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A CONSTRUÇÃO

DO PASSADO M DI -V.
133

Celeiro e relíquias:
o culto quatrocentista dos mártires
de Marrocos e a devoção dos Nus

Publicado in Studium Generale - Estudos Contemporôneos, Porto, 6 (1984), 21-42.

Em carta pa torai de 15 de Janeiro de 179 , vé pera da fi ta do m ' rtir de Marr


de 1220 cuja relíquia e encontravam no mo teiro conimbri en de anta ruz o
bi po-conde de Coimbra, D. Franci co d L mo P reira utinho, pr íbe u ma d
tradicionai cerimónia que de de o egundo qu art l do ulo V integra u lt
público do anto : a proci ão do nu . t e tranha pro ra t riza
1
Mário Martin , on i tia, em linha gerai , num ortej a efe tuar na manh - do
dia 16 de Janeiro, em pleno Inverno, por hom n de pido da intura para ima
do joelhos para baixo, entr o convent de . Fran i , na marg m e querda do
Mondego, e o mo teiro de anta Cruz na baixa oimbrã e margem direita do rio 2•
I
M. Mart ins, "O ci lo fran i ano na no sa e pintualidnde medieval· in Biblos, 27 ( 1951 ), 222. O
mesmo autor estuda os milagres atribuídos ao anto em Peregmwçõe e Livro d Milagres na no · a Idade
Média, 2•. ed., Brotéria, Li boa, 1957, 175-179. er também . H. de Oltveir:i Marque , sociedade m dieval
portuguesa, 3•. ed., á da Co ta, Lisboa, 1974, 164- 165.
2
A descrições mais completa da pro i ão encontram - e em Marco de L1 boa, Parte egunda das
Chromcas dos frade Menores do seraphi o padre am Francisco, L1 boa, 1562, CU , num folheto an xo a algun
exemplares do Ordinario dos Canonicos Regulares da Ordem do bem auentu rado no o padre . Augu.stinho da
congregação de anta Cruz de Coimbra, Lisboa, 1759, e em Frei 1anuel da E perança, Historia erafica da Ordem
dos Frades Menores de . Francisco na Província de Portugal, Lisboa, 1656, 299. O do1 últrmo texto foram
transcnto por Madail no Tratado, 85-90. Vejam- e, no final do artigo, a abreviatura e igla utilizadas.
l F l li\ \l Tl H l f OIT l E

r cen.iriCl a -id
lo martire_ que no_ propomo elu-1

l n roni ta final do~ on o regrant


ruz de 01mbra, que no ultimo tem _ do crYl--:-.,,....,.,.
a m m na (1414-143-) uc deram al ...~A~ mnleS..
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um reahd de bem pr ente ao lon0 do · ulo Ã'V em t do o '"'- A.......
enume p o reino, durante entúria de qu tro ent
du em medi _,4 ano não havendo n nhum
m ". ui ermo pre tar algum crédito à narra ti\
ral orno roni t ten n io e p ial emp p
PARTE 1. A COMEMORAÇÃO DAS ORIGE . ·s: REIS, SANTOS E HERÓIS 135

eiros da sua ordem 6 , podemos identificar a crise a que se refere como a ocor-
entre 1422-2 , uma vez que a de 1412-14 sucedeu no princípio do priorado de
D. Gonçalo e a de 1436-1441 já o ultrapassa em grande parte.
O texto interessa-nos sobretudo enquanto testemunho de uma atitude men-
-ace as crises agrícolas. Do ponto de vista das populações urbanas, as que mais
em com a penúria dos cereais, e das rurais, para quem as crises climáticas se
""·=---etam num contexto de punição divina, a riqueza do mosteiro, em tempo de
culdades económicas, e o papel de redistribuidor de bens que protagoniza, atra-
-es de um sistema de assistência a populações carenciadas que vai da abertura do
· o aos mais necessitados até à distribuição de roupas aos pobres7 , só pode ser
r--=...... unho de favor celeste, de milagre mesmo. O poder económico da instituição é
coasequência do seu poder religioso, do estatuto privilegiado de mediadora entre o
estre e o celeste8.
De D. Gonçalo as populações da região de Coimbra guardariam a imagem vei-
\...4.-.~= pelo mosteiro: um religioso que desde pequeno a ele se dedicara e que pelas

- ,irtudes e vida honesta fora eleito para prior. Um prior amigo dos cónegos e
pobres., confiante em Deus e nos santos para resolver os problemas que se lhe
e;,aravam. Como aquele que aconteceu quando o alcaide-mor da cidade, com o
· do infante D. Pedro, duque de Coimbra, e das gentes. do concelho, decidiram
u ,.......... as águas da fonte nova do mosteiro para as conduzirem até à Sé e aí fazer um

laÍ.ariz. ~ ~essa ocasião de flagrante atentado aos bens do mo teiro, contava-se que o
apelara para os mártires de Marrocos, para o poder das uas reüquias, e para os
reis sepultados no mosteiro, Afonso Henriques e ancho I, que embora não canoni-
zados pela Santa Sé, eram celebrados pelos cónegos9 . Fazia-lhes mis as e perando a
ajuda e intervenção.
O alcaide, Lopo Vasques, de <lenhava da azáfama litúrgica que ia pelo mo teiro:
Deu.aí-os andar com os reis mortos. Andemos com o vivo e veremo quem po-

~J Vm.wmo Serrào, A historiografia portuguesa, vol. li, L!Sboa, Verbo, 1973, 234. Acerca da ment.ahdade
.,. va ;u ob1ervações feitas por J. Mattoso a Frei Leão de S. Tomás, na introdução a reedição da Benedictina
uma l u.\baa., Imprcrua. 'acional 1974, vol. I. XXXVI -XLIX). uma vez que. de uma forma geral, se podem
1,0 croouu crúzJO.
<J Duby anah~ Kimtic.a atitu<k, a propósito do valor ideológico das biografias do abade Hugo de Cluny:
,.t. s •rts r.,rdcu ou o imagmárw do feuaalismo, Estampa, Lisboa, 1982, 226· 229.
• ·qa w A. Vauchn, IA spmtualité du moyen àge occithntal, PUF, Pans., 1975, 51-65.
' (.JI ncntOI croníst!C.O! contido no Códice 79 da Biblioteca Pública Municipal do Porto, proveniente
~, ro dt ~ Cruz, e que foram parcialmente publicados por HercuJano sob a designação de Chromcas
=,:w t rnemónas avulsaJ <h S. Cruz <h Coimbra (PMH, , 23-32) e integralmente por Antómo Cruz ob o título
;,- era conh«ldo o códJa no m~eíro - Livro das Lembranças (Anau. Crónicas e Memórias Avulsas de anta
',r..z tú r,mmb,a, 81bfioteca Pública Municipal, Porto, 1%8, 9-147), contêm abundantes episódios relativos a
- ~ muac'"°1.a dt Afonso I para com o mostetro e dados cfuperso acerca da particular reverência que era
~ a h ~ túmulo
I\ < ON\ I RU<.,.Ao IH> l'A ~~A l>O M 1•. l>fl•.VAI. . 'J'l·.X'/C)\ INf.D IH) \ E PUHLICADO\

d rJ m i~t teri dito, s 'gundo a. memórias dos cónegos de Santa Cruz'''. Acto de
d c;,crcnça · cv ram nte punido: um se u filho, Rui Lopes, morre quando se banhava
no Mondego, tendo apenas água pelo joelho e sem que os dois escudeiros que com
ele iam lhe pud ' sem valer. rn frade in form a então o alcaide, que nessa noite tinha
son hado m a m rte d filho: foram as águas de Santa Cruz as responsáveis. Pouco
d pois, m rr Pedro Afi n o das Aguas, um dos instigadores para a construção do
chafariz da é. Toda e ta érie de mil agres teria afastado o projecto.
A imag m qu transparece do prior é assim a de um homem bondoso, caridoso,
pacífico, d v to do santos e confiante na justiça divina, sendo por ela largamente
re ompen ad . Uma imagem construída. Destinada a ser espelho e modelo de lei-
go , nomeadamente d s dependentes de Santa Cruz a que se pregava a submissão e
onfiança no m steiro, governado quase por santos e como tal cenário de milagres
infind s.
A figura de D. Gonçalo como administrador sagaz dos bens do mosteiro, como
defen or enérgico das suas propriedades e privilégios, apelando amiúde para a jus-
tiça e favores régios, é uma imagem interna, de chancelaria, ligada a documentos e
ao círculos de letrados. Difícil de entender e interpretar pelas camadas populares,
logo silenciada. Com efeito, eleito prior com intervenção de D. João I e a contento da
rainha de quem fora pajem antes de tomar o hábito em Santa Cruz, toda a actividade
de D. Gonçalo é posta ao serviço da restauração de uma correcta administração dos
bens do mosteiro 11 •
Em 1423, alcança provisão de D. João I para que Rui Fernandes, juiz da coroa,
demarque as terras de Santa Cruz, iniciando-se a feitura de um tombo de proprie-
dades. Paralelamente, consegue do mesmo rei o privilégio de ter juiz para mandar
executar e penhorar os que deviam rendas ao mosteiro e o de que os filhos dos ca-
seiros de Santa Cruz não fossem tomados para soldados contra sua vontade. Em
1432, consegue que D. João I repreenda o bispo de Coimbra, D. Álvaro Ferreira, por
ter mandado quebrar as portas da quinta, celeiro e adega de Poiares, pertença dos
cónegos, para aí se aposentar, atentando contra privilégio do mosteiro. Obtém em
1434 carta de confirmação das graças e privilégios dados a Santa Cruz por D. Duarte,
que ainda o acrescenta. Opõe-se frontalm ente, em 1436, ao concelho, alcaide e e-
nhor de ~oirnbra, D. Pedro, no caso da tentativa do desvio de águas do mo teiro.
mand ndo mi ário que protestem junto do rei, instruindo o cónego para que d
noite ob truí em com grande pedras a vala começada a fazer por rdem d al ai-
d , "xcomungando, na pre ença de um tabelião, o concelho e o que a tenta m

/,vrudu lunbmn~u , 101 10 ,12 1· 124.


y,,. 0 d,do r ft'it'nll'\ .ao prtor.1do d e D. Conçalo b e mo -no no Livro de L mbranças, 101 lOS, 11 -
l 2Mt' t'fll 1u,l;,u ck ~.i11U M.&n.&, up ( 1t , 248 254.
PARTE l. COMEMORAÇÃO DAS ORIGEN : REI , ANTOS E HERÓI S 137

desentupir - a outra face, conflituosa e judicial, do episódio que já evocámos numa


perspectiva quase hagiográfica.
Administrador de grandes rendas e de um notável património, em que se des-
tacam a cidade de Leiria e a Vila de Arronches 12, herdado em grande parte dos fa-
vores dos primeiros reis de Portugal e de inúmeras doações feitas por particulares,
D. Gonçalo também procurou defender os privilégios eclesiásticos que detinha na
qualidade de prior de Santa Cruz, sobretudo o de lançar a bênção solene ao povo,
à maneira dos bispos, e que fora concedido em 1196 por Celestino III; em 1436,
na festa da invenção da Cruz celebrada no mosteiro e na presença do infante
D. Pedro, opõe-se a que o bispo de Coimbra, o já citado D. Álvaro Ferreira, a
conceda, fazendo-o em seu lugar 13 •
Tudo isto era confuso aos olhos do povo miúdo das cidades e, ainda mais, para
os camponeses. De Santa Cruz, o que se evidenciava não eram os conflitos senho-
riais, os mecanismos jurídico-administrativos, as contas, o negócio. O que se salien-
tava era a imagem de um grande poder ligado aos grandes, não por favor mas por
reconhecimento, aos papas, aos reis; a figura de um prior que como o bispo usava
anel, mitra e báculo no mosteiro e fora dele, que vencia as adversidades económica
e políticas graças à intercessão dos santos que guardava na sua igreja e de que anual-
mente celebrava a memória. Em períodos de crise, o mosteiro era um grande celeiro
que se abria generoso, e um relicário, repleto de prome as e riqueza, uma antecipa-
ção de um futuro de que se falava. Uma esperança e uma graça concedida por Deu .

12
Sobre as propriedades e privilégios do mosteiro ver Ruy de Azevedo, Documentos falsos de anta Cruz,
Lisboa, 1935, e Maria Helena Coelho, "O senhorio crúzio do Alvorge na centúria de Trezentos" in Estudo de
História de Portugal em homenagem a A. H. de Oliveira Marques, vol.1, E tampa, Li boa, 177-240. o é ulo XVI,
Pedro Álvare ogueira fez uma tentativa de avaliação da riqueza do mo teiro: era neste tempo o priorado de
santa Cruz Cousa mui grande, porque tinha todas as terra que agora tem a Vniuersidade que rendem mais de
sete Contos de rs, e tudo o que agora rende o mosteiro que sam outros seis Contos ou mais E a iurudiscão de muitos
lugares E tinha a Cidade de Leiria que se desmembrou de que se fez hum bispado E a Vi/la darronches que se aplicou
ao bispado de portalegre. E outras muitas terras (Livro das Vidas dos Bispos da é de Coimbra, Arquivo e Mu eu
de Arte da Univer idade de Coimbra, Coimbra, 55). O autor escreve depoi da extinção do priorado mor: a
criação do bispado de Leiria (1545) anula os ben que a mesa prioral ali detinha, do mesmo modo que a criação
do b1 pado de Portalegre (1549) a desapossa das igrejas de Arronches, endo as restante rendas incorporada
na Univer idade (1545) - cf. A. Nogueira Gonçalves, "Mosteiro de Santa Cruz. Breve notícia hi tórica" in Idem,
Estudos de História da Arte Medieval, Epartur, Coimbra, 1980, 161 - 168. Foi esta riqueza material que possibilitou
ao mosteiro um importante protagonismo cultural durante toda a Idade Média: A. Cruz, anta Cruz de Coimbra
na cultura portuguesa da Idade Média, Porto, 1964; J. Mattoso, "Cluny, crúzios e ci tercien es na formação de
Portugal" m Actas do Congresso Histórico de Guimarães e Sua Colegiada, voL V, Guimarães, 1982, 288-294.
u ão bastante antigas as hostilidade entre o bi pos de Coimbra e o priores de anta Cruz em torno
das re pectivas prerrogativas e lesiá tica e jurisdicionai . Essa longa rivalidade in titucional terá como ponto
culminante, no finais do éculo XV, o preparativo de uma batalha campal entre as forças do bi po D. Jorge de
Almeida e a do prior D. João de oronha, 6 a cu to, e à última hora, evitada por iniciatiYa r gia. eja-se sobre
o ~ t o: Pedro Alvare ogueira, op. cit., 52-55; icolau de anta Maria, op. cit., 270-274.
I3S A CONSTRUÇÃO DO PASSADO MEDIEVAL. TEXTO 1:--:ÉDITO E PCBLICADO

II. A PESTE

É nos tempos de D. Gonçalo e da cri e agrícola de 1422-27, que teria ocorrido o


milagre que e teve na origem da proci são do nu e que vem narrado na principai
fontes e crita dedicadas ao culto do mártire 14 • Aconteceu em 1423 na povoa ão de
Fala, fregue ia de . Martinho do Bi po, a norte de Coimbra. Havia pe te, tam geral
que em nenhua cidade ne lugar escapauã dei/a e mais crua andaua nos lugares do cãpo
que em outros. Como na povoação morre se muita gente, um vizinho de boa fama,
Vasco Martins, o Granjeiro, encomendou-se com os eu cinco filho ao anto ,
fazendo a prome sa de que se o livras em da peste enviaria o filho palio seu dia e
romaria nuus a este mosteyro visitar suas relíquias em quanto estiuessem em seu poder.
Poupados da peste, foi o voto cumprido pelos filhos por seu pay assy lho mãdar antes
que falecesse sob pena da sua beçam, e nã somete estes seus filhos mas quanto delles
descenderam da hii por diante 15 •
O facto foi divulgado nas povoações vizinhas. Em Coalhada , João Cabelo ,
conhecido o milagre, também se encomenda ao anto : que lhe tira_ em hiia grande
e importuna dor e agastameto que tinha muitas vezes no coraçam, cõ que desatinm a
e rasgaua os vestidos cõ grandes gritos e trabalho prometendo lhe que dando lhe rnde
fria nuu cada anno em sua uida ao mosteyro de ancta Cruz offerecer a elles.
cumpriu o voto indo em companhia do filho de Va co Martin '.
A versão apresentada por Marcos de Li boa difere ignifi ativamente do rela-
to oriundos de Santa Cruz 16: não menciona o milagre o orrido om João ~abelo
e conta de outra forma a prome sa de Va co Martin . e te autor, o Gr,mjeiro faz
o voto em seu nome e no dos filhos e re tante moradore do lugar que, em con-
junto, são poupados pela peste, originando então o nú leo fundador da proci ão
do nu . endo impo ível decidir qual da ver õe era mai lógica, em termo · da

4
Aparecem relatados de forma M"ru1vdmente idêntica no chamado L,uro de .\t,l.igres dos \fortir, ·
Marrocos. códice 770 da füblwteca Pública Municipal do Porto compo to, na ,u.i qua e totalidade. no tin.i, do
seculo X\' e no Tratado da u1da & martyrro dos cinco .Wartires de .\farrocos, tmpre O em Coimbra. m 15().,
devido a m1c1at1va do pnor geral Jorge de Barbosa. O cap1tuJos solto que apare-em no final do codJCe da Crom ·w
de 1419, publ1Cado por Magalhães Bato (Crónica de Cinco Rm de Portugal, Uv C1nl1.U1 ao, Porto, 1945, 245 e
que ~o. tal como as fonte~ atr~ mencwnadas, de ongem cruzia, apenas aludem ao milagre; 0 m mo se omite no
texto que da m~ma cronica se conserYou num cod1ce da Casa de Cadaval publicado por uva Tarouca Crom,w
dos ~ete Prrme,ros Reu de Portugal Academia Portuguesa da H1 tona, L1Sboa, 1952 ·-tJ.
Citamos O milagre de Vasco Martim e o de João C~os de acordo com a versão do Tratado. 66 _6 -
Marco<» de Lisboa, op c,t., CLIX. Marcos de Lisboa s1tua-M" numa outra séne de fontes relatffcl5 aos
m.irtire'> e que ~ão de origem franc1~a. amda que entre as fontes cruz1as e as mendicant~ existam ponto d
c.ontacto ()\ propnos cónego'> regrantes comervaram num codice ~ sua biblioteca dois te tos hagiografiw
fr;mo~o publicado\ por Herculano ( P.WH, S, 104 - l 16J uma \·e~o breve conuda pnmitn amente na hclJTla
da Cronica dos 24 (,era1> compo ta entre 1360 e 1374 e uma ve~o longa de'Vlcia a m1nativa do franc1scmo João
da Po úa confe ,or de João II e prmmc1al da Ordem da ObservanC1a em Portugal, que Frei FranC1 o de ·enlha
wmP', ou cop11Ju em 1476 Sobre a\ fonte\ franCJscan~ ver Andr~ lvars •lo) martu de ~tarrueco de 1220
er, 1.. l teraturil h, p,mú amenc.ma" m Ar,h,vo Ibero Americano Ja sene, t. Xl\' ( 1920) }44.) 1
PARTE l. A COMEMORAÇÃO DAS ORIGENS: REIS, SANTOS E HERÓI ~ 139

determinação da origem de uma devoção religiosa, não deixa de ser importante


apontar o carácter mais elaborado, programático e interesseiro dos escritos crúzio~:
o epi ódio de João Cabelo funciona como incentivo à participação popular na
proci ão do nu ; a redacção do de Vasco Martins revela um processo para que se
cumpram a promes as (a recusa da bênção aos filhos antes da morte), chamando a
a enção para que estas vinculam uma família nas suas sucessivas gerações (a devo-
ção ao santos é um acto familiar) e salientando o papel central desempenhado pelo
mo teiro-relicário (a promessa cumprir-se-á até ao momento em que Santa Cruz
deixar de possuir as relíquias).
A propósito de dois mártires de Valência, Giovanni de Peruggia e Píetro de
Sassoferrato, também franciscanos e italianos, tal como os de Marrocos, e degola-
dos pelo rei mouro local em 1231 17, Marcos de Lisboa conta a origem de uma outra
devoção popular, situando-se alguns anos depois da conquista da cidade por Jaime
Ide Aragão (1 238). Abatendo-se uma praga de gafanhotos sobre a região de Teruel,
cidade onde se encontravam as relíquias, fizeram -se grandes procissões e orações
para implorar a misericórdia divina, sem que esta se manifestas e. Um devoto dos
mártires sugeriu então que se conduzissem as respectivas relíquias, em proci são, do
mosteiro a uma ermida situada longe da cidade, nos campos, no cenár io do flagelo.
Assim se fez e, pouco depois do regres o à cidade, desapareceram o gafanhoto .
Os santos mártire de Valência passam então a ser venerado e celebrados como
protectores contra as pragas 18•
Pode ser que a origem da devoção do nu tives e ido semelhante à que foi
votada aos mártires de Valência, tendo a iniciativa partido do campone e num
episódio das relações cidade /campo próprias da Idade Média. lmpo ível aber. O
certo é que surgiu em meios rurai durante um período de grave cri e agrícolas, de
fomes e pestes. A eleição do mártires de Marrocos como protectore ju tifica- e, em
parte, pelo prestígio que gozava o mosteiro de Santa Cruz e o eu prior, ele próprio
apre~ntado como devoto dos santo . Não deixaria ainda de influenciar a escolha
dos cinco franciscanos, um pas o da re pectiva hagiografia, certamente divulgado

~ re a respectiva hagiografia e culto, veja-se Robert Burn , EI reino de Valencia en e/ sigla XJ/1 (iglesia y
t«Jeáad), vol II, Valfocia, 1982, 447 -452.
Marcos de Lisboa, op. cit., CLXII-CLXIII. Algumas iluminuras do Comentário ao Apocalipse do Beato
tk úebatu:l propõnn a 1dentificaçào mouros-gafanhotos, associando e ta praga aos poderes maléfico do Islão, as
ua do Ant1-Cmto (cf. Ph. Sénac, L'image de l'autre. Hzstotre de /'Occident médiéval face á /'lslam, Flammanon,
ar , 1983, 33-34). Me mo que a a soc1açào tenha perdido intensidade a partsr dos avanço da Reconquista no
XJII, é natural que a referida praga, até pelos seu antecedentes bíblicos, conserva.s5e parte do ~ u sentido
õUIA'N,gK.o Sendo a un, resulta coerente o recorrer-se a anto martmzados pelos Infié1 para a combater. Por
o bdo, os período prolongados de seca, inclusive pela sua ongem cl1mát1ca afncana, também u ociavam
• ~ 1 nd'~ dos 1nun1gos da fé: de Paio Peres Correia, me tre da ordem de antiago, guardava- e a.inda no r.é-

, X\ li a roerntma de um mtlagre - fizera brotar uma nascente quando, pe egumdo os mouro , fora · atacado·
YA gr~ calor (Rodngo da Cunha, História eclesiástica da rgre;a de Lisboa, Li boa, 1642,185).
co T RU:. ) n) P ss D) 1F DIF\'Al . TE X ros l t t- n1 r S F n · Rl 1 ' .\[

em ~~elhante onjuntura p los ' <nego,: a ma\di ·iio qu~ este:. '111 ..:~tstig <ll , u
martino, lan aram ao reino d Marr ·os 'tn 1220 - F cm to fo o Rc\'110 de .\ t,1m · ·
geralmente todos o· tres àno. que logo e scgufrã nâ chc 11co cem ·ri algí'i l t'f ,. 1 s · ·a tam
grãd que cin o ano - ouu 'geral 'st •r lidadt? 11ã ·oom<!ntc 11a. 110,lidad,_, mas tam :
da saude dos home , porqu ouue gràde p ste e todo rc 110 e tam zrâdc /Ut' m rn· a
moor parte da - te durando aqu li s i o a1111os polias cinc} martyrc. que al~i I' lr .\
e sua ctã fe mataram 19•
Era un1a maldição atmo fi' ri a como aquela qu , vivia, na · p a. no r in
Por ela o mártire mo traram o eu p d r ontra o inimioo da f'. dom mo m
que, anuland -a, de de que in o ados podiam t t munhar
cristão , uplantando me n10 o fi itos de tradicionai anto pr
peste, como eba tiâo 20 • Já em ida o tinham mo trado m milagr da a...
como con tava da hagiografia: quando o exército do rei mouro r 0 r,
de Marroco , vitorio o de uma revolta e maga.da não en ntra, água u
dentas e homens e animais· Beraldo, um do in o ant , t nta
mouros da superioridade da fé cri tã e da neces idade de uma
um milagre: cava, com um pequeno pau na berma da tra a, aí rota un a n ·
cente que resolve o problema da sede, voltando a tinguir- , tã ~u
começara a jorrar, depois de todo aciado . Cri tã m ijav-an
hábitos dos frades: mostravam devoção, re onhe iam p d r • 1

III. AS RELÍQUIAS

Um poder imenso e perigoso: podia con erter- m ingan a mal - nà ( ..


convenientemente manipulado. Era o que uc dia om r lí uia .
corpos das frades foram recolhido e confiado p l infant
Sancho I, então exilado em Marroco e ao r iç d imp r d r alm
da de um sacerdote, João Roberte, eu apelão e óne d m
fJA wrn 1. A C M EMORAÇÂO DA S OR IGENS: REIS , SANTOS E HERÓIS 141

lre, do e u pajen ,
mai j ven , inocente de pecado e sexo. Um escudeiro do
in ante, e guimo de n v a hagiografia crúzia, Pero da Rosa, alcunha proveniente
d n m da rapariga com quem e amancebara, entrou onde os ossos dos Martyres
jázião, e deu nelle hu ar como de paraLesia que ho tolheo todo de maneira que nam
s pode balir, começou de bradar que Lhe acudissem cõ cõfissam que elle fez fielmete e
alij renu iou a manceba prometedo de nam tornar mais a e/la. Acabada sua cõfissam
tornou a suas forças (.. .) porem a falia lhe nam tornou atee que ho Jffante mãdou ao
onego que Lhe posesse a cabeça de hu dos martyres sobre os peytos, e tanto que lhe foy
posta logo fa llou como dãtes23 •
A um outro escudeiro, cujo nome não é nomeado, aconteceu algo de seme-
lhante. Tendo cometido hu pecado de carne, tentou aproximar-se das relíquias que
repousavam sobre um escudo na casa de Pedro Sanches, em Marrocos. O escudo
elevou-se do solo só pousando de novo quando o profanador reconheceu a culpa e
confessou. Testemunhos tendentes a afirmar que a manipulação das relíquias deve
er monopólio clerical. Só os puros, os sacerdotes, os monges, as podem correcta-
mente utilizar. Entre o devoto e o milagre é necessário um intermediário. Neste caso,
Santa Cruz: não foi um dos seus membros que guardou as relíquias? Não decidiram
o mártires que os seus despojos ficassem guardados no mosteiro, surpreendendo o
rei e o clero que os queriam conduzir à Sé?24
A vinda de peregrinos a Coimbra muito interessava a Santa Cruz numa altura
em que e procedia ao registo escrito dos milagres do santos com o objectivo de,
entre outro , obter a respectiva canonização pela Santa Sé, o que apenas acontece
em 1481 25 • Como tal eria estimulada: era um podem o factor para o aumento po-
tencial de novos testemunhos sobre graça e mercês recebidas. É mesmo provável
que tenham existido tentativas mais descentralizadas, como seria o caso da ida de
pregadores e relíquias aos campo , destinada a promover a devoção rural. A con-
juntura era favorável a tais iniciativas que, por outro lado, contribuiriam, numa pers-
pectiva evangélica, para a cristianização de práticas mágicas e pagãs ligadas ao culto
da natureza 26 •

1
' Tratado , 50-5 1. Na me ma passagem refere- e o milagre do escudo que se apresenta à frente no texto .
.u Referimo-nos a um episódio ocorrido aquando da vinda das relíquia para Coimbra (Tratado, 59-60). A
intenç o unânime do cortejo que olenemente a recebera e trazia era a de as d epositar na Sé da cidade. Contudo,
quando a mula que as transportava chegou ao portal do mosteiro de Santa Cruz, sito no caminho para a igreja
episcopal, não e moveu até que foi aberta a porta, indo então ajoelhar-se junto ao altar-mor e assim permanecen -
do at~ lhe tirarem o precio o fa rdo: manife tava-se deste modo a vontade dos mártires em e acolher no mosteiro.
l\ Por isto IV, atravé da bula Cum alias de 7 de Agosto, publicada no Acta anctorum, Janu arii, II,
Veneza 1734, 7 1.
14
obre a permanência dessas prática ao longo da Idade Méctia e de como contribuem para a especificida-
de do cri'itianismo medieval ver Raoul ManselJi, La religion populaire au M oyen Age, Institui d' Étude Médiévale
Albert le-Grand-Vnn, Montréal-Pari , 1975. A proibiçõe feitas no ínodo de Braga de 1477 para que não e
~ bras em m,s as no campo e aos pees das arvores e em outros /lugares desonestos, o que e fazia em muito
lui arts deslt arcebispado, e para que a procissõe não fosse m aos montes nem aos outro sem elhantes lugar s, por
( ' O NS l'Rl '
' J(,, () [)(.) P ~SADO MFDIFVAI.. nxro" IN · Dl"I0'-1 F PU BI I C AD<h

Faltam · o n tudo t '- t munhos d irccto objectivo . Sabemo , na verdade, que


P lo m ' 11 ) S i e, d > s '·ulo V III anda asso iado ao culto do mártires uma cam -
p inha milagrosa. Nogueira G nçalv s afirma, ·em grande convicção, poder ser
111
di P' . M ad ail di z- no q u ainda há poucos ano o sacrL tão do mo teiro ia com
la P ' las ru as da id ad e d and -a a beijar ou olocando-a obre a cabeça do fié1
ata ad o' d d r o u d ut ro m ale. próprio de a parte d corpo. Informa ainda o
m mo auto r qu em 1 28, o lavradores de . Martinho do Bi po, fregue ia onde se
·itua a P a ão d Fala, lugar ligado, com o vimo , à proci ão do nus, requi itaram
a a mpainha a m ost iro e com ela percorreram as seara infe tada por uma doen-
a d o m ilh . Tal a o nte im nto, continuando a eguir Madail, não aparece i olado,
int gra- e numa trad ição : no campo de Coimbra, por ocasião de moléstias nas searas
ou de grande e tiagens, efectuavam-se procissões e organizavam-se preces em que a
ampainha tangia sempre, ouvida com grande devoção; faziam - e então prome sas
de a ench r de milho umas tantas vezes e por oca ·ião da · colheita o acristães ,am
re bê-lo. Chegavam a carregar carros com o milho proveniente de a prome· asls.
e atendermo a con ideraçõe de ordem geral, orno ·eja o da longa duração
d a prát ica religio a proveniente do m io , rurai 1'>1, e a informaçõe oriunda de
o utra fonte med ievai contemp rânea que pontam para a grande difu ão do u o
da campainha na cerimónia paralitúrgi a. w, para além d p d rmo ver no culto
d o mártire de Valência e no pormenore da ua devoção popular um e emplo
par ai lo, talvez po amo afirmar a rigem medieval da bên J do ampo , pela
cam painha - relíquia do mártire . mo hip tese.
la ria elemento import, nte num va to 5i ·tem de troca unbólíca : o mo ·
teiro, dete ntor de terra e direi to enh riai , re ebe a renda e direito pago pelo
ampone e que, em tro a, u -ufru m de protecção não ' Ó materi l, de que o exemplo

tal er obra de gentizo~ (A. Gar 1a y Gar 1.1 (d1r), r110J1wn H,spanum li Portugul, Ed1tonal Latohc.a, M.adnd.
19 2, 117), p recem .ite t.ir as pr.itic,l refenda~ .i ~im como a tentativa de lhô dM um enqu.tdr.unento ortoJo o
(interpretado p la h1erarqu1.i como pa tu.içào). tareta p.ira a qual o cOnégo!) regrante • ,ttendendo .1 ·ua on~ep
ção s1mbólico-mbti a da natureza, bem patente na obra cultural da e col.i de Saint V1Ltor, p.arectn.un 10d1....td
( f. Françoi Petit, La r~{orme de pr trl!s ou Moyen Age, Cerf, Pari~. 1968, 113 129) obre a problcm.ati..:.1 ~
religião popular no reino de Lelo, ve1a-se J Sán heL Herrero, Las dwa 1s citl wno dt l t'tJn , ,glo) XJ\' i, .\\·.
' entro de Estud10 e lnve t1ga 100 " ·ao I idoro·. Leon, 1978, 239-406.
· v. orre1a, A. ogueira Gon alvc , Inventáno artfstrro dt Portugal. li. Cidade dt Coimbra Ac.1dcmJ<1
a ional de Bda Arte , Li. boa, 1947, S4; A. ogue1ra Gonçalve • · ooi tecido med1cva1s moun o .. m Estudos
d Hi tórza d Arte Medieval, EPARTUR. Coimbra. 19 O, 342.
21
Tratado, 102- 103.
29 Tom -se orno e emplo significativo o ritual praticado num bo que da região de Lyon, desde O eculo
Xlll a iní io do culo • de tinado cura de crianças doente e que se as ociou ao culto de . Gwnefort: J.. c
hmitt, L saint l 'vrier. Guinefort, guüisseur denfants depuis le XIII• siecle, Flammarion, Paris, 1979.
kl Las campa nas, con la onsagración, adquirian la virtud de acosar a las tormentas y las malévolas criaturas

qu poblaban los aires, lo que remite a la crencia - que recuerda Dante en e/ canto V dei Purgatorio - que quiere ai
dwblo senor de las alteraciones atmosféricas: F. Cardini, Magra, brujería Y superstic,ón en el Ocetdente medieval,
p nín ula, Bart.elona, 1982, 113. Veja-se também Carlos Alberto Ferreira de Almeida, "Carácter mágico do toque
das mpamha . potropaic1dade do om" in Rev. de Etnografia, 6, Porto, 1966, 339-370.
P 1t'l'P 1. CC M EM < ll AC,:AO DA -; OIUC,l: N5: REIS, SANTOS E HERÓIS 143

mais si nifi ·nti o ab ·rtura d "i iro cm tempo de penúria, como espiritual - a
·1
f 'rta 1, u1na 111 <lia 5o p nn, nente com o agrado que po sibilita o normal cum -
r rim nto <los ·i los natu ra is e a a i tên ia na doença, morte e demais fe tas do ciclo
i ' idn in ii i<luul o ial. · a prote ão, cuja ruptura significava desregramento
bi 1 , r voltas, é, por seu lado, um factor de aumento da
i u za ' pr st( i por part da instituição31•
lar. m::mt r quilíbrio, a relação de poder, o mosteiro tem de responder às
·xp " ·tati a do nmp sinato, mpetindo com outras in tituições rivais, ostentando
._ , ua riqu za pr pagandeando de forma eficaz as dádivas que fornece. É e a a sua
líti a de consolidação e crescimento. A repressão pura e imples
rr ponde a uma fa e de declínio, de diminuição de poder, real

1. . M ILAGRES

b títul De huu home que trabalhou em dia do martyres inclui o Tratado um


di que também aparece no Livro de Milagres quatrocenti ta, logo em texto
pr <luzido directamente n mo teiro de anta ruz. No dia 16 de Janeiro de 1430,
data qu ainda rre ponde ao priorado de D. onçalo, pela manhã, Diogo Pire ,
m rad r m oimbra, foi podar uma sua vinha ituada por detrá do on ento de
. Fran i - no temp e lugar em que efectuava a pro i ão do nu . Durante o
trabalh algu m lhe perguntou: Diogos Pir nã sabeis vo qu he oje dia dos Martyres
qu tam em an ta ruz? Ao que e te re ponde: Que monta y so que oje nam he
d guarda, ao me mo tempo que, olhando para o aminho, não via vivalma. Pouco
depoi lhe deu huiiu tremor em todo o corpo e nas suas mãos que ja mais pode fazer
nada, tornou obre y e j ulgou que aqui/lo lhe viera por sua pouca devaçam e logo
veo ao mosteyro de ancta Cruz e fez sua oraçam aos Martyres e lhe prometeo que
n quanto ell vivesse nunca pollo seu dia faria nenhii seruiço, mas antes viria sempre
a suas vesperas, missa e preegaçam. Mai tarde daria testemunho que nas 80 ou perto
de 100 videira que tinha podado naquela manhã nã achara ne hiiu soo cacho, o que
ontra ta a com o aspecto do resto da vinha, carregada duuas32 •
A hi tória, certamente muito difundida pelos cónegos, destinava-se a promover
o culto do anto e a afluência às cerimónias que em sua honra se celebravam no
m teiro. Em primeiro lugar, mostrava que o argumento de os santos não estarem

------
Para uma abordag m generalizante de te problema: P. Bordieu, "Une interpretation de la théorie de la
on lon Max Weber" in Archives Europ ennes de ociologie, XI I, 1,1971, 3-21.
Tratado, 73.
144 A CON~·J RUÇAO DO PAl.,~ADO Ml· l>ll-.VAI I l· XTO", 11'.f Dl I O\ 1. Pt' BI I< t\lH)\

canonizado~ pela 'anta Sé e, portanto, não fazerem parte do calcnd.irio htúrg1co


oficial, n ão era razão para a falta de parti ipação. Essa era me mo uma atitude seme -
lhante à d s mouro d trezento que não acreditavam na mbsão divina <lo frade ·.
A própria paralisia om que é atingido Diogo Pires recorda o castigo di pensado
pelo santos ao rei de Marrocos: no mesmo anno de te sctõ martyrio deu tii grande
paralesía a el Rey na parte direyta que toda ella da/to a baixo, braço e mão direita cõ
que matou os f nocetes e todos o 1nebros atee o pee direyto daquella banda e lhe securã
sem tere virtude, sustã ia, sangue ne alento pera delles poder u ar1'.
Em segundo lugar, realça o poder dos santos no que re peita à protecção do
produto agrícola : face à e terilidade das vinha podada n o tempo em que e devia
prestar culto aos mártires, apareciam as re tante repleta de cacho , te temunhando
um milagre de abundância, uma recompen a dos frade aos ·eus devoto . Adapta- ·e
aqui, para con umo regional , um outro milagre contido na hagiografia ·: o do · -
anos d e e terilidad e ab oluta para o reino de Marroco ·, ·ó ultrapa · ·ado por um
acto de penitência pública - assentaram que a rnu ·a de tanto mal jóy a morte dos
sanctos, e que portanto deuiam todos de hir ao l11gar de seu martyrio e alii cõ gernidos
pedissem perdam a Deos, que ouesse com elle piedade e leiuihl ·e sua múo e ca. t1go
daquelle pouo, o que se cumprio as y como foy assentado. H logo como e ·ta penitencia
se fez começou de chouer em muyta abastanç,1 e as enfermidade e pestes n•s ·aram '4.
mil agre-punição Vi de Diogo Pire · integra· ·e num conjunto de 25 milagre
"m de rno "' 6 atribuíd s a s mártire e que ab rangem o p ·ríodo de 14 l 0 - 1 30. O ·i-
lên ío da font · m rela ão ao sé ulo Xl V merece algun ' omcntário ·. ão ·remo
que resulte qu er da au ·ên ia de milagres para ' ·se período, qu ·r do de ·.ipare ·imen -
to do texto qu os registavam. pós o primei ro unp ul ·o da de oção ao · mártires
no , começos da entúria d Duzentos, suficie ntemente importante p.ira produzir a
v a ão fran is ana de 'anto António, <.IUe sendo cónego n:gr, nte m 'anta ~ruz
a sbtir tra lada - <las relíquia · cm 1220'7, o cult > deve ter- e mant ido, ilu trado
por lgun s milagre o a ·ionai . Jontudo o · cónegos demonstraram um certo <le
intercs~ na prom ção po terior d,t (kvoça , quer por raz • es e terna , como eja o

" / ratudo, 46
' /'ratudo, t> '\ M
l-.ra trl'qucntc, nm tcxto~ h.i!(•ogrJhu>\, J mcni,Jo dt'.' mr!Jgrr, Jr tmadm J ,J,ll!(Jr m d ''-rent , no, po
dl·r , dm ,Jnto, e J,1, ,u,l!> rd 1qur.1, tendo '-omo obr l11vo rnu:nt1var .1 Je,o<,,.io. VC'JJm ., exemplo, d doern,..i
enviJda, Jm de ..tr 11,.._., Jj rrg'-·m m r J Jkju ,.Lrl , ~hgure, de IJ mJIJJ1e darn, le, 1tr.ide~ de o~tre D,1.me~
111 Med1t' vuh , 11." 4, 1981, 76 HI
Rdc rrrno no arn, mr!Jgr , pmtrnorC!, J I J 9 1220, 1~to e, .10 que 1, produziram pó, .1 relíquia:,
\l Ulu>ntrJrt' lll em ~jnl.i ( ru, r lJU .ipJr , m muito smtet11.ido!> ou me,mo om1, 0 no I xto d ongem
tr an.r\C jl1J rdj!IVtl, JO\ m rllr '
\obr ei.ll.' "unto ton,ulte \l' o Jrtrgo J e d ~ou,.i ' o ta a b1bltograhJ 31 rnen ionJd.t· ·o .iutor
J.i vit..i Prim Je , n to ntonw e ., u, rn lorn1;idurt', portugues . Revi ão .:ntr a da, opmiõc~ obl"t' a id.idr do
'i,1nto 111 e ol<>quw ,,tonumo. <. mJr.i MunrdpJI de L1~b > , l 1!>bo.i, 1982, 25 4 .
PART E l. A COMEMORAÇÃO DAS ORIGENS : REI S, SANTOS E HERÓIS 145

clima de instabilidade político-social que se vive no reinados de Sancho II e, em par-


te, no de D. Dinis, quer por razões internas em que avultam o facto de já possuírem
a relíquias de um santo, S. Teotónio, fundador do mosteiro, a cujo culto devotariam
maior assistência, e o de conservarem o corpo de Afonso I, o fundador do reino,
em cuja canonização estariam, hipoteticamente, mais interessados. A falta de apoio
institucional terá assim contribuído não para o desaparecimento mas para a quebra
de intensidade do culto dos mártires, tendência que progressivamente se acentuaria.
O panorama modifica-se a partir do século XIV no que respeita à devoção
dos santos na região de Coimbra. A partir de 1336 desenvolve-se um novo culto, o
da rainha Santa Isabel, centralizado num convento rival, o de Santa Clara, perten-
cente à ordem franciscana. A devoção à rainha tem como promotor, para além da
comunidade em que se encontra sepultada, o mendicante Salvado Martins, bi po de
Lamego (1331-1349) . É sob a sua iniciativa, e com a preciosa ajuda de um tabelião de
Coimbra, Martim Afonso, que se recomeçam a recolher testemunho sobre milagre
ocorridos, seguindo-se a forma notarial, mais de acordo com as mutaçõe que o
processos de canonização sofrem na cúria papal a partir de cerca de 127038 : todos
os milagres são testemunhados por autoridades eclesiásticas, lavrando- e um docu-
mento jurídico comprovativo. É assim que de 1336 a 1400, ão atribuído à rainha 17
milagres, devidamente autenticados 39 .
São conhecidos os conflitos que opuseram os cónego regrante a Mor Dias,
fundadora de Santa Clara e que recebera o h ábito em anta Cruz. A di puta girava
em torno da legitimidade de e ta dispor dos eu ben para fundar um novo mo tei-
ro, quando se encontrava já integrada numa outra ordem moná tica que a ele teria
direito. A demanda, documentada a partir de 1285, encerra- e, numa primeira fase,
com a arbitragem do bispo de Lisboa, João Martins de oalhãe , que em 1311 decide
extinguir o mosteiro e entregar o ben de Mor Dia aos crúzios.
O conflito reacende-se a partir de 1314, quando a rainha I abel decide restaurar
o convento, obtendo em 1316 a revogação da sentença de 1311 , sem que os cónegos
se decidam a entregar os antigos bens de Mor Dia . Só em 1318 se dá a conciliação:
cada mosteiro ficaria com as propriedades de Mor Dias que à data possuísse, medida
que muito favorecia Santa Cruz40 .
Ora é exactamente em Santa Clara, cuja igreja fora sagrada em 1330, que a anti-
ga opositora dos crúzios repousa em santidade operando milagres não só a favor das
religiosas de sua casa, o que ainda seria aceitável, como mesmo a favor de cónegos

1 18 A. Vauchez, La sainteté en Occident aux derniers siec/es du Moyen Age d'apres les proces de canonisation et

l /es documents hagiographiques, École Française de Rome, Roma, 1981 , 13-120.


19 Baseamo-nos em A. Ribeiro de Vasconcelos, Evolução do culto de Dona Isabel de Aragão, Universidade

de Coimbra, Coimbra, 1, 255.


40 A. Ribeiro de Va concelos, op. cit..

1f
CO 'T i '
' { (,, A<. DOPASSAno IFDll \ t\l . llX l'O!',l l· P lll) \ ll'll\11( \[)lh

regrante • omo ' o -a, o d fonso h ~rnandl..'s, ·o ncgo do mo~kiro <le S. Jorge, u1..1
mâ ega, urada . milagres da rainha têm uind.1 u ma área de ,t(çJo geogr.ih(.i
que ntra m onílito, e largamente ultrapassa, a trn<lidon.ilmcnte prot.1gontl.1d.1
pelos anto · d anta "'ruz: a '·mta "'la ra a 'Orrcm d otns Je ' ondei.·.i, \ l oh.1 ·3.
antar ' m , É ora Lamego. culto ainda r e 'bc a devo ão de grnndc. do n.•im.,
mo E t A ã G n al ~ Leitão, me 'tre da rdcm de Cristo, que em 13 7 e curado
de uma parali ia dum bra 0 4 1, dos próprios rei·, fon o l V e Dua rte, te ndo e ..tc
último diante do túmulo da rainha re ebido por legítima e, posa Leonor de rag.io,
em 142 42 •
Face a e te cre ndo do culto da rainha 'anta 1 abel, relança ' an ta 'ruz a
devoção do mártire "'3. e ceptuarmo o milagre d 1410, há uma -on ·ent r.i ·ão d
milagre datado no priorado d D. Gonçalo 44 : neles se incluem s de \ \1 · ·o :\tartin~
Granjeiro e de João C abelo que, om o imo ·, e tariam n..1 rigem d.i pro ·i: · -
dos nu e atestavam uma devoção rural ao mártires, o a -onte · ido a Diogo Pir :
de C oimbra, a que também já no rei rimo interprdando -o num ·ont . to de pro-
moção do culto do santo e de in itame nto à participa ·ão na · cerimóni.i: qu lh" ·
eram d edicad a , e outro do i re peitan te , à cura d uma qu 'bradurn num hlho d
Fernão Va que , e c udeiro de oimbra ( 1421) e à ·ura de uma do 'O ·a de ' Stôm..1, o
num filho de Afon o Ane · da granja de Rol ( 14... 8), propric,ltd' rural d) mo:t ·ir )4 ·,
Pare e, portanto, q ue dataria da admini ·tra ·Jo <le L • ;onç,110, s n.io .1 anki.1t1 -
va do reacti ar d o ulto, pelo meno · a adopção de uma e ·tr.tt gi.1 b m J •fi nid .l f .1 ,\
o to rnar n orrid , alargando a sua ba ' t' 'Odc.11 às po 0.1 ·ôes dt s (\lmpo · f ro\.1mo,
de Coimbra (Fala, oa lh d a ·, Rol) e à p ·quen., nobrel ~\ h1 cidi.ldc. s aL'e · .\\~n -
ola , como a d 1422- 1427, teriam fornedd a ·onjuntura ideal para es e obJc ·
tivo. O regi to e rito do · milagre , tambem de e <lat.ir do g erno de D. ion · tlt,·
ao m e mo tempo que ocupa a da demarca ão da · propri dade , <l mo 'k1r, (1..1
tom b o ini iado m 1423), também de eria ter incitado à (Olecç.lo d o , m ilagr ·s qu
ate tavan1 a gra a c ncedida por íntermedio do ant

• 1 Para e te · milagres: Ribe iro de \ .J ..:onlelo . <'f· nt


•' \ 'e.JJ -se a Jr tJ d o infante D Henrique acerca dJ cenmoma ,\fvr1umtnt" Ht·nr,,m"· ,ol Ili. llnt r.1
1961. 2,;5,
• ri\ ahdad . lo..:al e regional, entre .llltuano medJe, ;m hgaJo, c1 rehqu1,1:,. mtl.1gnh,1 e ,1 r r •nn.i , ,
l On tante ao longo dJ Id ade M J1a, ..:onduz111do m uita vae · a uma e p ..: 1.11tu - ,1o qu e\lte ..a .._ 00 . _ l,r~
determinJdo:, antos e r r ctl\ a:, r Liqui.1~ pa:,sam então c1 , er .:ekbr.idlh pela çura de um ... rtn tlfXl J ,
' inJdeexempk1P. .'1gJl. "~talJdie. pd nn.igeetgu n :,onJu \ 11 1ed lc:, mirade de .· nt ; 1t-, 0 n.lR •1 ,
in Annul ~. f S C • (6) 1969.152.· l 3->
• pr lpnJ reda ·1,.10 do milagre de 1-t I O. ao .lhrm.ir qu oon~o Aton 0 , mor .1Jor n,1 , iJJJ . ,
( Jratadv - 4 ). unh.1 , ,do ..:urJ do d uma dor d OU\ ido , dei a ntre, r ,1 po · ibilid.1J d J ~u, ,1 ..
0 1
,
ido regi tadJ num mom nto po,t nor
Para o dtm ulttmo~ nul.igr :, TrutuJ<l. -o e -2
P.011 1. A COMI.MOHA ÀO DA <, <HW,1-,N\. IU. I<,, 1.iAN JO <, 1. llf-.ld>( <, 147

~mtetizemo : a procissão dos nus corresponde a um dos núcleo~ originai'> do


r lançamento do culto dos mártires no ·écu lo XV - o rural, integrando os camponc-
~ da aldeia~ próximas da cidade. Surge na década de 20 numa conjuntura marcada
pela o orréncía de graves crises agrícolas, e numa altu ra em que o mosteiro de Santa
Cruz e interessava pela promoçã da devoção no âmbito de uma estratégja regional
de pod r. prolongamento das cri ses agríc las e a conti nuação do apoio institucio -
nal por parte do crúzios conduzem à poste rior manute nção e desenvolvimento do
culto: ne a direcção contribuem , de form a decisiva, a constr ução no templo, em
1458, de uma capela destinad a a s fran císcanos16, e o peri ódico registo de milagre
destinados a preparar a pregação bre as graças recebid as pelos san tos e a servir a
cau~a da ua canon ização 47 • texto dos milagre indicia a prossecução de uma polí -
tica paralela de promoção do culto: a captação de devotos urbanos quer de Coimbra,
quer das vilas e cidades próxima 411 • núcleo rural da d ev çã fund e-se com o nú-
d o urbano por ocasião da romaria dos santos49 , lugar e tempo privilegiados para a
dhrulgação e ocorrência de milagres que celebram o seu poder taumatúrgíco.
Um poder especializad : os mártires "curavam" sobretud as crianças do sexo
masculino na cidas com hérnias - a quebradura de que falam os texto 5',. riança
que eram motivo de n jo e repúdio por parte do pais porque nelas viam um castigo
díyjno por faltas antes cometídas 51• A razã de uma tal atitude reside no fac to de ao

.. Aurca da capela mandada erigir pelo prior D. G meb e respectiva decoração: Flávio Gonçalve5, A re
/"e:Knt4fAO artística dos "Mártires de Marrocos"- os mais antigos exemplos portugueses, ep. de MVSEV (6) 1963,
,2 J:;, A • ·oguc1ra (.,onçalves, "AJ. capelas do lado díreito da Igreja de Santa Cruz" in Estudos de Hutória da Arte
.'~rd,eval, EPARTUR, Coimbra, 1980, 213-218.
• Pilralelament.e a wmpílação de dado sobre os santo feita pelo mo tciro de Santa Cruz, ordem fran
cuc..na wn~m o~ realn.ava, como o prova a hag.íografia datada de 1476. A e nonização de 1481 por Sí~to IV
nlC'JT• ~ numa .érie favoráv I h ordens mendicantes e num momento em que a cúna papal \C preocupava
u,m <J prc.,bl ma da evangelização da& terra cri tãs afncanaa: quer i&to dizer que foi mah determinante par
dtJt m.á.rtirn o ambiente caracterf&tíw da expan,;ão portugue~a para o norte de Áfnca do que º" milagre
UA11ml,r1un~.
• ( extrem<tt lim1te1 da área geo~áfica d a devoção aot, márt1rc s o: Soure (1 ratado, 69), Pedr w, num
til, Porto ( /ratado, 7 J ), Ou1aw, ( Tra tado. 75), Águeda (Tratado , 70) e Rei ra ('/ratado.71 ).
J)ur•va trh dia•. como o informa o milagre relativo demonlnhada de Águeda: trou1erdna aos \anctoJ
tr~ t>dl t tiutrà tm d,a, 1eu pay e mdy cuprldo sua romaria ( Tratado. 70).
"'lt rrc~11. em 1466, pelo b11po da cidad , aobre o ignificado d •ua nude1, o devoto que f z1 m
~ pm<.1 , de•~ ano r pondem que hu1 que foram quebrados. outros surdos, outros de outraJ t nftrm,
., , p,orrutmtfu t a<JI Martyrts de uirem nuus a a/1} em romana lhes deram saudt t vinham cumprir sua
I.>,,, t.LI niodo a rnr .. du h rn1il urgl.i de t..K da n<1 h1crarq u1a do1 mil gre, tnbuldo .ui nt ,
, ,,rck,u a ur wu M,bnnho, tambtm quebrado, p ra d apir e p n 1C1p r n cenmón, ( lrataJo,
m <.ur.do, d qu braduraa 0 1 filho de J e, n V ue ( 1rutlldu, 70 ) e d Jo o de Monte Lobo
i:r1•~·-,• H lo, ed ( rón,u, d Cin,u Juu dt /Jurtugal, l 1v ,1v1l1till', o, Porto, 1\J ~ 2 f>) uJ iro J«
,, dt ~,~ J.1,ure~11 d.. e,u..rra e kodrigo l· tev~. mur ..Jor , em Qu1ill&0 U ,vro dt M,~,, , Jo
,rcxOJ, b1bl11 u Pubhu e Munso J do Poito. Cód"e 770, li 7)
·~ w • r ~..., do m1La e 1,nlt(.ldo ao hlho do e ud aro lo , J Monte Lobo e mulhu M.ar1
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ON TR UÇÃ O D O PA SSA DO M E DI EVAL. TEXTOS I N t. DITOS E PUB LICADOS

homen quebrado estarem desaconselhados grandes esforços, na medida em que


pod rian1 au ar rupturas internas, seguidas de hemorragias e levando, muitas vezes,
à morte. Ora os acto de força eram essenciais tanto ao futuro cavaleiro, para quem
a carreira das armas conduzia à promoção social, como ao futuro camponês, para
quen1 o quotidiano implicava inúmeros esforços musculares. Ter um filho quebrado
significava então ter um filho socialmente inútil.
Para mais a quebraduras, como o próprio campo semântico da palavra deixa
entrever (descontinuidade, dolência, moleza), associavam-se a uma imagem viril-
mente degradante. Numa sociedade em que os valores guerreiros eram dominante
e em que o acto sexual era muitas vezes visto como prova de força, como batalha 52 ,
os quebrados equivaliam aos impotentes, aos estéreis. É nesta ordem de ideia que e
ju tifica a e pecialização dos mártires na cura das hérnias: se a maldição que teriam
lançado aos mouros e que incluía a seca, a fome, a peste e a e terilidade, dele fizera
advogados dos camponeses contra as crises agrícola , do me mo modo o fará pro-
tectores dos que sofrem de quebraduras.
A nudez dos camponeses que integravam a procissão anual em hon ra do an-
tos, associa-se assim não apenas a uma forma geral de penitência 53, que o franci ·-
canos conotaram com um protesto contra os interesse materiai da ociedade do
seu tempo 54, como a um ritual de virilidade próprio de muita fe ta de ln erno d
origem pagã que, progressivamente, foram cristianizadas55. É e sa nud z, mar a da
presen ça rural na devoção dos m ártires, que é proibida pelo bi p -conde d Coimbra
em 1798. Porque interpretada como negação do princípio · rie civilidad do· povos e
particularmente desta cidade, que sendo o assento da Literatura portugue a, mio sofrr::
que nela apareçam tais espectáculos, que tanto desonram as suas intenções civi e re-
ligiosas56. A proci são do nus é uma prática profana e primitiva, tal como o que a
praticam . A cidade, a razão e o progresso, deve excluí-la.

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e q ua n do chegarão a su a casa acharüo o m enino mu; to tio (A. M.igalhães Ba~to, ed., Crónica de Cmi:o R,' h dt·
Portugal, Lív. C iv11ização, Po rto, 1945, 246).
•z A cantigas d e escarnlw e de mal d1 zrr do~ cancioneiros rned1 cva1s galego po rt ugue e fo rnecem munlt'
ros exemplos d esta concepção do a to sexual. ite 1>e, como urna da1, mai~ explí itas, a cant iga Dommga~ fane ·
o uve ~a barallia d e Afon~o X d e Leão e Ca tela ( Rodrigues Lapa, Cantigas desra rnho e de m al dizer, Gal.i"{ia.
Coimbra, l 970 , 46-47).
, Refer imo -n o sobretudo à proc1 sõ es d e llagclantes que, tendo iníoo nas mai impo rtante odad <'
italian as a partir d e J 260, depre a e difundem pelo Ocid ente medieval, nomeadame nte na epoca d a peste negrc1
. Cohn , Thc Pursu1t of thc M1Jlemum , Londre5, l 962, ap. 7. Já O live ira Marques relacio nou a devo çã o d os nu
com as pro 1s, õ es d e tlagela ntes: A sociedade m ed ieval portuguesa, 4ª. ed., Sá da Costa, Lisboa, 19 74 , l ó4 .
, A vida d e s. Fr.in o~co con té m n u me rosm ep1 ód ios em q ue a nudez surge como um ac to s imboh .. o de
de poiamento. uma apologia d a hu1~ilda_d e d e C nsto face a um a sociedade corrompida pelo dinhe iro e demai,
mte re,'>C'> matcnai,. J award. [) zcu a la jol1e. Hr,torre des sa rnis f ous pour le Christ, Se utl, Paris, l 98 3 , 124 . 13 1
Ver nota 26 Sobre a tipo logia d as festa d e Inve rno de o n gem pagã e sua progressiva cr i,tiarn zação ao
longo d c1 idade Médi.i J Caro BaroJa, El (a rnau al (a nalis1s his_torico-cultural), Tauru , M adnd, 1979 146 l SS.
I Ul'> Maldonado, Religw,idad popular \/ostalgra de lo m agico, Cm11andad, Madnd, 1975, 17 _32 _
Vt:r nota ~

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PARTE I. A COMEMORAÇÃO DAS ORIGENS: REIS , SANTOS E HERÓI) 149

O culto do mártire torna-se um assunto exclusivamente urbano. O camponb,


e dele qui er tomar parte, deve abdicar das formas tradicionais que até aí revestia a
ua participação. O mosteiro e o modelo de religiosidade que incentiva e propõe, dei-
xa de er um intermediário nas relações cidade/campo. Apenas sub istem o rituais
paralitúrgicos, como a bênção do campos pela campainha dos santos: manifestação
religiosa que, perdida a memória do sistema devocional em que e enquadrava, passa
a fazer parte de uma tradição dita popular. De e povo descoberto e inventado pelo
intelectuais românticos oitocentista 57 •

ABREVIATURAS E SIGLAS UTILIZADA :

Livro das Lembranças - António Cruz, Anai , Crónica e A1emórias Avulsas de anta
Cruz de Coimbra, Biblioteca Pública Municipal, Porto, 196 , 9-147.

P. M. H., S. - Portugaliae Monumenta Historica a aeculo octavo post Chrr tum u que
ad quintum decimum - críptore , 1, A ademia Real d Ciên ia de Li boa,
Lisboa, 1856

Tratado - A. da Rocha Madail (ed.), Tratado da Vida e Martmo dos inco Afartires de
Marrocos, Coimbra, 192 .

P Burle. . Popular Culturt m earlv modern Eumpt, Harper & Ro\, ' \, York 19-

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