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Ler História

64 | 2013
Do Corporativismo ao Estado Social Democrático

A privança no Portugal restaurado


A historiografia sobre o 3.º conde de Castelo Melhor
La privança dans le Portugal restauré. L’historiographie sur le 3ème comte de
Castelo Melhor
The privança in the restored Portugal. The historiography of the 3rd Count of
Castelo Melhor

Vinicius Dantas

Edição electrónica
URL: https://journals.openedition.org/lerhistoria/263
DOI: 10.4000/lerhistoria.263
ISSN: 2183-7791

Editora
ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa

Edição impressa
Data de publição: 1 de junho de 2013
Paginação: 201-214
ISSN: 0870-6182

Este documento é oferecido por Bibliothèque Sainte-Barbe - Université Sorbonne Nouvelle Paris 3

Refêrencia eletrónica
Vinicius Dantas, «A privança no Portugal restaurado», Ler História [Online], 64 | 2013, posto online no
dia 11 novembro 2014, consultado no dia 30 setembro 2023. URL: http://journals.openedition.org/
lerhistoria/263 ; DOI: https://doi.org/10.4000/lerhistoria.263

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importados) são "Todos os direitos reservados", à exceção de indicação em contrário.
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A privança no Portugal restaurado. 201


A historiografia sobre o 3.º conde de Castelo Melhor1

Introdução
Em um congresso realizado na Universidade de Oxford em meados de
1990, historiadores de diversas áreas debateram sobre a importância de uma
personagem central na política das monarquias européias do século XVII: o
valido ou privado. Estes indivíduos intervinham directamente nas decisões de
governo, actuando como uma espécie de «primeiro-ministro», em conjunto
ou até mesmo em lugar de seus reis.
Como é sabido, a partir do valimento de D. Francisco Gómez de San-
doval y Rojas (1598-1618), duque de Lerma, na Espanha de Felipe III (1598-
-1621), as cortes européias testemunharam uma proliferação de validos. Mais
que um fenômeno ocasional, o valimento se tornava um modelo de moderni-
zação administrativa que poderia ser reproduzido em diversos contextos. De
uma forma geral, ao dividirem as suas prerrogativas com um privado, os mo-
narcas concentravam o processo de decisão política, agilizando as decisões.
Nesse sentido, governar com validos era uma prática política, que também
produzia importantes impactos institucionais.
Ao folhearmos as páginas do livro originário do referido colóquio, encon-
tramos dezessete capítulos sobre casos de valimento nas monarquias hispâ-
nica, francesa, inglesa e polaca, entre outras. Uma única menção à privança
em Portugal foi feita na conclusão da obra, em uma citação sobre o marquês
de Pombal e os ministros do século XVIII. Na historiografia sobre a monarquia
portuguesa, se já se conhecem os aspectos essenciais do valimento durante
o governo dos Filipes (1580-1640), ainda são escassos os estudos sobre a
privança na segunda metade do século XVII e a primeira do XVIII. Da regên-
cia de D. Luísa de Gusmão (1656-1662) ao reinado de D. José (1750-1777),
homens como António Conti, D. Luís de Vasconcelos e Sousa, 3.º conde de
Castelo Melhor, D. João da Mota e Silva, frei Gaspar da Encarnação e Sebas-
tião José de Carvalho e Melo, marquês de Pombal, influenciaram, em maior
ou menor grau, as decisões régias como privados ou validos de seus reis2.

1 Abreviaturas utilizadas: ANTT (Arquivo Nacional da Torre do Tombo), BNP (Biblioteca Nacional de Portugal), BGUC
(Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra). Agradeço aos referees da Ler História e à Doutora Ana Isabel López-
-Salazar Codes pelas críticas e sugestões.
2 Elliott, John H. & Laurence Brockliss (eds) (2000), The world of the favourite, Yale University Press, 1999. Citado
aqui pela tradução espanhola: El mundo de los validos, Madrid, Taurus. Brockliss, Laurence (1982), «Observaciones
finales: Anatomia del Ministro-Favorito», in op. cit., p. 426. Sobre o governo dos Felipes e os impactos das políticas
dos validos do rei castelhano em Portugal: Gaillard, Claude, Le Portugal sous Phillippe III. L’action de Diego de Silva
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Apesar dos numerosos trabalhos existentes sobre o valimento de Luís


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de Vasconcelos e Sousa, 3.º conde de Castelo Melhor, durante o reinado de
D. Afonso VI (1662-1667), uma parte considerável dos autores adoptou uma
perspectiva de estudo biográfico-descritiva. Como resultado, em lugar de
uma análise institucional e política da figura do favorito, muitos historiadores
limitaram-se a fazer julgamentos morais sobre as suas acções. Nesse senti-
do, Castelo Melhor foi estudado ora como um «ambicioso cortesão» que ma-
nipulava o favor do rei, ora como um «vitorioso estadista» responsável pelos
sucessos da coroa portuguesa na guerra contra a Monarquia Hispânica. Nas
páginas seguintes, nos concentramos nas interpretações sobre a privança do
conde de Castelo Melhor na historiografia específica sobre o ministro e nos
trabalhos sobre o reinado afonsino.

A trajectória do 3.º conde de Castelo Melhor


Nascido em Pombal em 1636, Luís de Vasconcelos e Sousa era o primo-
gênito de João Rodrigues de Vasconcelos e de Mariana de Lencastre. Seu pai
destacou-se durante o governo de D. João IV (1640-1656) como conselheiro
de guerra, governador de províncias no reino e governador do Estado do Brasil

y Mendonça, Grenoble, Université des Langues et Lettres de Grenoble; Elliott, John H. (1990 [1986]), El conde-
duque de Olivares. El político en una época de decadência, Barcelona, Crítica; Hespanha, António Manuel (1989),
«O governo dos Áustrias e a ‘modernização’ da Constituição Portuguesa», Penélope. Fazer e Desfazer a História,
2, pp. 49-73; Oliveira, ,Antonio de (1990), Poder e oposição política em Portugal no Período Filipino (1580-1640),
Lisboa, Difel; Luxán Meléndez, Santiago de (1988), La revolución de 1640 en Portugal, sus fundamentos sociales
y sus caracteres nacionales. El Consejo de Portugal: 1580-1640, Madrid; Idem, (1992), «El control de la hacienda
portuguesa desde el poder central. La Junta de Hacienda de Portugal 1602-1609», História. Revista da Faculdade
de Letras da Universidade do Porto, 9, pp. 119-136; Bouza Álvarez, Fernando (2000), «A nobreza portuguesa e
a corte de Madrid. Nobres e luta política no Portugal de Olivares», in Fernando Bouza Álvarez, Portugal no tempo
dos Filipes. Política, Cultura, Representações (1580-1668), Lisboa, Cosmos, pp. 207-256; Schaub, Jean-Frédéric
(2001), Le Portugal au temps du comte duc d’Olivares (1621-1640), Madrid, Casa de Velázquez; Idem (1998),
«Dinámicas políticas en el Portugal de Felipe III (1598-1621)», Relaciones, 73, pp. 169-211. Sobre o valido Antonio
Conti: Guiraud, Michèle (2005), «António de Conti, favori de D. Afonso VI», Revista de História da Sociedade e da
Cultura, 5, pp. 101-131. Sobre os favoritos de D. João V: Silva, Maria Beatriz Nizza da (2009), D. João V, Rio do
Mouro, Circulo de Leitores, pp. 80-85; Monteiro, Nuno Gonçalo (2006), D. José na sombra de Pombal, Rio do Mouro,
Círculo de leitores, pp. 53-58. Apesar dos muitos trabalhos sobre o marquês de Pombal, só muito recentemente,
com a publicação da obra de Nuno Gonçalo Monteiro, os historiadores situaram a actuação do ministro de D. José
no contexto das discussões sobre o valimento. Veja-se: Monteiro (2006), D. José.., pp. 238-244; Idem, «Pombal’s
government: Between seventeenth-century valido and enlightened models» in Paquette, Gabriel B. (ed.) (2009),
Enlightened reform in Southern Europe and its Atlantic colonies, c.1750-1830, Ashgate, pp. 321-338. Entretanto,
pelos diferentes entendimentos das transformações políticas do Portugal do século XVIII e da actuação de Pombal,
a interpretação do marquês como um valido gerou um novo debate: Subtil, José (2011), «Pombal e o rei: valimento
ou governamentalização?», Ler História, 60; Idem (2007), O terramoto político (1755-1759). Memória e poder,
Lisboa, Universidade Autónoma de Lisboa. Para um balanço das duas interpretações de Monteiro e Subtil sobre
as transformações políticas no Portugal do século XVIII: Hespanha, António Manuel (2007), «A note on two recent
books on the Patterns of Portuguese Politics in the 18th century», e-Journal of Portuguese History, v. 5, n.º 2.
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(1650-1654). Em 1657, Luís de Vasconcelos e seu irmão Simão serviram em


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campanhas militares na região de Entre Douro e Minho, onde João Rodrigues
exercia o cargo de governador das armas. Com a morte de seu pai em 1658,
Luís de Vasconcelos e Sousa se tornou o 3.º conde de Castelo Melhor.
En 1660, através do matrimónio com D. Guiomar de Távora, Castelo Me-
lhor obteve o ofício de reposteiro-mor. Um dos vinte e seis ofícios maiores
da casa real, o de reposteiro-mor incluía obrigações como a arrumação da
cadeira e da almofada do monarca no momento de suas refeições e do culto
na capela real. Dessa forma, o ofício garantia ao seu titular uma proximidade
física com o soberano, que poderia se transformar em laços afetivos e políti-
cos mais amplos3.
Em 1661, ano em que Castelo Melhor ingressou na casa real, a regente
D. Luísa de Gusmão e os seus conselheiros mais próximos tomavam medi-
das para conter a influência do valido Antonio Conti Vintimiglia sobre o rei
D. Afonso VI. Entre 1656 e 1662, Conti tinha passado de tendeiro do pátio da
capela real a fidalgo e conselheiro4. Com o desterro de Conti em Junho de
1662, o monarca e os condes de Atouguia e Castelo Melhor tomaram o poder
anunciando a formação de um novo governo. Pouco tempo depois, Castelo
Melhor conquistava a privança do soberano. No mesmo ano, era nomeado
para o ofício de escrivão da puridade, tornando-se o mais importante ministro
da monarquia5.
Na época em que Castelo Melhor conquistou o valimento de D. Afonso
VI, o modelo de privança que tinha-se difundido na Europa a partir da expe-
riência do duque de Lerma na Monarquia Hispânica passava por importantes
transformações. Na monarquia francesa, a morte de Mazarino no início de

3 Menezes, Luís de, conde de Ericeira (1945), História de Portugal Restaurado, Porto, Livraria Civilização, v. 3, pp. 77-78
e 164-165. ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, mç. 3, doc. 96 (Luís). ANTT, Registo Geral
de Mercês, D. Afonso VI, liv. 5, fl. 339 v: «Carta título de Conde de Castelo Melhor, 10/IV/1660». BNP, Reservados,
mss 71, n.° 18: «Carta do officio de reposteiro-mor ao conde de Castello Melhor». Rafael Bluteau, «Reposteiro» in
Vocabulário Portuguez e Latino, Coimbra, Colégio das Artes da Cia de Jesus, 1728, vol. VII, p. 262. Cardim, Pedro
(2002), «A Casa Real e os órgãos centrais de governo no Portugal da segunda metade de Seiscentos», Tempo,
vol. 7, n.º 13, pp. 18-23.
4 Sobre as mercês concedidas durante o valimento de Conti, veja-se o pioneiro artigo de Gastão de Mello de Matos,
«Um processo político do século XVII» in VI Congresso do Mundo Português, Lisboa, 1942, pp. 640-641.
5 «Carta Patente Instaura o ofício de Escrivão da puridade, e nomeia para ele o Conde de Castelo Melhor», 21/VII/1662
publicada em: José Justino de Andrade Silva (dir.), Collecção Chronologica da Legislação Portugueza (1657-1674),
Lisboa, Imprensa de J. J. A. Silva, 1854, pp. 76-77. ANTT, Chancelaria de D. Afonso VI, Doações e privilégios, liv.
19, fl. 162v: «Carta de Escrivão da Puridade». Sobre os escrivães da puridade, o estudo do conde de Tovar continua
a ser a melhor fonte de informação: Lemos, Pedro Tovar de (1961), «O escrivão da puridade» in Estudos históricos,
Lisboa, Academia Portuguesa de História, tomo III; Gomes, Rita Costa (2003), The Making of a Court Society: Kings
and Nobles in Late Medieval Portugal, Cambridge University Press, pp. 43-47. Sobre os secretários de Estado em
Portugal, veja-se: Costa,André da Silva (2008), Os secretários e o Estado do rei: luta de corte e poder político secs.
XVI-XVIII, Dissertação de Mestrado em História, Universidade Nova de Lisboa.
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março de 1661 marcou o começo do chamado «governo pessoal» de Luís


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XIV, quando as funções governativas do valido foram repartidas entre três
ministros que trabalhavam sob a coordenação do soberano6. Na Monarquia
Hispânica, com o falecimento de D. Luís de Haro em dezembro de 1661, Fe-
lipe IV seguiu o exemplo de Luís XIV e governou sem valido até a sua morte
em 16657. A monarquia portuguesa, que estivera vinculada aos monarcas
castelhanos e seus privados durante os sessenta anos de união das coroas
ibéricas, testemunhava a afirmação de Castelo Melhor como valido em um
momento em que esse modelo de governo perdia força no contexto europeu.
Apesar das vitórias militares conseguidas sob o comando de Castelo
Melhor no conflito contra a Monarquia Hispânica, a oposição nobiliária ao
seu valimento não tardaria em surgir. Esta, liderada pelo infante D. Pedro e
pela rainha Maria Francisca Isabel de Sabóia, conseguiu que Castelo Melhor
fosse desterrado da corte em Setembro de 1667. Durante o seu exílio, entre
1667 e 1685, Castelo Melhor transitou por territórios da Monarquia Hispânica
e pelas cortes francesa, turinesa e inglesa. Retornou a Portugal em 1685 e fa-
leceu como um dos conselheiros de Estado de D. João V em Agosto de 1720.
Apesar de sua curta experiência como favorito (1662-1667), o valimento de
Castelo Melhor foi fundamental para os debates sobre as formas de governo
no Portugal da segunda metade do século XVII e no XVIII.

A historiografia sobre o valimento de Castelo Melhor (1880-1940)


Apesar das muitas referências anteriores na literatura, o primeiro estudo
histórico específico sobre o 3.º conde de Castelo Melhor foi escrito na segunda
metade do século XIX8. Em O conde de Castelo Melhor no exílio, o historiador

6 Como sabemos, tais mudanças não significaram a extinção do valimento. Cf. Bérenger, Jean, «La supresión del
Ministro-favorito, o el crepúsculo de un modelo político: el caso austríaco» in Elliott & Brockliss (eds.), El mundo…,
op. cit., pp. 365-382. Após o falecimento de Mazarino, Luís XIV governou auxiliado pelos secretários Michel Le
Tellier, chanceler de França, Hugues de Lionne, secretário dos assuntos estrangeiros e Jean-Baptiste Colbert, con-
trolador general de finanças e secretário da Marinha. Para uma análise do funcionamento da administração central
da monarquia francesa após a morte de Mazarino cf. Sarmant, Thierry & Mathieu Stoll (2010), Régner et gouverner.
Louis XIV et ses ministres, Paris, Perrin, pp. 61-104.
7 Acerca do «modelo» de privança de Luís de Haro e da influência do governo «pessoal» de Luís XIV no sistema de
despacho da Monarquia Hispânica cf. Valladares, Rafael (2009), «Haro sin Mazarino. España y el fin del “orden de
los Pirineos” en 1661», Pedralbes, 29, pp. 339-393.
8 Ao longo do século XIX diversos literatos se ocuparam com o estudo do reinado de Afonso VI. Como exemplos: Andrade
Corvo, Um ano na corte, Lisboa, Typographia da revista universal, 1850-1851; José de Torres, «Reinado de D. Affonso
VI» in Archivo Pitoresco, vol. V (1862); Manuel C. Pereira Coutinho, «Desthronação de D. Affonso VI rei de Portugal» in
O Instituto, Coimbra, vols. XII-XIII (1865-1866); Julio Rocha, O favorito de D. Afonso VI, Lisboa, Typographia progres-
sista, 1879; Manuel Bernardes Branco, Sua majestade El-Rei o senhor D. Affonso VI e sua sereníssima esposa, Lisboa,
Typographia de Adolpho Modesto & Cia, 1885; João da Câmara, D. Affonso VI: Drama em cinco actos, Lisboa, Livraria
A. Ferin, 1890; Idem, O conde de Castelo Melhor: Romance histórico ilustrado, Porto, O primeiro de Janeiro, 1903.
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português Fernando Palha (1851-1897) escreveu um trabalho pioneiro sobre


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os dezoito anos de desterro de Luís de Vasconcelos e Sousa, trazendo impor-
tantes informações sobre a trajectória do conde durante esse período. Entre-
tanto, em seu livro Palha oscilava entre a demonstração da sua admiração pelo
ministro de D. Afonso VI e a ênfase na suposta incapacidade do soberano9.
Na primeira metade do século XX, antes das comemorações da Restau-
ração, dois historiadores contribuíram efetivamente para o surgimento de um
novo olhar sobre o reinado afonsino e sobre o valimento de Castelo Melhor. O
primeiro foi o britânico Edgar Prestage (1869-1951) e o segundo o português
Gastão de Melo de Matos (1890-1971).
Em seus diversos estudos sobre o Portugal seiscentista, Edgar Prestage
contribuiu de maneira significativa para um melhor conhecimento do governo
do conde de Castelo Melhor (1662 -1667) e dos seus dezoito anos de dester-
ro (1667-1685). O historiador, em um artigo sobre a devolução de Tanger aos
portugueses, publicado em 1917, ressaltou as preocupações do então des-
terrado Castelo Melhor no âmbito diplomático. No mesmo ano, publicou um
estudo sobre parte da correspondência de Castelo Melhor no exílio. Neste
trabalho, Prestage revelava a existência de uma documentação até então iné-
dita, que permitiu preencher importantes lacunas sobre o período de desterro
do conde10. Na década de 1930, Prestage voltou ao tema a partir da perspec-
tiva das relações internacionais. Destacando a importância da correspondên-
cia diplomática para o entendimento do reinado de D. Afonso VI (1662-1667),
Prestage chamava a atenção para a inexistência de um estudo específico
sobre a acção governativa do conde Castelo Melhor. O autor situou o reina-
do afonsino no contexto mais alargado do jogo político entre as monarquias
européias do século XVII, sublinhando a pressão exercida pelos franceses na
corte lisboeta. De acordo com Prestage, os interesses franceses, personifica-
dos na princesa Maria Francisca Isabel de Sabóia e no representante de Luís
XIV na corte portuguesa Saint Romain, foram determinantes para a queda de
Castelo Melhor. Nesse sentido, o conde não teria sido derrubado somente
por uma conspiração palaciana, mas também pelos agentes de Luís XIV11.

9 Fernando Palha, O conde de Castel Melhor no exílio. Ensaio biográphico, Lisboa, Imprensa Nacional, 1883, pp. 3-15.
10 Edgar Prestage, «O conde de Castelo Melhor e a retrocessão de Tánger a Portugal» in Separata do Boletim da
Segunda Classe, Coimbra, Imprensa da Universidade, v.11 (1917), p. 3; Idem, Correspondência do conde de
Castelo Melhor com o Pe. Manuel Fernandes e outros. (1668-1678), Coimbra, Imprensa da Universidade, 1917.
11 Prestage, Edgar (1930), «Castel Melhor e a rainha D. Maria Francisca» in Miscelânea de Estudos em honra de
D. Carolina Michaelis de Vasconcellos, Coimbra, Imprensa da Universidade, pp. 1-15; Idem (1939), «A Catastro-
phe de Portugal e o tratado de liga de 1667 com a França», Arquivo Histórico de Portugal, IV, pp. 5-16. Sobre a
correspondência de Castelo Melhor com os diplomatas ingleses, veja-se, do mesmo período, Almeida, M. Lopes
de (1932), «Carta de Robert Southwell para o conde de Castelo Melhor sobre os negócios da Espanha (1666)»,
Separata da Biblios, Coimbra, Imprensa da Universidade, v. VIII, n.º 5-8.
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Além dos trabalhos de Prestage, os artigos de Gastão de Melo de Matos


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foram fundamentais para a revisão dos estereótipos e interpretações mora-
lizantes do governo de Afonso VI e Castelo Melhor. Em seu estudo crítico
da Anticatastrophe, uma das principais fontes sobre o reinado afonsino, o
historiador português ressaltou a importância da deposição do favorito no
contexto da Restauração de Portugal. De acordo com o autor, a queda do va-
lido foi mais importante que a própria deposição do monarca, pois revelava a
existência de diferentes facções cortesãs vinculadas aos interesses ingleses
e franceses na corte portuguesa12.
Apesar das fundamentais contribuições de Prestage e Matos e do surgi-
mento de novas perspectivas para o estudo do reinado afonsino, nas primeiras
décadas do século XX ainda permaneciam as interpretações tradicionais sobre
o período. Nesse sentido, os autores que escreveram sobre o valimento de
Castelo Melhor dividiram-se entre defensores e detractores do valido. Entre
os primeiros encontrava-se o jornalista César da Silva (1859-1942) que, em
um romance histórico sobre Castelo Melhor, enfatizou as potencialidades do
ministro de Afonso VI. De acordo com Silva, desde cedo Luís de Vasconcelos
e Sousa tinha demonstrado o seu talento para o governo. Com o seu ingresso
na corte lisboeta, aos vinte e cinco anos de idade, não havia dúvida de que iria
«celebrisar-se». Uma opinião contrária à de Silva foi exposta em um artigo do
médico e filósofo Eduardo Burnay (1853-1924). Em seu estudo sobre as rela-
ções entre Castelo Melhor e um suposto grupo de envenenadores do duque
de Sabóia, Burnay afirmava que Castelo Melhor foi um homem «sem grande
alma, que em certo momento assumiria aventurosamente um papel à altura
do qual se não mostrou»13. Outros exemplos desta dicotomia são os trabalhos
dos historiadores Ângelo Ribeiro (1886-1936) e Mario Sampayo Ribeiro (1898-
-1966). Se o primeiro, em um capítulo de um volume da História de Portugal
dirigido em conjunto com Damião Peres (1889-1976), advogou em favor de
Castelo Melhor, o segundo associou-se com o partido oposto14.

12 Matos, Gastão de Melo de (1935), «A Anticatastrophe: estudo crítico», in Separata do 2.° Volume do Arquivo Histórico
de Portugal, Lisboa, p. 7. Além de Prestage e de Matos, em 1916 D. Francisco de Souza e Holstein (1838-1878),
marquês de Sousa Holstein, publicou um artigo sobre os anos de exílio de Castelo Melhor na corte de Carlos II e
Catarina de Bragança (1677-1685) contribuindo para um melhor conhecimento das atividades de Castelo Melhor
na corte britânica. Cf. D. Francisco e Souza Holstein, «O conde de Castelo Melhor em Londres» in Separata da
Revista de História, Porto, Typographia da Empreza Literária e Tipographica, n.º 19 (1916).
13 Silva, César da (1922), O conde de Castelo Melhor. Chronica episódica do reinado de D. Afonso VI, Lisboa, João
Romano Torres & Cia Editores, p. 10. Eduardo Burnay, «O conde de Castel-Melhor: As suas presumidas relações
com os alquimistas, mágicos, filósofos, moedeiros-falsos e envenenadores do século XVII», Separata de O Instituto,
Coimbra, Imprensa da Universidade, vol. 69 (1923), p. 7.
14 Ribeiro, Ângelo (1937) «A organização da vitória» in Damião Peres & Ângelo Ribeiro (orgs), História de Portugal,
Barcelos, Portucalense, v. 6, pp. 77-100. Ribeiro, Mário de Sampayo (1938), A destronação de El-Rei D. Afonso
VI e a anulação de seu matrimônio, Lisboa, tip. de Inácio Pereira Rosa, 1938, p. 18.
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A Restauração portuguesa e o valimento (1940-1990) 207


Com as comemorações do tricentenário da Restauração de Portugal em
1940, foram publicados diversos trabalhos sobre a conjuntura política dos
primeiros trinta anos da dinastia dos Bragança e, em consequência, sobre
o reinado de D. Afonso VI e a privança de Castelo Melhor. Apesar do forte
conteúdo nacionalista de parte considerável dos estudos destes anos, alguns
autores contribuíram efetivamente para a compreensão do reinado afonsino.
Em 1944, o já citado Gastão de Melo de Matos publicou «O sentido da crise
política de 1667», um dos mais importantes artigos sobre os anos posterio-
res à Restauração. De acordo com Matos, apesar dos muitos escritos sobre
o final do reinado afonsino, poucos historiadores tinham ido além da visão
romântica dos acontecimentos da corte portuguesa. Embora reproduza parte
dos estereótipos sobre o período, uma das maiores inovações da interpreta-
ção de Matos é a aproximação entre as conjunturas de 1640 e 1668. Para o
autor, as lutas políticas na corte portuguesa no final do reinado de D. Afonso
VI não poderiam ser entendidas fora do contexto da tomada do poder por
D. João IV em 164015.
No início da década de 1960, o historiador português Jorge Borges de
Macedo (1921-1996) publicou um ensaio sobre o valido de D. Afonso VI. Para
o autor, a importância histórica da figura do 3º conde de Castelo Melhor difi-
cultava uma análise mais apurada desta personagem. Para Macedo, apesar
dos muitos estudos, os historiadores costumavam tomar partido contra ou a
favor do valido, impedindo assim um estudo rigoroso da sua ação. No seu
entender, pouco se sabia ainda sobre a sua biografia e as suas ideias16.
Para que algumas das questões colocadas por Macedo fossem res-
pondidas, foi necessário um conhecimento mais aprofundado dos primeiros

15 Gastão de Melo de Matos (1944),, «O sentido da crise política de 1667», Anais da Academia Portuguesa de História.
Ciclo da Restauração, vol. VIII, p. 337. O mesmo período seria lembrado pelo autor em outras ocasiões. Para além do
já citado estudo crítico sobre a Anticatastrophe veja-se: «Nos bastidores da política seiscentista: Sebastião César de
Meneses», Lisboa, Trabalhos da associação de arqueólogos portugueses, V (1941), pp. 7-39; Idem, «Um processo
político do século XVII» in Congresso do mundo português, VI congresso, tomo 2.°, II Secção: Restauração e Guerra
da independência, Lisboa, 1942, pp. 633-667; Idem, «Panfletos do século XVII», in Anais. Ciclo da Restauração
de Portugal, Lisboa, Academia portuguesa de história, X (1946), pp. 15-26. Entretanto, apesar das contribuições
de Matos à historiografia sobre Castelo Melhor, neste mesmo período ainda eram predominantes os julgamentos
morais sobre o valido. Cf. Magalhães, Antonio Manuel (1943), Uma grande figura da Restauração. O conde de
Castelo Melhor, Dissertação de licenciatura, Coimbra, FLUC; Oliveira, José Marques de (1950), Alguns aspectos
da administração do Conde de Castelo Melhor (1662-1667), Dissertação de licenciatura, Lisboa, FLUL; Pedro,
Guiomar Reis (1950), Acção política do 3.º conde de Castelo Melhor na Restauração, Dissertação de licenciatura,
Lisboa, FLUL; Campos, José Damasceno (1952), Acção governativa do Conde de Castelo-Melhor, Dissertação de
licenciatura, Coimbra, FLUC.
16 Macedo, Jorge Borges de (1961), «O conde de Castel-Melhor. Ensaio biográfico», in Os grandes portugueses,
Lisboa.
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anos do Portugal dos Bragança e da figura do valido em sua acepção insti-


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tucional. Nesse sentido, um dos trabalhos mais importantes foi escrito pelo
historiador português Luís Reis Torgal. Em seu livro Ideologia política e teoria
do Estado na Restauração, Torgal estudou as idéias políticas que fundamen-
taram o governo dos primeiros anos da dinastia dos Bragança. Entretanto,
diferente da análise de Gastão de Melo de Matos, a interpretação de Torgal
afastou-se das teses nacionalistas sobre a Restauração portuguesa. Sobre o
reinado de D. Afonso VI, o autor considerou a ascensão de Castelo Melhor
como uma simples troca de poderes entre sectores dominantes17. De acordo
com Torgal, apesar dos muitos escritos políticos do Portugal do século XVII,
poucos autores debruçaram-se sobre a questão do valimento, o que sugeria
a importância periférica da figura do valido no contexto português18.

O valimento de Castelo Melhor na recente historiografia


sobre o Portugal restaurado (1990-2009)
Além de Torgal, durante as décadas de 1970 e 1980, autores como Mar-
tim de Albuquerque e Antonio Manuel Hespanha publicaram estudos que con-
tribuíram de forma decisiva para um melhor conhecimento da política no Por-
tugal do século XVII. Estes trabalhos não só refutaram a tese da existência de
um «absolutismo português», como também destacaram a coexistência entre
o poder central e uma multiplicidade de jurisdições no Portugal da Época Mo-
derna. Tais idéias se tornaram o ponto de partida para a formação de um novo
paradigma de análise das questões políticas do Portugal restaurado, forne-
cendo aos historiadores novas idéias para o estudo de velhos temas. Assim,
assuntos já anteriormente investigados foram revisitados sob outro ângulo de
observação. Esta mudança foi influenciada pelo diálogo entre a historiografia
política modernista portuguesa e outras tradições historiográficas19.

17 Torgal, Luís Reis (1981 [1978]), Ideologia política e teoria do Estado na Restauração, Coimbra, Imprensa Geral
da Universidade, v. 1, p. 96. Sobre as interpretações nacionalistas da Restauração veja-se do mesmo autor «A
restauração: breves reflexões sobre a sua historiografia», Revista de História das Idéias, n.º 1 (1976), pp. 23-40;
Hespanha, Antonio Manuel (1993), «As faces de uma ‘Revolução’» in Penélope, n.º 9/10, pp. 7-16; Cunha, Mafalda
Soares da (2009), «Sebastianismo, os Jesuítas e os Bragança. Reflexões historiográficas em torno de 1640»,
Economia e Sociologia, n.º 88-89, pp. 357-375.
18 Torgal (1981 [1978]), Ideologia política…, v. 1, p. 162.
19 Entre os trabalhos fundamentais nesse processo de revisão historiográfica: Albuquerque, Martim de (1974), A
sombra de Maquiavel e a ética tradicional portuguesa, Lisboa, Universidade de Lisboa; Idem (1978), Jean Bodin
na Península Ibérica: ensaio de história das idéias políticas e do direito público, Lisboa, Fundação Calouste Gul-
benkian; Hespanha, António Manuel (1986), As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal – Sec.
XVII, Lisboa; Idem (1986), A historiografía jurídico-institucional e a morte do Estado, Madrid, Instituto Nacional de
Estudios Jurídicos. Sobre a revisão do conceito de centralização no Portugal seiscentista: Cardim, Pedro(1998),
«Centralização política e Estado na recente historiografia sobre o Portugal do Antigo Regime», Nação e Defesa,
vol. 87, pp. 129-158; Schaub, Jean-Frédéric (1995), «La Penisola Iberica nei secoli XVI e XVII: la questione dello
Ler história | N.º 64 | 2013 | pp. 201-214

Entretanto, esse novo paradigma coexistiu com estudos que ainda re-
209
produziam parcial ou integralmente os tradicionais juízos de valor sobre o
reinado afonsino e o seu ministro, apresentando Castelo Melhor em tom apo-
logético como um «patriota» à serviço da «nação» portuguesa. Apesar do tipo
de abordagem escolhida, tais trabalhos foram fundamentais pela divulgação
de novas fontes arquivísticas para o estudo do período20.
Para que se delineasse uma nova compreensão do valimento de Castelo
Melhor foi necessário passar do estudo individual à análise do papel institucio-
nal do valido. Esta perspectiva foi alcançada através da comparação da história
de Portugal do século XVII com a das outras monarquias européias do mesmo
período. Um dos principais responsáveis por essa nova abordagem foi o histo-
riador do Direito António Manuel Hespanha. Ao destacar a existência de uma
multiplicidade de jurisdições no Portugal do século XVII, as transformações es-
truturais do reino durante o período filipino (1580-1640) e o papel renovado das
cortes no governo de D. João IV, Hespanha trouxe importantes inovações aos
estudos sobre o poder na Época Moderna21. A partir das contribuições metodo-
lógicas e historiográficas de Hespanha, o reinado afonsino ganhou destaque,
sobretudo através dos trabalhos de Pedro Cardim e de Ângela Barreto Xavier.
No seu livro sobre as Cortes portuguesas do século XVII, Pedro Cardim
refletiu sobre os impactos do valimento de Castelo Melhor nas instituições
e destacou que o governo do conde retomou certos aspectos do valimento
do conde duque de Olivares na Monarquia Hispânica22. Em outro trabalho,
o autor dissertou sobre a natureza pragmática e improvisada da política do
valido de D. Afonso VI. De acordo com Cardim, Castelo Melhor, durante os
seus cinco anos de governo, não seguiu qualquer projecto político ou idéias
previamente definidas23. Em outro texto sobre a casa real portuguesa, Car-

Stato», Studi Storici, n.º 1, pp. 9-49. Sobre a internacionalização da historiografia portuguesa, veja-se: Schaub,
Jean-Frédéric (2000), «Novas aproximações ao Antigo Regime português», Penélope, n.º 22, pp. 119-140; Idem
(2003), «The internationalisation of Portuguese historiography», e-journal of Portuguese History, v. 1, n.º 1, &
v. 1, n.º 2; Cardim, Pedro & Mafalda Soares da Cunha (2007), «From periphery to centre: the internationalization
of the historiography of Portugal», Historisk Tidskrift, n.º 127, vol. 4, pp. 643-657.
20 Black, Maria Luísa de Bivar (1996), Um escrivão da puridade no poder. O conde de Castelo Melhor. 1662-1667,
Lisboa, SPB Editores & Livreiros; Ramos, Margarida P. A. e Silva Covas (1995), O governo de D. Afonso VI: Uma
administração em tempo de guerra. (1662-1667), Dissertação de mestrado em História Moderna, Lisboa, FLUL;
Sousa, Francisco da Silveira de Vasconcellos e (2001), O ministro de D. Afonso VI. Luís de Vasconcelos e Souza
3.° Conde de Castelo Melhor, Porto, Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Côa; Rocha, Maria Manuela Martins
(1990), A promoção da imagem do rei D. Afonso VI e do governo de Castelo Melhor no mercúrio portuguez,
Dissertação de mestrado em literatura e cultura portuguesas, Lisboa, FCSH, UNL.
21 Além dos já citados trabalhos «O governo dos Áustrias…» e As vésperas do Leviathan…, veja-se do mesmo autor:
«As cortes e o reino: Da União à Restauração», Cuadernos de Historia Moderna, n.º 11 (1991), pp. 21-56.
22 Cardim, Pedro (1998), Cortes e cultura política no Portugal do Antigo Regime, Lisboa, Cosmos, p. 31.
23 Cardim, Pedro (2002), «O processo político (1621-1667)» in António Manuel Hespanha (coord.), José Mattoso
(dir), História de Portugal. O Antigo Regime (1620-1807), Lisboa, Círculo de Leitores/Lexicultural, v. 8, p. 64.
Vinícius Dantas | A privança no Portugal restaurado...

dim lembrou o desequilíbrio engendrado pela privança de Castelo Melhor na


210
distribuição de ofícios e cargos palacianos. Assim, com a acumulação dos
processos de decisão política e com o seu monopólio dos mecanismos de
distribuição das honras e mercês da coroa, o valido de Afonso VI despertou
a oposição aristocrática24.
Além de Cardim, Ângela Barreto Xavier também contribuiu efetiva-
mente para um melhor conhecimento do papel governativo do conde
de Castelo Melhor. De acordo com Xavier, com a promulgação do novo
regimento do escrivão da puridade em 1663, Castelo Melhor teve a legiti-
midade necessária para o seu valimento. Assim, em sua curta experiência
de governo, o favorito foi o principal responsável pelas decisões da coroa
portuguesa, afastando-se dos mecanismos tradicionais de consulta aos
conselhos e tribunais25. Xavier também dedicou um artigo aos impactos
institucionais do governo de Castelo Melhor no interior da rede de conse-
lhos e tribunais da coroa portuguesa. Assim, destacou as possibilidades
de controle da monarquia pelo valido e as semelhanças entre a política de
Castelo Melhor, a dos validos castelhanos e a do marquês de Pombal no
século XVIII26.
Em um livro sobre as cerimônias de casamento de D. Afonso VI realiza-
das em 1666, Ângela Xavier, Fernando Bouza e Pedro Cardim recuperaram a
dimensão simbólica do valimento de Castelo Melhor. Recentemente, em sua
biografia do rei D. Afonso VI, Xavier e Cardim recolheram e sintetizaram as
suas aportações anteriores sobre o governo do valido27.
Na recente historiografia política sobre o Portugal do século XVII, o
valimento de Castelo Melhor também foi estudado a partir das relações in-
ternacionais. Rafael Valladares, em seu livro sobre a Restauração de Por-
tugal, destacou o papel de Castelo Melhor na condução das negociações
entre as coroas castelhana e portuguesa. O autor também refletiu sobre os
significados da presença de um valido no governo no Portugal restaurado.
Nesse sentido, após a Restauração de 1640, foi recorrente a associação

24 Cardim, Pedro (2000), «A Casa Real e os orgãos centrais de governo…», op. cit., pp. 52-56; Idem, O poder dos
afectos. Ordem amorosa e dinâmica política no Portugal do Antigo Regime, Dissertação de doutoramento, Lisboa,
FCSH, UNL, cap. 7, pp. 477-560.
25 Xavier, Ângela Barreto (1998), “El Rei aonde póde, & não aonde quer”. Razões da política no Portugal seiscentista,
Lisboa, Edições Colibri, p. 147.
26 Xavier, Ângela Barreto (1999), «The ‘valimento’ of Castelo Melhor (1662-1667). Reasons of State in Portugal in the
second half of the Seventeenth Century», Arquivio della ragion di Stato, Quaderno I: Prudenza civile, bene comune,
guerra giusta. Percorsi della ragion di Stato tra Seicento e Settecento, pp. 103-104; Idem (2003), «A crise política
de 1667-1668», in António Manuel Hespanha (ed), O milénio português. Século XVII, Lisboa, Círculo de Leitores.
27 Xavier, Ângela Barreto, Pedro Cardim & Fernando Bouza Álvarez (1996), Festas que se fizeram pelo casamento
do rei D. Afonso VI, Lisboa, Quetzal editores; Xavier, Ângela Barreto & Pedro Cardim (2006), D. Afonso VI, Lisboa,
Circulo de Leitores.
Ler história | N.º 64 | 2013 | pp. 201-214

entre o valimento e os impactos da política do conde duque de Olivares em


211
solo português, o que posteriormente dificultaria a consolidação de Cas-
telo Melhor. Para o autor, a figura do valido evocava um modo de governo
directamente ligado à acção dos reis castelhanos. De facto, a identificação
directa entre valimento e governo dos Áustrias se confirma pela inexistên-
cia de uma reflexão específica sobre o valimento em Portugal. Assim, para
Valladares os debates sobre o valimento no contexto portugués parecem
não ter ido além da oposição ao governo dos Filipes28.
A dimensão diplomática da privança de Castelo Melhor também foi dis-
cutida por José Carlos Janela Antunes em sua dissertação de doutoramento.
A partir do estudo das relações franco-portuguesas na segunda metade do
século XVII, Janela Antunes concluiu que a aliança matrimonial entre D. Afon-
so VI e Maria Francisca Isabel de Sabóia permitiu a formação de um partido
francês na corte portuguesa. De outro lado, o interesse de Luís XIV na con-
tinuação da Guerra da Restauração foi contrariado pela negociação de paz
entre as coroas ibéricas, mediada pelos enviados ingleses e liderada pelo
conde de Castelo Melhor29.
Além dos autores que se debruçaram sobre o reinado afonsino e sobre
o valimento de Castelo Melhor, outros historiadores, que estudaram temas
relacionados com a conjuntura de 1662-1667, também fizeram importantes
observações sobre a ascensão do conde e a sua privança30. Por exemplo, em
sua biografia de D. Pedro II, Maria Paula Marçal Lourenço estudou as facções
cortesãs que determinaram a queda de Castelo Melhor e o seu desterro da
corte lisboeta em 1667. Além disso, Lourenço destacou o papel de Castelo
Melhor no contexto das tensões e rivalidades entre D. Afonso VI e seu irmão
D. Pedro31.
Em nossa dissertação de mestrado e em outros trabalhos posteriores,
estudámos os debates sobre o valimento nos primeiros anos do Portugal res-
taurado e no período do governo de Castelo Melhor. Chegamos à conclusão
de que, apesar da inexistência de uma extensa literatura de «espelhos de

28 Valladares, Rafael (1998), La rebelión de Portugal (1640-1680). Guerra, conflicto y poderes en la Monarquía
Hispánica, Valladolid, Junta de Castilla y León.
29 Antunes, José Carlos Janela (2003), Le Portugal de la «Restauração». La politique du comte de Castelo Melhor
(1662-1667) et l’attitude de la France, thèse doctorat, Paris, Université Paris IV.
30 Sobre os rendimentos da casa de Castelo Melhor durante o governo do valido. Cf. Salvado, João Paulo (2009),
Nobreza, monarquia e império. A casa senhorial dos almotacés-mores do reino. (Séculos XVI-XVIII), Dissertação
de doutoramento em História dos descobrimentos e da expansão portuguesa, FCSH, UNL, pp. 125-130.
31 Lourenço, Maria Paula Marçal (2007), D. Pedro II. O pacífico (1648-1706), Rio do Mouro, Círculo de Leitores.
Sobre o governo do «pacífico» veja-se também: Braga, Paulo Drumond (2006), D. Pedro II. 1648-1706, Lisboa,
Tribuna da História. Para os anos de Castelo Melhor na corte inglesa (1677-1685) Cf. Troni, Joana Almeida (2008),
Catarina de Bragança (1638-1705), Lisboa, Edições Colibri.
Vinícius Dantas | A privança no Portugal restaurado...

favoritos» em Portugal, a questão do valimento parece ter sido uma preocu-


212
pação constante dos autores que reflectiram sobre as questões políticas da
coroa portuguesa32.

Castelo Melhor e o império: os Estados do Brasil e da Índia (1662-1667)


Além da discussão sobre os impactos da privança de Castelo Me-
lhor no reino, o seu governo também foi situado em um contexto imperial.
Em uma perspectiva geral, estes estudos têm enfatizado a acção dos vice-
-reis e a política ultramarina da coroa portuguesa durante a privança de
Castelo Melhor. Como um exemplo do primeiro caso, o historiador brasilei-
ro Evaldo Cabral de Mello destacou a importância da actuação do vice-rei
D. Vasco de Mascarenhas, 1.º conde de Óbidos, para o reforço da autori-
dade de D. Afonso VI no Brasil. De acordo com Cabral de Mello, durante
cerca de quatro anos de governo, as acções políticas do conde de Óbidos
produziram a subordinação dos poderes locais e das capitanias à auto-
ridade do vice-rei. Nesse sentido, as medidas centralizadoras de Óbidos
tiveram impactos efectivos na governação, sendo as mais eficazes desde a
criação do governo-geral na América portuguesa em 1549. Estudando os
acontecimentos que culminaram na deposição do governador da capita-
nia de Pernambuco Jerónimo de Mendonça Furtado, em Agosto de 1666,
Cabral de Mello destacou as disputas políticas entre Furtado e o vice-rei.
Estas tensões pareciam ser o resultado de contendas familiares e de lutas
de facção entre aliados e adversários do 3º conde de Castelo Melhor. As-
sim, Cabral de Mello relacionou as lutas políticas da corte portuguesa com
as disputas entre as autoridades locais no ultramar durante o valimento de
Castelo Melhor33.
De outro lado, a política ultramarina de D. Afonso VI e de Castelo Me-
lhor tem sido estudada frequentemente no contexto dos debates sobre a
intervenção da coroa portuguesa no Estado da Índia na segunda metade
do século XVII. De acordo com Sanjay Subrahmanyam, apesar dos cla-
mores do vice-rei da Índia António de Melo de Castro e do jesuíta Manuel
Godinho, D. Afonso VI e Castelo Melhor deram pouca atenção aos proble-
mas do Estado da Índia. Além da perda de Cochim em 1663, o governo

32 Dantas, Vinícius Orlando de Carvalho (2009), O conde de Castelo Melhor: Valimento e razões de Estado no Portugal
seiscentista (1640-1667), Dissertação de Mestrado, Niterói, Universidade Federal Fluminense. Cf. nosso artigo «La
privanza del conde de Castelo Melhor y la justificación del valimiento en el Portugal de los Braganza (1662-1667)»,
Espacio, Tiempo y Forma. Serie IV, Historia Moderna, 2013. (no prelo)
33 Mello, Evaldo Cabral de (2003 [1995] ), A fronda dos mazombos: nobres contra mascates, Pernambuco, 1666-
-1715, Rio de Janeiro, Editora 34.
Ler história | N.º 64 | 2013 | pp. 201-214

de Castelo Melhor ficou marcado pela entrega de Bombaim aos ingleses


213
em 1665, como parte do dote da rainha Catarina de Bragança34. Esta tese
de um descaso da coroa portuguesa com a Índia durante o valimento de
Castelo Melhor, foi desenvolvida pelo historiador norte-americano Glenn
J. Ames. De acordo com Ames, durante o governo do conde a coroa portu-
guesa não tomou medidas que fortalecessem a autoridade régia no Estado
da Índia. Na opinião de Ames, esse desinteresse era consequência directa
das opções políticas de Castelo Melhor, pois as preocupações do valido se
limitavam aos assuntos continentais. Absorvido pelos problemas da Guerra
da Restauração, pelos assuntos diplomáticos e pela luta política na corte,
Castelo Melhor não dedicou a atenção necessária às questões do Estado
da Índia35.

Conclusão
Como vimos, apesar dos muitos trabalhos que direta ou indiretamente
lidaram com os cinco anos de governo de Luís de Vasconcelos e Sousa, pou-
cos autores atentaram para os aspectos institucionais da sua privança. Nes-
se sentido, até há pouco tempo, predominavam as interpretações baseadas
no julgamento moral ou no engrandecimento das acções de Castelo Melhor.
Esta perspectiva de análise tem as suas origens nos discursos de apologia
e de oposição ao valido presentes nas fontes coevas e dos períodos pos-
teriores. Assim, a historiografia sobre o tema polarizou-se em dois grupos
principais. Para os que repudiaram as acções do ministro, Castelo Melhor foi
um ambicioso cortesão que não mediu esforços para a conservação da sua
privança, facilitada pela «incapacidade» do rei D. Afonso VI36. Já aqueles que
engrandeceram o seu governo argumentaram que o valido fora injustamen-
te condenado pelos seus opositores. Exercendo um papel fundamental nas
vitórias portuguesas da Guerra da Restauração, Castelo Melhor demonstrou

34 Subrahmanyam, Sanjay (1993), O império asiático português, 1500-1700. Uma história política e econômica,
Lisboa, Difel, p. 254. Sobre as negociações para a entrega de Bombaim, veja-se Nobre, Pedro Alexandre David
(2008), A entrega de Bombaim ao Reino Unido (1661-1668). Um processo diplomático, Dissertação de Mestrado
em História e Arqueologia dos Descobrimentos e da Expansão portuguesa, Lisboa, FCSH, UNL.
35 Ames, Glenn J. (2000), Renascent Empire? The House of Braganza and the Quest for Stability in Portuguese
Monsoon Asia, ca. 1640-1683, Amsterdam, Amsterdam University Press, p. 31. Numa perspectiva semelhante:
Chaturvedula, Nandini (2010), Imperial Excess: Corruption and Decadence in Portuguese India (1660-1706), Ph.D
Thesis, New York, Columbia University, pp. 28-29.
36 Apesar de uma acusação comum aos reis que governaram com validos, no caso de D. Afonso VI, a «incapacidade»
parece não ter se resumido à sua inabilidade para governar sozinho. Nesse sentido, fontes coevas nos legaram
a imagem de um rei fraco e doente, impossibilitado de suas funções governativas por sua «incapacidade física».
Sobre as imagens de D. Afonso VI, veja-se a citada biografia de Pedro Cardim e Ângela Barreto Xavier.
Vinícius Dantas | A privança no Portugal restaurado...

toda a sua capacidade como «estadista» em favor da «nação portuguesa»,


214
correspondendo à confiança do rei.
A interpretação de Castelo Melhor como um cortesão inescrupuloso não
leva em conta o seu papel decisivo na condução da política da coroa portu-
guesa em seus aspectos militar e diplomático durante o reinado de D. Afonso
VI. A direcção do valido permitiu importantes vitórias militares que determi-
naram o fim da Guerra da Restauração e a paz com a Monarquia Hispânica
em 1668. De outro lado, a imagem de um vitorioso estadista que só agia em
função dos interesses da monarquia carrega consigo boa dose ingenuidade.
Tal concepção não atenta para o facto de que, seguindo o exemplo de outros
validos, Castelo Melhor pôs em prática estratégias para a conservação da
sua privança e para a consecução dos seus próprios interesses.
Esta oposição parece ter sido o resultado de uma separação entre o
governo e o valimento de Castelo Melhor. Neste sentido, apesar da existência
de uma ténue linha de demarcação dos diferentes «papéis sociais» exercidos
pelo ministro, estes só poderão ser entendidos em suas relações intrínsecas.
É necessário situar a experiência de Castelo Melhor no contexto das práticas
políticas da Europa do século XVII, aproximando-o de outros validos que go-
vernaram no período. Na recente historiografia sobre os validos encontramos
numerosos estudos que partem deste princípio, oferecendo diversas possibi-
lidades de investigação para o estudo dos favoritos no governo e nas cortes37.

Vinicius Dantas
Centro de História de Além-Mar – FCSH-UNL e CAPES (Brasil)

37 A bibliografia sobre o valimento é vastíssima. Listamos aqui alguns trabalhos essenciais: Tomás y Valiente, Fran-
cisco (1990 [1963]), Los validos en la monarquia española del siglo XVII, Madrid, Siglo XXI; Ranum, Orest 1966
[1963], Les créatures de Richelieu: secrétaires d’Etat et surintendants des finances, 1635-1642, Paris, Éditions
A. Pedone; Bérenguer, Jean (1974), «Le problème du Ministériat XVIIe siècle», Annales E.S.C, 29, vol. 29, n.º 1,
pp. 166-192; Elliott John, (2004 [1986]), El Conde-Duque de Olivares, Barcelona, Crítica, ; Idem (2001 [1984]),
Richelieu y Olivares, Barcelona, Crítica, García García, Bernardo José (1996), La pax hispánica: política exterior
del duque de Lerma, Leuven University Press; Allen, Paul (2000), C. Phillip III and the Pax Hispanica, 1598-1621,
Yale University Press; Feros, Antonio (2002 [2000]), El duque de Lerma. Realeza y privanza en la España de Felipe
III, Madrid, Marcial Pons; Escudero, Jose Antonio (coord) (2004), Los validos, Madrid, Dykinson; Williams, Patrick
(2006), The great favourite. The Duke of Lerma and the court and government of Phillip III of Spain, Manchester
University Press; Thompson, I. A. A., «El contexto institucional de la aparición del ministro-favorito» in Laurence
Brockliss & John.H. Elliott, El mundo de los validos…, pp. 25-41.

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