Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
DO PASSADO M DI -V.
133
Celeiro e relíquias:
o culto quatrocentista dos mártires
de Marrocos e a devoção dos Nus
r cen.iriCl a -id
lo martire_ que no_ propomo elu-1
q
A rr n 1 m u ~ an m li0 a fom
um reahd de bem pr ente ao lon0 do · ulo Ã'V em t do o '"'- A.......
enume p o reino, durante entúria de qu tro ent
du em medi _,4 ano não havendo n nhum
m ". ui ermo pre tar algum crédito à narra ti\
ral orno roni t ten n io e p ial emp p
PARTE 1. A COMEMORAÇÃO DAS ORIGE . ·s: REIS, SANTOS E HERÓIS 135
eiros da sua ordem 6 , podemos identificar a crise a que se refere como a ocor-
entre 1422-2 , uma vez que a de 1412-14 sucedeu no princípio do priorado de
D. Gonçalo e a de 1436-1441 já o ultrapassa em grande parte.
O texto interessa-nos sobretudo enquanto testemunho de uma atitude men-
-ace as crises agrícolas. Do ponto de vista das populações urbanas, as que mais
em com a penúria dos cereais, e das rurais, para quem as crises climáticas se
""·=---etam num contexto de punição divina, a riqueza do mosteiro, em tempo de
culdades económicas, e o papel de redistribuidor de bens que protagoniza, atra-
-es de um sistema de assistência a populações carenciadas que vai da abertura do
· o aos mais necessitados até à distribuição de roupas aos pobres7 , só pode ser
r--=...... unho de favor celeste, de milagre mesmo. O poder económico da instituição é
coasequência do seu poder religioso, do estatuto privilegiado de mediadora entre o
estre e o celeste8.
De D. Gonçalo as populações da região de Coimbra guardariam a imagem vei-
\...4.-.~= pelo mosteiro: um religioso que desde pequeno a ele se dedicara e que pelas
- ,irtudes e vida honesta fora eleito para prior. Um prior amigo dos cónegos e
pobres., confiante em Deus e nos santos para resolver os problemas que se lhe
e;,aravam. Como aquele que aconteceu quando o alcaide-mor da cidade, com o
· do infante D. Pedro, duque de Coimbra, e das gentes. do concelho, decidiram
u ,.......... as águas da fonte nova do mosteiro para as conduzirem até à Sé e aí fazer um
laÍ.ariz. ~ ~essa ocasião de flagrante atentado aos bens do mo teiro, contava-se que o
apelara para os mártires de Marrocos, para o poder das uas reüquias, e para os
reis sepultados no mosteiro, Afonso Henriques e ancho I, que embora não canoni-
zados pela Santa Sé, eram celebrados pelos cónegos9 . Fazia-lhes mis as e perando a
ajuda e intervenção.
O alcaide, Lopo Vasques, de <lenhava da azáfama litúrgica que ia pelo mo teiro:
Deu.aí-os andar com os reis mortos. Andemos com o vivo e veremo quem po-
~J Vm.wmo Serrào, A historiografia portuguesa, vol. li, L!Sboa, Verbo, 1973, 234. Acerca da ment.ahdade
.,. va ;u ob1ervações feitas por J. Mattoso a Frei Leão de S. Tomás, na introdução a reedição da Benedictina
uma l u.\baa., Imprcrua. 'acional 1974, vol. I. XXXVI -XLIX). uma vez que. de uma forma geral, se podem
1,0 croouu crúzJO.
<J Duby anah~ Kimtic.a atitu<k, a propósito do valor ideológico das biografias do abade Hugo de Cluny:
,.t. s •rts r.,rdcu ou o imagmárw do feuaalismo, Estampa, Lisboa, 1982, 226· 229.
• ·qa w A. Vauchn, IA spmtualité du moyen àge occithntal, PUF, Pans., 1975, 51-65.
' (.JI ncntOI croníst!C.O! contido no Códice 79 da Biblioteca Pública Municipal do Porto, proveniente
~, ro dt ~ Cruz, e que foram parcialmente publicados por HercuJano sob a designação de Chromcas
=,:w t rnemónas avulsaJ <h S. Cruz <h Coimbra (PMH, , 23-32) e integralmente por Antómo Cruz ob o título
;,- era conh«ldo o códJa no m~eíro - Livro das Lembranças (Anau. Crónicas e Memórias Avulsas de anta
',r..z tú r,mmb,a, 81bfioteca Pública Municipal, Porto, 1%8, 9-147), contêm abundantes episódios relativos a
- ~ muac'"°1.a dt Afonso I para com o mostetro e dados cfuperso acerca da particular reverência que era
~ a h ~ túmulo
I\ < ON\ I RU<.,.Ao IH> l'A ~~A l>O M 1•. l>fl•.VAI. . 'J'l·.X'/C)\ INf.D IH) \ E PUHLICADO\
d rJ m i~t teri dito, s 'gundo a. memórias dos cónegos de Santa Cruz'''. Acto de
d c;,crcnça · cv ram nte punido: um se u filho, Rui Lopes, morre quando se banhava
no Mondego, tendo apenas água pelo joelho e sem que os dois escudeiros que com
ele iam lhe pud ' sem valer. rn frade in form a então o alcaide, que nessa noite tinha
son hado m a m rte d filho: foram as águas de Santa Cruz as responsáveis. Pouco
d pois, m rr Pedro Afi n o das Aguas, um dos instigadores para a construção do
chafariz da é. Toda e ta érie de mil agres teria afastado o projecto.
A imag m qu transparece do prior é assim a de um homem bondoso, caridoso,
pacífico, d v to do santos e confiante na justiça divina, sendo por ela largamente
re ompen ad . Uma imagem construída. Destinada a ser espelho e modelo de lei-
go , nomeadamente d s dependentes de Santa Cruz a que se pregava a submissão e
onfiança no m steiro, governado quase por santos e como tal cenário de milagres
infind s.
A figura de D. Gonçalo como administrador sagaz dos bens do mosteiro, como
defen or enérgico das suas propriedades e privilégios, apelando amiúde para a jus-
tiça e favores régios, é uma imagem interna, de chancelaria, ligada a documentos e
ao círculos de letrados. Difícil de entender e interpretar pelas camadas populares,
logo silenciada. Com efeito, eleito prior com intervenção de D. João I e a contento da
rainha de quem fora pajem antes de tomar o hábito em Santa Cruz, toda a actividade
de D. Gonçalo é posta ao serviço da restauração de uma correcta administração dos
bens do mosteiro 11 •
Em 1423, alcança provisão de D. João I para que Rui Fernandes, juiz da coroa,
demarque as terras de Santa Cruz, iniciando-se a feitura de um tombo de proprie-
dades. Paralelamente, consegue do mesmo rei o privilégio de ter juiz para mandar
executar e penhorar os que deviam rendas ao mosteiro e o de que os filhos dos ca-
seiros de Santa Cruz não fossem tomados para soldados contra sua vontade. Em
1432, consegue que D. João I repreenda o bispo de Coimbra, D. Álvaro Ferreira, por
ter mandado quebrar as portas da quinta, celeiro e adega de Poiares, pertença dos
cónegos, para aí se aposentar, atentando contra privilégio do mosteiro. Obtém em
1434 carta de confirmação das graças e privilégios dados a Santa Cruz por D. Duarte,
que ainda o acrescenta. Opõe-se frontalm ente, em 1436, ao concelho, alcaide e e-
nhor de ~oirnbra, D. Pedro, no caso da tentativa do desvio de águas do mo teiro.
mand ndo mi ário que protestem junto do rei, instruindo o cónego para que d
noite ob truí em com grande pedras a vala começada a fazer por rdem d al ai-
d , "xcomungando, na pre ença de um tabelião, o concelho e o que a tenta m
12
Sobre as propriedades e privilégios do mosteiro ver Ruy de Azevedo, Documentos falsos de anta Cruz,
Lisboa, 1935, e Maria Helena Coelho, "O senhorio crúzio do Alvorge na centúria de Trezentos" in Estudo de
História de Portugal em homenagem a A. H. de Oliveira Marques, vol.1, E tampa, Li boa, 177-240. o é ulo XVI,
Pedro Álvare ogueira fez uma tentativa de avaliação da riqueza do mo teiro: era neste tempo o priorado de
santa Cruz Cousa mui grande, porque tinha todas as terra que agora tem a Vniuersidade que rendem mais de
sete Contos de rs, e tudo o que agora rende o mosteiro que sam outros seis Contos ou mais E a iurudiscão de muitos
lugares E tinha a Cidade de Leiria que se desmembrou de que se fez hum bispado E a Vi/la darronches que se aplicou
ao bispado de portalegre. E outras muitas terras (Livro das Vidas dos Bispos da é de Coimbra, Arquivo e Mu eu
de Arte da Univer idade de Coimbra, Coimbra, 55). O autor escreve depoi da extinção do priorado mor: a
criação do bispado de Leiria (1545) anula os ben que a mesa prioral ali detinha, do mesmo modo que a criação
do b1 pado de Portalegre (1549) a desapossa das igrejas de Arronches, endo as restante rendas incorporada
na Univer idade (1545) - cf. A. Nogueira Gonçalves, "Mosteiro de Santa Cruz. Breve notícia hi tórica" in Idem,
Estudos de História da Arte Medieval, Epartur, Coimbra, 1980, 161 - 168. Foi esta riqueza material que possibilitou
ao mosteiro um importante protagonismo cultural durante toda a Idade Média: A. Cruz, anta Cruz de Coimbra
na cultura portuguesa da Idade Média, Porto, 1964; J. Mattoso, "Cluny, crúzios e ci tercien es na formação de
Portugal" m Actas do Congresso Histórico de Guimarães e Sua Colegiada, voL V, Guimarães, 1982, 288-294.
u ão bastante antigas as hostilidade entre o bi pos de Coimbra e o priores de anta Cruz em torno
das re pectivas prerrogativas e lesiá tica e jurisdicionai . Essa longa rivalidade in titucional terá como ponto
culminante, no finais do éculo XV, o preparativo de uma batalha campal entre as forças do bi po D. Jorge de
Almeida e a do prior D. João de oronha, 6 a cu to, e à última hora, evitada por iniciatiYa r gia. eja-se sobre
o ~ t o: Pedro Alvare ogueira, op. cit., 52-55; icolau de anta Maria, op. cit., 270-274.
I3S A CONSTRUÇÃO DO PASSADO MEDIEVAL. TEXTO 1:--:ÉDITO E PCBLICADO
II. A PESTE
4
Aparecem relatados de forma M"ru1vdmente idêntica no chamado L,uro de .\t,l.igres dos \fortir, ·
Marrocos. códice 770 da füblwteca Pública Municipal do Porto compo to, na ,u.i qua e totalidade. no tin.i, do
seculo X\' e no Tratado da u1da & martyrro dos cinco .Wartires de .\farrocos, tmpre O em Coimbra. m 15().,
devido a m1c1at1va do pnor geral Jorge de Barbosa. O cap1tuJos solto que apare-em no final do codJCe da Crom ·w
de 1419, publ1Cado por Magalhães Bato (Crónica de Cinco Rm de Portugal, Uv C1nl1.U1 ao, Porto, 1945, 245 e
que ~o. tal como as fonte~ atr~ mencwnadas, de ongem cruzia, apenas aludem ao milagre; 0 m mo se omite no
texto que da m~ma cronica se conserYou num cod1ce da Casa de Cadaval publicado por uva Tarouca Crom,w
dos ~ete Prrme,ros Reu de Portugal Academia Portuguesa da H1 tona, L1Sboa, 1952 ·-tJ.
Citamos O milagre de Vasco Martim e o de João C~os de acordo com a versão do Tratado. 66 _6 -
Marco<» de Lisboa, op c,t., CLIX. Marcos de Lisboa s1tua-M" numa outra séne de fontes relatffcl5 aos
m.irtire'> e que ~ão de origem franc1~a. amda que entre as fontes cruz1as e as mendicant~ existam ponto d
c.ontacto ()\ propnos cónego'> regrantes comervaram num codice ~ sua biblioteca dois te tos hagiografiw
fr;mo~o publicado\ por Herculano ( P.WH, S, 104 - l 16J uma \·e~o breve conuda pnmitn amente na hclJTla
da Cronica dos 24 (,era1> compo ta entre 1360 e 1374 e uma ve~o longa de'Vlcia a m1nativa do franc1scmo João
da Po úa confe ,or de João II e prmmc1al da Ordem da ObservanC1a em Portugal, que Frei FranC1 o de ·enlha
wmP', ou cop11Ju em 1476 Sobre a\ fonte\ franCJscan~ ver Andr~ lvars •lo) martu de ~tarrueco de 1220
er, 1.. l teraturil h, p,mú amenc.ma" m Ar,h,vo Ibero Americano Ja sene, t. Xl\' ( 1920) }44.) 1
PARTE l. A COMEMORAÇÃO DAS ORIGENS: REIS, SANTOS E HERÓI ~ 139
~ re a respectiva hagiografia e culto, veja-se Robert Burn , EI reino de Valencia en e/ sigla XJ/1 (iglesia y
t«Jeáad), vol II, Valfocia, 1982, 447 -452.
Marcos de Lisboa, op. cit., CLXII-CLXIII. Algumas iluminuras do Comentário ao Apocalipse do Beato
tk úebatu:l propõnn a 1dentificaçào mouros-gafanhotos, associando e ta praga aos poderes maléfico do Islão, as
ua do Ant1-Cmto (cf. Ph. Sénac, L'image de l'autre. Hzstotre de /'Occident médiéval face á /'lslam, Flammanon,
ar , 1983, 33-34). Me mo que a a soc1açào tenha perdido intensidade a partsr dos avanço da Reconquista no
XJII, é natural que a referida praga, até pelos seu antecedentes bíblicos, conserva.s5e parte do ~ u sentido
õUIA'N,gK.o Sendo a un, resulta coerente o recorrer-se a anto martmzados pelos Infié1 para a combater. Por
o bdo, os período prolongados de seca, inclusive pela sua ongem cl1mát1ca afncana, também u ociavam
• ~ 1 nd'~ dos 1nun1gos da fé: de Paio Peres Correia, me tre da ordem de antiago, guardava- e a.inda no r.é-
, X\ li a roerntma de um mtlagre - fizera brotar uma nascente quando, pe egumdo os mouro , fora · atacado·
YA gr~ calor (Rodngo da Cunha, História eclesiástica da rgre;a de Lisboa, Li boa, 1642,185).
co T RU:. ) n) P ss D) 1F DIF\'Al . TE X ros l t t- n1 r S F n · Rl 1 ' .\[
em ~~elhante onjuntura p los ' <nego,: a ma\di ·iio qu~ este:. '111 ..:~tstig <ll , u
martino, lan aram ao reino d Marr ·os 'tn 1220 - F cm to fo o Rc\'110 de .\ t,1m · ·
geralmente todos o· tres àno. que logo e scgufrã nâ chc 11co cem ·ri algí'i l t'f ,. 1 s · ·a tam
grãd que cin o ano - ouu 'geral 'st •r lidadt? 11ã ·oom<!ntc 11a. 110,lidad,_, mas tam :
da saude dos home , porqu ouue gràde p ste e todo rc 110 e tam zrâdc /Ut' m rn· a
moor parte da - te durando aqu li s i o a1111os polias cinc} martyrc. que al~i I' lr .\
e sua ctã fe mataram 19•
Era un1a maldição atmo fi' ri a como aquela qu , vivia, na · p a. no r in
Por ela o mártire mo traram o eu p d r ontra o inimioo da f'. dom mo m
que, anuland -a, de de que in o ados podiam t t munhar
cristão , uplantando me n10 o fi itos de tradicionai anto pr
peste, como eba tiâo 20 • Já em ida o tinham mo trado m milagr da a...
como con tava da hagiografia: quando o exército do rei mouro r 0 r,
de Marroco , vitorio o de uma revolta e maga.da não en ntra, água u
dentas e homens e animais· Beraldo, um do in o ant , t nta
mouros da superioridade da fé cri tã e da neces idade de uma
um milagre: cava, com um pequeno pau na berma da tra a, aí rota un a n ·
cente que resolve o problema da sede, voltando a tinguir- , tã ~u
começara a jorrar, depois de todo aciado . Cri tã m ijav-an
hábitos dos frades: mostravam devoção, re onhe iam p d r • 1
III. AS RELÍQUIAS
lre, do e u pajen ,
mai j ven , inocente de pecado e sexo. Um escudeiro do
in ante, e guimo de n v a hagiografia crúzia, Pero da Rosa, alcunha proveniente
d n m da rapariga com quem e amancebara, entrou onde os ossos dos Martyres
jázião, e deu nelle hu ar como de paraLesia que ho tolheo todo de maneira que nam
s pode balir, começou de bradar que Lhe acudissem cõ cõfissam que elle fez fielmete e
alij renu iou a manceba prometedo de nam tornar mais a e/la. Acabada sua cõfissam
tornou a suas forças (.. .) porem a falia lhe nam tornou atee que ho Jffante mãdou ao
onego que Lhe posesse a cabeça de hu dos martyres sobre os peytos, e tanto que lhe foy
posta logo fa llou como dãtes23 •
A um outro escudeiro, cujo nome não é nomeado, aconteceu algo de seme-
lhante. Tendo cometido hu pecado de carne, tentou aproximar-se das relíquias que
repousavam sobre um escudo na casa de Pedro Sanches, em Marrocos. O escudo
elevou-se do solo só pousando de novo quando o profanador reconheceu a culpa e
confessou. Testemunhos tendentes a afirmar que a manipulação das relíquias deve
er monopólio clerical. Só os puros, os sacerdotes, os monges, as podem correcta-
mente utilizar. Entre o devoto e o milagre é necessário um intermediário. Neste caso,
Santa Cruz: não foi um dos seus membros que guardou as relíquias? Não decidiram
o mártires que os seus despojos ficassem guardados no mosteiro, surpreendendo o
rei e o clero que os queriam conduzir à Sé?24
A vinda de peregrinos a Coimbra muito interessava a Santa Cruz numa altura
em que e procedia ao registo escrito dos milagres do santos com o objectivo de,
entre outro , obter a respectiva canonização pela Santa Sé, o que apenas acontece
em 1481 25 • Como tal eria estimulada: era um podem o factor para o aumento po-
tencial de novos testemunhos sobre graça e mercês recebidas. É mesmo provável
que tenham existido tentativas mais descentralizadas, como seria o caso da ida de
pregadores e relíquias aos campo , destinada a promover a devoção rural. A con-
juntura era favorável a tais iniciativas que, por outro lado, contribuiriam, numa pers-
pectiva evangélica, para a cristianização de práticas mágicas e pagãs ligadas ao culto
da natureza 26 •
1
' Tratado , 50-5 1. Na me ma passagem refere- e o milagre do escudo que se apresenta à frente no texto .
.u Referimo-nos a um episódio ocorrido aquando da vinda das relíquia para Coimbra (Tratado, 59-60). A
intenç o unânime do cortejo que olenemente a recebera e trazia era a de as d epositar na Sé da cidade. Contudo,
quando a mula que as transportava chegou ao portal do mosteiro de Santa Cruz, sito no caminho para a igreja
episcopal, não e moveu até que foi aberta a porta, indo então ajoelhar-se junto ao altar-mor e assim permanecen -
do at~ lhe tirarem o precio o fa rdo: manife tava-se deste modo a vontade dos mártires em e acolher no mosteiro.
l\ Por isto IV, atravé da bula Cum alias de 7 de Agosto, publicada no Acta anctorum, Janu arii, II,
Veneza 1734, 7 1.
14
obre a permanência dessas prática ao longo da Idade Méctia e de como contribuem para a especificida-
de do cri'itianismo medieval ver Raoul ManselJi, La religion populaire au M oyen Age, Institui d' Étude Médiévale
Albert le-Grand-Vnn, Montréal-Pari , 1975. A proibiçõe feitas no ínodo de Braga de 1477 para que não e
~ bras em m,s as no campo e aos pees das arvores e em outros /lugares desonestos, o que e fazia em muito
lui arts deslt arcebispado, e para que a procissõe não fosse m aos montes nem aos outro sem elhantes lugar s, por
( ' O NS l'Rl '
' J(,, () [)(.) P ~SADO MFDIFVAI.. nxro" IN · Dl"I0'-1 F PU BI I C AD<h
tal er obra de gentizo~ (A. Gar 1a y Gar 1.1 (d1r), r110J1wn H,spanum li Portugul, Ed1tonal Latohc.a, M.adnd.
19 2, 117), p recem .ite t.ir as pr.itic,l refenda~ .i ~im como a tentativa de lhô dM um enqu.tdr.unento ortoJo o
(interpretado p la h1erarqu1.i como pa tu.içào). tareta p.ira a qual o cOnégo!) regrante • ,ttendendo .1 ·ua on~ep
ção s1mbólico-mbti a da natureza, bem patente na obra cultural da e col.i de Saint V1Ltor, p.arectn.un 10d1....td
( f. Françoi Petit, La r~{orme de pr trl!s ou Moyen Age, Cerf, Pari~. 1968, 113 129) obre a problcm.ati..:.1 ~
religião popular no reino de Lelo, ve1a-se J Sán heL Herrero, Las dwa 1s citl wno dt l t'tJn , ,glo) XJ\' i, .\\·.
' entro de Estud10 e lnve t1ga 100 " ·ao I idoro·. Leon, 1978, 239-406.
· v. orre1a, A. ogueira Gon alvc , Inventáno artfstrro dt Portugal. li. Cidade dt Coimbra Ac.1dcmJ<1
a ional de Bda Arte , Li. boa, 1947, S4; A. ogue1ra Gonçalve • · ooi tecido med1cva1s moun o .. m Estudos
d Hi tórza d Arte Medieval, EPARTUR. Coimbra. 19 O, 342.
21
Tratado, 102- 103.
29 Tom -se orno e emplo significativo o ritual praticado num bo que da região de Lyon, desde O eculo
Xlll a iní io do culo • de tinado cura de crianças doente e que se as ociou ao culto de . Gwnefort: J.. c
hmitt, L saint l 'vrier. Guinefort, guüisseur denfants depuis le XIII• siecle, Flammarion, Paris, 1979.
kl Las campa nas, con la onsagración, adquirian la virtud de acosar a las tormentas y las malévolas criaturas
qu poblaban los aires, lo que remite a la crencia - que recuerda Dante en e/ canto V dei Purgatorio - que quiere ai
dwblo senor de las alteraciones atmosféricas: F. Cardini, Magra, brujería Y superstic,ón en el Ocetdente medieval,
p nín ula, Bart.elona, 1982, 113. Veja-se também Carlos Alberto Ferreira de Almeida, "Carácter mágico do toque
das mpamha . potropaic1dade do om" in Rev. de Etnografia, 6, Porto, 1966, 339-370.
P 1t'l'P 1. CC M EM < ll AC,:AO DA -; OIUC,l: N5: REIS, SANTOS E HERÓIS 143
mais si nifi ·nti o ab ·rtura d "i iro cm tempo de penúria, como espiritual - a
·1
f 'rta 1, u1na 111 <lia 5o p nn, nente com o agrado que po sibilita o normal cum -
r rim nto <los ·i los natu ra is e a a i tên ia na doença, morte e demais fe tas do ciclo
i ' idn in ii i<luul o ial. · a prote ão, cuja ruptura significava desregramento
bi 1 , r voltas, é, por seu lado, um factor de aumento da
i u za ' pr st( i por part da instituição31•
lar. m::mt r quilíbrio, a relação de poder, o mosteiro tem de responder às
·xp " ·tati a do nmp sinato, mpetindo com outras in tituições rivais, ostentando
._ , ua riqu za pr pagandeando de forma eficaz as dádivas que fornece. É e a a sua
líti a de consolidação e crescimento. A repressão pura e imples
rr ponde a uma fa e de declínio, de diminuição de poder, real
1. . M ILAGRES
------
Para uma abordag m generalizante de te problema: P. Bordieu, "Une interpretation de la théorie de la
on lon Max Weber" in Archives Europ ennes de ociologie, XI I, 1,1971, 3-21.
Tratado, 73.
144 A CON~·J RUÇAO DO PAl.,~ADO Ml· l>ll-.VAI I l· XTO", 11'.f Dl I O\ 1. Pt' BI I< t\lH)\
" / ratudo, 46
' /'ratudo, t> '\ M
l-.ra trl'qucntc, nm tcxto~ h.i!(•ogrJhu>\, J mcni,Jo dt'.' mr!Jgrr, Jr tmadm J ,J,ll!(Jr m d ''-rent , no, po
dl·r , dm ,Jnto, e J,1, ,u,l!> rd 1qur.1, tendo '-omo obr l11vo rnu:nt1var .1 Je,o<,,.io. VC'JJm ., exemplo, d doern,..i
enviJda, Jm de ..tr 11,.._., Jj rrg'-·m m r J Jkju ,.Lrl , ~hgure, de IJ mJIJJ1e darn, le, 1tr.ide~ de o~tre D,1.me~
111 Med1t' vuh , 11." 4, 1981, 76 HI
Rdc rrrno no arn, mr!Jgr , pmtrnorC!, J I J 9 1220, 1~to e, .10 que 1, produziram pó, .1 relíquia:,
\l Ulu>ntrJrt' lll em ~jnl.i ( ru, r lJU .ipJr , m muito smtet11.ido!> ou me,mo om1, 0 no I xto d ongem
tr an.r\C jl1J rdj!IVtl, JO\ m rllr '
\obr ei.ll.' "unto ton,ulte \l' o Jrtrgo J e d ~ou,.i ' o ta a b1bltograhJ 31 rnen ionJd.t· ·o .iutor
J.i vit..i Prim Je , n to ntonw e ., u, rn lorn1;idurt', portugues . Revi ão .:ntr a da, opmiõc~ obl"t' a id.idr do
'i,1nto 111 e ol<>quw ,,tonumo. <. mJr.i MunrdpJI de L1~b > , l 1!>bo.i, 1982, 25 4 .
PART E l. A COMEMORAÇÃO DAS ORIGENS : REI S, SANTOS E HERÓIS 145
1 18 A. Vauchez, La sainteté en Occident aux derniers siec/es du Moyen Age d'apres les proces de canonisation et
1f
CO 'T i '
' { (,, A<. DOPASSAno IFDll \ t\l . llX l'O!',l l· P lll) \ ll'll\11( \[)lh
regrante • omo ' o -a, o d fonso h ~rnandl..'s, ·o ncgo do mo~kiro <le S. Jorge, u1..1
mâ ega, urada . milagres da rainha têm uind.1 u ma área de ,t(çJo geogr.ih(.i
que ntra m onílito, e largamente ultrapassa, a trn<lidon.ilmcnte prot.1gontl.1d.1
pelos anto · d anta "'ruz: a '·mta "'la ra a 'Orrcm d otns Je ' ondei.·.i, \ l oh.1 ·3.
antar ' m , É ora Lamego. culto ainda r e 'bc a devo ão de grnndc. do n.•im.,
mo E t A ã G n al ~ Leitão, me 'tre da rdcm de Cristo, que em 13 7 e curado
de uma parali ia dum bra 0 4 1, dos próprios rei·, fon o l V e Dua rte, te ndo e ..tc
último diante do túmulo da rainha re ebido por legítima e, posa Leonor de rag.io,
em 142 42 •
Face a e te cre ndo do culto da rainha 'anta 1 abel, relança ' an ta 'ruz a
devoção do mártire "'3. e ceptuarmo o milagre d 1410, há uma -on ·ent r.i ·ão d
milagre datado no priorado d D. Gonçalo 44 : neles se incluem s de \ \1 · ·o :\tartin~
Granjeiro e de João C abelo que, om o imo ·, e tariam n..1 rigem d.i pro ·i: · -
dos nu e atestavam uma devoção rural ao mártires, o a -onte · ido a Diogo Pir :
de C oimbra, a que também já no rei rimo interprdando -o num ·ont . to de pro-
moção do culto do santo e de in itame nto à participa ·ão na · cerimóni.i: qu lh" ·
eram d edicad a , e outro do i re peitan te , à cura d uma qu 'bradurn num hlho d
Fernão Va que , e c udeiro de oimbra ( 1421) e à ·ura de uma do 'O ·a de ' Stôm..1, o
num filho de Afon o Ane · da granja de Rol ( 14... 8), propric,ltd' rural d) mo:t ·ir )4 ·,
Pare e, portanto, q ue dataria da admini ·tra ·Jo <le L • ;onç,110, s n.io .1 anki.1t1 -
va do reacti ar d o ulto, pelo meno · a adopção de uma e ·tr.tt gi.1 b m J •fi nid .l f .1 ,\
o to rnar n orrid , alargando a sua ba ' t' 'Odc.11 às po 0.1 ·ôes dt s (\lmpo · f ro\.1mo,
de Coimbra (Fala, oa lh d a ·, Rol) e à p ·quen., nobrel ~\ h1 cidi.ldc. s aL'e · .\\~n -
ola , como a d 1422- 1427, teriam fornedd a ·onjuntura ideal para es e obJc ·
tivo. O regi to e rito do · milagre , tambem de e <lat.ir do g erno de D. ion · tlt,·
ao m e mo tempo que ocupa a da demarca ão da · propri dade , <l mo 'k1r, (1..1
tom b o ini iado m 1423), também de eria ter incitado à (Olecç.lo d o , m ilagr ·s qu
ate tavan1 a gra a c ncedida por íntermedio do ant
.. Aurca da capela mandada erigir pelo prior D. G meb e respectiva decoração: Flávio Gonçalve5, A re
/"e:Knt4fAO artística dos "Mártires de Marrocos"- os mais antigos exemplos portugueses, ep. de MVSEV (6) 1963,
,2 J:;, A • ·oguc1ra (.,onçalves, "AJ. capelas do lado díreito da Igreja de Santa Cruz" in Estudos de Hutória da Arte
.'~rd,eval, EPARTUR, Coimbra, 1980, 213-218.
• Pilralelament.e a wmpílação de dado sobre os santo feita pelo mo tciro de Santa Cruz, ordem fran
cuc..na wn~m o~ realn.ava, como o prova a hag.íografia datada de 1476. A e nonização de 1481 por Sí~to IV
nlC'JT• ~ numa .érie favoráv I h ordens mendicantes e num momento em que a cúna papal \C preocupava
u,m <J prc.,bl ma da evangelização da& terra cri tãs afncanaa: quer i&to dizer que foi mah determinante par
dtJt m.á.rtirn o ambiente caracterf&tíw da expan,;ão portugue~a para o norte de Áfnca do que º" milagre
UA11ml,r1un~.
• ( extrem<tt lim1te1 da área geo~áfica d a devoção aot, márt1rc s o: Soure (1 ratado, 69), Pedr w, num
til, Porto ( /ratado, 7 J ), Ou1aw, ( Tra tado. 75), Águeda (Tratado , 70) e Rei ra ('/ratado.71 ).
J)ur•va trh dia•. como o informa o milagre relativo demonlnhada de Águeda: trou1erdna aos \anctoJ
tr~ t>dl t tiutrà tm d,a, 1eu pay e mdy cuprldo sua romaria ( Tratado. 70).
"'lt rrc~11. em 1466, pelo b11po da cidad , aobre o ignificado d •ua nude1, o devoto que f z1 m
~ pm<.1 , de•~ ano r pondem que hu1 que foram quebrados. outros surdos, outros de outraJ t nftrm,
., , p,orrutmtfu t a<JI Martyrts de uirem nuus a a/1} em romana lhes deram saudt t vinham cumprir sua
I.>,,, t.LI niodo a rnr .. du h rn1il urgl.i de t..K da n<1 h1crarq u1a do1 mil gre, tnbuldo .ui nt ,
, ,,rck,u a ur wu M,bnnho, tambtm quebrado, p ra d apir e p n 1C1p r n cenmón, ( lrataJo,
m <.ur.do, d qu braduraa 0 1 filho de J e, n V ue ( 1rutlldu, 70 ) e d Jo o de Monte Lobo
i:r1•~·-,• H lo, ed ( rón,u, d Cin,u Juu dt /Jurtugal, l 1v ,1v1l1till', o, Porto, 1\J ~ 2 f>) uJ iro J«
,, dt ~,~ J.1,ure~11 d.. e,u..rra e kodrigo l· tev~. mur ..Jor , em Qu1ill&0 U ,vro dt M,~,, , Jo
,rcxOJ, b1bl11 u Pubhu e Munso J do Poito. Cód"e 770, li 7)
·~ w • r ~..., do m1La e 1,nlt(.ldo ao hlho do e ud aro lo , J Monte Lobo e mulhu M.ar1
........," ...,,..., '14,(tQ/M hu f • '"") qutbrudo , tl~s qWJndu vmlo tal ffWI foriüJ am1Jiu.lU1 mu1to wm wl J t ,mtt1 n o
D1r.zrr1.u-,lW d, 1111 d ru taJ fru,tu t tll , u v1trilo trigu~mtntt u tslt, nto Mart,r,s ,om v, '/Uat• JU wn umtntt
rJ r Nk umur por,1ur s lUorru2o t m .,,,u coitas, pr ao• mart,rr, t v1trllo "' e, trta.s la , '"'" ,,
A
ON TR UÇÃ O D O PA SSA DO M E DI EVAL. TEXTOS I N t. DITOS E PUB LICADOS
-
e q ua n do chegarão a su a casa acharüo o m enino mu; to tio (A. M.igalhães Ba~to, ed., Crónica de Cmi:o R,' h dt·
Portugal, Lív. C iv11ização, Po rto, 1945, 246).
•z A cantigas d e escarnlw e de mal d1 zrr do~ cancioneiros rned1 cva1s galego po rt ugue e fo rnecem munlt'
ros exemplos d esta concepção do a to sexual. ite 1>e, como urna da1, mai~ explí itas, a cant iga Dommga~ fane ·
o uve ~a barallia d e Afon~o X d e Leão e Ca tela ( Rodrigues Lapa, Cantigas desra rnho e de m al dizer, Gal.i"{ia.
Coimbra, l 970 , 46-47).
, Refer imo -n o sobretudo à proc1 sõ es d e llagclantes que, tendo iníoo nas mai impo rtante odad <'
italian as a partir d e J 260, depre a e difundem pelo Ocid ente medieval, nomeadame nte na epoca d a peste negrc1
. Cohn , Thc Pursu1t of thc M1Jlemum , Londre5, l 962, ap. 7. Já O live ira Marques relacio nou a devo çã o d os nu
com as pro 1s, õ es d e tlagela ntes: A sociedade m ed ieval portuguesa, 4ª. ed., Sá da Costa, Lisboa, 19 74 , l ó4 .
, A vida d e s. Fr.in o~co con té m n u me rosm ep1 ód ios em q ue a nudez surge como um ac to s imboh .. o de
de poiamento. uma apologia d a hu1~ilda_d e d e C nsto face a um a sociedade corrompida pelo dinhe iro e demai,
mte re,'>C'> matcnai,. J award. [) zcu a la jol1e. Hr,torre des sa rnis f ous pour le Christ, Se utl, Paris, l 98 3 , 124 . 13 1
Ver nota 26 Sobre a tipo logia d as festa d e Inve rno de o n gem pagã e sua progressiva cr i,tiarn zação ao
longo d c1 idade Médi.i J Caro BaroJa, El (a rnau al (a nalis1s his_torico-cultural), Tauru , M adnd, 1979 146 l SS.
I Ul'> Maldonado, Religw,idad popular \/ostalgra de lo m agico, Cm11andad, Madnd, 1975, 17 _32 _
Vt:r nota ~
,,
PARTE I. A COMEMORAÇÃO DAS ORIGENS: REIS , SANTOS E HERÓI) 149
Livro das Lembranças - António Cruz, Anai , Crónica e A1emórias Avulsas de anta
Cruz de Coimbra, Biblioteca Pública Municipal, Porto, 196 , 9-147.
P. M. H., S. - Portugaliae Monumenta Historica a aeculo octavo post Chrr tum u que
ad quintum decimum - críptore , 1, A ademia Real d Ciên ia de Li boa,
Lisboa, 1856
Tratado - A. da Rocha Madail (ed.), Tratado da Vida e Martmo dos inco Afartires de
Marrocos, Coimbra, 192 .
P Burle. . Popular Culturt m earlv modern Eumpt, Harper & Ro\, ' \, York 19-