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INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO

ABÍLIO CARLOS D’ASCENSÃO DINIZ SILVA

D. LUÍS DA CUNHA E A “PAZ DE


UTRECHT”: A VISÃO E A AÇÃO DE UM
“ORÁCULO DA POLÍTICA”

SILVA, Abílio Carlos d’Ascensão Diniz


CUNHA E A “PAZ DE UTRECHT”:
A VISÃO E A AÇÃO DE UM
“ORÁCULO DA POLÍTICA.”
R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 175 (462):39-58, jan./mar. 2014

Rio de Janeiro
jan./mar​. 2014
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D. LUÍS DA CUNHA E A “PAZ DE UTRECHT”: A VISÃO E A


AÇÃO DE UM “ORÁCULO DA POLÍTICA”
D. LUIS DA CUNHA AND THE ‘PEACE IN UTRECHT’: THE
VISION AND ACTION OF A ‘POLITICAL ORACLE’
Abílio Carlos d’Ascensão Diniz Silva1

Resumo: Abstract:
Este trabalho, inserindo-se nas celebrações do This paper is inserted in the celebrations of
tricentenário do congresso que conduziu à “Paz the tricentennial of the Congress which led
de Utrecht” no início do sec. XVIII, pretende to “Peace in Utrecht” at the beginning of the
destacar o papel do diplomata português D. Luis XVIIIth Century. It will give special attention
da Cunha (1662-1749) nas negociações preli- to the role of the Portuguese diplomat, D. Luis
minares de Portugal com Inglaterra, com vista da Cunha (1662-1749), during the preliminary
às negociações dos tratados de Utrecht (1713- negotiations with England aiming at further
1715). Nele pretendemos analisar a incidência negotiations of the Utrecht treaty (1713-1715).
dos assuntos econômicos e políticos no conjun- We intend to analyze the presence of economic
to das negociações desenvolvidas por D. Luís and political issues during those negotiations
da Cunha, salientando o papel que o Brasil viria carried out by D. Luis da Cunha, focusing on
a assumir, num contexto em que as recentes no- the role of Brazil, when the recent news of the
tícias da descoberta do ouro davam uma nova discovery of gold gave more importance to the
importância aos domínios coloniais portugue- Portuguese colonies at a time when the Europe-
ses, num tempo em que os Estados europeus de- an States started to draw their future strategies
lineavam as suas futuras estratégias de expansão for colonial expansion.
colonial.
Palavras-chave: História de Portugal; Período Keywords: History of Portugal; Colonial Pe-
colonial (Brasil); Paz de Utrecht; Europa sec. riod (Brazil); Peace of Utrecht; Europe XVIIIth
XVIII; D. Luís da Cunha; Abílio Diniz Silva. Century; D.Luis da Cunha; Abílio Diniz Silva.

Nas celebrações do tricentenário do congresso que conduziu à “Paz


de Utrecht” (Holanda, 1712-1715), no qual se definiram e afirmaram as
grandes ambições políticas e coloniais dos países europeus, é da maior
justiça chamar a atenção para o papel político e diplomático que nele
desempenhou o grande diplomata português D. Luís da Cunha, embai-
xador em Londres (1697-1712), quer negociando os seus preparativos,
quer atuando ativamente nas negociações e conclusão dos tratados (com
a França em 1713 e com a Espanha em 1715), juntamente com o Conde
de Tarouca.

1 – Doutor em História. Universidade de Paris III. E-mail: adinizsilva@live.com.pt.

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Para tal, destacaremos o seu papel político e diplomático nos anos


anteriores ao congresso, como informador lúcido e atento do que se pas-
sava na Europa, e mais especificamente na Corte de Londres, onde resi-
dia.

A 16 de novembro de 1700, a aceitação por Luís XIV do testamen-


to de Carlos II de Espanha (no qual declarou Felipe de Anjou, neto de
Luís XIV, seu sucessor ao trono de Espanha) veio provocar uma enorme
emoção por toda a Europa, pois ficavam reunidos politicamente os dois
grandes países católicos europeus, França e Espanha, referindo D. Luís
da Cunha que “El R. de França não tinha outro desejo, [...] por ser o único
meio por onde podia aspirar à Monarquia Universal”2 . E isso alterava o
precário equilíbrio político europeu. Inglaterra e Holanda sentiram que o
poder militar e marítimo que assumia o bloco franco-espanhol ameaçava
a liberdade de comércio, nomeadamente o comércio marítimo colonial,
pois conforme avisava D. Luís da Cunha “Os Mercadores fizeram uma
petição a S.M.Bª pª que mandasse ao Estreito [de Gibraltar] uma esquadra
pª que em Cadiz e nos mais portos de Castela se não fizesse agravo, ou
alguma exação, aos seus correspondentes”.3

Quanto ao império austríaco, sentiu que o seu histórico inimigo – a


França – se agigantava e receou o perigo que daí advinha para a sua segu-
rança. O imperador da Áustria reagiu, designando o arquiduque Carlos,
seu filho, como o verdadeiro pretendente ao trono espanhol. A decisão
final para este gigantesco conflito de interesses, obviamente, só poderia
ser conseguida pela armas, sendo desencadeada a chamada “guerra da
Sucessão de Espanha” (1704-1712), à qual o Congresso da Paz de Utrecht
veio pôr fim.

Neste contexto Portugal assumiu um papel relevante. Primeiro, por-


que seria a partir de Lisboa e atravessando o território português que os
aliados (Áustria, Inglaterra e Holanda) invadiriam o território espanhol
para colocar em Madrid, no trono de Espanha, o arquiduque Carlos de

2 – CUNHA, D. Luís da, ofº de 22.11.1700, pª Lisboa, ANTT, MNE, Livro 776, p.79.
3 – Idem, ibidem.

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Áustria. Depois, porque o comércio colonial português, após as promis-


soras notícias da descoberta do ouro no Brasil, trariam um respaldo eco-
nômico e financeiro indispensável à cobertura das despesas da guerra.
Por isso não se fizeram esperar as pressões políticas para que Portugal
saísse do Tratado de Aliança de 1701 com França e Espanha, e viesse
a integrar política e militarmente a Grande Aliança, concedendo assim
maior abertura às exigências comerciais de ingleses e holandeses, o que
veio a acontecer em 1703 com os tratados de Maio (de adesão de Portugal
à Grande Aliança), e de Dezembro com o célebre tratado de comércio
luso-inglês, dito Tratado de Methuen, em alusão ao renomado diplomata
britânico que o negociou.

D. Luís da Cunha, embaixador em Londres, viria a ser um alvo privi-


legiado dessas pressões políticas, nomeadamente por John Methuen, en-
viado extraordinário em Lisboa (1691-7), para obter a adesão de Portugal
à Grande Aliança. De todas as conversações em Londres com Methuen,
ele deu conta ao governo de Lisboa, relatando nos seus ofícios, com de-
talhe e minúcia, as negociações e as suas consequências, em linha com o
papel que entendia ser o de um embaixador: “os Embaixadores (se são,
como devem ser, e não como eu sou) têm justamente a obrigação de se-
rem uns jornaleiros e historiadores dos sucessos presentes, necessitando
de os combinar com os passados, para poderem formar o seu juízo sobre
os futuros”.4

No fim do copiador dos seus ofícios de 1701 para a Corte, encontra-


-se o importante relatório “Discurso sobre o presente estado”, onde faz
uma lúcida análise da situação política da Europa: “O maior desígnio
que estas Nações [Potências Marítimas] podem ter e que os Castelhanos
devem recear, é sobre as Índias, porque vendo que a guerra lhes embaraça
o seu comércio, que lhes é absolutamente necessário, cuidarão em conti-
nuar por outro caminho, passando àquele novo mundo.”5 Neste discurso

4 – CUNHA, D. Luís da, Carta ao Marquês de Alegrete, em 10.03.1723, a propósito da


sua nomeação para a Academia Real da História, Lisboa, ANTT, MNE, Livro 792, Ofícios
pª a Corte, p. 74.
5 – Lisboa, Biblioteca da Ajuda, ms.46-XIII-28, p. 171 v.

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aconselha a neutralidade para Portugal: “Um Príncipe neutro e bem ar-


mado todos o lisonjeiam e todos o temem [...] e navegarão os seus navios
sem risco, e aos seus portos irão os estrangeiros com Liberdade”.6

O “Oráculo da Política”
O sobrenome de “oráculo da política” que lhe atribuíram tem a ver
com a imagem que na época corria a seu respeito. Ele próprio a ela se
referiu, com a ironia que lhe era peculiar, em carta a Marco António de
Azevedo Coutinho, escrita da Haia, a 5 de junho de 1736, ao comentar
com tristeza a recente morte do secretário de Estado Diogo de Mendonça
Corte Real, e a hipótese de D. João V o convidar para assumir o cargo de
ministro principal:

Seria grande a expectação que todos conceberiam do meu préstimo, e


de que V.S.ª mostra ser o primeiro, se o Amo me tirasse de tão longe
para o ir servir de mais perto, preferindo-me a tantos sujeitos quantos
deve haver na nossa terra, muito mais capazes de semelhante emprego
do que eu. Lembre-se V.S.ª que quando algumas vezes falámos nesta
matéria, sempre lhe disse que eu poderia ser menos mau Secretário
de Estado dos Negócios Estrangeiros, porque o uso me poderia haver
dado deles mais conhecimento que a qualquer outro que nem os tra-
tou, nem talvez ouviu falar deles, senão muito superficialmente; mas
que das coisas interiores do Reino faria um péssimo Ministro, porque
totalmente as ignorava. […] De maneira que, logo que nela estivesse
4 dias, ouviria V.S.ª dizer aos Críticos, e ainda aos que o não são: Este
é o Oráculo que S.Mag. nos foi buscar a Holanda! Que utilidade nos
trouxe, que faz, e em que nos melhora? E terão muita razão de assim
o dizerem. […] Quem, sem consultar as suas forças, a sua capacidade,
toma a carga com que não pode, precisamente cairá com ela perdendo
a honra, e servindo mal o Amo, [...] Ajunte V.S.ª a esta consideração a
do meu génio inteiramente oposto ao das intrigas e lisonjas das Cortes,
de que ordinariamente depende a conservação, além de que os mui-
tos anos que tenho vivido com as outras Nações me fizeram contrair
certos hábitos, que me não deixarão contentar a nossa Nobreza, e é
muito tarde para me repatriar. Depois destas reflexões, e outras que
V.S.ª pode entender que não sou tão temerário que enjeitasse a honra
6 – Idem, ibidem, p. 174 v.

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que o Amo me quisesse fazer; mas será representando-lhe com toda a


verdade a minha insuficiência, a minha muita idade, e as minhas repe-
tidas moléstias, p.ª que depois se não ache enganado na ideia que faz
do meu préstimo, e da minha possibilidade.7

A sua lucidez permitiu-lhe não se enganar a seu próprio respeito,


sobretudo enxergando para além da glória imediata, pois sabia aquilo que
o esperava se viesse a ocupar as cadeiras do poder, em Lisboa. Neste
sentido podemos dizer que foi um bom oráculo em relação ao seu próprio
futuro.

As questões econômicas na ação diplomática de D. Luís da Cunha


(1697-1715)
As questões econômicas tiveram sempre um papel fulcral na ação
diplomática de D. Luís da Cunha, na medida em que as informações que
transmitia tinham sempre em linha de conta as previsíveis consequências
que os acontecimentos políticos poderiam trazer para a economia de Por-
tugal.

No âmbito das negociações preparatórias que conduziriam aos trata-


dos de Utrecht, a primeira intervenção de grande relevo que empreendeu
foi sem dúvida a sua participação nas negociações do Tratado de Comér-
cio Luso-Britânico, assinado em 27 de dezembro de 1703, dito tratado de
Methuen. E isso não foi por acaso.

Ao partir para Inglaterra, em outubro de 1696, o diplomata portu-


guês ia munido de um conjunto importante de instrumentos diplomáticos:
uma instrução geral, uma instrução secreta, e a cópia de uma instrução
para Francisco de Sousa Pacheco, enviado extraordinário na Holanda,
todos subscritos pelo secretário de Estado Mendo de Fóios Pereira, e com
rubrica de D. Pedro II8, os quais definiam com clareza, não só os objeti-

7 – CUNHA, D. Luís da, carta para Marco Antº Azevedo Coutinho, de Haia, 5.7.1736,
Lisboa, ANTT, MNE, Caixa 789.
8 – Todas estas instruções têm data de 2.10.1696, e estão no Ms. 282 A da Biblioteca da
Academia das Ciências de Lisboa.

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vos, métodos e limites de atuação do diplomata, como também o modo do


seu relacionamento com os outros embaixadores portugueses.

Nestas instruções, onde o problema político da “sucessão de Cas-


tela” (isto é da sucessão de Carlos II, rei de Espanha, doente e sem fi-
lhos) era considerado a “matéria per si a mais grave que pode haver no
Mundo”, foi D. Luís da Cunha incumbido de tratar, entre várias questões
econômicas, do desenvolvimento do comércio luso-britânico, pois o mo-
narca desejava –
que não somente o comércio se continue, mas que se aumente com no-
vos e recíprocos interesses[...] E se [os ingleses] começarem esta prá-
tica, por se levantar a proibição [da entrada em Portugal] dos panos de
Inglaterra tirando-se o equivalente deles em frutos deste Reino, direis
que tendes notícia que o Enviado João Mathuem [sic] havia feito esta
proposta ao Secº de Estº, [...] e que quando convosco queiram conti-
nuá-la, vos devem dizer as conveniências que resultarão a Portugal, pª
que dando-me conta delas, possa eu atender também às de Inglaterra.

Na instrução secreta, ordenava-se que D. Luís da Cunha indagasse


qual seria a atitude de Inglaterra em relação a Portugal, e que apoios lhe
prestaria, dada a iminência da guerra na europa:

Procurareis saber del-Rei Guilhermo, se no caso que El-Rei de França


intente com a dita Armada transportar tropas pelos portos destes meus
Reinos contra Castela, me ajudará a impedir este intento de França,
para que não faça esta invasão pelos meus portos.

Quanto ao modo de atuar, recomendava o monarca: “E já desde logo


podereis ir advertindo e notando com toda a dissimulação e cautela.”

D. Luís da Cunha passou a dispor de um conjunto de objetivos e de


regras que iriam constituir o “vade mecum” da sua acção diplomática:

“Procurareis com a maior inteligência que vos for possível, [...] os


meios com que [os Ingleses] se acham pª as despesas [...] se os povos
com o dano da moeda, com os tributos, com os embaraços do comér-
cio, [...] não possam contribuir com os efeitos pª a sua duração; [...]
Porque em matéria de tantas consequências, convém saber-se tudo pª

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que conferidas as notícias de todos os Ministros que tenho nas Cortes


estrangeiras, se possa formar juízo do presente estado da Europa.”

Durante toda a sua carreira diplomática D. Luís da Cunha teve sem-


pre em mente este quadro de referência, tentando dar a mais exata e fiel
informação, sempre com o objetivo final de permitir à Corte “formar juí-
zo” sobre a situação política da Europa e do mundo.

Dominando perfeitamente o português, o francês, o espanhol e o la-


tim, escrevia sempre com fluência, elegância e clareza, aplicando as má-
ximas de Boileau “Avant donc d’écrire apprenez à penser / Ce que l’on
conçoit bien s’énonce clairement”. Contudo, a língua francesa, a língua
culta, utilizada nas relações diplomáticas, passou a ser a sua língua do
cotidiano, e por isso palavras e expressões francesas vão introduzir-se in-
sidiosamente na sua prosa, por vezes com horríveis galicismos, que hoje
nos chocam, mas que na época eram prática corrente.

Analisemos em seguida alguns dos mais importantes problemas,


colocados pela guerra da sucessão de Espanha, que D. Luís da Cunha
tratou neste período, dando particular atenção ao seu posicionamento em
relação às negociações do tratado de Methuen.

Reflexões sobre as “trocas dos panos, dos vinhos e dos açúcares”


O comércio internacional, e em particular o comércio luso-britânico,
foi um dos primeiros temas que mereceu a sua atenção, porque, como ele
afirmou, é no “comércio onde reside todo o formidável poder desta Nação
[inglesa]”.

Apercebeu-se rapidamente da importância que representava, para


a economia inglesa, a exportação dos tecidos, dos “panos” como dizia,
em contrapartida à importação dos vinhos portugueses, e dos “assucares”
brasileiros. Como a guerra, entre a Inglaterra e a França, tinha provocado
um fortíssimo aumento dos impostos aduaneiros sobre os vinhos france-
ses, que restringiam ou quase impediam a sua importação, pressentiu que
a Inglaterra necessitava avidamente de novos mercados, e do mercado

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português em particular, e que procuraria por todos os meios conquistá-


-lo.

D. Luís da Cunha sentiu que tinha de se informar sobre os meandros


do comércio luso-britânico, e fê-lo, metódica e conscienciosamente, jun-
to dos mercadores ingleses, sendo até solicitado por João de Methuen9
(que o desejava influenciar) para conferenciar sobre a matéria. O nosso
diplomata encarou sempre esta matéria com lucidez e realismo, opondo-
-se repetidas vezes às ideias das trocas dos “panos” pelos “vinhos” pro-
postas por João de Methuen e por seu filho Paulo, vários anos antes da
celebração do Tratado de 1703. Para o diplomata português os objetivos
essenciais de Portugal consistiam em:

– diminuir o saldo da balança comercial, que era favorável à Ingla-


terra, aproveitando a necessidade que esta tinha de importar os
vinhos portugueses;

– continuar a política restritiva das Pragmáticas, que se opunham


à importação dos tecidos ingleses, e demais produtos manufa-
turados (muitos dos quais se destinavam ao crescente mercado
brasileiro);

– conseguir uma maior abertura do mercado inglês ao aumento das


exportações dos chamados “frutos da terra”, isto é, dos açúcares
e tabacos brasileiros, e dos vinhos e azeites portugueses;

– finalmente defender tanto quanto possível o transporte de mer-


cadorias em navios com pavilhão português, torneando o Ato de
Navegação, com base nas cláusulas de reciprocidade estabeleci-
das nos anteriores tratados luso-britânicos.

Quanto ao rigor das Pragmáticas, a previsão certeira de D. Luís da


Cunha baseava-se no “especial cuidado” com que se informara junto dos

9 – Cf. FRANCIS, A.D., The Methuens and Portugal, Cambridge, at the University
Press. 1966, pp. 196 e sgs.

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mercadores ingleses. No ofício de 19.10.1697, aprofundou o problema,


dando a sua opinião ao secretário de Estado:

Não foi possível responder a V.Mercê como me parecia justo, sobre


a introdução ou relaxação da Pragmática que proíbe entrarem nesse
Reino os panos fabricados fora dele, que é a pretensão exposta por
D. João Methuen, e apertadamente requerida pelos Mercadores deste
género, e sem embargo que V.Mercê me não ordena interponha o meu
sentimento, nem ele poderá ser assaz instruído por me faltar sobre
esta matéria toda aquela experiência que me fora necessário, contudo
por me parecer do serviço de S. Magestade, referirei o que alcanço,
querendo capacitar-me deste negócio.10

Partidário da política manufatureira do Conde da Ericeira, e das me-


didas protecionistas que este defendia, D. Luís da Cunha foi um opositor
convicto ao Tratado de Methuen, e sempre que podia recordava esta sua
íntima convicção, como no ofício de 19.02.1709:
Depois que estou neste País se propôs a S.Magestade que Deus tem
em glória, a relaxação da defensa dos panos, que fazendo-me a honra
de me querer ouvir sobre esta matéria, mais de quatro vezes, sempre
fui de contrário sentimento[...] no que não fui ouvido.

E acrescentava, lucidamente, em 1.07.1709:

Eu posso provar aritmeticamente que se a este Reino [Inglaterra] hou-


vera faltado o comercio de Portugal, há muitos tempos que não ha-
veria podido sustentar a guerra, pois é sem dúvida que depois dela, a
pouca moeda de prata e a muita de ouro que tem fabricado, lhe tem
vindo desse Reino.11

A extrema atenção dada aos vinhos de Portugal não o impediu de


refletir sobre as produções do Brasil, nomeadamente a concorrência que
a produção açucareira das Antilhas fazia à produção brasileira. No seu
ofício de 10.03.1700, advertia: “Em ordem aos negócios dos nossos açú-

10 – ANTT, MNE, Livro 775, fº 23 vº.


11 – ANTT, MNE, Livro 783, pp. 74 e 312. Reflete também o crescimento da produção
aurífera no Brasil.

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cares tenho repetido os avisos, e me parece dizer a V.Mercê o interesse


que esta Nação faz com os de Barbados pª que se haja de tomar algum
expediente”.12 Para tal, fez cálculos comparativos, entre custos e provei-
tos da produção e comercialização do açúcar, de Barbados e do Brasil,
não se esquecendo de analisar a política aduaneira inglesa que procurava
“arruinar” o comércio do açúcar brasileiro na Europa.

Em termos econômicos, a sua posição mercantilista era clara – Por-


tugal devia defender uma balança comercial equilibrada, impedindo a
saída de dinheiro, graças à continuação e aumento da política manufatu-
reira iniciada pelo Conde da Ericeira, à manutenção das Pragmáticas, e ao
aumento das exportações dos produtos de Portugal e do Brasil. Quando,
com o aproximar do fim da guerra de Sucessão de Espanha, se discutiu
no Parlamento inglês um “Bill” para abaixamento dos direitos de impor-
tação dos vinhos franceses, favorecendo-os assim em relação à impor-
tação dos vinhos portugueses, D. Luís da Cunha sugeriu a Lisboa, em
12.02.1709, que se adotassem as mais fortes medidas, que poderiam ir até
à renegociação do Tratado de Methuen:

Seria de sentimento que S. Magestade ordenasse que nenhum dos seus


vassalos comprasse baeta de Inglaterra, e que abrisse o comércio com
França e Espanha, porque também desta forma se não viola o Tratado
dos Panos, e seria esta Nação obrigada a fazer outro, em que a pode-
ríamos obrigar a que o vinho de França passasse à razão de três, e o
de Portugal à razão de um, que é a única proporção [dos impostos al-
fandegários] que se lhe pode dar, pª que este se haja de extrair quando
aquele poder entrar.13

No Memorial que nessa data entregou a S.Magestade Britânica, sin-


tetizou claramente a questão:

Cette résolution du Parlement va mettre le Portugal presque dans une


impuissance de continuer la guerre, parce qu’elle ruinera le débit du
vin qu’il avait en Angleterre, avec lequel il contrebalançait une par-

12 – ANTT, MNE, Livro 776, fº 19 vº.


13 – ANTT, MNE, Livro 783, p.75. Significa que o vinho francês pagaria o triplo do im-
posto do português, nas alfândegas inglesas.

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tie de la prodigieuse quantité des marchandises que les sujets de V.


Majesté y débitent. [...] outre que le Roy mon Maître se verra aussi
forcé d’ouvrir le commerce avec la France, tant pour y acheter le blé,
dont on a besoin, que pour continuer le débit de son tabac, comme il a
toujours eu, jusqu’au commencement de cette guerre.14

O protesto resultou, e o Bill não passou no Parlamento. Não sem


ironia D. Luís da Cunha rematou este assunto : “Para com os Ingleses são
inúteis as razões, e só vale o mostrar-se-lhes que também se lhes pode dar
prejuízo”.15

As incidências financeiras da guerra de Sucessão de Espanha: o


empréstimo de um milhão de cruzados
Não se tem tido uma noção exata das consideráveis despesas finan-
ceiras que a guerra de Sucessão de Espanha implicou para Portugal, as
quais obrigaram o País a procurar no estrangeiro, os meios necessários
à sua cobertura. D. Luís da Cunha foi instado a negociar tais meios, o
que o levou a ter de completar a sua formação de jurista com um melhor
conhecimento dos complexos problemas que os empréstimos externos
levantavam. Assim, estudou com cuidado a evolução das cotações nas
Bolsas, as variações do valor da moeda, as alterações dos câmbios, as
taxas de juros e as garantias dos empréstimos, enfim tudo o que era ne-
cessário para poder negociar os empréstimos com os experientes homens
de negócio de Londres e Amsterdã.

Observando cuidadosamente o comportamento das praças financei-


ras, logo no início das movimentações da guerra, D. Luís da Cunha teve
o particular cuidado de avisar a Corte:

As notícias que há 4 dias se divulgaram, de que as tropas francesas


haviam entrado nas praças de Neuport, e Ostende, [...] fizeram nesta
Corte tão grande movimento que [...] todos os fundos públicos bai-
xaram consideravelmente, em grande perda dos que neles tinham o

14 – ANTT, MNE, Livro 783, pp. 80-82.


15 – ANTT, MNE, Livro 783, p.149.

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seu dinheiro, pois com o receio que ainda desçam mais, todos querem
vender as suas ações por muito menos do que lhe custaram.16

Indicou também que aqueles movimentos bélicos tinham produzido

uma grande alteração no comércio, [...] porque quebrou um ourives


com o melhor de 500 mil £ Esterlinas, por ter as caixas de muitos mer-
cadores, principalmente Judeus e Italianos; [...] os açucares, e o mais
que vem de fora, tudo levantou de preço, como também os seguros.
[...] Se pois a apreensão somente, de uma guerra, faz tanta desordem,
e tal que jamais se viu, que fará quando com efeito se romper.17

Prevendo futuras dificuldades financeiras, assinalou no início de


1702, que o parlamento britânico para pagar as despesas da guerra tinha
continuado os impostos excepcionais

sobre a cerveja, sidra, e [...] a que se paga do carvão; nomeou mais 4


Shilings por £ sobre as terras, 50 shilings por 100£ sobre o dinheiro
empregado no comércio, 25 shilings por 100 £ sobre o que está a ju-
ros, 5 shilings por £ sobre os salários, e emolumentos, 4 shilings por £
sobre as pensões, e estipêndios anuais, e finalmente o mesmo, do que
se estimar que ganham todas as pessoas que pertencem à Lei civil e
comum, e todos os Tribunais eclesiásticos, médicos, cirurgiões, e mais
pessoas de qualquer profissão que sejam.18

Para o diplomata, era também inevitável um agravamento dos im-


postos em Portugal, ou em alternativa o recurso a um substancial emprés-
timo externo, pois os subsídios prometidos pela Inglaterra e Holanda não
eram suficientes para fazer face às despesas previstas, nem o seu paga-
mento pontual estava efetivamente garantido. Por isso, em 1704 houve a
necessidade urgente de se contrair um empréstimo externo de um milhão
de cruzados, para providenciar o rearmamento do Exército e da Marinha.

16 – Biblioteca da Ajuda, Ms. 46-XIII-28, fº 13vº, ofício de 13.02.1701.


17 – Biblioteca da Ajuda, Ms. 46-XIII-28, ffº 15vº-16, Ofício de 17.02.1701.
18 – ANTT, MNE, Livro 777, fº 170.

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O empréstimo de um milhão de cruzados


D. Luís da Cunha foi então encarregado de abrir as negociações para
esse empréstimo, socorrendo-se do apoio da Coroa Britânica, tal como
descreveu no extenso ofício de 21 de Março de 170419, no qual teve o
cuidado de explicar à Corte portuguesa os meandros do negócio e as con-
dições do empréstimo, distinguindo desde logo o comportamento dos
banqueiros ingleses, que só emprestavam dinheiro à rainha com garantias
do Parlamento, do dos holandeses, que tinham maior experiência no trato
com os “Príncipes estrangeiros”, e sobretudo mais abertura para este tipo
de operações. Em audiência com Mylord Nottingham, com o Duque de
Malborough, e com o G.e tesoureiro,
a cada um deles em particular lhe expus a necessidade em que
S.Magestade se achava pª pedir a S.M.Britânica e aos Estados Gerais
que lhe fizessem o empréstimo de um milhão de cruzados, [...] e que
S.Magestade não haveria incomodado estas Potências sem primº ter
exausto os seus Erários, e ainda empenhado o melhor das suas Reais
rendas.

O monarca português, em simultâneo, mandava ao seu ministro na


Haia que tratasse com os Estados Gerais, para se poder fazer este emprés-
timo, “por estarem os seus mercadores mais costumados a tais negócios
com os Príncipes Estrangeiros, porque os Ingleses não sabiam senão em-
prestar ao público sobre os fundos que lhe destina o Parlamento”.

Uma vez recebidas as ordens da Corte para proceder às negociações


do empréstimo, D. Luís não perdeu tempo:
(...) de sorte que amanhã falarei com os mercadores mais grossos, que
negoceiam com Portugal, e logo verei se pode ter efeito este expedien-
te, a que ponho grandes dúvidas, porque como aqui há tantas ocasiões
de empregar o dinheiro com maiores avanços, que de 5 por 100 e com
hipotecas destinadas pelo Parlamento que a Rainha não pode tocar,
[...] é mui natural, que não se resolvam a pôr tão longe o seu cabedal,
temendo ainda que se devirta [sic] a consignação porque o humor des-
confiado desta gente não respeita nem a boa fé dos Príncipes, nem a
palavra dos Reis.
19 – ANTT, MNE, Livro778, ffº 66vº e segs.

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Na verdade o rei português era “um Príncipe que governava abso-


lutamente”, e assim podia arbitrariamente pôr em causa o reembolso do
empréstimo, o que tornava muito problemática a sua concretização:

porque parecia impraticável que se aceitasse 5 por 100 sobre um fun-


do que estava em Portugal, e em poder de um Príncipe que governava
absolutamente, e tinha só por caução a grande probidade de que S.
Magestade era dotado, quando aqui se lhes dava presentemente 6 [por
%], e se a guerra continuasse subiria a 7 com uns fundos no mesmo
país.

Sendo inevitável a recusa do empréstimo se “não se lhes dissesse a


quanto chegavam, pouco mais ou menos, os meyos direitos [sic] da Al-
fândega e sal de Setúbal”20, que funcionariam como garantia.

D. Luís da Cunha prosseguiu, apesar destas dificuldades, as comple-


xas e demoradas negociações financeiras com os “mercadores mais gros-
sos” da praça de Londres, geralmente de origem judaica e ascendência
portuguesa. Exemplo, entre outros, foi o contrato que negociou com Isaac
Fernandes Nunes, mercador em Londres, para o fornecimento de 22.000
fardamentos para as tropas portuguesas, cujo contrato apresentava a difi-
culdade de o pagamento se fazer por conta “da dívida da Coroa Britânica
aos herdeiros da Sra. Raínha da G.Bª, D. Catarina”.21

Este empréstimo de um milhão de cruzados teve igualmente o mérito


de suscitar em D. Luís da Cunha um outro tipo de reflexões: por que razão
era excessivo o entesouramento, nas mãos das poderosas ordens religio-
sas em Portugal? Por que não circulava o dinheiro no País? Por que é que
a Coroa não criava as condições para que o empréstimo fosse emitido em
Portugal? Tais reflexões levaram-no a ousar sugerir para Lisboa as ideias
avançadas pelos mercadores de Londres, os quais,

em lugar de concorrerem com o dinheiro, se cansam em fazer pro-


jetos, para que S.Magestade q. Deus Guarde o possa achar entre os
seus vassalos, não podendo crer que nesse Reino falte dinheiro, mas
20 – ANTT, MNE, Livro 778, ff. 80vº-81.
21 – Ofício de 1.10.1709, ANTT, MNE, Livro 783, p. 432.

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D. Luís da Cunha e a “Paz de Utrecht”:
a visão e a ação de um “oráculo da política”

só a circulação dele; além de que o costume que se introduziu entre


os particulares de pagarem 1 por 100 todos os meses, embaraça que
o público possa achá-lo a menor preço; de sorte que remediando-se
este abuso, e querendo S.Magestade vender sobre os mesmos fundos
da Alfândega e sal de Setúbal por um milhão, de juros vitalícios, com
10 por 100 de interesse, se considera que em breves dias acharia a
dita soma, porque os frades, as freiras, e os clérigos que não têm que
cuidar mais que nas suas próprias vidas, folgariam muito de segurar as
suas tenças com tais avanços.22

Contudo a Corte de Lisboa não reagiu sequer a tais sugestões, e con-


tinuou a solicitar a D. Luís da Cunha que prosseguisse as diligências para
obter o empréstimo, o que obrigou o embaixador a chamar a atenção para
os efeitos negativos de tal insistência, informando Lisboa que
não é só infrutuosa a diligência, mas pouco honorífica, mostrando a
estas Nações que antes de começada a guerra, já chegámos a uma tal
necessidade, que pedimos dinheiro fora do Reino, e Mercadores há
aqui bem intencionados que [...] entendiam que S. Magestade poderia
achar este dinheiro entre os seus próprios sujeitos, lucrando eles esses
juros, e ficando com o capital sempre no mesmo país, que é a maior
de todas as vantagens.23

As negociações arrastaram-se, e D. Luís da Cunha, em março de


1705, teve finalmente notícias que “os Judeus de Amsterdam se prepara-
vam a concorrer com a maior parte do dinheiro”. Contudo, a persistente
falta de garantias consistentes impedia a concretização do negócio. Em
21.06.1709 escreveu ao seu colega na Haia, Francisco de Sousa Pacheco,
uma missiva reveladora do seu relacionamento com a comunidade judai-
ca de Amsterdã:

El Rey N.S. [...] me dera as suas reais ordens pª procurar nesta Corte
um milhão de cruzados, sobre as grandes somas que os EE GG lhe
estavam devendo, [...], eu tenho quem avance o dinheiro, e de Amster-
dão vos irá falar certo mercador inglês, com o qual podereis consultar
o negócio, porque [...] logo passará a esses Países uma pessoa de todo
22 – ANTT, MNE, Livro 778, fº 87 : ofício de 8.04.1704.
23 – ANTT, MNE, Livro 778, ffº 178vº-179 : ofício de 10.06.1704.

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o propósito, que com os seus Amigos avançará o dinheiro; porque, por


meu respeito deseja servir o nosso Amo, [...] e chegando o caso vos
escreverei como com ele deveis tratar, porque é um fino compadre.24

Provavelmente este seu “compadre” seria um dos muitos homens


de negócios judeus, a maior parte de origem portuguesa, o que revelava
uma convivência que manteve durante toda a sua vida, deles recebendo
projetos, alvitres e, muitas vezes, pedidos para se recolherem ao Reino se
acaso o monarca lhes concedesse o privilégio de ficarem fora da alçada da
Inquisição. Só que no caso vertente não tivemos notícia da concretização
do dito empréstimo, nem de perdão real a judeus que queriam voltar para
Portugal.

A situação financeira e o peso dos impostos em Portugal


A natural atenção que prestou aos problemas de política externa não
impediram D. Luís da Cunha de se dedicar a analisar e a perspectivar os
problemas internos de Portugal. A sua vasta experiência permitiu-lhe per-
ceber que a grande dificuldade que Portugal tinha na obtenção do crédito
externo residia na crise profunda em que se encontrava o erário público,
crise que era aliás do conhecimento dos “homens de negócio”.

A população, depauperada, já não suportava mais impostos:


Os impostos que pagam os nossos povos, posto que não sejam grandes
a respeito do que os outros dão, contudo são os com que podem, em
ordem à sua pobreza, de sorte que imagino que não será fácil fazê-los
contribuir com maiores somas.

Por isso alertou Lisboa para a gravidade da situação, tal como era
apreendida no estrangeiro pelos círculos financeiros de Londres e Ams-
terdã, num notável, premonitório, e corajoso ofício para Roque Monteiro
Paim, datado de 24.06.1704, ao prever as consequências do inevitável
aumento dos impostos:
A vexação que esses povos sofrerão com a Décima é inigualável, onde
além de pagar-se das terras e casas, 4 em 20, pagam os que morrem,
24 – ANTT, MNE, Livro 783, fº 278.

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D. Luís da Cunha e a “Paz de Utrecht”:
a visão e a ação de um “oráculo da política”

os que nascem, os que casam e os que não casam, as janelas, o carvão,


a cerveja, o papel, e sobretudo a capitação, com os mais impostos das
Aduanas.25

E no ofício de 25.11.1704, para Diogo de Mendonça Corte Real, vol-


tou a apontar o dedo à insustentável situação de excessivo entesouramen-
to, e da falta de circulação da moeda, provocados pelas ordens religiosas
que entesouravam em excesso os recursos financeiros do país, aspecto
que muito o preocupava, e para o qual propunha soluções, referindo que
o rei deveria buscar
os meios pª que aqueles que guardam o dinheiro, o produzam, porque
o tê-lo inutilmente fechado é o que faz parecer pobre esse Reino, pois
é certo que logo que os particulares acharem conveniência em que o
seu dinheiro circule, serão eles mesmos os que irão oferecê-lo; deixe-
-os e faça-os S. Magestade ganhar com os interesses que lhe der, que
estes mesmos e mais ainda entrarão no seu Tesouro por outro cami-
nho.26

Parece indubitável que os contatos estabelecidos na Inglaterra e na


Holanda lhe permitiram aceder a uma mais vasta e profunda visão dos
interesses e do papel de Portugal no contexto europeu. Esta longa expe-
riência foi fundamental para que pudesse conceber muitas das suas ideias,
e justificar as suas opiniões em bases realistas, e assim poder dizer ao
secretário de Estado Diogo de Mendonça:
Se se quiserem aplicar a buscar caminho de fazer vir dinheiro aos
cofres de El R.N.S. não acharão um só, senão muitos, os quais se po-
derão encontrar nas minhas relações, do aviso dos melhores homens
de negócio desta praça, e que estiveram nesse Reino.27

O projecto de D. Luís da Cunha para a economia de Portugal


Em agosto de 1702, quando D. Pedro II ordenou a D. Luís da Cunha
que emitisse parecer, quer sobre a renegociação dos Tratados anteriores,
quer sobre uma futura adesão à Confederação da Grande Aliança, acres-
25 – ANTT, MNE, Livro 778, fº 199.
26 – ANTT, MNE, Livro 778, ffº 394-394vº.
27 – ANTT, MNE, Livro 778, ffº 209-209vº.

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centava: “E também o mais que se lhe oferecesse.”28 Vivamente lisonjea-


do com uma tal abertura, que lhe permitia abordar questões que extra-
vasavam a área diplomática, D. Luís da Cunha elaborou um conjunto de
propostas num projeto que ultrapassava em muito o que lhe era pedido,
e que fundamentalmente visava obter da Inglaterra e da Holanda, todas
as contrapartidas econômicas possíveis, em compensação das facilida-
des concedidas por Portugal aos aliados, e em particular às armadas e às
tropas anglo-holandesas, que com o arquiduque Carlos de Áustria iam
invadir Espanha, entrando pelo porto de Lisboa e utilizando o território
nacional, para uma fase mais dura na guerra da Sucessão de Espanha.

A primeira contrapartida sugerida referia-se às facilidades a conce-


der à exportação do vinho português para Inglaterra, em obediência à
“inteira observância do Artº secreto das pazes”, pagando somente as ta-
xas aduaneiras fixadas em 1654, e navegando sob pavilhão português o
respectivo carregamento, porque neste caso serão os Portugueses “os que
farão este negº, e não os Ingleses, [...] e assim o proveito da venda, e da
navegação será só dos vassalos de S. Magestade”.29

A segunda vantagem a obter respeitava à liberdade de navegar

nos nossos navios pª este Reino [Inglaterra] o açúcar, o tabaco, e o


mais que cresce nas nossas conquistas, o que se nos tem defendido,
[...] e se se conseguir este negócio será de uma notável utilidade do
Comércio de Portugal, crescendo também grandemente a nossa Nave-
gação, que é o que mais nos convém.30

Relativamente às demais vantagens e objetivos a alcançar, D. Luís


da Cunha deu asas à sua imaginação, projetando as suas ideias no médio
e longo prazo, ideias que mais tarde explanou exaustivamente nas suas
Instruções Políticas.31

28 – ANTT, MNE, Livro 777, fº 137.


29 – ANTT, MNE, Livro 777, fº 140vº.
30 – ANTT, MNE, Livro 777, ffº 140vº-141.
31 – CUNHA, D. Luís da, Instruções Políticas (Introdução, estudo e edição crítica por
Abílio Diniz Silva). Ed. CNCDP, Lisboa, 2001.

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D. Luís da Cunha e a “Paz de Utrecht”:
a visão e a ação de um “oráculo da política”

Não podendo a Inglaterra utilizar os portos franceses e espanhóis,


e em particular Cadiz, absolutamente necessários ao seu comércio com
as Américas, e Mediterrâneo, sugere que Portugal aproveite a situação,
criando um porto franco em Lisboa de modo a tornar-se na principal porta
de entrada na Europa, das mercadorias das Américas, África e Ásia, ideia
cuja importância sempre lhe foi cara, e que também desenvolverá exaus-
tivamente nas Instruções Políticas:
Como durante esta guerra Portugal há de ser a Alfândega, por onde
hão de passar todos os géneros destas Nações, pª dele se transpor-
tarem a outros países, [...] parece conveniente que S.M. ponha um
direito que não seja muito pesado nas fazendas que se não houverem
de consumir no Reino, [...] dando liberdade de entrada a todo o género
de mercadorias.

Apenas prevendo a restrição de proibir aquelas que pusessem em


causa as manufaturas portuguesas, “pª que as nossas fábricas se não ar-
ruínem”, e tendo o cuidado de acrescentar, “que de nenhum modo se dê
passagem a algum género de frutos dos que se colhem no Reino, e sua
Conquistas, pª que não diminuam o preço e boa saída dos nossos”.32

Conclusão
Todos os exemplos que acabamos de referir mostram o potencial
de informação que possuía D. Luís da Cunha. O próprio D. João V já no
final da sua vida o reconheceu e lhe fez um sincero elogio numa carta para
sua filha Bárbara de Bragança, rainha de Espanha, datada 28 de julho de
1746:

Em Paris está, como sabes D. Luís da Cunha, o qual é hoje o decano


dos ministros e pela sua notória capacidade, e largas experiências, to-
dos os mais o respeitam e fazem assembleia em sua casa, e nenhum
duvida comunicar-lhe os seus segredos, ou para o conselho ou por
confidência, na certeza da sua probidade, [...] de sorte que por esta via
costumo receber as notícias mais puras do que sucede e se discorre
naquela e nas mais cortes...33
32 – Idem, ibidem.
33 – In: Correspondência de D. João V e D. Bárbara de Bragança, rainha de Espanha

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Abílio Carlos d’Ascensão Diniz Silva

Mas para além das “notícias mais puras”, há que salientar a impor-
tância do papel que desempenhou não só antes, como aqui evidenciamos,
mas também durante e após as negociações da Paz em Utrecht, ao pers-
pectivar os acontecimentos, prever as consequências e aconselhar o mo-
narca na condução política do Reino, nesse período tão decisivo. E nesse
sentido ele foi um verdadeiro “oráculo” da política.

Texto apresentado em setembro/2013. Aprovado para publicação em


novembro/2013.

(1746-1747), ed. por J. A. PINTO FERREIRA, Coimbra, 1945, p.195.

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