, para lhe morigerar os costumes, o obrigava a dizer palavras duras, logo
antes do ocaso do Sol se apaziguava com ele, com fraterna piedade. Assim enformava a todos
com o exemplo da sua vida.
13. Mas, como o bom pregoeiro nos arraiais do Senhor, não cessava de os enformar na
arte de viver bem, com o óleo da exortação e da edificação. Já que haviam abandonado a
milícia do século, mantivessem o caminho recto de Cristo, não desfeassem o dom da religião,
que divinamente lhes fora outorgado, nem com vícios nem com pensamentos torpes, mas
antes o adornassem com a humildade, a sobriedade e os restantes ornamentos das santas
virtudes. Que rogassem a Deus pelos seus delitos e pelos do povo, que executassem com toda
a devoção e veneração o trabalho do serviço divino, a fim de, tendo, não só para com Deus,
mas também da parte daqueles que estão de fora, um bom testemunho, em tudo servirem
fielmente ao seu Senhor, em cuja honra se haviam reunido em congregação, a saber, cada um
no seu ofício, para louvor e glória do nome de Deus e utilidade do próximo, para, segundo as
palavras do Apóstolo24, serem membros uns dos outros, e assim se esforçarem por serem
verdadeiros pobres de Cristo, a fim de se tornarem participantes da verdadeira felicidade. Que
todos dessem mostras a todos de religião, guardassem inviolavelmente a paz e a concórdia e
assim permanecessem até ao fim no santo propósito. E também me lembra perfeitamente que
risset, zelo rectitudinis pariter arguebat cl castigabat. El uiuendum informare. Ut qui iam scculi miliciam derelique
quandoquo ita seucriter corrigebat, ut celeris maxime iu- rant , rectum christi iter tenerent, donum religionis sibi
ucnibus terrorem incuteret, ne quid tale agere pcrlcmpta- diuinilus collatum, nec uitiis nec etiam turpibus cogita
rent, sed potius emendati in melius proficerent. Prius ta tionibus fodarent, quin potius illud humilitate, sobrietate
men eos, ut dictum e s t, secreta ammonitiono pio patris cctcrisquc ornamentis sanctarum uirtulum exornarent. Pro
affectu castigabat. Sic igitur canonica censura et in obe suis populorumquc delictis deum exorarent, cum omni do-
dientes corripiebat, et obedientes ad meliora prouocabat. uotionc cl ucncrationc diuinc seruitutis opus peragerent,
Si forte aliquos inter se coinmouissc cognoscebat, iuxla quatinus non solum ergo deum sed cl ab bis qui foris sunt
euangelium eos sermono lenissimo fcderabnt, assiduo me
morans illud apostoli : Sol non occidat super iracundiam bonum testimonium habentes, domino suo, ad cuius ho
uestram. Quod çum in se ipso usque ad diem obitus sui norem congregati essent, in omnibus fideliter deseruirent,
complesse uidimiis. Si enim contra aliquem in moribus unusquisque uidcliccl de ofiicio suo ad laudem cl gloriam
cohercendis necessitas discipline cum dura uerba diccro nominis dei, et utilitatem proximi, vt iuxla apostolum
compellebat, slatim ante solis occasum se cum eo frater singuli essent alter alterius mcnbra, cl sic ucri pauperes
na pietate pacificabat. Sic cunctos uile sue informabat ex christi esse contenderent, ut ucrc bcalitudinis participes
emplo. edicerentur. Omnes omnibus religionem exiberent, pa
13. Sed cltanqunm bonus exortator in castris domini, cem et concordiam inuiolabililcr custodirent, cl ita usquo
non cessabat oleo exortationis et cdificationis cos ad bene in finem in sancio proposito permanerent. Sepe etiam tam-
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muitas vezes adaptava a sua prática como quem fala com os mais novos, dizendo: “Eia,
filhinhos! é preciso afligir o corpo, que no século se entregou a muitas coisas vãs. É preciso
refrear a língua, que a todo o tempo desliza propensa ao pecado, se não for diligentemente
guardada.” E acrescentava que o rico que servira a loquacidade estava no inferno e lhe ardia a
língua com toda a força. E aquele dito: “A morte e a vida estão nas mãos da língua”. Lem
brava frequentemente que admitir o riso se devia compensar com o choro, “para que possa
mos rir”—dizia — “no último dia”25. Além disso, aconselhava, repetidamente a misturá-lo, se
gundo Salomão26, com dor, a refrear das conversas ociosas o ouvido tanto como a língua, a
fim de não terem contra o próximo inveja, mentiras, murmurações, soberba, ódio ou ira. Para
cada um destes pecados aduzia exemplos da divina autoridade, dizendo: “Porque foi pela
inveja do diabo que a morte entrou no globo terrestre. E a boca que mente mata a alma. E o
que rebaixa o seu irmão será exterminado. Deus resiste aos soberbos, mas aos humildes dá a
sua graça; e quem odeia o seu irmão é homicida e permanece nas trevas”27. E novamente dizia
que pelo ódio se perde aquela utilidade e alegria da qual diz o bem-aventurado David: “Eis
como é bom e jucundo que os irmãos vivam unidos!”28 E é por ele que se expulsa Cristo, que
é a verdadeira sabedoria. Porque na alma malévola não entrará a sabedoria. Além disso
ameaçava-os com o terror do juízo que há-de vir e apresentava-lhes a doçura do reino celeste,
esforçando-se por todos os modos por que corrigissem a sua vida, por que a sua conversa
fosse pudica, o andar honesto, a aparência humilde, a língua afável, a mente cheia de amor e
as mãos, de actividade. Com exortações destas e outras semelhantes, o pai espiritual fortalecia
com assiduidade as mentes dos súbditos e tornava-os cada vez mais prontos e devotos em dar
os divinos louvores e em observar a sua regra. Certo é que todas estas palavras eram proferi
das, não com grandiloquência, mas em termos simples e, por assim dizer, com uma santa
rusticidade, que é por vezes mais eficaz do que a mundana filosofia, e mais necessária para a
edificação dos frades.
quam ad minores liable enim memini conucrlcbat sermo nebris manet. Et iterum dicebat quod per odium amitti
nem ; Eia, inquiens, filioli, affligendum esi corpus, quod tur utilitas et iocunditas illa , de qua ait beatus dauid :
in scculo mullis uacauil unnitalibus. Lingua cohibenda , Ecce quam bonum et quam iocundum habitaro fratres in
que omni (empore prona labilur ad peccatum nisi diligen unum. Et per illud expellitur chrislus qui est ucra sapiên
ter custodiatur, et addebat quia diucs locacitali seruie cia. Quia in maliuolam animam non introibit sapientia.
rat, in inferno positus uebementius in lingua ardebat. Et Prcterea intentabat cis cl terrorem uenturi iudilii, et pro
illud ; mors et uita in manibus lingue. Risum quoquo per ponebat dulcedinem regni cclcstis, modis omnibus sata
peti compensandum esse fletu assidue memorabat, vt ri gens, ut uitam suam corrigerent, ut sermo esset pudicus,
deamus, inquiens, in dic nonissimo, alioquin iuxta Salo incessus honestus, uultus humilis, lingua affabilis, mens
monem dolori misceri frequenter monebat, ut ab ociosis plena dilectione, cl manus operatione. Talibus igitur ex-
sermocinationibus auditum pariter castigarent et linguam, orlationibus cl similibus spiritualis paler mentes subdito
\ l inuidiam, mendatium, detractionem, superbiam, odium rum assidue muniebat, ct eos magis ac magis in pcrsol-
uel iracundiam contra proximum non haberent. Et nd hec uendis diuinis laudibus et in ordine suo custodiendo prom-
singula diuine auctoritatis subicicbal exempla dicens : Quia tiores ac dcuociorcs cfllciebat. Que quidem omnia non
inuidia diaboli mors inlroiuit in orbem terrarum. Et os grandi eloquentia, sed simplici sermone proferebat, ct, ut
quod mentitur occidit animam. Et qui dcirait fratri suo ita dicam, sancta rusticitate, quo interdum mundana phi
eradicabitur, cl deus superbis resistit humilibus autem dat losophia cflicaliorcm, cl magis necessaria ad edifleationum
gratiam, et qui odit fratrem suum homicida est et in te fratrum.
26
199
14. E não era só nos assuntos espirituais que conservava tão grande aplicação, mas Cuidados
temporais
também nos temporais servia diligentemente aos frades provas da sua solicitude e providência
e auxílios terrenos, com caridade e em tempo oportuno. Mas, para dar um breve resumo
deste assunto: de tal modo geria com multhnoda solicitude a alimentação do rebanho do
Senhor, isto é, administrava à família de Cristo a comida espiritual como a temporal, que em
tudo se parecia com aquele servo fiel e prudente do Evangelho, que o Senhor pôs a tomar
conta da sua família29.
15. Para que contarei com que piedosa consideração recomendava que se amparassem
os velhos débeis, de acordo com a incapacidade das suas forças, e se honrassem zelosamente,
e não só recomendava, como ele mesmo os amparava e honrava? Os meninos e adolescentes,
que eram criados na congregação, acolhia-os com suma piedade, corrigia-os sem agravo e
castigava-os sem crueldade. Por esses velava com tão engenhosa indústria e de tal modo os
cingia com a disciplina eclesiástica que a sua idade folgazã não encontrava nenhum espaço
por onde pudesse incorrer em crime de pecado.
16. Para que lembrar a sua clemência e diligência para com os doentes, que fazia
acalentar com espantosos obséquios e serviços, que aliviava com o benefício da sua visita e
com a doçura do seu rosto, a quem aplicava um cuidado vigilante acima de tudo e servia
quase como se fosse a Cristo? Mandava-lhes, com efeito, ministrar, fiel e diligentemente, tudo
o que era necessário ao sustento das diversas doenças, com toda a observância. E frequente-
mente costumava dizer aos frades: “Filhinhos, pessoas assim se hão-de sofrer, porque é com
elas que sem dúvida se adquire a suprema retribuição”.
Não fazia acepção de pessoas, mas tinha a piedosa e necessária consideração pelas Austeri
dade de
enfermidades. Dando ele generosamente tudo aos outros doentes, se alguma vez ficava vida
enfermo, não tinha indulgência para consigo, não desejava alimentos delicados ou raros, nem
cuidados em demasia ou lautamente preparados, mas, desprezando com grande constância as
delícias e luxo da alimentação, tomava apenas — coisa que muitas vezes vimos — cebola
14. Nec in spiritualibus solum tam egregium conser- etas nullum posset reperire locum, quo in peccati facinus
uabat studium, sed in carnalibus quoque plurima sollici prorueret.
tudinis ac prouidentie sue documenta subsidiaque terrena 1G. Quid memorem, clementiam cius et sedulitatem in
prostabat fratribus diligenter et cum caritate et opportu egrotantes, quos miris obsequiis et ministeriis confoueri
no in tempore. Ut autem huius rei summam breuiter at faciebat gratia uisilalionis, ct dulcedine sui oris sublcua-
tingam , sic pastionem dominici gregis multimoda sollici bat, quibus supra omnia peruigilem curam adhibebat, ct
tudine gerebat, hoc est familic chrisli utramque annonant quasi chrislo scruicbal? Quccumquc enim sustentationi
spiritualem uidclicet cl carnalem ita subministrabat, ut diucrsarum inGrmitatum necessaria erant, omni obscruan-
iam per omnia uidcrclur euangelicus ille senius fidelis et tia fideliter ac diligenter illis amministrari iubebat. Fre
prudens, quem constituit dominus super familiam suam. quenter quippe fratribus dicero solebat : o filioli, huius-
15. Quid rclTcram quam pia consideratione senes ac modi portandi sunt quia de talibus superna retributio in
debiles secundum uirium inbccillitatem supportare, ac dubitanter adquiritur. Nec erat apud eum personarum ac
dcligentcr honoraro prccipicbat, cl prccipicndo supportabat ceptio , sed infirmitatum pia ct necessaria consideratio.
ot honorabat? Pueros uero et adolescentes, qui in con Cumque aliis languentibus large preberet omnia, si quan
gregatione nutriobanlur, cum summa pietate foucbat, si do ipse egrotasset, sibi non indulgcbat, non delicata ucl
ne contumelia corripiebat, sine crudclitato castigabat. Cir insolita ciborum genera concupiscebat, nec nimis accura
ca quos ita sollerter cius inuigilabat industria, et ita eos te cl lauto prcparala, sed magna constantia delicias ct lu
ecclesiasticis constringebat disciplinis, ut eorum lasciua xum ciborum aspernans, quod sepe uidimus assatum cc-
27
200
assada com sal, ou alimentos absolutamente moderados e frugais. E porque hei-de contar
como se comportava quando estava doente, quando, mesmo com saúde, sempre teve uma
admirável e inimitável parcimónia na alimentação? Nunca ultrapassou as metas da tempe
rança contra a honestidade ou além da necessidade. Nunca se esqueceu da sua disciplina,
nunca se esqueceu da sua honestidade, sempre se serviu dos alimentos comuns no refeitório
com os irmãos, tomando mais parca quantidade de comida do que qualquer outro, pois a sua
bondade congénita e o rigor da sua disciplina nele extinguira por completo toda a gula
desaforada. Nunca quis ir para a enfermaria, fosse qual fosse o empenho com que a isso o
solicitavam os frades todos. Nunca fez uma sangria, nunca aceitou nenhuma poção, por mais
ligeira que fosse. Neste ponto mostrava-se, porém, desigual, pois a clemência que com os
outros todos, a saber, sãos e doentes e débeis, usava, para consigo mudava-a em dureza.
Nesta questão foi muito renitente, e não se poupava nem dava crédito às advertências dos
outros.
Libertação
dos cativos
17. Que afecto de compaixão teve também para com os desgraçados e até que ponto
moçárabes era piedoso, disso é indício este simples facto: Quando Afonso, nobre infante de Portugal,
conduziu o exército paras as partes mais remotas da Hispânia, adjacentes à grande cidade
chamada Sevilha e saqueou quase toda a província dos Sarracenos, os guerreiros dele fizeram
igualmente cativos, no meio daquela infinita presa, certa raça de cristãos, a que o vulgo
costuma chamar moçárabes, e que aí estavam detidos sob a jurisdição dos pagãos, mas que
de alguma maneira observavam o rito cristão, e, segundo os direitos de guerra, submeteram-
-nos à escravidão. Assim que isto ouviu, o varão cheio de Deus condoeu-se profundamente; e
ele, que nunca saía do claustro, nem sequer até à porta exterior do Mosteiro, ardendo em zelo
de fé, saiu ao encontro do rei e de todo o exército e disse: “Ó rei e barões todos, que sois
filhos da Santa Madre Igreja, porque submeteis irmãos vossos à condição de escravos e
escravas? Pecais nisto contra o Senhor vosso Deus!” E, depois de lhes ter feito uma extensa
alocução, como devia, e porque, se os não deixassem ir embora livres, incorreriam numa
grande fúria do Senhor, o rei e todos os guerreiros soltaram toda aquela espécie de homens e
pe cum sale lanium sumebat, aut omnino parcos cl fru dicium est. Quod cum alfonsus, nobilis infans portuga
gales cibos. Et cur ista de eo cgrolanlc loquar cum clin- is, uersus remociores hispanie parles, que metropoli ad-
sospitate miram semper ct inimitabilem ciliorum habuit accnt, que hispalis dicitur, ducto exercitu, pene totam
parsimoniam ? Numquam metas Icinperantic contra hones sarraccnorum prouinciam depredatus fuisset; uiri bella
tatem, ucl supra necessitatem transiliit. Numquam disci tores cius inter infinitam predam, quaudain Christianorum
pline sue, numquam honestatis oblitus fuerit, semper cum gentem, quos uulgo mozarabes uocitanl, inibi sub ditione
fratribus suis communium ciborum usum in refectorio ha paganorum detentos, sed tamen utcumquo Christiani no
bens, ct parlius do cibo suo quam quis alius sumens. Na- minis ritum obscruantcs, pariter captiuarunt, atque iuro
(iua quippe bonitas eius ct rigor discipline cunctas in eo bellantium serui tuti subrogarunt. Quo uir deo plenus au
pelulancic gulas omnino cxlinxcrat. Nunquam ad domum dito ualde condoluit, ct qui nunquam nc ad exteriorem
infirmorum, quamuis diligenter omnium fratrum precibus quidem portam monasterii dc claustro exierit, infcrucsccn-
exoratus, iro uoluit. Nunquam sanguinem m inuit, nun te zelo lidei, egressus obuiam regi, ct cuncto exercitui,
quam ucl lcuissimam potionem aliquando accepit. In eo dixit : O rex, inquietis, et cuncti baroues, qui sancte ma
autem inequalis uidcbalur, quid in aliis omnibus sanis ui- tris ccclesic filii estis, cur fratres ucstros uubis in seruos
dclicct, infirmis, ct debilibus clementiam, in se duriciam et ancillas subiugatis? Peccatis enim super hoc domino
commutabat. In hac ro pcrlinatior fuit, ut sibi non par deo ucstro. Cumque > prout debuit, compendiose tarnen
ceret, ut nulli crederet admonenti. cos allocutus fuisset, ctquod, nisi eos liberos dimisissent,
17. Qualem etiam compassionis aiïcctum erga miseros magnus eis furor domini immineret, rex et cuucti bella
habuerit, quamquam pius extiterit, uel hcc res sola in tores totum illud genus hominum dimiserunt, et coram
28
201
em certa ocasião, em que o supradito infante de Portugal ardia em febres intensas, e come Henriques
çava a ficar muito acabrunhado pelo muito que a febre apertava, e clamava, não já em alta
voz, mas aos gritos, que estava a soltar a alma, por último pediu ansiosamente a visita do
homem de Deus, como derradeiro remédio. Ungiu-o com o óleo da divina exortação e tocou-
-lhe, clemente, com a dextra. E — coisa admirável!— logo o ardor começou a arrefecer aos
poucos e recebeu o refrigério da saúde. Tão grande foi a virtude divinamente infundida pela
presença dele, que logo na mesma hora pôde receber, sem lhe fazer mal, o alimento de que há
muitos dias carecia.
19. Além disso, quando já pela sua invicta valentia nos recontros marciais, assim como — Rainha
D. Mafalda
pela sua ilustre nobreza, merecidamente lhe chamavam rei, e a sua mulher, a Rainha
Mafalda, filha do Conde Amadeu, estava em perigo de morte, devido à dificuldade do parto,
sendo ela sensata e fundada na firmeza da fé, só encontrou em seu poder, depois de Deus,
esta solução, de que, se merecesse ser abençoada pelo santo varão, imediatamente lhe acudiria
o remédio do Omnipotente. Nobres varões o chamaram, portanto, para vir junto dela. Assim
que traçou o sinal da cruz e a abençoou em virtude de Deus, imediatamente gerou um filho a
seus pés, e logo, transformada numa mãe feliz pelo bom nascimento do filho, foi miraculosa-
mente restituída à saúde.
co liberum abire permiserunt. Prclerco, no superfluus ui- medium anxie quesiuit. À quo cum diuinc cxortalionis
dear, quam honesto nobilis dux cl obtimates, cius obuiam oleo fuisset infusus, ciusquc dextera clementer attactus,'
quoque ucnicntcs, cum susceperunt. Descenderunt quip mira re s, protinus feruorc paulalim tepescente , refrige
pe de equitaturis su is, co descendente, et eius manum rium salutis accepit. Tanlaquc in cius presencia uirlus ei
suppliciter osculantes, promittebant uolcntcs quicquid pos- diuinitus collala est, ut statim hora eadem cibum quo dic-
tulassot ab cis. Igitur per studium illius libentis a serui- ; bus mullis carucral, incolumis acceperit.
tute plusquam mille hominibus, exceptis uxoribus ct par- 19. Pretcrca cum iam ob inuicli6simnm cius in marliir
uulis, quicuraquc de gente illa colimbric esse uulucrunt, congressionibus strcmilatcm, pariter ct illustrem nobilita
locum habitandi circa monasterium sanctus dedit, cosquc tem, merito rex uocarctur, ct uxor eius mahalda regina,
per annos plurimos de annona monasterii pauit, ulpotc
inbccillcs ct legitima terre ignorantes. comitis amedei filia, ob difficultatem partus iam morti
18. Gratiam quoque curationis nichilominus ineo fuis- proxima periclitaretur, prout erat sapiens femina fideique
so ex hoc iam patenter agnouimus, quod pretor multa be firmitate fundata, hoc solum postdeuin penes sc consilium
neficia ct diuersorum morborum remedia, quo ah illo ex inuenit, quatinus si mereretur a sancto consignari u iro ,
pedimus , cum quodam tempore profatus infans portuga- protinus ei omnipotentis remedium subucnircl. Vocatus
lis inmensis febribus estuasset, et pre nimia febrium an igitur per nobiles uiros ad cani ucnil. Cum autem edito
xietate uchementer urgeri cepisset, magnisque non iam cnicis signo eam in dei uirlulc consignasse^ protinus au-
uocibus, sed stridoribus in extremo spiritu sc constitutum te pedes eius filium gcncrauit, moxque de nati filii offi
esse clam aret, uisitationem tamlem uiri dei ultimum re cio Icta malcr effecta, mirabiliter sanitati restituta est. Uc-
29
202
Contudo, algumas vezes sofreu graves perseguições da parte dela, por lhe ter negado a
entrada na clausura, observando em tudo o rigor da sua ordem. Efectivamente, certo dia a
rainha veio para o visitar, e queria por todos os modos ver a clausura por dentro; o Prior
resistiu-lhe brandamente, dizendo que lá dentro havia outra rainha; e que não era próprio da
ordem nem dos costumes aceites, que uma mulher entrasse no habitáculo dos que fugiam do
mundo, a menos que estivesse defunta; nem era das atribuições de uma rainha, pois tal não
seria contado em glória pelo Senhor Deus. Apresentava-lhe o exemplo do Rei Ozias30, que,
por isso mesmo, de ter querido entrar no templo do Senhor e queimar o incenso, logo foi x
tocado de lepra, e leproso permaneceu até ao dia da sua morte. Enfim, era tal o zelo da sua
ordem que lhe dominava o espírito que com o vigor e autoridade do Espírito Santo se opôs
intrepidamente à presunção da rainha. Preferiu aquele santíssimo varão sucumbir ao ódio da
fúria dela a que se fizesse alguma vez tal abuso da clausura. Fazendo assim, deixou-nos como
possessão hereditária uma fórmula de vida honesta.
— O monge 20. Foi também de tanta e tão manifesta santidade, que até os espíritos malignos por
Samuel
vezes visivelmente o temiam. Vou contar um facto maravilhoso, mas contudo verdadeiro:
Certo monge inglês, chamado Samuel, veio em tempos na armada francesa que, juntamente
com o rei de Portucale, tomou a cidade de Lisboa, por dádiva de Deus. Foi ele atacado por
umá doença corporal, e trazido a este Mosteiro de Coimbra do homem de Deus. Chegara ao
extremo de ver espíritos terríveis e muito negros a lançar nele dardos, cruelmente e sem
cessar, e a ameaçá-lo com veemência. Com o pavor da sua tétrica imagem, voltava-se para
um lado e para o outro. Muitas vezes, com o olhar turvo, caía do leito, sem poder suportar a
vista deles; isto contava ele aos presentes, com a voz alterada. Na verdade, esses não podiam
ver os espíritos malignos, mas reconheciam a sua presença na palidez e tremuras daquele que
perturbavam. Quando porém, pela sua bondade, o santíssimo varão vinha ter com ele, de
imediato os espíritos malignos se ocultavam e, desaparecendo pelos ares ligeiros, em parte
alguma compareciam, segundo o testemunho do monge. Este facto dá claramente a entender
que os demónios temiam a sua presença.
rumplamen graues aliquando persecutiones ab ca sustinuit, 20. Tante quoque sanctitatis fuit et tam manifeste,
eo quod illi ingressum claustri ncgaucrit, scruato per om quod etiam maligni spiritus eum uisibililcr aliquando ti
nia sui ordinis rigore. Nam cum dic quadam ad cum Eli merent. Rem quidem m iram , sed tamen ueram loquar.
dendum regina ucnissct, et modis omnibus claustrum in Monachus quidam dcanglia, nomino samucl, affuit quon
terius uidere uoluissct, prior blande tamen restitit dicens, dam in nauali collectione exercitus francorum , qui cum
aliam intus esse reginam. Nec esse ordinis, nec approba rege portugalensium ulixboncnsem urbem deo donante ce
to consuetudinis, feminam habitaculum mundum fugien perunt. Uic autem corporali molestia percussus, ad hoc
tium ingredi, nisi forte defunctam. Nec rcginc oilicii es colimbricnsc monasterium uiri dei perductus est. Qui ad
se, quia non reputaretur illi ad gloriam hoc a domino extremum ucnicns, uidebat tetros ct nigerrimos spiritus
deo. Proponebat ei ozic regis exemplum, qui iccirco, quod in se crudeliter cl indesinenter spicula spargere, cl uchc-
mcnler inmincrc. Pauore autem tetre eorum imaginis huc
in templum domini uoluit intrare, et incensum adolerc, illueque ucrtcbalur« Sepe toruis luminibus cadebat de Ic»
statim lepra percussus est, usque ad diem mortis sue le clo, aspectum eorum ferre non poterat» cl turbatis uoci-
prosus permanens. Tanla denique mentem illius ordiuis bus hoc sibi astantibus rcffercbal. Non cniin ipsi malignos
cmulalio possidebat, ut uigore et auctoritate spiritus san spiritus uidero poterant, sed eorum presentiam, in pallo
cti regine intrepidus obsisteret presumenti. Maluilquo uir re ac tremore illius, qui turbatur, uidebant. Cum autem
beatissimus illius furentis succuiubcro odio, quam talis humanitatis gratia ad eum uir beatissimus ucnicbat» mox
aliquando claustri fieret abusio. In hoc igitur facto reli maligni spiritus delitescentes, ctper tenues auras cuancs-
quit nobis tanquam hereditariam possessiouem formulam centcs nusquam teste monacho comparebanL Per quod pa
honeste uite. tenter inlelligi datur, demones presentiam eius expauisse.
30
203
21. Muitas vezes, a partir do caso deste monge, nos exortava, com piedoso afecto de
pai, a perseverarmos na nossa vocação e nas cadeias da obediência. Dizia pois: “Se este
monge, que vinha devido a qualquer licença do seu abade, pois tinha consigo, em todo o
caso, cartas de recomendação, assim foi expulso da morada da sua carne, que será feito
daqueles que, dando a mão à leviandade e mobilidade do espírito, se dividem por questões e
escândalos, e por desobediência saem do seu mosteiro? Por isso tende cuidado, ó filhos, não
rebaixeis o jugo do Senhor, que é leve e suave31, não lanceis fora as algemas de Cristo. Pois o
diabo anda em volta, procurando a quem devorar32, e atormenta e destrói miseravelmente
quem , por desobediência, foge da sua congregação.
22. Pena semelhante afligia um leigo professo no Mosteiro, pois que via sem cessar e — O Ieigo
sem interrupção a sombra de um etíope muito negro que, de arco distendido, lhe atirava setas professo
com força e apontava com vozes desordenadas o inimigo que estava na parte contrária da
parede e o mostrava com o dedo, apesar de os frades não o poderem distinguir. O desgraçado
era mais atormentado pelo pavor do que pela doença. Porém, todas as vezes que o santo
vinha junto dele, o diabo guardava imediatamente o arco, e logo se escondia, não ousando
atirar-lhe dardos na sua presença. Sabendo disto, o homem de Deus, como quem conhecia
por que motivo expiava tão horrível castigo, disse-lhe: “Confessa, miserável, confessa o mal
de adultério em que incorreste.’Tacto que logo se tornou evidente e manifesto, conforme o
Prior dissera.
23. Além disso, havia no Mosteiro um frade profundamente devoto, que o inimigo do — O frade
possesso
género humano logo no começo da sua conversão se acostumara a atormentar. Sucedeu certo
dia que, como o pai espiritual estivesse sentado, devido à sua fraqueza, na igreja, fora do
coro, e percebesse que o supradito frade, por acaso perto, estava a ser atormentado pelo seu
inimigo, — pois ainda não o havia visto sofrer — logo tomou fielmente a dextra do frade e
ameaçou o espírito malvado, dizendo-lhe: “Sai, espírito imundo, em nome de Jesus Cristo, e
21. Sepo autem cx occasione huius monachi nos ad per·» c regione contra murum inordinatis uocibus indicabat, di
scucranciam uocationis nostre, cl calhcnam obedientio, gito etiam ostendebat quamuis cum fratres minime uidero
pio nos patris orlabatur affectu. Dicebat enim : Si mona potuissent. Crucicbatur miser plus pauorc quam infirmi
chus iste« qui per qualcmcumquc sui abbatis licenciam ue- tate. Quocicns autem ad cum sanctus ueniebat, arcum
niebat, habebat enim sccum utcumque comendaticias lit protinus diabolus remittens, mox se abscondebat, nec ii
teras, de habitaculo sue camis sic cuulsus est ; quid Get do cius quidem prcscnlia iaculari eum audebat. Quo cogni
illis, qui lcuitati et mobilitati mentis manum dantes, per to , uir d ei, tanquam sciens pro qua causa tam orribiles
lites ct scandala diuiduntur, et per ino bedient ia m a mo lucret penas, dixit ad cum : Confitere miser, confitere,
nasterio suo recedunt ? Proplcrca ergo caucto uobis, o fi inquit, ruinam adulteriP, quam lapsus es. Que res proti
nus cuidens ct perspicua facta est, sicut prior dixerat.
li, ne iugum domini Icuc obtrectetis et suauc, ne compe
des christi abiciatis. Circuit enim diabolus querens quem 23. Erat prctcrca frater quidam in monasterio ualdc
deuotus, quem humani generis inimicus mox in inicic
deuoret, clcos, qui de congregatione sua inobedientes fu conucrsionis sue uexare consucucrat. Accidit dic quadam
giunt, miserabiliter cruciat ct extinguit. cum pater spiritualis extra chorum in ecclesia tamen de-
22. Simili quoque pena quidam professus laicus affli bililalis causa sederet, ct prcdiclum fratrem ab hoste suo
gebatur in monasterio. Siquidem uidebat iugiler ct sino forte circa uexari cognouissct, nondum enim illum pati
intermissione umbram cuiusdam nigerrimi cthiopis, qui uiderat, mox fideliter apprehensa fratris dexhya spiritum
cum uchcmcntcr extento arcu sagittabat, hostemque suum nequam cominando dixit: Exi spiritus inmundc in nomi-
31
204
pela virtude do Espírito Santo te ordeno que não perturbes mais o servo de Deus.” O invete
rado inimigo saiu de imediato e desde aquela hora nunca mais ousou tentar o servo de Deus.
Muitas vezes vimos alguns frades doentes serem prontamente restituídos à saúde, quando ele
orava e se ajoelhava em favor deles.
A viagem 24. Quereis saber quanta solicitude tinha por aqueles que andavam em viagem ou
de Honório
quanto valiam as suas orações junto de Deus omnipotente? Tinha havido uma razão pela
qual o presbítero Honório, um dos primeiros entre os mais antigos, de que acima se fez
menção, teve de ser mandado a Lisboa, levando consigo a soma de seiscentos soldos, para se
construir a igreja do mártir S. Vicente, que fica fora das muralhas da mesma cidade, segundo
constava do mandato real. Naquela solidão que fica entre Coimbra e Santarém, foi ele apri
sionado por ladrões sarracenos, e levado cativo à cidade de Eivas. Ora a infanda notícia e o
penoso rumor abalou todos os frades do Mosteiro. Mas também por toda a cidade havia não
pequena tristeza. Porém o Santo, que era quem tinha sido tomado pela maior tristeza, pela
qual se manifestava a dor do coração, falou com diligência a todos os frades, para que em
tudo fossem solícitos em relação ao seu companheiro, e com ele sofressem, segundo o que diz
o Apóstolo33: “Quando um membro sofre, devem os restantes sofrer também com ele”, e que
com fé pedissem por ele nas suas orações Àquele que disse aos seus discípulos: “Aquilo que
pedirdes com fé nas vossas orações, recebê-lo-eis34”. Estivessem cientes que Deus escutaria as
preces deles, se persistissem em oração na presença de Deus. Que se lembrassem também dos
apóstolos de Cristo, que orando com santas preces no seu conclave, mereceram arrebatar o
príncipe dos apóstolos das cadeias de Herodes e de toda a expectativa do povo judaico35.
Com esta exortação, todos os frades permaneciam na presença do Senhor, fazendo
rogações a Deus, em súplicas públicas e privadas. Por sua vez o Prior, para além das orações
contínuas e devotas preces a Deus, que seria longo estar agora a expor, suplicava afincada-
mente de todo o coração que aqueles que estavam tão tristes com o cativeiro do ancião,
ne icsu chrisli, ct in uirtulo spiritus sancti precipio tibi ct per uniucrsain ciuilalcin non modica tristicia erat. San
nc amplius senium dei conturbes. Confcslim igitur exiens ctus autem, cui maximo circunfusa erat tristicia quedam,
ucteranus hostis, ex ea hora nunquam dei famulum tem pro qua dolor cordis manifestabatur, diligenter alloquitur
ptare ausus fuit. Sepe numero uidimus nonnullos egro- fratres cunctos, ut per omnia solliciti essent consortis sui,
lanlcs fratres, co quidem orante ct pro ipsis gcnudcctcn- ct compacicnlcs, iuxla apostolum dicentem: Cum.patitur
to, sanitati restitui. unum membrum compati debent cetera, ct fideliter in ora
2 i. Vis autein cognoscere quantam sollicitudinem ge tionibus suis peterent illum, ab co, qui ait discipulis suis :
rebat eorum etiam, qui in itinere dirigebantur, ucl quan Quicquid pccierilis in oralionc credentes accipietis. Scien
tum eius oratio apud omnipotentem deum ualcbal? Fue tes quoniam exaudiret dominus preces eorum, si manen
rat causa qua honorius presbilcr unus dc priinis seniori tes permanerent in orationibus in conspectu dei. Ksscnt
bus , de quo superius habita mentio est, ulixbonam mil· etiam memores apostolorum chrisli, qui in conclaui suo
precibus sanctis orando, apostolorum principem deuineu-
teretur, habens secum sexcentorum solidorum summam lis herodis meruerunt eripere, cl dc omni cxpcclatione ple
ad construendam beati uinccntii martiris ecclesiam, quo bi iiidcorum. Ad banc igitur cxorlalionein cuncti fratres
extra muros urbis ipsius est, prout habebat in mandatis publica et priuala supplicatione deprecantes deum , per
a rege. Qui in ea solitudine, que est inter coliinbriam ct manebant in conspectu domini. Prior autom post conti
sanclarcn, a sarraccnorum latrunculis caplus, ad duita nuatas orationes et deo dcuolns preces, quas nunc cuuol-
tem heluuas cnpliuus ductus est. Igitur inuisus nuntius uere longum e s t, ex toto corde subnixius exorabat, ut
et durus rumor cunctos monasterii perculit fratres. Sed qui lam tristes erant dc capliuilato senioris, do libcratio-
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eram ricos, aconselhava-os a fazerem bem, exortando todos a que temessem o Senhor,
estando sempre contentes com os seus estipêndios36; e a que, afastando de si o vício e à
vaidade do século, apresentassem a Deus uma vida pura, para que as suas obras não fossem
invalidadas junto de Deus. Dizendo-lhes estas palavras e outras semelhantes, fortalecia e
renovava as almas deles.
Brandura Concedera-lhe, na verdade o Senhor graça tal que quem visse a sua pessoa ou ouvisse
da sua
prática da sua boca uma prática, se alegrava quase como se tivesse visto um anjo de Deus, e lhe
testemunhava veneração condigna. Na verdade, a sua voz era doce e suave, baixa, sem ruído,
sem estridência, sem qualquer aspereza de pronúncia. E tanto mais grata era ao espírito dos
ouvintes, quanto menos era dura ou desagradável ao ouvido. Proferia sempre poucas palavras
e conformes com a razão, e ao mesmo tempo bondosas. Daí vem que o seu falar encontrava
sempre agrado junto de todos , segundo aquele dito de Salomão37: W A palavra doce multiplica
os amigos, e a língua elegante e graciosa abunda no homem de bem”. A sua expressão
fisionómica era moderada e de tal modo adequada ao seu gesto que nem se exasperava sem
medida, nem se desfazia em moleza, mas tinha sempre uma rígida doçura e um doce rigor.
Nunca nenhuma alteração imprópria lhe alterava a beleza da face. De tal modo punha à
frente de tudo a modéstia de todo o seu físico que nunca movia os membros desordenada ou
turbulentamente ou diminuía a calma das suas palavras. Além disso, havia nele um tal sos
sego de espírito e crescera nele um tal sentimento de bondade, e de tal modo estava expur
gado de toda a suspeita de malícia, que com razão se acreditará que se diga dele: “Grande é a
paz dos que amam a vossa lei38”. Para que hei-de dizer mais? Estando na terra, levava uma
vida celestial.
Amizade Sucedia por conseguinte que, devido à sua extrema santidade, o rei e os seus príncipes e
de D. Afonso
Henriques todo o povo de ambos os sexos julgava que o Mosteiro de Coimbra era digno das máximas
horarias e reverência, o presenteavam com as maiores ofertas, o enriqueciam de bens tempo
rais, de tal modo que se evidenciava maravilhosamente acima de quase todas as congregações
erant sustentabat. Si dilutes ad benefaciendum commone ciosa in bono uiro babundat. Facies eius temperata erat,
bat, exortans cunctos ut rectam fidem tenerent, prauila- et ita modificata in gestu suo, ut nec proteruo exaspera
tessuas abiccrent, et timerent dominum semper contenti retur , nec molliter dissolucrclur, sed semper habebat ct
stipendiis suis. Etaseuicium etscculi uanitalcm abicicn- rigidam dulcedinem, ct dulcem rigorem. Numquam pul-
tes, uilam suam deo puram exiberent, ne operationes eo critudincm faciei cius aliqua indecens transmutacio defor
rum inpcdirenlur apud deum. Ilee et his similia loquei., mabat. Tocius corporis modestiam ita proferebat, ut nec
ad eos animas eorum reficiebat cl innouabat. Contulerat inordinate, nec turbulente aliquando membra moucrct, ucl
siquidem ei dominus talem gratiam, ut quicumquc perso placorem sui sermonis inminucrit. Tanta preterca inerat
nam illius uidisscnl, ucl sermonem oris cius audissent, ei tranquillitas animi, tantusque in eo inoleuerat bonitatis
quasi angelum dei se uidisse gaudebant, eique condignam allectus, et ita ab omni malicie suspicione erat defcccalus,
ucneralionem exibebant. Uox enim cl dulcis erat ct sua- ut merito dc eo dici credatur. Pax multa diligentibus le
uis, demissa sine strepitu, sine clamosilatc, sine omni as gem tuam. Quid plura? Celcstem uilam in terra positus
peritate prolationis. Et tanto ad animos audientium ucnic- agebat. Igitur propter nimiam cius sanctitatem fiebat, ut
bat gracior, quanto ad aures nec durior erat iniocundior. rex et principes cius, cl cunctus ulriusquc sexus populus
Proferebat semper pauca ct racionabilia uerba, pariter et colimbrienso monasterio summo honore et rcucrenlia di
benigna. Undo semper apud omnes sermo eius gratiam gnum ducerent, maximis muneribus illustrarent, bonis
inucnichat. Juxta illud salomonis : Dulce uerbum amicos temporalibus ditarent, in tantum ut super cunelas penes
multiplicat, et inimicos m itigat, et lingua eucharis gra tocius hispanie huius ordinis congregationes mirabiliter
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desta ordem na Hispânia. O rei levou para lá de presente grande número dos seus haveres,
tanto móveis como imóveis, enriqueceu o local, confirmou todas as propriedades do Mos
teiro, no interior e no exterior, e, firmando-os, fez seu couto. Amava-o e honrava-o, na
verdade, acima de todas as cabeças coroadas; confiava mais nele do que em qualquer outro
dos homens e encomendava-se-lhe, a si e às suas coisas, do coração. Também o santíssimo
varão D. Teotónio o amava a ele, acima de todos os homens que havia no reino. E por isso,
com paternal afecto, frequentemente o censurava e advertia de que tivesse temor Àquele
através de quem os reis reinam e em cujo poder estão todos os direitos dos reinos ou dos
demais poderes e de que observasse os seus mandamentos, porque para isso existia todo o
homem, a que administrasse o reino que lhe estava confiado segundo a justiça, a que conser
vasse a justiça inviolada; que o juiz secular não pusesse a mão numa pessoa eclesiástica, nem
tomasse à sua conta examinar questões eclesiásticas; nem permitisse violar os lugares sagrados
ou tentasse desordenadamente fazer violência a quem se refugiasse junto deles, ainda que
fossem réus, e por seus crimes condenados; que nunca condenasse ninguém injustamente; mas
que um rei convinha que mantivesse justiça, verdade, fé, boas obras e reverência pelos lugares
sagrados; de outro modo, dizia, em nada diferiria de um príncipe de ladrões. Se temeraria-
mente presumisse cometer todos estes actos, ameaçava-o, com a sua maneira de falar simples,
de que teria de fazer angueira36. Como o rei lhe perguntasse que angueira, ele dizia, por
interpretação sua, que era o inferno, no qual, lembrava ele, os poderosos aguentavam podero
sos tormentos e os malfeitores todos ardiam perpetuaménte.
Quanta solicitude o homem de Deus tinha pelo rei, ou quanto o rei confiava sempre Tomada
de Santarém
nele, pode apreciar-se até só naquele milagre único de Santarém, quando o rei quis atacar essa
cidade com um novo género de combate, a saber, a furto e como que por meio de um roubo,
pois com outros aparatos bélicos nunca pôde. É que era impossível, devido à situação do
lugar, à sua extrema fertilidade e à sua numerosa população. Foi ter com o homem de Deus e
a ele só revelou o seu plano e encomendou a sua alma, como quem vai partir deste mundo.
emineret. Ita rex do rebus suis ibi plurima lam mobilia inferre temptaret. Neminem unquam iniustc comlempna-
quam inmobiiia dona contulit, locum ditnuil, res monas rct. Sed opportere regem habere iusliciam, ucritalem, fi
terii cunctas intus et extra firmauit, cl firmando caula- dem , bonam opcralioncm, et Sanctorum locorum reue-
uit. Super cunctas enim coronatorum personas eum dili rentiam, alioquin nichil differo a principe latronum regem
gebat cl honorabat, magis in co, quam in alio aliquo ho dicebat. Pro quorum omnium lemcraria presumptione mi
minum confidebat, seque et suam animo commendabat. nabatur ei suo simplici uerbo angariam esse faciendam.
Uir quoque beatissimus domnus theothonius cum pre cun Cum autem rex qucrcrct quam angariam, ille ex sua in-
ctis hominibus qui in cius regno eran t, Et ideo paterno terpretationo dicebat esse gehennam, in qua potentes po
affectu frequenter castigabat cl amonebat ut eum per quem tenter tormenta sustinere, ct malefactores cunctos in per
reges regnant, ct in cuius potestate sunt omnia iura re petuum ardero memorabat. Quantam sollicitudinem uir
dei pro rege habebat, ucl quantum rex in eo semper con
gnorum cotcrarumuc potestatum timeret, et mandata eius fidebat, ucl in illo uno miraculo de sanctaren considera
obscruarct, quia propter hoc est omnis homo. Regnum re potest. Cum enim rex ciuitatcm ipsam nouo genere pu
sibi comissum secundum equilatem dispensaret, iusliciam gnandi aggredi uoluissct, furlim uidelicct ct quasi per la
inuiolatam conscruaret. Ne iudex cius sccularis in eccle trocinium, nam aliis bellicis apparatibus nunquam potuit,
siasticam personam manum mitteret, aut ecclesiastica ne Erat enim propter locorum silum inpossibile, cl propter
gocia examinanda susciperet. Ne sacra loca uiolare per nimiam fertilitatem populorumquc frequentiam, ad uirum
mit teret, ucl etiam confugientibus ad illa, quamuis reis, dei ucnicns consilium illi soli dclcxit, animamque suam
clpro suis sceleribus condcmpnatis, inordinate uiolenliam tanquam dchoc mundo exiturus comendauit, diem etiam,
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Indicou-lhe, sob compromisso de silêncio, o dia em que pensava realizá-lo; pediu-lhe aflnca-
damente que nesse dia fizesse oração em conjunto com os frades, e foi-se embora. No dia
marcado, o Prior expôs o assunto em capítulo a todos os irmãos. Mandou dizer ladainhas de
pés descalços, rogando que se fizessem preces públicas também, e particulares. O Prior, por
sua vez, além da magnitude das preces que ofereceu a Deus com inesgotável aplicação, orava
assim: “Senhor, Senhor omnipotente, que fizestes ruir os muros de Jericó sem gládio nem
arco, que também mandastes deter o Sol, às preces de Josué contra Gabaão, imploramos da
vossa inefável clemência que vos digneis conceder propício ao nosso rei e vosso servo, a cuja
sombra vivemos sob a vossa protecção, a vitória sobre uma cidade muito inimiga do povo
cristão, a fim de que daí seja expulso o imundíssimo e nefando rito de Maomé e aí seja
louvado o vosso nome, Senhor Deus.”
Logo no dia seguinte, eis que um mensageiro bom, dos mensageiros do Senhor, chegou
com a boa notícia, a anunciar que a cidade fora tomada e submetida ao poder do rei. Na
verdade, na noite seguinte ao dia prefixo em que estes acontecimentos se passaram no Mos
teiro, o Rei tomou-a miraculosamente à meia-noite.
Batalha
de Ourique
27. Assim fez na verdade, quando no campo de Ourique venceu cinco reis dos pagãos
com a sua inúmera multidão de bárbaros, reunida daquém e dalém-mar para de todo o
deitarem a perder. E isso com a ajuda divina e a protecção de S. Tiago, cuja solenidade se
Tomada conta que ocorria nessa data. E também quando com um exército naval francês tomou Lis
de Lisboa
e Alcácer boa, e não menos quando numa luta demorada venceu Alcácer.
Mas para quê dizer as coisas uma a uma? Todas as vezes que o rei estava para cometer
algum feito grandioso, sempre vinha ter com o homem de Deus, e se encomendava às suas
orações com grande empenho, a si e à sua alma, conforme disse. Este, por sua vez, tinha tal
ternura pelo rei, que parecia que era mais solícito com ele do que consigo próprio. Por isso,
quando, em certa ocasião, se divulgou o boato de que o rei tinha partido deste mundo — con
forme o santo nos contava, e era verdade — abalou-o com tal gravidade uma dor do coração,
quo hcc facturus cogitabat, sub silentio indicauil, el ut notali d ici, quo hcc facta sunt in monasterio, rex eam
co dic pro sc cum fratribus comuncm orationem faccrct, mirabiliter media nocte cepit.
obnixo rogauit ct discessit. Dic igitur notato, cunctis in 17. Sic nimirum fecit, quando in campo baulich V.
capitulo fratribus prior rem exposuit. Letanias nudis pe reges paganorum cum innumera eorum barbara multitu
dibus, publicas quoque et priualas deprecationes rogans fie dine de ultra citrnquc mare ut cum omnino perderent coa
ri raandauit. Prior autem prêter magnitudinem precum , dunata, deuicit, auxilio sibi facto diuino, ct beati iacobi
quas iugi meditatione deo obtulit, sic orabat : Domine, do patrocinio, cuius ea die sollempnitas fuisse peribetur. Sed
mine, inquit, omnipotens, qui muros ihcrico sine gladio et ct quando cum nauali exercitu francorum olixhonam ce
arcu subrui fecisti, qui etiam ad precem iosuc contra ga- pit , ct nichilominus cum alchazar longo certamine uicil.
baon solem stare prccepisti, luam deprecamur ineffabilem Et quid per singula ? Quocicns aliquid rex magnanimiter
clementiam, ut regi nostro famulo tuo, sub umbra cuius, facturus erat, ad uirum dei semper uoniebat, ct cius ora
te protegento, uiuimus, uictoriam propitius conccdcrc di tionibus se ct suam animam, ut dictum est, attentius co-
gneris do inimicissima Christiani populi ciuitalc. Quatinus mendabat. Ipse ucro tam tenere regem diligebat, ut pro
excluso inde spurcissimo ac nefando mahometis ritu, lau
detur ibi nomen tuum domine deus. Mox igitur postern eo magis quam pro semetipso sollicitus esse uidcrctur. Un
dic ecco nuncius bonus de nuntiis domini, bonum portans de cum quodam tempore falsus rumor exisset, regem ui-
nuntium, affuit, qui urbem esse captam ct in ditionem re dclicet a mundo excessisse, ut nobis sanctus referebat, ot
gis subactam Ictus annunciauit. Nocte enim sequente pre- uerum quidem e ra t, dolor cordis tam grauiter cum per-
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na sua profissão uma diligência pura e uma perseverança firme, regeu a congregação que lhe
foi confiada por vinte anos e mais, com temor de Deus? Foi, no entanto, menos atento às
construções e novas edificações, evitando prender a elas a sua alma, que sempre quis estivesse
livre para as coisas espirituais, tal como aquela religiosíssima Maria, que estava sentada aos
pés do Senhor e escutava com atenção as suas palavras40. Foi nestes assuntos que ele sempre
esteve enlevado e ocupado.
28. Cuido que é já altura de lembrar com quanta santidade depôs, em vida, os seus
privilégios, e, deste modo, de chegar ao fim que teve. Passados vinte e um anos sobre a sua
entrada no Mosteiro, começou a contrair uma demorada enfermidade do corpo. Por esse
motivo, como bom pastor e director das almas, que tem cuidado em todo o rebanho, e
conforme a vontade de Deus certamente, segundo acreditamos, elegeu-nos em capítulo geral
Nomeação um prior, D.João, filho de Teotónio, homem discreto, prudente, sóbrio, bondoso e adornado
de um
sucessor de todo o género de virtudes, que pelo nome e pelos méritos foi bem seu sucessor e filho. A
ele entregou o regimento de todo o Mosteiro, com benevolente decisão e com o aplauso de
todos os frades a este respeito. E durante quase dez anos depois disto, esteve com ele numa tal
paz de ânimo, que em cada dia, mais ainda, em cada hora e quase a todo o momento, se
antecipavam um ao outro com a doçura da sua bênção e o sinal da Santa Cruz.
Aos restantes frades, abençoava-os e absolvia-os todos os dias, e qual outro Job ofere
cia holocaustos por cada um, e pela pureza da sua alma chamava-lhes a cada um amigos do
Senhor. Ele mesmo, pelo dom da humildade, se encomendava todos os dias às orações de
Últimos anos cada um. Livre e dispensado, portanto, da preocupação dos cuidados pastorais, e como que
isento de um grande peso, daí em diante entregou a sua alma só à contemplação, permane
cendo sempre em oração e compunção de lágrimas pelas misérias deste mundo e desejo da
celeste Jerusalém. Recordava com frequência que esta estava cheia de anjos, e arcanjos, ador
nada de patriarcas, profetas e apóstolos. Aí dizia ele que estavam os fieis, que são pedras
vivas, argamassadas pelo cimento do amor. Aí não se encontrava nenhum desgraçado, nin
guém passa fome, ninguém tem sede, pois lá o pão vivo a todos restaura as forças e a fonte
suam puram adi bens diligentiam cl firmam pcrscucranciam monasterii benigno uoto com isil, cunctis in hoc ipsum
comissam sibi cura timoro domini rcxil congregationem fratribus aplaudentibus. Cum quo per decem quibus postea
per XX.', et eo amplius annos? In edifíciis tamen et no- uix annos ita fuit in cordi pace, ut singulis quisque die
uis fabricis minus intentus fuit deuitans in cis inplicatio- bus immo singulis horis cl pene momentis se inuiccm pre-
nem sui animi, quem semper liberum uolebat in spiritua uenirent, et benedictione dulcedinis , et signaculo sancte
libus , tanquam illa religiosissima maria, quo sedebat ad crucis. Ceteros ucro fratres omni die benedicebat et absol-
pedes domini, alquo intenta cius uerbum audiebat. In his uebat, et quasi alter iob holocausta per singulos offere-
semper suspensus alquc inherens fuit. bat, cleos nominalim ex puritate animi amicos dei nomi
28. Jam nunc autem quam sancto in uita sua priuilc-nabat, attentius ct ipse ex dono humilitatis cotidie in sin
gium honoris deposuerit memorandum rcor, cl sic adeius gulorum orationibus se commendabat. Igitur a pastoralis
finem ueniendum. Post uiccsimum itaque et primum ab cure sollicitudine liber ct absolutus, et quasi grandi feno
ingressu monasterii annum, longam corporis cepit contra re liberatus, soli deinceps contcmplacioni animum dedit.
here ualiludincm. Undo tanquam bonus pastor et proui- Permanens semper in orationo ct lacrimarum conpunliono
sor animarum tocius gregis solliciludinom gerens ipse no pro miseriis huius mundi, et desiderio celeslis ihcrusalcm.
bis in communi capitulo iuxta dei quidem, ut credimus, liane assiduo memorabat angelis, archangclis refertam ,
uolunlalem nobis priorem elegit, Domnum scilicet iohan- patriarchis, prophetis ct apostolis ornatam. Ibi dicebat es
nem tbcotonii, uirum discretum , prudentem , sobrium , se fideles, qui sunt uiui lapides cemento dilectionis colle
benignum, atque omni genero uirlulum ornatum, meritis cti, et replicabat. Ibi nullus miser inucnitur, nullus esu
et nomine sibi successorem et filium, Cui tocius regimen rit , nullus sitit, quia ibi pannis uiuos omnes reficit, et
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eterna e viva extingue a sede de todos. Por isso, dizia com grande frequência, arrebatado pelo
seu amor: “Alegrei-me quando me disseram, que iremos para a casa do Senhor”41. Pois
embora estivesse encerrado na estreiteza de um só claustro, já gozava da vastidão do paraíso.
Daí resultava que já não sentia fome, pois era saciado pelo Senhor Jesus Cristo. Tomava,
contudo, alimento com acção de graças, a despeito de não ser o desejo de comer, mas a
compleição humana que o impelia para a comida, mas nunca antes da hora legítima. E,
quando nós tomávamos as refeições, costumava ele ir à pressa para a igreja, sempre quase
invisível, a fim de orar mais livremente. A sua solidão retinha-o, como a um verdadeiro
eremita, mesmo quando orava no seu lugar, sempre a gemer e a sofrer. Se, porém, algum de
nós aparecia à sua vista, logo com rosto alegre encetava com ele uma doce conversação,
embora o seu espírito estivesse já unido com Deus. Na sua boca estava sempre Cristo ou os
exemplos dos santos padres, estava sempre a paz e a doçura da caridade; e sempre, conforme
disse, a referência a Jerusalém celeste, sussurrando muito docemente, sem interrupção: “Senhor,
amei a beleza da vossa morada e o lugar da habitação da vossa glória”42 e “Quão dlectos os
vossos tabernáculos, Senhor das virtudes! A minha alma anseia e desfalece nos átrios do
Senhor”43 e “Bem-aventurados os que habitam na vossa morada, Senhor; pelos séculos dos
séculos vos louvarão”44.
Apoiava os seus membros envelhecidos com aquele báculo que lhe mandara de pre O báculo de
S. Bernardo
sente, por meio de frades seus, ao ouvir falar da sua santidade, o homem de Deus Bernardo,
que foi o primeiro abade de Claraval, nos confins da Borgonha, e muitas vezes tocava com ele
os aguilhões da dor. Já desde essa altura, entre o Mosteiro de Claraval e o nosso de Santa
Cruz de Coimbra, foi firmada uma sociedade e um pacto de fraterna amizade, quer dizer,
subscreveu-se uma associação em todos os benefícios e orações, de maneira que em cada uma
das ordens se efectua todos os anos, com a máxima devoção, sufrágio geral, uns pelos outros.
29. Muitas pessoas souberam coisas deste varão, quando ele ainda vivia na carne,Visões
por
meio de visões. Certo ancião muito avançado em anos e de bom testemunho, arrebatado em
êxtase por espaço de três dias, viu, através de uma visão, que estava no céu. Viu também
fons etcrnus et uiuus omnium sitim exlinguil. Undo se- susurrans : Domine dilexi decorem domus tue, et locum
pissimo in cius amorem raptus cxullans dicebal : Lclalus habitationis glorie luo. Et quam dilecta tabernacula tua
sum in his quo dicta sunt milii in domum domini ibimus. domino uirlulum concupiscit, ct deficit anima mea in atriis
Quamuis enim in unius claustri clausus esset angustiis domini. Et beati qui habitant in domo tua domine, inse
iam tamen latitudinem fruebatur paradisi. Inde erat quod cuta secutorum laudabunt (c. Sustentabat autem senilia
iam esuriom non scncichal. Saturatus enim erat domino membra baculo illo , quem sibi pro munero, audita san-
iesu christo. Sumebat tamen cum gratiarum actiono, quam clitalo cius, uir dei 13. primus clarcuallcnsium abbas de
uis cum non ucsccndi desiderium , sed humana confectio confinio burgundic per fratres suos miserat, et frequenter
ad cibum traheret, nunquam tamen ante legitimam ho cum eo acculcos doloris contingebat. Ex eo iam tempore
ram. Et nobis reficientibus ipse ex more suo ad limina inter clarauallcnse monasterium et nostrum sancte crucis
ecclcsic, gratia liberius orandi, semper pene inuisus pro colimbrienso societas paclum , et fraterno dilectionis san
perabat, quem etiam in loco suo orantem semper gemen citum est, associatum uidclicel et scriptum in omnibus be
tem ct dolentem, tanquam ucrc solitarium, sua solitudo neficiis et orationibus, ita ut ab utroque ordino per sin
cohibebat. Cum autem aliquis nostrum in conspectu eius gulos annos generale seruilium agatur pro inuicem cum
apparebat, mox ilarato uullu dulcia cum eo miscebat col summa deuolionc.
loquia, licet iam spiritus cius cum deo unitus esset. Sem 29. Mulli multa de hoc uiro adhuc incarne posito per
per in ore cius Christus erat, aut exempla sanctorum pa uisionem cognoucrunt. Quidam namque grandeuus senex
trum , semper pax ct dulcedo caritatis ct semper, ut di ct boni testimonii per triduum in cxtnsim raptus, uidit
xi , mencio ihcrusalcm cclcstis sine intermissione dulcius se per uisum fuisse in celis. Vidit etiam quosdam , quos
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alguns que ele bem conhecia que estavam ainda na vida carnal, e poucos que já haviam falecido
a assistir ao tribunal de Cristo, em louvores a Deus. Superior, porém, a todos estes, lhe pareceu
estar D. Teotónio, e mais perto de Deus, revestido de incomparável candor. E esse mesmo
Padre Teotónio, ao adorar a Deus, recebia d’Ele maior glória do que os outros. O ancião,
quando finalmente regressou ao século, narrou o que viu, não sem admiração de muitas pes
soas.
30. Relatarei também com brevidade de que maneira foi visto por um religioso da
Ordem de Claraval, interpondo-se entre eles um grande espaço, não digo de terras, mas de
províncias. Foi visto por ele, digo, numa eira formosíssima, no meio do mar, com uma multi
dão não pequena de homens vestidos de branco, e ele à frente de todos e a todos mantendo
em ordem. Como um bom cocheiro, dirigia-os infatigavelmente e esforçava-se por todos os
modos por que a defesa da paliçada, que a toda a roda da eira de todos os lados a cercava,
não se rompesse em qualquer ponto, devido às bravíssimas ondas do mar. Ora sucedeu mais
tarde que o monge veio ao Mosteiro de Coimbra, e, sem qualquer indicação, imediatamente
reconheceu o Padre Teotónio, que em sonhos vira no mar. Nesta visão, que se pode entender
de mais evidente, de mais manifesto e de mais apropriado do que aquilo que o homem de
Deus, o monge tirou da sua interpretação? A eira, disse, é o claustro do Mosteiro; o mar é o
mundo ou a cidade de Coimbra, abaixo da qual fica o seu Mosteiro; o Padre Teotónio luta
na eira da grei do Senhor, com o exercício das boas obras, contra as ondas salgadas e amarís
simas do mundo embravecido e, no meio dos assaltos dos escândalos, guarda e rege bem o
rebanho que lhe está confiado, para que, de quantos mandar deste mar da vida a Deus, mais
tarde receba o principado sobre eles no futuro.45
Passo à frente vários feitos notáveis deste género por parte do homem de Deus que, em
diversos sexos e diversas idades foram indícios dos seus méritos, para que não vão parecer,
junto dos invejosos e incrédulos em tudo o que é bom, sombras e fábulas. Mas, para resumir
a pouco o que é infinito, se alguém desejar saber como passou a sua vida no Mosteiro, saiba
ipso bcno nouerai, qui adhuc in carne positi erant, uon limbrienso monasterium ucnisse, et patrem theotonium,
nullos iam defunctos assistere anto tribunal chrisli, deum quem per sompnium in mare uiderat, sine indice proti
laudantes. Illis autem omnibus superior ei uisus est asta nus agnouit. In qua uisionc quid apertius quid enuclea
re donnus theoIonius et deo propinquior, incomparabili tius ucl conucnicnlius possit intclligi, quam quod uir dei
candore ucslilus. Qui et ipse paler theotonius cum adora monacus ex sua interpretatione protulit? A rca, inquit,
ret deum, maiorem pre ceteris gloriam a deo sortitus erat. claustrum monasterii est. Mare uero mundus, ucl colim-
Senex uero tandem ad scculum reuersus, non sine am- brianorum ciuilas, infra quam ipsum est monasterium
mirationo multorum, quo uiderat enarrauit. cius. Pater autem theotonius in area dominici gregis pu
30. Brcuiter quoquo pcrslringuam qualiter a quodam gnat bonorum operum exercitiis contra furentis mundi sal
religioso do ordine clarcuallcnsium uisus est, longo inter- sos et amarissimos fluctus, ctcomissum sibi gregem inter
icclo non dicam terrarum , sed prouinciarum spacio. Ui scandalorum asultus bene custodit ot regit. Ut quantos ad
sus est, inquam, ab eo in area quadam speciosissima in hoc salo uito transmiserit, ad deum poslmodum super eos
medio m ari, cum turba candidatorum uirorum non mo principatum accipiat in futurum. Prctcrco plurima uiri
dica cunctis prostans, cunctos modificans. Quos lanquam dei in hunc modum insignia, que diucrso sexu diuersa
bonus auriga infaligabililer regebat, et ne munimen u&l- elate meritorum suorum fuerunt indicia, ne apud inuidos
li, quod undique per girum arce circunduclum erat a fe et incredibiles omnium bonorum umbre uidcanlur cl fabu
rocissimis maris fluctibus, rumperetur alicubi modie om le. Sed ut infinita brcuiter comprehendam , siquis quati
nibus satagebat. Contigit aulom postea monachum in co- tor elatem suam in monasterio transegit, nosse desidera-
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não foram gritos e pranto que se ouviram, como costuma acontecer entre todos os do século,
mas durante dois dias seguidos o zelo ardente dos frades mostrou-se com toda a devoção,
cantando em coro, em redor do corpo, orações, salmos, hinos e cânticos espirituais. Em se
guida foi honrosamente sepultado na sala do capítulo pelo reverendo D. Miguel, bispo de
Coimbra e cónego de Santa Cruz; em volta estavam os frades em círculo, a executar com
suma diligência os devidos ofícios religiosos. Adormeceu, consciente da bondade da sua vida e
dos prémios pelos seus méritos, no dia décimo segundo antes das calendas de Março47, sexta-
-feira, à primeira hora do dia, em que Cristo ressuscitou. Foi sepultado no dia undécimo
antes das calendas do mesmo mês48, no quinquagésimo sexto ano de vida do referido rei D.
Afonso I de Portugal, em cujo tempo recebeu a veste de Cristo, e no trigésimo quinto do seu
reinado. Viveu no santo propósito trinta e um anos. Cumpriu, portanto, todo o tempo da sua
vida, conforme ele mesmo referia, entre os setenta e os oitenta anos, segundo a ordem das
Escrituras49.
c lu s, ut inter scculi omnes fieri solet, auditus e s t, sed cius uite bono et premiis meritorum x n .e kalendas Mar
per duos continuos dies choris psallentibus feruens stu cii, feria v i/ ad primam dici horam, qua chrislus resur
dium fratrum deuolissime exibilum est circa corpus in ora rexit. Scpullus est xi.° kal. earundem anno memorati re
tionibus, psalmis, hymnis et canticis spiritualibus. D ehinc gis domni A. primi porlugal. sub quo chrisli ucstem sus
in capitulo a ucncrabili uiro domno michacle colimbrien- cepit , Lvi, et regni sui xxx.*v.° Uixit autem in sancio
sium episcopo et sancte crucis canonico honorifice scpul- proposito annos xxx." unum. Omne ucro uite sue tempus
tus est, circunstante corona fratrum, et debitum regionis inplcuit, ut ipso referebat inter l x x .1 annos et l x \ \ . ‘
officium cum summa diligentia exibente. Dormiuit cons iusla ordinem scripturarum.
43
216
1 O “Filósofo”, a partir do século XIII, costuma ser Aristóteles. Mas não é improvável que ele fosse já
conhecido dos cónegos de Santa Cruz, uma vez que, segundo J. M. Cruz Pontes, artigo “Aristotelismo em
Portugal” na Enciclopédia Verbo, D. João Peculiar esteve em Toledo em 1150, onde é natural que tenha conhe
cido a famosa escola de tradutores para latim do Estagirita, e que a presente hagiografia não será muito
posterior a 1162, data da morte do Santo. Mas não só não se conseguiu identificar o passo (cf. J. Geraldes
Freire, op. cií., pp. 98-99), como ele não parece, pelo seu teor, proveniente de Aristóteles. Também eram
“Filósofos”, para os medievais, Cícero ou Séneca, que se afiguram igualmente improváveis. O tradutor do séc.
XIV substitui por “o Apóstolo”, sem mais.
2 Note-se o emprego de dictare para designar o trabalho da composição literária, prática essa que vinha
já de Santo Agostinho. Sobre a história dessa palavra e seus cognatos, vide E. R. Curtius, Europaeische
Literatur und Lateinisches Mitteltalter (Bem, 1948), p. 83, e E. Norden, Die antike Kunstprosa II (Stuttgart, 51958),
p. 953-959. Do seu uso em português arcaico tratámos no artigo “Helenismos no Livro da Virtuosa Benfeitoria”,
Biblos 57 (1981), especialmente, pp. 347-349.
3 Cf. Uber Sapientiae 10.21: Sapientia aperuit os mutorum et linguas infantium fecit disertas.
4 Alusão ao símbolo do Y, em cujas hastes se prefiguravam o caminho do bem e do mal, que o jovem
tinha de escolher. Num livro seu, o sofista Pródico tinha aplicado a situação a Héraclès, na encruzilhada entre
a Virtude e a Depravação — segundo sabemos por Xenofonte, Memoráveis 2.1.21-34.
5 O texto diz omnia que intus ex utraque erant, que o tradutor anónimo quatrocentista verteu por
“todas as coisas que dentro estavam e fora” e Joaquim de Encarnação por “guardava quanto estava dentro ou
lhe pertencia”. Supomos que houve um erro do copista e que o texto deverá ler-se omnia que intus extraque
erant.
6 Cf. Ps. 120.6: per diem sol non uret te, neque luna per noctem.
7 Passo não identificado. Cf. Geraldes Freire, op. cit., pp. 98-99.
8 É curioso que o título dado ao Conde D. Henrique seja aqui o de ‘consul’. O mesmo ocorre em rela
ção a Femão Peres de Trava (fol. 4r). Mais adiante, porém, é usado o vocábulo latino próprio, comes, relati
vamente ao mesmo Conde D. Henrique (foi. 9v). Era este título que ele tomara desde 1097, como comes por-
tugalensis (Paulo Merêa, História e Direito / [Coimbra, 1967], p. 205, nota 73). Muitos documentos designam-
-no por Comes Henricus (idem, ibidem, p. 261).
9 A tradução rigorosa seria “se rojou aos seus pés”.
10 Cf. Rom. 12.15: gaudere cum gaudentibus, flere cum flentibus.
11 Repare-se no uso de feria sexta. Este modo cristão de designar os nomes da semana, que, como se
sabe, o português herdou, já vinha, por exemplo, na Peregrinatio Aetheriae. O mesmo se verifica na hagiogra
fia Sancti Rudesindi Vita et Miracula, como observámos na nossa tradução, Vida e Milagres de São Rosendo
(Porto, 1970), p. 12 e nota 14, onde remetemos para o livro de M. Paiva Boléo, Os nomes dos dias da semana
em português (Coimbra, 1941).
12 Da famosa história de José e da mulher de Putifar, e do papel que aquele desempenhou no Egipto,
assunto com que termina o livro do Génesis ( Gen. 37-50), o autor extrai matéria para enaltecer, por compara
ção, o seu biografado. Esse paralelismo estava já prenunciado no retrato físico do santo (cf. Gen. 39.6: erat
Joseph pulchra facie et decoms). Sobre este passo, vide Mário Martins, Alegorias, Símbolos e Exemplos
Morais da Literatura Medieval Portuguesa (Lisboa 1975), p. 27.
13 Reminiscência do Hino de Venâncio Fortunato (séc. VI-VII), Vexilla regis prodeunt, w . 21-24 (per
tencente à liturgia de Sexta-feira Santa):
44
217
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II. LATIM RENASCENTISTA
(Página deixada propositadamente em branco)
II. LATIM RENASCENTISTA 221
1. AS OR AÇÕES DE SAPIENTIA
E A UNIVERSIDADE *
*
Publicado em O Humanismo Português 1500-1600. Publicações do II Centenário da Academia das
Ciências de Lisboa (1988), 55-66.
1
A data de 18 de Outubro é a que refere Cataldo no Livro III das Visiones, como hábito existente
“entre Hispanos, Galos e Ítalos”, ao descrever o cenário majestoso em que o seu discípulo dilecto, D.
Pedro de Meneses, Conde de Alcoutim, proferiu na presença do Rei D. Manuel, a sua Oração in scholis
Ulyxbone (a primeira notícia sobre a importância desta Oração foi dada por A. Costa Ramalho, “A Oração
de Sapiência do Conde de Alcoutim”, artigo publicado em Novidades XVI (1965), nº 61, e depois reimpresso
na colectânea do mesmo professor, Estudos sobre a Época do Renascimento, Coimbra, 1969, pp. 78-82; aí
se refere que a tradução do discurso, por Miguel Pinto de Meneses, com prefácio de A. Moreira de Sá,
editada em Lisboa em 1964, só viria a sair depois de 3 de Maio de 1965 (op. cit., pp. 114-115, nota 17).
Porém a célebre Oratio pro Rostris de André de Resende foi pronunciata in Olisiponensi Academia Calendis
Octobribus do ano de 1534 e especifica: maiorum nostrorum instituto, et omnium academiarum recepta con-
suetudine, quum redeunt calendae Octobres, et lucubrationibus tempus idoneum, adsumus intermissa paulisper
literarum studia feliciter auspicaturi. É esta a data que se mantém nas orações que se seguem, o que, de
resto, está de acordo com o que se lê nos Estatutos da Universidade de Coimbra de 1559, cap. 2 (p. 32 da
edição de Serafim Leite nos Acta Universitatis Conimbrigensis, 1963). Sobre os antecedentes da instituição
da prática da Oração de Sapientia (que não são ainda totalmente claros), ver A. Moreira de Sá, “Nota
prévia” à edição de Jerónimo Cardoso, Oração de Sapiência proferida em louvor de todas as Disciplinas, por
Justino Mendes de Almeida e Miguel Pinto de Meneses, Lisboa, 1965, pp. IX-X, e bibliografia aí citada.
2
Publicadas e traduzidas, das dez aqui utilizadas, estão: a do Conde de Alcoutim (1504), a de André
de Resende (1534) e a de Jerónimo Cardoso (1536) todas referidas na nota anterior, e pronunciadas
222 LATIM MEDIEVAL E RENASCENTISTA
para ser impressa no ano em que se perfazia o quarto centenário da sua primeira
edição (embora os fados que, como se sabe, também afectam os livros, só tivessem
permitido que tal se efectivasse em 1959). De qualquer modo, os quatrocentos anos
do Colégio das Artes, que igualmente ocorriam então, tiveram o seu monumento
próprio naquele mesmo ano de 1948, com a saída do primeiro volume do magistral
estudo do Prof. Mário Brandão, A Inquisição e os Professores do Colégio das Artes, que
vinha na sequência de outros notáveis livros seus, continuadores, por sua vez, da
escola de Gonçalves Cerejeira nos seus fascinantes volumes sobre Clenardo.
Coube-me ainda em sorte, por necessidades de serviço da minha Faculdade, ser
eu a inaugurar o Seminário de Latim Renascentista, em 1961-1962; mas é do ano
seguinte, após o regresso do Prof. Américo da Costa Ramalho das suas funções de
professor visitante em Nova York, que se pode datar o começo da escola de estudos
sobre o latim dos humanistas em Portugal, que desde então tem produzido, sobre-
tudo através das suas publicações do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos,
dirigido por aquele mestre, uma série de trabalhos verdadeiramente notável 3 .
É um gosto reconhecer, que, às obras fundamentais e inovadoras do Prof. Costa
Ramalho, que partem do estudo rigoroso dos textos latinos para os inserir no
contexto cultural a que pertencem, vêm já juntar-se numerosos livros e artigos de
discípulos seus, entre os quais é justo salientar os dois que já alcançaram a áurea
doutoral, Jorge Osório (hoje na Universidade do Porto) e Sebastião Pinho, na nossa.
Vem tudo isto à guisa de justificação da minha presença ocasional, por in-
sistente solicitação do meu colega de hoje e condiscípulo de outrora, Prof. Pina
Martins – ele mesmo um brilhante especialista do Humanismo e do Renascimento
– neste Colóquio dedicado a um tema que considero aliciante, mas que está fora
das minhas preocupações habituais. E, dizendo assim, fiz como os humanistas de
Quinhentos, um exórdio que não é mais do que uma captatio benevolentiae e um
pedido de vénia para a modéstia do meu contributo.
em Lisboa; e ainda a de Belchior Beleago, de 1548 (introdução e tradução nossa, na Colecção Amphi-
theatrum, do Centro de Estudos Humanístico da Universidade do Porto, 1959). As orações de Arnaldo
Fabrício (1548), de Pedro Fernandes (1550), de Hilário Moreira (1552) e de António Pinto (1555) foram
objecto de dissertações de licenciatura (policopiadas) com prefácio, texto, tradução e notas, respec-
tivamente de Maria José Sousa Pacheco (1959), Maria Manuela Pereira Pinto Alvelos (1965), Albino de
Almeida Matos (1962) e Francisco José Avelar Nobre (1962). A de João Fernandes (1538), contida no Ms.
84 da Biblioteca Municipal do Porto, foi reproduzida em fac-símile, em apêndice a um extenso artigo
de Jorge Osório, “Autour d’un discours humaniste d’un éditeur coimbrois des Colloques d’Erasme”,
Arquivos do Centro Cultural Português, Fundação Calouste Gulbenkian, Paris, vol. XI (1977), pp. 41-106
[daqui em diante citado como “Autour d’un discours”]. Da de Jerónimo de Brito (1554) apenas conhe-
ço a edição quinhentista da Biblioteca Menéndez Pelayo, de Santander, da qual existe fotocópia no
Instituto de Estudos Clássicos da Universidade de Coimbra.
3
Deve, no entanto, observar-se que já antes daquela data, portanto, anteriormente ao funciona-
mento de Seminários no 5º ano, o mesmo Professor orientara a dissertação de licenciatura de Maria
José Sousa Pacheco (1959), citada na nota anterior, sobre a Oração de Arnaldo Fabrício.
II. LATIM RENASCENTISTA 223
4
A dissertação de licenciatura de Albino de Almeida Matos, referida na nota 2, aponta muitos
outros passos, além deste, em que se demonstra claramente que a fonte imediata foi Luís Célio, e não
os autores clássicos em que o humanista se abona.
5
Especialmente em Estudos sobre o Século XVI, Fundação Calouste Gulbenkian, Paris, 1980, p. 1.
6
“Um capítulo da História do Humanismo em Portugal: o ‘Prologus’ de Estêvão Cavaleiro” in:
Estudos sobre o Século XVI, pp. 125-151.
7
A presença de cláusulas métricas, demonstrada com numerosos exemplos, pode confirmar-se
nos prefácios às dissertações dactilografadas referidas na nota 2.
224 LATIM MEDIEVAL E RENASCENTISTA
por não saber tocar lira (assim o dissera Cícero, nas Tusculanas, I.2.4, e o repetira
Quintiliano, I.10.19, para eterno desdouro do vencedor de Salamina), ou a de Só-
crates, já velho, se não ter envergonhado de aprender música (outra vez Cícero,
De Senectute, 26 e Quintiliano, I.10.13 são as fontes). Depois que Cataldo referira em
Bolonha o desaire de Temístocles, ao ter de recusar a lira num banquete, Jerónimo
Cardoso, Arnaldo Fabrício, Belchior Beleago, Jerónimo de Brito fazem outro tanto.
Algo de semelhante se passa com o mito de Orfeu e o de Anfíon, demonstrativos
do poder da arte dos sons sobre a natureza. Ou com a famosa inscrição que uma
tradição tardia dizia estar à entrada da Academia de Platão – ἀγεωμέτρητος μηδεὶς
εἰσίτω – que quase todos referem ao elogiar a geometria. Ou ainda com as provas
de consideração de Alexandre pela poesia, desprezando o precioso estojo de ouro e
pedrarias de Dario, que só lhe serve para guardar os poemas de Homero, ou dando
ordem de poupar a casa de Píndaro quando manda arrasar Tebas (atitudes que
registou Plínio-o-Antigo, 7.108-109) ou ainda lamentando-se, diante do túmulo de
Aquiles, de não ter tido um Homero que o cantasse (tópico este que ascendia, como
vários outros, ao Pro Archia de Cícero e contará larga descendência literária nos
nossos poetas quinhentistas em vernáculo, sem excluir o de Os Lusíadas). Também
dificilmente se elogia a ciência dos astros sem contar como alguns chefes antigos
tinham explicado aos seus homens a razão de um eclipse, tirando-lhes assim todo
o temor (Arnaldo Fabrício, Beleago, Pedro Fernandes podem ter encontrado tais
narrativas em Plutarco, Plínio, Quintiliano, Valério Máximo, Frontino).
Muitos mais exemplos haveria a dar, mas estes serão suficientes para justificar
as minhas palavras de há pouco. E, no entanto, tomadas na sua globalidade, elas
seriam injustas. A leitura das orações tem, de facto, interesse, embora necessaria-
mente não igual em todas, e o seu conhecimento ajuda-nos a compreender melhor
uma época e uma mentalidade que marcou profundamente a cultura europeia.
De entre as dez que, como já disse, tomei como base destas considerações, as
três mais antigas, todas reeditadas e comentadas pelo Prof. Moreira de Sá, e tra-
duzidas pelo Dr. Pinto de Meneses, pertencem ao período em que a Universidade
se encontrava em Lisboa. São elas a de D. Pedro de Meneses, Conde de Alcoutim
(1504), de André de Resende (1534) e de Jerónimo Cardoso (1536, exactamente o
ano anterior à transferência definitiva). Três anos depois, ou seja, em 1539, João
Fernandes profere a oração de abertura das aulas no Colégio de Santa Cruz de
Coimbra, oração essa que viria a ser reproduzida em fac-símile e finamente apre-
ciada por Jorge Osório, que anos antes apresentara como tese de licenciatura outro
discurso do mesmo humanista, de grande interesse para a história do Studium
Generale de Coimbra, A Oração sobre a Fama da Universidade8, onde perpassa a galeria
8
M.e João Fernandes, A Oração sobre a Fama da Universidade (1548). Prefácio, introdução, tradução
e notas de Jorge Alves Osório. Coimbra, Instituto de Estudos Clássicos, 1967.
II. LATIM RENASCENTISTA 225
dos seus mestres, na qual então se contavam nomes como Martinho de Azpilcueta
Navarro, António Luís, Pedro Nunes, Vicente Fabrício.
Esta última oração, destinada a comemorar a visita do Infante D. Luís, é profe-
rida no mesmo ano de 1548 em que se imprimiram mais dois discursos académicos:
o de Arnaldo Fabrício, em Fevereiro, quando da inauguração do Colégio das Artes;
e o de Belchior Beleago, em Outubro, na abertura solene das aulas.
Distanciam-se pouco no tempo as quatro restantes: é de 1550 a de Pedro Fer-
nandes, de 1552 a de Hilário Moreira, de 1554 a de Jerónimo de Brito, e de 1555 a
de António Pinto.
Distanciam-se pouco no tempo, disse. Mas não no tempo cultural ou institu-
cional. Efectivamente, em 1539, a Oratio pro Rostris de João Fernandes proclamava
orgulhosamente no título que fora pronunciada “no segundo ano da nova criação
da Universidade” (anno secundo a nova Academiae institutione). As de Arnaldo Fabrício
e Belchior Beleago são do ano áureo da abertura do Colégio das Artes – uma com o
principal André de Gouveia, outra após o seu falecimento, em circunstâncias que
determinaram a abertura dos processos inquisitoriais a alguns dos seus mestres
mais famosos. As sombras começaram a adensar-se. Quando se ouve a última
da série, em 1555, o Colégio acabava de ser entregue aos Jesuítas e estava extinta
a sua fase mais brilhante.
Da leitura que se pode fazer, através da Oração proferida em Santa Cruz por João
Fernandes, da crise religiosa que se vivia falou já, como disse, em cuidadoso e bem
documentado estudo, publicado em 1977 nos Arquivos do Centro Cultural Português
de Paris, o Doutor Jorge Osório, situando-o num tempo em que a campanha contra
Lutero estava no auge e, por outro lado, já era corrente condenar as desinteligências
entre as diversas disciplinas. Ao fazer outro tanto, o futuro editor de uma versão
“depurada” dos Colóquios de Erasmo, “propunha-se” – escreve aquele professor –,
“dois objectivos: o abandono do mundo material com as suas voluntates e as suas
cupididates em favor do mundo espiritual e a necessidade de uma acção no campo
da teologia que deveria efectuar uma reforma dos estudos em serviço de um rei
que tinha um enorme imperium, para encher de fides christiana. Está-se perante o
tema, tão caro ao humanismo hispânico, de fides divulganda per orbem”9. Pretendia
ele, como observa mais adiante o mesmo estudioso, “demonstrar a necessidade
do estudo como via da reforma religiosa, mas numa perspectiva diferente de
outras reformas que defendiam a ignorância como condição de aperfeiçoamento
religioso”10. É esta teologia, na linha da famosa definição de humanitas em Aulo
Gélio, citada por João Fernandes no seu texto, tão importante que, se não a distin-
guir da condenável scholastica theologia, o seu discurso será vão. É uma theosophia
de ascendência agostiniana, que não podia deixar de ser grata ao seu auditório de
9
Jorge Osório, “Autour d’un discours”, p. 59.
10
Idem, ibidem, p. 61.
226 LATIM MEDIEVAL E RENASCENTISTA
padres crúzios. Era preciso uma boa preparação nas várias disciplinas para inter-
pretar o texto sagrado, mas sem perder de vista as limitações do espírito humano.
É neste contexto que entra seguidamente o ataque ao livro de Cornélio Agrippa de
Netesheim, De veritate scientiarum, autor cujas obras foram interditas pela Inquisi-
ção. Ao contrário do que defendia Agrippa, a escola era necessária, logo, também
a reforma em curso, empreendida por Frei Braz de Braga. Por isso exclama, quase
a terminar, em palavras que traduzo:
Todo o ouvinte sabia que, nesta feroz advertência, acabava de ser encastoado
um verso do Canto VI da Eneida (620). E talvez algumas mentes mais esclarecidas
pensassem também que o doce e compassivo Virgílio não tinha culpa do mau uso
dos seus versos... Lembremos no entanto, em abono de Beleago, a atitude digna
que, conforme observou o Prof. Mário Brandão13, tomaria ao depor no processo
Especialmente no cap. VIII do livro Humanismo e Erasmismo na Cultura Portuguesa do Século XVI.
11
Estudos e Textos, Fundação Calouste Gulbenkian, Paris, 1973. Veja-se ainda Odette Sauvage, L’Itinéraire
Erasmien d’André de Resende (1500-1573), Fundação Calouste Gulbenkian, Paris, 1971.
12
Para as citações da oração de Beleago, uso a minha própria tradução referida supra, nota 2.
Mário Brandão, A Inquisição e os Professores do Colégio das Artes, vol. II, 1ª parte, Coimbra, 1969,
13
pp. 319-321.
II. LATIM RENASCENTISTA 227
O valor das letras gregas era tópico que, em orações de sapientia principiara,
tanto quanto sabemos, com a de André de Resende, em 1534 (precisamente o ano
em que há notícia da abertura da respectiva cátedra em Santa Cruz de Coimbra).
É uma longa exortação, de que recordarei apenas o começo, na tradução de Miguel
Pinto de Meneses:
Da terceira das línguas sagradas fala Beleago, como vimos, embora num
breve período apenas. Anteriormente só se encontrara referência implícita ao
conhecimento do hebraico no já referido João Fernandes, em 1539 (e lembre-se
que, segundo o Prof. Manuel Augusto Rodrigues, o ensino desta língua está do-
cumentado unicamente a partir de 1538, no Colégio de Santa Cruz)14, no curioso
passo em que, como exemplos das ridículas discórdias entre os gramáticos, se
citam, entre outros, para o latim, a distinção entre gerúndio e gerundivo, a
etimologia do supino; para o grego, a regra de concordância do predicado com
o sujeito neutro do plural; para o hebraico, a indiferenciação, que pode ocorrer,
entre singular e plural nas pessoas dos verbos, logo demonstrado no começo do
Génesis, citado em transliteração.
Mas deixemos, como logo adverte João Fernandes, coisas “ainda muito
mais ridículas” do que estas nugas gramaticais, e passemos a um ponto mais
14
“O estudo do Hebraico em Portugal no século XVI”, O Instituto 136 (1973), pp. 3-4 da separata. Cf.
ainda, do mesmo autor, “Les Etudes Hébraïques à l’Université de Coimbre (XVIe siècle), in: L’Humanisme
Portugais et l’Europe. Actes du XXIe Colloque International d’Études Humanistes, Fundação Calouste Gulbenkian,
Paris, 1984, pp. 111-160, especialmente pp. 132-137, e bibliografia aí citada.
228 LATIM MEDIEVAL E RENASCENTISTA
Embora se situe fora do âmbito da nossa análise, uma vez que é uma Oratio Pa-
negyrica ad Ioannem Tertium17, não podemos aqui deixar de mencionar esse extenso
15
Estudos sobre o Século XVI, pp. 7-8.
O mesmo trecho de Pedro Nunes deve ter influenciado João de Barros, como foi mostrado pelo
16
encómio, composto em 1539 por António Luís, o médico e helenista, também ele
professor da Universidade de Coimbra, pelo relevo com que aí trata as navegações
portuguesas, apresentando-as primeiro como um prolongamento da defesa da fé,
depois como uma acção civilizadora, em seguida como um revelação de “outros
mundos e novos sóis”, percorrendo a zona tórrida e os próprios antípodas. Por
isso, afirma a certa altura o mestre grego, que nunca perde de vista o paralelo
com os clássicos, “dava argumento para escrever mil Ilíadas esta tua época, e seria
abundantíssima a matéria fornecida” (vel mille scribendam Iliadem argumentum haec
tua tempora et copiosissima suppeditarent materiam).
Um outro tópico muitas vezes referido é o contraste entre o renascimento cul-
tural da época e a barbárie anteriormente reinante, ideia típica dos humanistas
que, ao contrário do que por vezes se afirma, não falta entre os que nasceram ou
viveram em Portugal no século XVI. Uma das suas expressões mais nítidas é a
que figura na Oratio pro Rostris de André de Resende, na exortação que dirige aos
estudantes e aos mestres18:
Erro esse que eu vos peço e rogo que não sigais, nobres jovens; e a vós,
doutíssimos varões, a quem incumbe o cuidado de ensinar a juventude, a
vós peço a garantia de que não consintais que engenhos, aliás bons, fiquem
por mais tempo envoltos em miserável e nebuloso erro, agora sobretudo
que, por onde quer que se dilate, quase toda a Europa renasce, quando to-
das as terras, por mais bárbaras que fossem outrora, aspiram àquela antiga
felicidade de uma época mais culta.
18
Utilizo aqui uma tradução própria.
19
Vol. IV, pp. 109-110, da edição anotada por M. Alves Correia (Lisboa, Colecção Sá da Costa).
230 LATIM MEDIEVAL E RENASCENTISTA
20
Por exemplo, o paralelo (implícito) entre o modelo de educação liberal, conducente a uma atitude
cívica consentânea com os valores daquela, e os perigos de um imperialismo nascente. A presença do
tema, especialmente em Arnaldo Fabrício, foi assinalada por Luís de Sousa Rebelo, A tradição clássica
na Literatura Portuguesa, Lisboa, 1982, pp. 43, 85, 257 e passim.
ORAÇÃO SOBRE O ESTUDO DE TODAS AS DISCIPLINAS 231
2. BELCHIOR BELEAGO.
OR AÇÃO SOBRE O ESTUDO DE
TODAS AS DISCIPLINAS *
INTRODUÇÃO
*
Publicado em Belchior Beleago. Oração sobre o estudo de todas as disciplinas. Porto, Centro de Estudos
Humanísticos (11959); Pinho, Sebastião T. (org.), Orações de sapiência: 1548-1555. Portugaliae Monumenta
Historica. Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra (2011), 65-103.
1
À forma Melchior, que figura no rosto das edições de ambas as obras de Beleago, substituímos
Belchior, que pode ler-se em todos os documentos em português a ele referentes (citados por António
Cruz, “Belchior Belago Humanista Portuense”, Bibliotheca Portucalensis, Porto, 1957, pp. 7-29) e no fac-
-símile da assinatura do humanista, reproduzido a p. 9 de M. Gonçalves Cerejeira, Clenardo, nova edição
refundida, Coimbra Editora L.da, Coimbra, 1926. Sobre a evolução deste nome próprio, veja-se Leite de
Vasconcelos, Antroponímia Portuguesa, Lisboa, 1928, pp. 60 e 511, e bibliografia aí citada.
2
A enumeração das espécies existentes foi feita por Luís de Matos, Quatro Orações Latinas proferidas
na Universidade e Colégio das Artes (Séc. XVI), Universitatis Conimbrigensis Studia ac Regesta, Coimbra,
1937, pp. VII-VIII.
3
As orações de Arnaldo Fabrício, na inauguração do Colégio das Artes, a de André de Resende,
em louvor de D. João III, e a de Hilário Moreira, na abertura solene das aulas, incluídas na colectânea
mencionada na nota anterior. A oração de Fabrício, no momento da primeira edição deste nosso tra-
balho, em 1959 (Porto, Centro de Estudos Humanísticos, anexo à Universidade do Porto), estava a ser
traduzida e anotada por Maria José de Sousa Pacheco, com vista à licenciatura em Filologia Clássica; a
segunda foi igualmente traduzida e publicada por Gabriel de Paiva Domingues, Um Discurso de André de
Resende, colecção «Universitas», Coimbra Editora, L.da, Coimbra, 1945.
232 BELCHIOR BELEAGO
4
Publicada na revista citada supra, nota 1, sob o título Belchior Beleago, Humanista Portuense, e
acompanhada da edição fac-similada da outra obra conhecida do doutor quinhentista – De Dialectica
Liber (pp. 31-60).
Nomeadamente “Os Professores dos Cursos das Artes nas Escolas do Convento de Santa Cruz, na
5
Universidade e no Colégio das Artes de 1535 a 1555”, Biblos, V, 1929, pp. 84-109 (sobre Beleago, vide pp.
99-100); O Colégio das Artes, I, 1547-1555, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1924, especialmente pp.
102, 109, 110; A Inquisição e os Professores do Colégio das Artes, vol. I, Acta Universitatis Conimbrigensis,
Coimbra, 1948, pp. 626-632 e 638-640.
6
O Humanismo em Portugal. Clenardo, cit., pp. 9, 10, 38, 85.
Ao publicar os epigramas de Buchanan ao mestre portuense, nas anotações às Noticias Chronologicas
7
da Universidade de Coimbra de Francisco Leitão Ferreira, Vol. III, t. I, p. 441, Universitatis Conimbrigensis
Studia ac Regesta, Coimbra, 1944.
8
Quicherat, Histoire de Sainte-Barbe, I, Paris, 1860, apud Luís de Matos, op. cit.
9
Op. cit.
ORAÇÃO SOBRE O ESTUDO DE TODAS AS DISCIPLINAS 233
10
Todo informado pelas doutrinas estóicas, através do ciceronianismo, segundo nos declarou
João Ferreira.
11
Mário Brandão, O Colégio das Artes, I, p. 272: «Como se depreende eram todas as ciências do
Trivium e do Quadrivium, que formavam as disciplinas a ensinar no Colégio, por isso que na cadeira
de Matemática se devia ler sem dúvida a Geometria, a Aritmética e a Astronomia.
A Música não era também esquecida, embora reduzida a simples aula prática de canto-chão e
canto de órgão, de grupo coral, encarregado de solenizar as festividades religiosas na capela colegial.
Fora do quadro ensinar-se-iam ainda as duas línguas, tidas agora em tempos do Renascimento em
alto apreço – o grego e o hebreu».
O regimento e estatutos do Colégio das Artes encontram-se publicados em António José Teixeira,
Documentos para a História dos Jesuítas em Portugal, Coimbra, 1899, pp. 4-11; Mário Brandão, Documentos
de D. João III, vol. III, pp. 108-117; Joaquim de Carvalho, aditamentos às Noticias Chronologicas da Univer-
sidade de Coimbra de Francisco Leitão Ferreira, 2.ª Parte, vol. III, tomo I, Universitatis Conimbrigensis
Studia ac Regesta, Coimbra, 1944, pp. 283-308.
234 BELCHIOR BELEAGO
12
O exemplo da nota 27 mostra Beleago muito mais próximo do original latino do que Fabrício.
No prólogo da sua Oração, Arnaldo Fabrício é mais explícito:
13
Illud uero neque dissimulabo neque me fateri pudebit, in hac locorum communium tractione loca quaedam
quae ad hanc rem maxime pertinere uidebantur a M. Cicerone me mutuatum esse: ita tamen, ut uerbis, ac ipsis
propemodum rebus commutatis ea ut imitator in usum meum transtulerim. In quo, si modo meus hic labor
non omnino frustra susceptus uidetur, spero meliori fore me condicione, quam cui uni Ciceronis imitatio nunc
demum uitio, culpaeque tribuatur.
Nas notas finais transcrevemos o texto de muitas dessas fontes.
14
De tal modo que, embora se saiba hoje que os humanistas de Quinhentos tiveram conhecimento
das cláusulas oratórias (cf. S. F. Bonner, “Roman Oratory” in Fifty Years of Classical Scholarship; Oxford,
1954, p. 358), torna-se inútil procurá-las no discurso de Beleago, onde a parte original do autor é bas-
tante reduzida. Uma revisão recente das teorias dos antigos (Aristóteles na Retórica, Cícero no Orator,
De Oratore e Partitiones Oratoriae) e sua aplicação veio pôr em relevo o predomínio do período sobre a
cláusula na formação do ritmo (Walter Schmid, “Über die klassische Theorie und Praxis des antiken
Prosarhythmus”, Hermes Einzelheften, Heft 12, Fr. Steiner Verlag, Wiesbaden, 1959).
ORAÇÃO SOBRE O ESTUDO DE TODAS AS DISCIPLINAS 235
15
Refiro-me ao processo de João da Costa, Diogo de Teive e Jorge Buchanan. O próprio Beleago,
chamado a servir como testemunha, foi acusado pelo aluno D. António Abranches de cear com eles
em dias de jejum (citado por Mário Brandão, A Inquisição e os Professores do Colégio das Artes, vol. I, pp.
626-632).
16
Sobre toda esta questão, veja-se Mário Brandão, O Colégio das Artes, I.
Cf. Mário Brandão, A Inquisição e os Professores do Colégio das Artes, vol. I, pp. 638-640 e António
17
BELCHIORIS BELEAGO
PORTVENSIS
DE
DISCIPLINARVM OMNIVM
STVDIIS ORATIO
Ad uniuersam
Academiam Conimbricae habita
Cal. Octobris
M. D. XLVIII
CONIMBRICAE
Apud Ioannem Barrerium et Ioannem Aluarez
M. D. XLVIII
ORAÇÃO SOBRE O ESTUDO DE TODAS AS DISCIPLINAS
INTRODUÇÃO 2 37 73
BELCHIOR BELEAGO
PORTUENSE
ORAÇÃO
SOBRE O ESTUDO
DE TODAS AS DISCIPLINAS
Proferida
Perante toda a Academia de Coimbra
em 1 de Outubro
de 1548
COIMBRA
Em casa de João Barreira e de João Álvares
1548
27 34 8 BELCHIOR BELEAGO
METAFÍSICA
[3]
I LVSTRISSIMO , AC P RVDENTISSIMO
D. I OANNI A LFONSO A VASCONCELLOS M ENESIO
B ELCHIOR B ELEAGO S.
C u m n o n i t a p r i d e m d e m o r e h u i u s Ac a d e m i a e o r a t i o n e m d e
disciplinarum omnium laudibus habuissem, accesserunt ad me plerique
amicorum obnixe petentes, ut eam ipsam orationem ederem, ut ab
omnibus amicis legi posset. Ego qui scripta mea non tanti facerem, ut
ea lectu digna censerem, eos ut nimium mei amantes, eaque de causa in
mearum rerum iudicio caecutientes redarguebam; sed tandem accessisti tu
uir illustrissime, qui id quid imperare pro tuo iure poteras a me peteres,
ut uidelicet hanc orationem excudendam curarem. Cum uero neque
auctoritatem tuam spernere, neque uoluntatem repudiare sine scelere
nefario possim, efficiam libenter id quod aliter nullo modo facere ausus
essem. Decreueram enim in hoc Apellem imitari, ut quemadmodum ille
opera tanquam inchoata, et imperfecta hominum iudiciis proponebat,
ut siquid ab illis esset merito repraehensum, corrigeret. Ita meam hanc
orationem quamuis lectione dignam existimarem (quod secus existimo)
non tamen illam in lucem proferrem, nisi postquam fuisset emendata atque
doctorum hominum iudicio comprobata. Nunc tamen auctoritate tua fretus,
nullius iudicium reformido. Qui enim erunt aequi iudices [4] intelligent
quanto sit grauius, officium deserere quam parum eleganter et ornate
conscribere, officium autem deseruissem, si tibi (cui omnia studia propter
praestantem tuam in me beneficentiam) debeo, non statim paruissem.
Neque dubito quin ubi primum in huius epistolae exordio lectores, in
tuum nomen inciderint propter nominis ipsius splendorem hanc orationem
illius tutela munitam uituperare non audeant. Quod si tu illam singulari
tuo iudicio comprobaueris, spero futurum ut omnes sententiam tuam, qua
res maximae nituntur, in hoc etiam sequendam arbitrentur.
[3]
AO I LUSTRÍSSIMO E E SCLARECIDÍSSIMO S ENHOR
D. J OÃO A FONSO DE VASCONCELOS M ENEZES
S AÚDA B ELCHIOR B ELEAGO
[5]
O RATIO
D E D ISCIPLINARVM O MNIVM S TVDIIS
[5]
O RAÇÃO
SOBRE O E STUDO DE TODAS AS D ISCIPLINAS
cuius me penitus expertem sentio, sustinere ualeat. Omnia enim sunt sic
attingenda, quae Graeci ̯Қ̭ц̧̟̦̰̦̫½̡̛̝̥̠̝̭ uocant, ut ad ea pro dignitate
tractanda, Cicerone laudatore sit opus. Sed si quo [7] consilio huc uenerim,
intellexeritis, facile mihi ueniam dabitis. Ego enim, auditores humanissimi,
non ignorans mearum uirium tenuitatem huc ascendi, sed primum ut iis
parerem quorum imperium et auctoritatem aspernari sine scelere nefario non
poteram; deinde humanitate uestra confirmatus, omnem timorem deposui,
spero enim fore, ut hunc meum conatum boni consulatis. Disciplinarum
igitur uobis fontes ostendam, earumque usum, utilitatem, amplitudinem, et
excellentiam breuiter exponam. De quibus dicentem me, quaeso beneuole
audite; id quod a uobis uel singulare meum erga uos studium, uel ipsa
litterarum dignitas impetrabit. Vt autem hinc initium faciamus.
Quum sapientissimus ille rerum Opifex hominem caelestis gloriae heredem
facere constituisset, quoniam nihil est ratione melius, nec in omni caelo
atque terra diuinius, ex tot animantium generibus, atque naturis, ipsum
solum participem rationis et cogitationis suae fecit; cui rationi sensus
tanquam satellites, ac nuntii rerum plurimarum attributi sunt, qui materiam ad
multarum rerum scientiam comprehendendam menti suppeditarent. Inde ad
hominum commoditatem artes innumerabiles repertae sunt, docente natura;
quam ratio imitata multis artibus et humanis et diuinis paulatim exculta est,
atque id tandem assequuta, ut exactius singularum rerum uim, naturam, et
rationem cognosceret, uoluntatique praescriberet, quid sequendum esset,
quid [8] omni impetu repellendum. Haec quum adoleuit, atque perfecta
est, pulcherrimo uirtutum artiumque omnium comitatu circumsaepta est
nominatur rite sapientia. A cuius studio primus Pythagoras, cum Leonte
principe docte et copiose disserens, nullam se scire artem professus est, sed
esse philosophum, hoc est, sapientiae studiosum qui ceteris omnibus pro
nihilo habitis, rerum naturam studiose intueretur. Sapientia uero perfectum
bonum est mentis humanae; est enim, ut a ueteribus definitum est, rerum
humanarum et diuinarum, causarumque quibus hae res continentur, scientia.
Philosophia sapientiae amor atque ardens appetitus ut nominis ipsius uis et
sententia declarat; qui igitur philosophus non est, hoc est qui sapientiam
non suspicit et admiratur, ipse se abiicit in terram, et uitam pecudum
sequutus se ipse humanitate spoliat. Hominis enim proprium munus est,
non uoluptati seruire, neque otio languere, sed ratione uti; rerum causas
mentis acie contueri; neque solum naturam, sed naturae totius Architectum
contemplari; qui quidem non nobis solum uitam largitus est, sed etiam ad
uitae praesidium, et ornamentum, philosophiam humano generi concessit.
Parum enim iuuaret uiuere, nisi id etiam a Deo haberemus, per quod
bene atque beate uiuere possemus, quod quidem praestat philosophia.
Non immerito igitur exclamat Cicero: “O uitae Philosophia dux, o uirtutis
indagatrix, expultrixque uitiorum, quid non modo nos, [9] sed omnino uita
ORAÇÃOORAÇÃO
SOBRE ODE
ESTUDO DEAS
TODAS TODAS AS DISCIPLINAS
DISCIPLINAS 2 47 39
a virtude, expulsas os vícios, sem ti que seria, não só de nós, [9] mas até da vida
dos homens? Tu geraste as cidades, tu chamaste os homens dispersos à vida social,
tu juntaste-os entre si, primeiro nas habitações, depois em uniões, e finalmente
na comunhão das letras e das palavras; tu foste a inventora das leis, a mestra dos
costumes e o ensino; em ti buscamos refúgio, a ti rogamos auxílio» 14. Com estas
palavras decora Cícero de merecidos louvores o seu fruto e grandeza. É ela que
dirige a fragilidade da vida, sujeita a todas as contingências, é ela que repele tudo
o que é nocivo, ensina a desprezar o que é efémero, mas a buscar o que é firme
e constante; e faz, enfim, com que cheguemos ao porto sem excepção. Sem ela,
todos os nossos esforços sucumbiriam a meio do caminho.
Autores de grande vulto dividiram a Filosofia em três partes: a moral, que abrange
a alma, a natural, que investiga a natureza, e a racional, que compreende a razão
discursiva; e novamente separam cada uma destas partes em outras. Contudo, de
momento, não há motivo por que nos preocupemos muito com tão subtil divisão15.
Do que eu queria que todos estivessem advertidos é que nada há de mais ilustre
do que a Filosofia. Pois, se procurarmos o deleite espiritual e o repouso das
preocupações, que há de mais útil do que ela para a tranquilidade da alma? Se
desejarmos a glória, que de mais ilustre para o elogio? Ou, se cultivarmos a virtude,
nada de mais apto para a alcançarmos do que aquelas disciplinas que transmitem os
preceitos de viver bem e com felicidade. Ou, se buscarmos a utilidade ou a riqueza,
é reconhecidamente por todas as artes compreendidas pela designação de Filosofia
que vem o maior [10] contributo para o uso comum.
E, para fazermos ponto de partida daquelas que se denominam Matemáticas, Aritmética
seguindo a cada passo Platão – que há de mais necessário que a Aritmética, quer
para o conhecimento de todas as artes, quer para a comodidade da vida? A ponto
de nos parecer que sem ela se não pode explicar a razão da existência. Que tudo
sabe, na verdade, aquele que possui a ciência dos números, foi sempre a opinião
dos antigos. O ilustre e divino Platão, mestre não só do entendimento, como
também do ensino, inquire e interroga porque é que o homem parece ser um animal
sapientíssimo, e nenhuma outra razão o satisfez, senão que possui os números,
com os quais a virtude se aperfeiçoa e se pode conhecer a natureza das coisas 16.
E diz Aristóteles: «Porque é que, de todo o género animado, é ao homem que se
dá maior importância? Porque, como Platão respondeu a Néocles, sabe contar ?» 17
Com efeito, quem sabe contar está apto a perceber todas as disciplinas. Pois,
medindo cada coisa com números, aprecia com mais rigor e abrange com a razão a
medida e a ordem de cada uma. Não permitamos, portanto, que esta divina ciência
rasteje pelo solo e vamos buscá-la aos questores, mercadores e outros, todos aqueles
que efectuam cálculos deste género, para a chamarmos aos maiores segredos da
natureza; apesar de que aqueles, recebendo dela a sua máxima utilidade e nela há
muito exercitados pelo seu conhecimento interno, como que excluídos do mistério
mais augusto, nem sequer são capazes de suspeitar a qualidade e a quantidade da
sua força. Platão escreve que, entre todas as artes liberais e ciências teóricas, parece
28 42 6 BELCHIOR BELEAGO
BELCHIOR BELEAGO
(Tudo aquilo que Júpiter não ama afasta a voz das Piérides). Isso mesmo levou
também os Platónicos a ir buscar à Música, à qual sentiam estreitamente ligado o
género humano, a origem celeste da alma25. Foi tal a veneração por esta arte entre os
antigos, que os próprios músicos eram tidos por vates e por sábios, a ponto de dizerem
todos num provérbio muito usado que os indoutos estavam afastados das Musas e das
Graças26. E assim Temístocles, como recusasse a lira ao banquete, foi tido por bastante
inculto27. Omito o que os poetas transmitiram de Orfeu, e de Lino; pois não levavam
as feras e também as pedras e os bosques onde quisessem, pela suavidade do seu
canto28? Que diremos do que atesta Macróbio, que os elefantes se abrandam com o
28 44 8 BELCHIOR BELEAGO
BELCHIOR BELEAGO
canto29? Que diremos ao que Plutarco, autor rigorosíssimo, afirma, que ao som dos
tambores a maior parte dos animais se amansa30? Que diremos ao que Plínio assevera,
que os golfinhos se movem ao som do canto31 – opinião que também confirma
Píndaro32? Mas deixemos os animais e voltemos a nós. Imitemos o próprio Sócrates,
fonte da Filosofia, que, já velho, se não envergonhava de aprender música33. Por sua
vez, Epaminondas, príncipe [13] da Grécia, sobressaiu na música admiravelmente34.
O próprio Licurgo, legislador rigoroso, se dedicou a ela com grande brilho35. Atestam
as Sagradas Escrituras que Saul, rei dos Hebreus, quando o afligia o sofrimento dos seus
crimes, se apaziguava muitas vezes com o tocar da cítara36. O poder da Música estende-
-se tão longe que torna leves e toleráveis os assíduos trabalhos que homens agrestes
e rústicos empreenderam na cultura dos campos, pois, com a sua doçura, atenuam a
aspereza da vida e esquecem os trabalhos exagerados. Os remadores, quando impelem
a nau com os remos, incita-os de tal modo o canto náutico que não sentem a fadiga.
Quanto vale a harmonia das cornetas e das tubas nas legiões para excitar ao
combate o ânimo dos soldados não se pode declarar. Para que hei-de eu prosseguir
nos restantes géneros, que são infinitos? Pois não há nenhuma raça humana, por
mais feroz e desumana que seja, que não se acalme à modulação mais rude que se
queira. Donde se torna evidente que escassamente terá sido dado algo de mais útil
aos homens para atravessar a vida sem custo.
Mas abordemos a Geometria, que, na opinião de Filão 37, é o princípio das artes Geometria
maiores, e chefe das restantes, pois àqueles que estão presos aos sentidos os arranca
daí e incita-os paulatinamente à contemplação da perenidade e divindade da natureza,
em que consiste o fim da Filosofia. Isto se atribui e reinvidica a Geometria, especular
sobre as substâncias eternas e incorpóreas. Daí o ter sido dito luminosamente por
Platão: «Penso que Deus, acima de tudo, ̴̡̨̡̡̟̯̬Ӻ̩, isto é, se aplica à Geometria»38.
Pois que também Licurgo deixou escrito [14] que Deus empregava nas coisas a
analogia geométrica toda poderosa 39, que chamamos «némesis» ou justiça, a qual
nos aconselha a atentar com diligência na distribuição das coisas (quanto deve cada
um receber, em proporção com o seu valor). É, realmente, a maior das injustiças
estabelecer prémios iguais para méritos desiguais, porquanto, para que a justiça, que
detém o género humano, se conserve, teve de se pedir o cômputo da igualdade,
como Aristóteles declarou doutissimamente na Ética, à proporção da Geometria 40.
Muitos e ilustres assuntos, mas contudo ocultos e escondidos, se tratam naquele
erudito pó da Geometria 41, que edificam o espírito na investigação da natureza,
e, pelo conhecimento de muitas coisas, o inundam de um prazer extraordinário,
motivo por que esta disciplina foi tida em tal honra que se pensava que de modo
algum podia filosofar quem a desprezasse 42.
Mas deixemos de filosofar por algum tempo, e passemos em revista os artefactos
comuns. O que quer que haja de belo e magnífico à vista ou cómodo para utilidade
da vida, ou necessário, devemo-lo ao poder desta arte. Sem ela, não estariam de
pé os telhados das cidades e as muralhas, nem permaneceriam os amplos e ilustres
testemunhos de feitos, que vemos nos templos e nos teatros dos reis, nem gozariam
28 56 0 BELCHIOR BELEAGO
BELCHIOR BELEAGO
restituiu aos donos o lucro das azeitonas; a si – declarou – bastava mostrar aos seus
concidadãos que o sábio podia facilmente ser rico, se quisesse50. E soubemos que do
mesmo modo se houve em Atenas Séstio, cidadão romano, de eminente sabedoria51.
28 58 2 BELCHIOR BELEAGO
BELCHIOR BELEAGO
Costumo admirar muitas vezes os feitos dos nossos homens e servir-me deles
em frequentes práticas, mas nada vejo neles de mais glorioso do que, atravessando
terras ignoradas, terem percorrido com armas invictas novos céus, estrelas ignotas,
regiões incógnitas, ou seja, outros mundos [17] da terra, que Alexandre Magno se
doía de escaparem às suas vitórias – coisa que sem dúvida nunca teriam podido fazer,
se não estivessem instruídos na observação do céu. Portanto, o terem navegado o
mar imenso, não se terem atemorizado com a força das procelas e das tempestades,
terem erigido troféus em todas as costas do Oriente, depois de vencidos todos os
perigos – isso devemo-lo em grande parte ao conhecimento dos astros.
Mas basta de Matemática. Afloremos agora aquelas artes que pertencem à lógica Gramática
e ordem na inquirição [18] da verdade, que traz luz a todas as ciências, pois, quer
discutamos com outrem, quer, sozinhos, agucemos o entendimento para o conhecimento
da realidade, quer nos oponhamos a importunos, a Dialéctica é necessária. Sem a
defesa da Dialéctica, nada se pode apresentar em oração a ouvintes, ou legar aos
vindouros em monumento literário, que seja digno dos maiores elogios. Platão refere
que aquela centelha trazida do céu por Prometeu é o método do raciocínio 53, tirado
o qual forçoso é que os homens se convertam novamente em animais. Sentença que
é muito digna de louvor: pois, tirando o uso da recta razão, em que a Dialéctica nos
instrui, que há aí que fique entre o homem e o animal? Quanta é a sua utilidade,
pode depreender-se do facto de que todos aqueles que, por assim dizer, se nutriram
dos seus úberes e depois se voltaram para outros estudos da vida, quer cultivem
o Direito Civil, quer se dediquem a qualquer outra louvável disciplina, conseguem
com aquela muito mais do que se tivessem gasto nessa disciplina, sem o auxílio
da Dialéctica, todo aquele tempo que consumiram com esta. E, já que sei que a
maioria daqueles que, depois de mal provarem com a extremidade dos lábios este
instrumento das artes, se voltaram para o Direito Civil, me chamarão a capítulo, e
que, é claro, negarão a conveniência de os jurisconsultos se enredarem nos discursos
dos dialécticos, a esses em primeiro lugar lhes peço e os intimo a ouvir por que
razão Marco Túlio preferiu, a Quinto Cévola, Sérvio Sulpício, nas Ciências Jurídicas:
29 50 4 BELCHIOR BELEAGO
BELCHIOR BELEAGO
ea arte esset instructus, quae docet rem uniuersam tribuere in partes, [19]
latentem explicare definiendo, obscuram explanare interpretando, ambiguam
primum distinguere deinde adhibere regulam qua uera et falsa iudicantur,
et quae quibus propositis essent, et quae non essent consequentia. Hic
enim attulit hanc artem omnium artium maximam, quasi lucem ad ea quae
ab aliis confuse aut agebantur, aut respondebantur, aut igitur negemus
quicquam ratione confici, cum contra nihil sine ratione fieri possit, aut cum
Dialectica ex rationum collatione constet. Ab ea, si docti esse uolumus,
adiumenta et auxilia petamus.
Eloquentia Succedit Eloquentia, quae est in disserendo finitima Dialecticae; sed
funditur latius et uberius. Haec ab aliis artibus cum accipit quod est
necessarium, sic excolit acceptum, ut illo instructu et apparatu orationis nihil
fieri possit admirabilius. Huius officium est: animos sic tractare, ut modo
excitet, modo perfringat, modo irrepat in sensus, inserat nouas opiniones,
euellat insitas cursu magno, ac sonitu feratur. Huius praeceptis (ut paucis
multa complectar) erudimur, ut humilia presse, mediocria temperate, grauia
sublimiter dicere possimus, et ad quodcumque decuerit, sic accommodare
orationem, ut prudenter, ornate, composite, memoriterque dicamus cum
quadam etiam actionis dignitate, ut in quo habitu intus et quibus copiis
ornatus fuerit animus, talem eum extra efferat et repraesentet oratio. Quae
ex rerum cognitione [20] efflorescat et redundet necesse est. Qua nihil
potest esse nec suauius, nec utilius, nec magnificentius. Quid enim esse
potest iucundius oratione multis luminibus illustrata? Quid utilius quam
opem ferre supplicibus, excitare afflictos, dare salutem, liberare periculis,
retinere homines in ciuitate? Quid magnificentius quam habere opes quibus
et terrorem hostibus incutias, amicis salutis spem ostendas, ciuitates uniuersas
in tuam sententiam trahas, atque, ne plura dicam, in eo quo homines reliquis
animantibus praestant, inter homines ipsos excellas?
Haec sunt quae non humana ui fieri, sed diuinum esse quiddam homines
putent, eaque de causa tantum honorem ad eos deferant quos uident
esse eloquentia praestantes. Vt enim omittam duo illa dicendi fulmina
Demosthenem et Ciceronem, quorum gloria passim ubique terrarum
celebratur, nonne Valerii eloquentiae ira populi Romani furor arma cesserunt?
Qui nisi facundis uerbis populum Romanum noua et insolita libertate
temere insultantem ad meliora consilia reuocasset, et Senatui subiecisset
spes tanti imperii in ipso paene suo ortu concidisset. Quam disertum
fuisse M. Antonium creditis quem ne hostium quidem quisquam occidere
sustinuit qui modo uocem eius ad aures suas uoluit admittere? Nonne
Pisistrato Athenienses regium imperium oratione ipsius capti permiserunt?
Cum praesertim Solon patriae amantissimus clamaret, ne prudentissima
ciuitas libertati seruitutem [21] praeferret? Et Pericles nonne in animis
ORAÇÃOORAÇÃO
SOBRE ODE
ESTUDO DEAS
TODAS TODAS AS DISCIPLINAS
DISCIPLINAS 2 59 51
sem dúvida porque era instruído nessa arte, que ensina a dividir em partes o todo,
a explicar o oculto, definindo, [19] a explanar o obscuro, interpretando, a distinguir
primeiro o que é ambíguo, depois a aplicar a regra, pela qual se julga a verdade e
a falsidade, e as consequências que se podiam ou não tirar, propostos esses temas.
Esse, portanto, apresentou esta arte como a maior de todas, por assim dizer, como
a luz para aquelas coisas que os outros tratavam ou refutavam confusamente54. Por
conseguinte, ou negaremos que qualquer coisa se possa fazer pela razão, quando, ao
contrário, nada se pode fazer sem a razão, ou ela se forma da reunião do raciocínio
com a Dialéctica. Peçamos-lhe ajuda e auxílio, se quisermos ser doutos.
Segue-se a Eloquência, que é, no discorrer, vizinha da Dialéctica; mas derrama-se Eloquência
mais larga e abundantemente. Esta, recebendo das outras artes o que é necessário,
aperfeiçoa de tal maneira o que recebeu, que nada se pode fazer de mais admirável
do que aquela construção e aparelhagem da oração. É sua atribuição tratar de tal
modo os espíritos que ora os excita, ora os abate, ora se introduz subrepticiamente
nos sentidos, incutindo-lhes novas opiniões, arranca precipitadamente as que lá
tinham germinado 55 e é arrastada pelo som. É nos seus preceitos (para abranger
muito em poucas palavras) que somos instruídos, para podermos exprimir as coisas
insignificantes com brevidade, as médias com sobriedade, as graves com elevação –
e acomodar o discurso às conveniências, de modo que falemos com clarividência,
com elegância, com ordem e de cor, e também com um certo decoro na actuação,
para que, tal como o espírito é de conformação interna e com os recursos de que
é dotado, assim exteriormente o produza e o represente a oração 56 . Esta deve,
necessariamente, [20] florescer e abundar em conhecimentos dos factos57. Nada pode
ser nem mais suave, nem mais útil, nem mais magnificente do que ela. Pois que
pode ser mais agradável do que a oração ilustrada com muitas luzes? Que de mais
útil que dar auxílio aos suplicantes, reanimar os aflitos, salvar, libertar dos perigos,
manter os homens no seu país 58? Que de mais magnificente do que ter recursos
com que se incuta terror aos inimigos, se mostre esperança de salvação aos amigos,
se arrastem cidades inteiras para a nossa sentença, e, para não dizer mais sobre
aquilo em que os homens estão acima dos outros seres animados, evidenciar-se
entre os próprios homens 59? Eis porque os homens julgam que não vem do poder
humano, mas é algo de divino, e por esse motivo tributam tanta honra àqueles que
vêem ser grandes na Eloquência. Pois, para omitir aquelas duas centelhas da arte
de dizer, Demóstenes e Cícero 60, cuja glória se celebra em toda a parte do mundo,
acaso não foi perante a eloquência de Valério que a ira e furor do povo romano
depuseram as armas? E, se não fosse ele ter chamado com palavras eloquentes
o povo romano, audaciosamente insolente na sua nova e insólita liberdade, e se
não o tivesse submetido ao Senado, ruiria a esperança de um tão grande império,
quase ao nascer 61. Acreditais quão facundo foi Marco António, que um dos inimigos
nem sequer tomou o encargo de o matar, porque pouco antes quis receber-lhe a
voz nos seus ouvidos 62? Acaso os Atenienses não concederam a Pisístrato o poder
real 63 , presos da sua oração? Quando de mais a mais Sólon, tão amante da sua
29 52 6 BELCHIOR BELEAGO
BELCHIOR BELEAGO
Atque hae sunt artes quas liberales uocamus, ac homine libero dignas,
praeclaras uirtutis ac sapientiae ministras, quibus animus ad optima quaeque
instruitur; e quibus honor et gloria comparatur. Humanitatem huiusmodi
studia appellarunt ueteres, iudicantes nimirum harum disciplinarum studio
non linguam tantum expoliri, sed et feritatem barbariemque ingeniorum
deponi. Maxime uero ad liberalem institutionem ingeniorum pertinere
[Liguarum uidetur (quae non exigua prudentiae pars est) linguarum cognitio. Patent
cognitio]
enim Linguae Graecae peritis, fontes omnium scientiarum quae a Graecis
emanarunt, illorum enim ingeniis et studiis omnes disciplinas debemus;
ea autem de causa Latini scriptores post Ciceronis tempora ita uel studiosi
fuerunt Graecorum uel Graecorum studiorum ostentatores, ut eorum
maximam partem ad se transtulerint, et qui alteram linguam sine altera
percepisset, debile quiddam et mancum adeptum fuisse eum iudicarent.
Sic etiam Prophetas minus intelligemus nisi Hebraicum sermonem (quo illi
usi fuerunt) probe teneamus.
Hoc in loco uenit in mentem mihi, praecipitem quorundam in studiis
et intempestiuam celeritatem [22] uituperare. Video enim plerosque relicto
humanitatis studio ad grauiora, ut uocant, disciplinarum genera properantes,
discendi laborem augere et incommodius omnia tractare, qui cum uix sint
primis rudimentis imbuti, sese ad optimas quasque et grauissimas disciplinas
conferentes, minimum ex illis emolumentum consequuntur, quod si suo
quaeque ordine aggrederentur, bone Deus, quanto rem facilius gererent!
Non tamen is ullo modo sum, qui semper his haerendum censeam, quamuis
enim sint honesta studia, sic tamen ut ad alia grauiora dirigantur. Tum
demum igitur erunt laudabilia, si ingenium praeparent, non detineant; tam
diu itaque istis immorandum puto quamdiu animus nihil maius agere potest.
pátria, clamava que uma cidade esclarecidíssima não preferisse a escravatura [21]
à liberdade 64? E acaso não deixava Péricles uma espécie de aguilhões no espírito
dos que o ouviam 65? O cirenaico Hegésias de tal modo apresentava aos olhos os
danos da vida que provocava nos ouvintes o desejo de apetecer a morte: donde se
vê claramente que o orador deve ser moderador dos espíritos 66.
Estas são as artes a que chamamos liberais e dignas do homem livre, ilustres
pela sua virtude e servidoras da sabedoria; pelas quais se edifica o espírito no que
de melhor há, e donde se obtém honra e glória. A estudos deste teor chamaram os
antigos Humanidades 67, pensando certamente que pelo estudo destas disciplinas
não só se polia a língua, como também se depunha a selvajaria e barbárie das
inteligências. Com efeito, parece pertencer acima de tudo à instrução liberal das
inteligências (que é parte não pequena da sabedoria) o conhecimento das línguas. [Conhecimento
das línguas]
É que estão patentes aos conhecedores da Língua Grega as fontes de todas as
ciências, que dos Gregos derivaram, pois é ao seu engenho e estudo que devemos
todas as disciplinas; é por essa razão que os escritores latinos, desde o tempo de
Cícero, a tal ponto estudaram o Grego, ou exibiram os seus estudos gregos, que
traduziram para si a maior parte deles e julgavam que quem percebesse uma língua
sem a outra estava de posse de coisa bastante débil e incompleta 68. Do mesmo
modo, não entenderemos os Profetas, se não soubermos bem a Língua Hebraica,
de que eles se serviram.
Neste ponto veio-me à ideia censurar a velocidade precipitada e intempestiva
de alguns [22] nos estudos 69 . É que eu vejo muitos, ao deixarem o estudo das
Humanidades, com pressa de géneros de disciplinas mais importantes, como eles
dizem, aumentarem o trabalho da aprendizagem e tratarem tudo inconvenientemente,
quando, mal imbuídos dos primeiros rudimentos, se voltam para as melhores e mais
importantes de todas as disciplinas e conseguem delas o mínimo proveito, ao passo
que, se avançassem na sua ordem, meu Deus, quanto mais facilmente se haveriam!
Contudo, não sou de modo algum pessoa que entenda que se deva estar sempre
preso a estes estudos, conquanto sejam honrosos, mas sim de modo a serem dirigidos
para outros de mais peso. Só então serão louváveis, se prepararem a inteligência,
e não a detiverem; e assim, entendo que se devem demorar neles o tempo de o
espírito nada poder fazer de maior.
Voltemo-nos, portanto, para as faculdades mais altas e de mais importância, quer
seja a de Direito Civil, Canónico, Medicina, ou a da sacrossanta Teologia. E, enquanto
me ocupo cuidadosamente delas, peço-vos, suplico-vos, a vós que me escutais, que
a vossa benevolência auxilie o meu esforço.
Comecemos em primeiro lugar pelo Direito Civil, porque o próprio género da
disciplina teve origem no meio das artes humanísticas; e a literatura dos antigos juristas
está cheia de antiga e verdadeira erudição. O Direito Civil é, como disse Ulpiano, [Direito Civil]
rationem tenere et persequi unus hoc nomine dignus appelletur. Ille igitur
est iuris peritus qui sempiternam legem sequitur. Est enim quaedam lex
non scripta, nec hominum ingeniis excogitata, quae uniuersam naturam
continet, aeterna quadam imperandi, prohibendique potestate. Haec est
mens omnia ratione aut imperantis aut uetantis Dei; reliquae uero leges
tum merito hoc nomen obtinebunt, cum ad illam antiquissimam et rerum
principem legem expressae fuerint, atque promulgatae ab hominibus ad
societatem et uitae communionem conseruandam, ut supplicio improbos
afficiant, defendant autem ac tueantur bonos. Sontes enim incommodis,
carceribus, contumeliis, uerberibus, exiliis, morte coercent, bonos autem
honoribus afficiunt. Docemur itaque auctoritate legum domitas habere
libidines, coercere cupiditates, nostra tueri ab alienis, mentes, oculos, manus
abstinere; nihil denique alteri facere, quod nobis factum nollemus. Hoc
enim fuit propositum optimis legum latoribus, ut eas leges ferrent quibus
homines honeste beateque uiuerent; eas uero ad eam legem quam diximus
accommodarunt, quae est ratio summa insita in natura, quae iubet ea quae
facienda sunt, prohibetque contraria. Quod porro de Iure Ciuili censeam
(quandoquidem id maxime ad nostrum hoc institutum pertinet) malo Ciceronis
uerbis quam meis respondere: «Omnia sunt posita ante oculos, collocata in
usu quotidiano, in congressione hominum [24] atque foro; neque ita multis
litteris ac magnis uoluminibus continentur. Eadem enim sunt lata primum
a pluribus, deinde paucis commutatis uerbis etiam ab iisdem scriptoribus
scripta sunt saepius. Accedit uero quo facilius percipi cognoscique possit
Ius Ciuile, quod minime plerique arbitrantur, mira quaedam in cognoscendo
suauitas et delectatio. Nam si quem haec aliena studia delectant, plurima
est in Iure Ciuili et pontificum libris, et in Duodecim Tabulis antiquitatis
effigies, quod et uerborum prisca uetustas cognoscitur, et actionum genera
quaedam maiorum consuetudinem uitamque declarant.»
Luce clarius est, id quod ante oculos ex iis est, quae dicta sunt: et Ius
Ciuile et Diuinum, sua sponte esse expetendum, etenim omnes uiri boni
ipsam aequitatem, et ius ipsum amant. Porro si quis fragilitatis humanae
remedia summa cura inuestiganda putat, intelligat uix utilius quicquam
Medicina ad hominum conseruationem rerum naturam produxisse, quae una
artium imperatoribus quoque imperat, a quibus (ut inquit Plinius) maxime
fuit celebrata, ut credi par sit eam studiorum partem diligentius et accuratius
custoditam, utpote qui scirent, illam humanis usibus pernecessariam; neque
enim magis alimenta agricultura sanis corporibus quam aegris sanitatem
Medicina promittit. Cuius multos ex sapientiae professoribus peritos
fuisse accepimus, a quibus in tres partes deducta est, unam quae uictu,
alteram quae medicamentis, tertiam quae manu mederetur, ̠̥̝̥̯̣̯̥̦̩̚
̨̡̡̱̝̬̝̦̰̯̥̦̩̲̥̬̫̰̬̟̥̦̩̚̚ Graeci nominauerunt. Atque huius inuentores
deos credidit antiquitas, nam et Apollo eam his uerbis sibi arrogat:
Ѣ̣̯̬Ң̭̟Қ̬ж̩Ҟ̬½̧̧̫Ԗ̩ж̩̯̘̪̥̫̭к̴̧̧̩.
Quo auctore morbi ad iram deorum relati fuerunt, ac proinde ab iis opem
posci solitam scimus. Age uero, praemia artis postulas; Erasistratus, inquit
Plinius, Aristotelis filia genitus, Antiocho rege a morbo confirmato, C. talentis
donatus est a rege Ptolomaeo filio eius. Multos praetereo medicos percelebres,
quibus cccl. HS. annua mercede apud principes fuere. Q. Stertinius obiecit
principibusque HS. quingenis contentus esset, sexcena enim sibi quaestu
urbis fuisse numeratis domibus ostendebat.
ORAÇÃOORAÇÃO
SOBRE ODE
ESTUDO DEAS
TODAS TODAS AS DISCIPLINAS
DISCIPLINAS 2 69 17
Segundo aquilo que se afirmou, torna-se mais claro do que a luz o que fica
diante dos olhos: que o Direito Civil e o Divino se devem buscar espontaneamente,
pois todos os homens bons amam a equidade e o direito em si. Mas, se alguém
julga que se devem investigar com a máxima aplicação os remédios da fragilidade
humana, entenda que a natureza dificilmente terá produzido algo de mais útil para a
conservação dos homens do que a Medicina, única das artes que impera também aos
imperadores, pelos quais (segundo diz, Plínio)79 foi altamente celebrada, a ponto de
se poder acreditar que essa parte dos estudos está mais diligente e cuidadosamente
guardada, como se soubessem que é extremamente necessária aos humanos usos;
nem a agricultura garante mais os alimentos aos corpos sãos do que a Medicina
saúde aos doentes. Nesta sabedoria consta-nos ter havido muitos peritos, dentre os
professores; foram eles que a dividiram em três partes, uma que dava remédio com
a alimentação, outra com medicamentos, a terceira com a mão – chamaram-lhe os
Gregos ̨̡̡̠̥̝̥̯̣̯̥̦̩̱̝̬̝̦̰̯̥̦̩̲̥̬̫̰̬̟̥̦̩̚̚̚ 80. A Antiguidade acreditou que os
seus inventores foram deuses81, pois também Apolo a atribui a si com estas palavras:
Minha é da Medicina a invenção, e pelo mundo
Seu autor sou; das ervas o poder me é sujeito 82.
Ѣ̣̯̬Ң̭̟Қ̬ж̩Ҟ̬½̧̧̫Ԗ̩ж̩̯̘̪̥̫̭к̴̧̧̩ 84.
Foi sob a sua autoridade que as doenças foram referidas à ira dos deuses, e por
isso sabemos que se lhes pede o auxílio habitual. Mas vejamos – pergunta-se pelas
recompensas da arte? Erasístrato, nascido de uma filha de Aristóteles, diz Plínio,
estando o rei Antíoco fortalecido da sua doença, foi presenteado com cem talentos
pelo rei Ptolomeu, seu filho85. Passo à frente muitos médicos celebérrimos, que tiveram
junto de príncipes a remuneração anual de trezentos e cinquenta sestércios. E Quinto
Estertínio obtemperou aos príncipes que se contentava com quinhentos sestércios,
pois mostrava que auferia da cidade seiscentos de cada vez, feito o cômputo das
29 68 2 BELCHIOR BELEAGO
BELCHIOR BELEAGO
Quanta uero Critobuli fama fuit extracta sagitta ex oculo Philippi regis,
et citra oris deformitatem curata orbitate luminis? Atque ut hunc quoque
locum Sanctae Scripturae testimonio concludam: «Altissimus creauit de terra
Medicinam, et uir prudens non abhorret illam».
Theologia [27] Vnum ac ultimum superest, auditores, sapientiae Christianae
genus, ad quod explicandum non optarim iam Tullianam eloquentiam,
quae si tantae disciplinae magnitudinem reputemus, plane obmutescet, et
oppressa stupore omnino silebit; quantum enim inter Christi sapientiam
et humanam interest, tantum inter Christianam et humanam eloquentiam
intersit, opus est. Quid igitur faciemus, auditores humanissimi? Eam rem
quam propter illius diuinam amplitudinem nulla dicendi ratio explicare
potest, omittemus? At id esset impium scelus, de artibus humanis disputare,
diuinam uero silentio praeterire; quo si ad tantam altitudinem aspirare nullo
modo possumus, saltem id quod poterimus efficiemus. Accedit quod haec
sanctissima disciplina orationis ornamenta non flagitat, mendacium enim
ornare solemus, ut specie placeat aliena, et auditores facilius credant capti
orationis ornatu lenocinioque uerborum.
At Christi ueritas simplex, et nuda nullis additis extrinsecus ornamentis
luculentior atque ornatior omni eloquentia per se est. In iudicii itaque
contentione, opulenta facundia uolubili ambitione iactetur; cum de Domino
et Deo uox est, uocis pura sinceritas non eloquentiae uiribus nititur ad fidei
argumenta, sed rebus. Denique a sacrosancta Theologia accipiemus non
diserta, sed fortia, nec ad audientiae popularis illecebram culto sermone
fucata, sed ad praedicandam indulgentiam rudi [28] ueritate simplicia.
Haec illa est sapientia, quam Pythagoras humano ingenio teneri non posse
intellexit, cuius tamen se studiosum profitebatur. Haec illa est, in qua
tantopere philosophi ueteres abiectis rebus familiaribus, et uoluptatibus
elaborauerunt; sed nec adepti sunt quod uolebant, et operam simul atque
industriam perdiderunt. Quia ueritas, hoc est summi Dei uerbum, humanis
nequit comprehendi sensibus, maior enim est Deus praepotens, quam ut illius
consilia et dispositiones humana consequatur cogitatio. Verum non est passus
misericors Deus, ueritatis ac sapientiae lumen requirentes diutius oberrare,
se nobis conspiciendum exhibuit, ut illo duce religionem, fidem coleremus,
et immortalitatem consequeremur; et ut nos uera ista sapientia instrueret
(quae natura sua infinita est et incomprehensa) Sanctissimae Virginis utero
sese inclusit, ut inde exortum lumen suum in omnes gentes diffunderet.
O humilem sublimitatem et sublimem humanitatem, quam siquis dicendo
uelit complecti, stultius meo iudicio egerit, quam si conetur uniuersum
mare cyatho continere. Verum nos, ut ipse se contraxit, orationem quoque
de ipsius laudibus, quae nullis finibus circumscribi possunt, contrahamus
necesse est, ipsumque corde potius, quam lingua complectamur, et imitemur,
ut per ipsum aliquando immortali felicitate fruamur. Tradamus nos in primis
ORAÇÃOORAÇÃO
SOBRE ODE
ESTUDO DEAS
TODAS TODAS AS DISCIPLINAS
DISCIPLINAS 2 69 39
casas 86. Quanta não foi, realmente, a fama de Critobulo, por ter extraído uma seta
de um olho do rei Filipe, e, sem deformação do rosto, lhe ter curado a cegueira 87?
E, para encerrar também este ponto com um testemunho da Sagrada Escritura:
«O Altíssimo criou da terra a Medicina, e o varão prudente não se afasta dela» 88.
[27] Uma única e última coisa resta, ouvintes, o ramo da Sabedoria Cristã. Para Teologia
salubérrimos [29] guias. Quem se entregar a eles, por mais irascível, maldizente e
desregrado que seja, inflamá-lo-ão no zelo da virtude e da religião, já arrancado aos
vícios pela palavra de Deus. É este, com efeito, o poder do Verbo Divino, converter
facilmente as almas, dos vícios da vida, à piedade. Ver-se-ão realmente os ambiciosos
e avarentos tenazes, de repente, liberais e a vender as suas possessões e a entregar
o preço para uso dos pobres; distinguir-se-ão os tímidos e os dotados de pequena
coragem a lançarem-se às chamas e às cruzes; ver-se-ão aqueles que antes estavam
manchados por adultérios e crimes inúmeros recomendar-se pela sua incrível pureza
e santidade; os que eram cruéis e ávidos de sangue, salientarem-se pela glória da
sua bondade; e, para não ir mais longe, não só apagar com uma só purificação todos
os vícios, como também trazer, por benefício de Cristo, a sobriedade, a castidade, a
continência, a clemência, a equidade, a prudência, e todas as restantes virtudes às
almas que Lhe são consagradas. E isto faz-se de graça e depressa. Basta que o peito
tenha sede de sabedoria e os ouvidos se abram – os ouvidos, evidentemente, que
Cristo procura no Evangelho, dizendo: «Quem tiver ouvidos de ouvir que oiça» 90.
Venham pois os esfaimados, para que, saciados do celeste alimento, não sintam fome
posteriormente. Venham os que têm sede, para haurirem a água salutar da celeste
e perene fonte. Com esta comida e esta bebida, os cegos verão, os surdos ouvirão,
os coxos andarão 91, os mudos falarão, os enfermos terão saúde, os estultos terão
juízo, pois tudo o que há de bom dimana [30] desta santíssima fonte para todos os
mortais que têm sede de piedade. Daqui deriva toda a virtude e sabedoria para nos
fazerem imortais. Serve a sabedoria para entendermos por que processo podemos
chegar à glória celeste, a virtude para lá chegarmos. Saber é a virtude de conhecer
a Deus. Virtude é prestar-Lhe culto; não só devemos, no culto, saber, isto é, estar
instruídos no que temos e como devemos prestar culto, como no saber, prestar culto,
isto é, executar em factos e em acções aquilo em que estamos instruídos. Nem a
virtude se deve separar da sabedoria, nem a sabedoria afastar-se da virtude. Estes
são os meios que nos levam por um caminho certo e sólido, os que, afastando toda
a névoa, não consentem que caia ou pereça quem os segue.
Acabámos finalmente de patentear-vos, senhores ouvintes, as fontes donde
podeis beber e mostrámos todos os caminhos das ciências, cujos méritos, se os
quisesse desenvolver de per si, não era um só dia, mas sem dúvida um ano que
me enfraqueceria a falar. Uma só coisa acrescentarei, contudo, e bem me parece
que a devo dizer: não sei se por entorpecimento dos homens, se pela paixão das
armas, todos estes géneros de artes estiveram jacentes nas trevas durante muito
tempo, sob a forte opressão da barbárie, até que os reis chamaram a si esta causa
tão ilustre e se deleitaram a tal ponto com estes estudos que, mesmo no meio das
maiores ocupações, se regozijavam com ouvir diariamente um pouco de Literatura
e aprender com a prática dos eruditos; ponto em que sempre foi grande o mérito
dos Reis de França, que, pagando honorários [31] no seu reino a doutíssimos [Os Reis de
França]
professores, fizeram jorrar as fontes das Boas Letras; e, eliminando antigas lacunas,
conseguiram que as Letras corressem puras e cristalinas.
21 60 62 BELCHIOR BELEAGO
BELCHIOR BELEAGO
Lusitaniae Rex Sed maior Ioannis huius nominis tertii Lusitanorum Regis Christianissimi
gloria iam per omnia ora apud exteras nationes uolitans. Qui cum uideret
antiquorum imperatorum, exterarum nationum, regum potentissimorum res
gestas, cum suis nec contentionum magnitudine, nec numero proeliorum,
nec celeritate conficiendi, nec uarietate posse conferri, non contentus
tamen fortuna sua imperia, prouincias, uictorias, ac triumphos incredibiles
sibi porrigente, non conquieuit, donec Litteras quasi toto orbe fugientes in
suum regnum reduceret, ut uirtute etiam quemadmodum et fortuna reliquos
principes longe superaret. Saepe mihi apud me cogitanti, fingentique qualis
quantusque is esse deberet princeps qui nutu ac imperio mari, terris pacem,
bella gereret, nunquam uoto succurrit concipere similem huic quem habemus.
Nam, ut omittam gubernandi scientiam, quam sic a patre in uictissimo rege
Emmanuele accepit, ut eam multis aliis uirtutibus egregie cumularet, et
pleraque alia, quae integra illibataque uestris cogitationibus reseruari malo,
quam carptim breuiterque perstringere, illud quod ad institutum pertinet,
attingam: nempe quanto studio mores iuuentutis informet; quem honorem
[32] dicendi magistris deferat; quanta dignitate sapientiae professores afficiat.
Principio enim cum Rex sapientissimus animaduerteret ex nulla re alia
posse maius ornamentum Reipublicae accedere, quam ex litterarum studio,
nihilque magis ualere ad animos pietatis muneribus excolendos, et omnem
suam cogitationem in Reipublicae ornamentis defigeret, selectos sui regni
adolescentes, minime parcens sumptibus in florentissimam omni disciplinarum
genere Academiam Parisiorum, tanquam ad Bonarum Litterarum mercaturam
misit, eosque postea non inanes, nec urbis auctoritatem dedecorantes in hanc
suam Academiam reuocauit. Nec iis contentus ex uariis nationibus homines
doctissimos summis praemiis illectos accersiuit, qui Lusitanam iuuentutem
bonis artibus erudirent, et res obscuritate inuolutas nobis explicarent;
erunt itaque illorum opera uobis, adolescentes, omnia expedita, prompta,
facilia, modo non pigeat ad percipiendam disciplinam audiendi patientiam
accommodare. Neque uero minimum signum dedit Rex optimus suae erga
hanc Academiam beneuolentiae, cum te, rector illustrissime, ducem nostrae
[D. Andreas a Academiae, praestantissimum elegit, cuius consiliis nostra haec respublica
Norogna]
litteraria constitueretur, quam tanta prudentia et aequitate gubernas, ut facile
tibi immortalem laudem polliceri ualeas. Accessit illud praeclarissimum [33]
testimonium regiae uoluntatis erga rempublicam quod tanta cura iuuentutis
educationi consuluit, ut hac de causa Gymnasium florentissimum litteris
dicaret, professores artium maximarum, uiros in omni genere litterarum
[Andreas a potissimos ad hoc munus euocauit. Quae laus non mediocris fuit Andreae
Gouea]
Goueani, qui in iussu regis uolens iuuentutem institui, elegit uiros qui
rectissime iuuentutem optimis disciplinis imbuerent, quorumque ductu
nostri homines cursum omnium disciplinarum conficerent quae eodem
uinculo continentur. Hunc nobis tristia et importuna fata hac ultima aestate
ORAÇÃOORAÇÃO
SOBRE ODE
ESTUDO DEAS
TODAS TODAS AS DISCIPLINAS
DISCIPLINAS 21 60 73
Mas maior é a glória de D. João III, o Rei Cristianíssimo dos Lusitanos, que já voa O Rei de
Portugal
de boca em boca pelas nações estrangeiras. Esse, vendo que os feitos de armas dos
antigos imperadores, das nações estrangeiras e de reis potentíssimos se não podiam
comparar com os seus, nem pela grandeza dos esforços, nem pelo número dos
combates, nem pela rapidez da execução, nem pela variedade, não contente mesmo
assim com a sua fortuna, que lhe oferecia impérios, províncias, vitórias e triunfos
incríveis, não descansou até trazer as Letras, refugiadas quase do mundo inteiro, ao
seu reino, para vencer de longe os outros príncipes na virtude, tal como na fortuna.
Muitas vezes, pensando comigo e imaginando quão forte e grande devia ser um
príncipe, que fizesse a paz ou a guerra, com o gesto e o poder, no mar e na terra,
nunca tive a aspiração de o conceber semelhante ao que nós temos. Na verdade,
para já não falar na ciência de governar, que recebeu de seu pai vitoriosíssimo, o
Rei D. Manuel, e cumulou brilhantemente de muitas outras virtudes, e muitas outras
qualidades, que prefiro reservar íntegras e intactas aos vossos pensamentos, a aflorá-
-las parcial e brevemente, tocarei naquilo que diz respeito ao meu plano: a saber,
com quanto cuidado modela os costumes da juventude, que honras [32] tributa aos
mestres de linguagem, com quanta consideração distingue os professores de ciências.
No princípio, como o Rei sapientíssimo compreendesse que de nenhuma outra
coisa podiam provir maiores títulos à Nação do que do cultivo das Letras e que nada
tinha mais força para aperfeiçoar os corações nos dons da piedade, e, como fixasse
todo o seu cuidado no engrandecimento do País, mandou jovens escolhidos do seu
reino, sem se poupar a despesas, para a Universidade de Paris, florescentíssima
em todo o género de disciplinas, como que para comprar as Belas-Letras, e depois
chamou-os de novo a esta sua Universidade, não vazios, nem a envergonharem o
prestígio da urbe. E, não contente com isto, mandou vir de várias nações homens
doutíssimos, atraídos pelas maiores recompensas, para instruírem a juventude
lusitana nas boas artes e nos esclarecerem sobre factos envoltos em obscuridade; e
por isso as obras deles serão todas, ó jovens, claras, prontas, fáceis para vós, desde
que não vos enfadeis de aplicar a vossa paciência de ouvintes à compreensão da
disciplina. Não deu o Rei magnífico sinal menor da sua benevolência para com
esta Universidade, quando vos elegeu a vós, reitor ilustríssimo, chefe excelente da
nossa Academia, para sob os vossos desígnios se constituir esta nossa república das [D. André de
Noronha]
Letras, que governais com tanta clarividência e equidade, que facilmente conseguireis
assegurar-vos um louvor imortal. Acresceu aquele preclaríssimo [33] testemunho da
vontade régia para com a Nação, em ter velado com tanto cuidado pela educação
da juventude, que por esse motivo consagrou às Letras um Colégio florescentíssimo
e chamou para este cargo professores do maior saber, homens eminentíssimos em
todos os ramos das Letras. Não foi medíocre o valor de André de Gouveia, que, [André de
Gouveia]
desejando que a juventude fosse ensinada segundo a ordem do rei, escolheu homens
que a imbuíssem perfeitamente das melhores matérias, e sob cuja direcção os nossos
executariam o curso de todas as disciplinas que estão ligadas pelo mesmo laço. A este
arrebataram-no-lo no passado verão fados tristes e importunos, e com a sua morte
21 60 84 BELCHIOR BELEAGO
BELCHIOR BELEAGO
Dixi.
ORAÇÃOORAÇÃO
SOBRE ODE
ESTUDO DEAS
TODAS TODAS AS DISCIPLINAS
DISCIPLINAS 21 60 95
Disse.
(Página deixada propositadamente em branco)
II. LATIM RENASCENTISTA 271
“Digo que se sabe mais em um dia agora pelos Portugueses do que se sabia
em cem anos pelos Romanos” – escreveu Garcia de Orta no Colóquio XX, conden-
sando numa expressiva hipérbole o assombro causado pelo inesgotável caudal
de factos e conhecimentos novos desencadeado pelos nossos descobrimentos e
conquistas de Quinhentos. E, para acentuar bem este desequilíbrio entre a antiga
ciência livresca e o novo espírito crítico, opõe nos seus diálogos Ruano, doutor
de Alcalá e Salamanca, bem versado em Dioscórides, Galeno e Plínio, à sua pró-
pria pessoa, de idêntica formação universitária, mas afeiçoado pela observação e
experiência de trinta anos no Oriente. Os Colóquios dos Simples e Drogas são assim
uma obra extremamente significativa na história da Ciência, que se insere, aliás,
num movimento mais amplo de renovamento de métodos de trabalho em que os
Portugueses ocupam lugar de relevo, nem sempre devidamente reconhecido1.
Tratando-se de um trabalho de pioneiro, não é de surpreender que o autor
tenha obedecido ao gosto da época, buscando para apadrinhar a sua obra nomes
ilustres, que a recomendassem ou a exaltassem. É do conhecimento geral que uma
das raras líricas de Camões dadas à estampa em vida do poeta é a Ode ao Conde do
Redondo, na qual habilmente aproveita o mito do Canto XI da Ilíada e sobretudo
dos Poemas Cíclicos sobre o saber medicinal de Aquiles, para sugerir ao Vice-Rei
da Índia, que “ao soberbo exercício da milícia” deve juntar o mecenato da “ciência
podalíria subtil”, para ser “semelhante ao Grego forte”. Lembremos apenas as três
estrofes mais directamente referentes ao saber de Orta:
*
Publicado em Louvores latinos aos ‘Colóquios dos simples e drogas’, Porto, Centro de Estudos Huma-
nísticos (1963).
1
Para outros exemplos, vide A. J. da Costa Pimpão, História da Literatura Portuguesa, Vol. II, Coimbra,
em curso de publicação, pp. 4-6. “Observando e conferindo, os Portugueses cultos do séc. XVI tornaram-se
grandes elaboradores desse espírito crítico que fermentará na Europa dos séculos seguintes” – observa
o ilustre Professor a p. 5.
272 LATIM MEDIEVAL E RENASCENTISTA
Favorecei a antiga
Ciência, que já Aquiles estimou;
Olhai que vos obriga,
Verdes que em vosso tempo se mostrou
O fruto daquela, Orta, onde florecem
Prantas novas, que os doutos não conhecem.
E vede carregado
De anos, letras, e longa experiência,
Um velho que ensinado
Das gangéticas Musas na ciência
Podalíria subtil, e arte silvestre,
Vence o velho Quíron de Aquiles mestre.
EPIGRAMA
de
TOMÁS CAIADO
a
GARCIA DE ORTA
Médico na Índia e Doutor Ilustríssimo
Bem pudera eu compor este tratado em latim, como o tinha muitos anos
antes composto, e fora a Vossa Senhoria mais aprazível; pois o entendeis
melhor que a materna língua, mas traladei-o em português por ser mais
geral, e porque sei que todos os que nestas indianas regiões habitam, sa-
bendo a quem vai intitulado, folgarão de o ler.
Nenhuma cousa sei, que logo o não diga aos boticários e físicos, e a to-
dos; e isto bem sei que não é bom pera mim, porque dizem depois que eles
acharam estas cousas, e levam a glória de meus trabalhos, e eu não o digo,
senam por aproveitar a todos.
O qual teve começado em língua latina, e, por ser mais familiar a maté-
ria de que escrevia, por ser importunado de seus amigos e familiares para
2
Podem ver-se exemplos típicos na edição de Francforte do Thesaurus Pauperum de Pedro Hispano
(publicados e traduzidos em apêndice à nossa edição, in Studium Generale, vol. IV, 1957, pp. 134-139).
3
P. 182 do Vol. I da edição do Conde de Ficalho, Lisboa, Imprensa Nacional, 1891. Nas transcrições dos
textos antigos modernizámos a ortografia, deixando ficar apenas os arcaísmos de interesse morfológico.
4
P. 11 da mesma edição.
274 LATIM MEDIEVAL E RENASCENTISTA
A identificação proposta por Ficalho é quase certa, embora não deva ter-se
por improvável que a ascendência metropolitana deste goês entroncasse na do
Henrique Caiado, autor das Éclogas. Em compensação, o valenciano Dimas Bosque,
que escreveu outro elogio latino dos Colóquios, é bem conhecido como médico
da armada do Vice-Rei D. Constantino de Bragança e físico-mor9. O latim da sua
epístola a Tomás Rodrigues está mais próximo dos modelos clássicos do que o de
muitos humanistas famosos da época. Deve notar-se especialmente a elegância da
construção e a feliz escolha do vocabulário, a que apenas fazem excepção o uso
5
Cf. Augusta Paria Gersão Ventura, Clúsio, Portugal e os Portugueses, Coimbra, 1933, que remete
para o longo estudo do Conde de Ficalho, Garcia de Orta e o seu tempo, Lisboa, 1886, p. 374.
6
P. 178. O artigo ocupa no volume as pp. 61 a 246.
7
P. 16.
8
Ásia, VI, IV, 6.
9
Para mais pormenores, vide edição do Conde de Ficalho, Vol. I, p. 15.
II. LATIM RENASCENTISTA 275
DIMAS BOSQUE
médico valenciano.
10
Cf. Du Cange, Glossarium Mediae et lnfimae Latinitatis, s.v., que lhe dá o sentido de cadere, explicando
praesertim dicitur de equo, e regista como exemplo mais antigo o Vetus Glossar. Sangerman. num. 501. Põe
em relação o verbo caespitare com caespitatores, que aparece num comentário de Sérvio ad Aen. XI. 671.
11
Também o próprio Garcia de Orta cita uma frase do começo do Catilina de Salústio na sua epístola
dedicatória «Ao muito ilustre Senhor Martim Afonso de Sousa».
12
50D – 51B.
276 LATIM MEDIEVAL E RENASCENTISTA
Deixemos de parte a doutrina dos Árabes, que são aqui e ali sujeitos a alu-
cinações na descrição dos simples, e assim, ao tratar deste assunto, trope-
çam logo no limiar, de tal modo que será difícil coligir das suas sentenças
quaisquer informações acertadas, às quais sejamos capazes de entregar a
nossa confiança, e a saúde dos doentes. No nosso tempo muitos houve que
escreveram muitas obras, mas fazem narrativas fantasiosas e ridículas acerca
daquelas plantas que crescem na Índia oriental, desconhecidas até agora,
mas doravante muito conhecidas, devido às navegações dos Portugueses.
Há-os que dizem que o marfim é um fóssil; outros afirmam que é coisa que
se não encontra, quando há tal abundância dele nesta região que o invictís-
simo Rei dos Portugueses e das Índias, D. Sebastião, não só poderia cobrir
dele os telhados do palácio real (como dizia Ovídio acerca de Apolo), mas
seria capaz de construir uma cidade muito espaçosa com marfim do mais
brilhante! Outros exprimem-se de modos divergentes acerca do espédio,
ao discutir entre si a sua natureza, quando ele é muito conhecido entre
nós, e vemos diariamente enormes quantidades provenientes das Ilhas
Molucas, e encontramos igual abundância nos montes das imediações, e
nele se verifica com toda a clareza quanto dele se escreveu!
Omito o que dizem a respeito da raiz da China, que nasce em montanhas
altíssimas e é guardada por animais ferocíssimos e serpentes venenosas!
Efectivamente, não há parte alguma da região litoral da China que não
esteja cheia desta raiz, mas a distância da terra e o desconhecimento
de uma região incógnita facilmente desculpará de erros evidentíssimos e
de fábulas ridículas varões aliás muito doutos. É que quem quiser descrever
a história dos simples deve observar as ervas ao nascer, contemplar o seu
crescimento, examinar os ornatos e variedades das flores e, finalmente,
conhecer o tempo da sua maturação, a fim de poder situar entre os li-
mites da verdade as suas diversas mutações, compreendidas através das
idades. É assim que eu entendi que fazias, ilustríssimo Professor, quando,
na florescentíssima Universidade de Coimbra, eu me dedicava ao estudo
na Faculdade de Medicina, sob o teu magistério. É que tu tinhas o cuidado
de trazer para o jardim da tua casa as ervas agrestes dos montes incultos,
para as conheceres ao nascer, no crescimento, na floração, e, finalmente,
na maturidade. É também a ti que eu tenho como mestre para sempre; e o
que quer que eu tenha encontrado de bom na Arte de Apolo e na cura das
doenças, a ti o endossarei.
Como eu tivesse encontrado nesta região o Doutor Garcia de Orta, ho-
mem da minha maior amizade, que anda a escrever acerca dos simples,
aconselhei-o a confiar o livro à tua tutela entre os doutos, coisa que ele fez
da melhor vontade. É que ele sabia, ancião ilustríssimo, que és tu agora o
patrono de todos os médicos da Europa, e não desconhecia a tua benevolência
II. LATIM RENASCENTISTA 277
para com os outros; acrescente-se a isto o que eu lhe referia vezes sem
conta, acerca do teu cuidado e diligência em distinguir os simples e em
discernir as suas propriedades e efeitos. Eia, pois, distintíssimo Professor!
Que o livro, munido com o teu escudo e confiado na autoridade de tão alto
varão, ouse avançar entre os doutos, sem temer a Zoilo, e percorrer todas as
universidades europeias, a fim de que a juventude médica receba os frutos
e remédios simples da Índia retratados com sincera verdade.
Adeus.
Goa, 5 de Abril.
13
Sobre esta figura, veja-se o artigo citado de A. da Silva Carvalho, pp. 177 e 239, e a edição do
Conde de Ficalho, vol. I, pp. 15-16.
14
Cf. A. da Silva Carvalho, op. cit., p. 169: “Não falando dos jardins de simples instituídos nos
conventos, citam-se como primeiros os de Itália, criados em 1545 em Pádua por Francisco Bonafede,
em Pisa por Luca Ghini e pouco depois em Bolonha por Aldrovandi. Pois antes destes começou Orta
o seu jardim de simples na sua casa de Goa e na sua terra de Bombaim, onde pela primeira vez se
tentou a aclimação das espécies europeias e outras.