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A paz de 1668 e a ilegitimidade dos exércitos permanentes

Autor(es): Costa, Fernando Dores


Publicado por: Imprensa da Universidade de Coimbra
URL URI:http://hdl.handle.net/10316.2/41545
persistente:
DOI: DOI:https://doi.org/10.14195/2183-8925_30_20

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Fernando Dores Costa Revista de Historia das Ideias
Vol. 30 (2009)

A PAZ DE 1668 E A ILEGITIMIDADE


DOS EXÉRCITOS PERMANENTES

Finda a sua missão no reino de Portugal, o conde de Schomberg


identificou como o aspecto mais negativo da actividade militar desen­
volvida desde 1660 a incapacidade de uma exploração mais determinada
das vitórias militares que haviam sido surpreendentemente obtidas,
através de acções que levassem a uma mais ampla destruição das
forças adversárias. "Eu não fora de pareçer de se por tantas vezes em
risco de dar Batalhas mas quando se ganhão (como aqui nos sucçedeo
estes ultimos annos) deviamonos aproveitar das victorias mais do que
fizemos". Disso dava como exemplo a batalha de Montes Claros, que
depois de ter custado tanto trabalho, deveria ter sido continuada com
a perseguição do inimigo até Juromenha, onde se apresaria o resto da
infantaria e da bagagem; e se não fosse tomada muito mais cavalaria
na passagem do Guadiana, haveria de ser perseguida até às portas de
Badajoz e desta tudo seria arruinado até Mérida* (1).

* Departamento de História - ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa.


(1) "Papel que deo a Sua Magestade o marychal Xomberg em 24 de outubro
de 686", publicado por Cristóvão Ayres, História Orgânica e Política do Exército
Portuguez, vol. II, Lisboa, 1898, pp. 132-140, a partir de exemplar do arquivo do
comando geral de engenharia. O documento é certamente de 1668, ano da sua
partida de Portugal, e não de 1686, o que se evidencia na passagem em que se
refere à "guerra que se fez os ultimos outo annos em Portugal", ou seja, desde 1660,
ano em que, no mês de Novembro, chega a Lisboa. Sobre as circunstâncias da

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Revista de História das Ideias

A ausência de um tal aproveitamento ocorria, sabemo-lo, porque


os exércitos se dissolviam, sem ordem, após a verificação da vitória,
os soldados e também os oficiais regressando de imediato às suas
terras e à Corte. Monsieur de Fremont, em carta a Turenne, assinalou
este comportamento que causava espanto. Por sua vez, Monsieur
d'Ablancourt descreveu esta situação de um comandante supremo
que se via subitamente sem forças, como acontecera ao marquês de
Marialva: "Excité, sollicité par les aiguillons de la Gloire, il s'éveille de
grand matin, mais il fut bien surpris d'aprendre en sortant de la Ville que
toutes ses Troupes s'étoient débandées, que chacun s'en étoit retourné
chez soi, et que les Portugais avoient aussi pris pour eux le congé qu'ils
avoit accordé aux Castllans. Cet exemple n'a pas corrigé les Portugais
de ce défaut, car jamais homme n'a mois aimé qu'eux à profiter du gain
d'une bataille"* (2).
Este comportamento depois das batalhas ilustra que a reunião dos
exércitos se fazia dentro de um horizonte moral puramente miliciano,
estritamente defensivo, como uma resposta a uma agressão, perma­
necendo na fronteira somente aqueles que tinham feito das armas um
modo de vida e tendo sempre como pano de fundo a escassez de meios de
conservação dos homens por períodos mais longos. Este tipo de relação
com a guerra e a sua legitimidade defensiva teve uma das suas melhores
ilustrações no movimento que forçou a assinatura da paz em 1668 e a
anulação de tudo o que poderia ser uma herança do período bélico(3).
Mesmo após três derrotas sucessivas, em 1659,1663 e 1665, e da morte
de Felipe IV, o governo de Madrid permaneceu relutante em reconhecer o
rei de Portugal. Este reino ganhou entretanto na Europa uma inesperada
fama militar, sendo os seus governantes aliciados para que servissem de
peões da intriga do rei de França. O curto período de paz entre os poderes
de França e de "Espanha" aberto pela paz dos Pirenéus (1659) estava à
beira de se encerrar. Este lugar no mapa mental dos estadistas europeus

sua contratação ver a sua carta de 27 de Dezembro de 1660, publicada por Ayres,
ob. cit., pp. 21-24.
(2) Mémoires de Mr. d'Ablancourt, envoyé de Sa Magesté Très-Chrétienne Louis

XIV en Portugal contenant l'histoire de Portugal depuis le traité des Pyrénées de 1659
jusqu'à 1668, pp. 42-43.
(3) Fernando Dores Costa, A Guerra da Restauração -1641-1668, Lisboa, Livros

Horizonte.

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foi ganho paradoxalmente quando a grande maioria da população se


encontrava exausta e quando mesmo uma parte muito significativa
dos membros das classes superiores ansiava pela consagração
da paz. Em 1668, os povos estariam à beira de um levantamento.
Uma notícia da época referia que o conde de Sandwich, embaixador
inglês junto de Sua Majestade Católica, chegara a Lisboa(4) a 22 de Janeiro,
tendo tido audiências com D. Pedro e com a Rainha. Encontrou de início os
mesmos obstáculos que tinham feito romper anteriormente semelhantes
negociações. Mas encontrou também os "Principaux de la Noblesse" e a
maioria do clero inteiramente inclinados ao "Accomodement", "ainsi que
les Peuples qui la demandoyent d'une manière qui faisoit apreéhender
un soulèvement". A paz acabou por ser concluída a 13 de Fevereiro de
1668, assinada pelo marquês de Liche, plenipotenciário do rei de Espanha,
pelos comissários do rei português e pelo referido conde de Sandwich,
em nome do rei da Grã-Bretanha, como mediador(5).
Seriam poucos os sectores que se opunham à celebração da paz.
D. Luís de Meneses identificou-os como os "ministros militares e todos
os cabos e oficiais dos exércitos", os quais "clamavam pela subsistência
da guerra, publicando que era justo que se continuasse até o tempo em
que a conquista dos reinos vizinhos nos satisfizéssemos dos inumeráveis
cabedais que os castelhanos haviam usurpado". Mas não tendo para
um tal projecto apoio nos restantes agrupamentos sociais. A posição
favorável à paz englobava "a maior parte dos três Estados unidos em
Cortes e a opinião do povo". Ao príncipe chegariam quatro consultas,
três vindas de Cortes e uma do Senado da Câmara de Lisboa, todas
contendo "várias e forçosas razões para se ajustar a paz", que, com as
propostas do marquês de Liche e do embaixador de Inglaterra, tinham
sido mandadas ver no Conselho de Estado(6). A continuação de uma
situação de contenda parecia agradar apenas aos que nela tinham criado
um "modo de vida". Homens havia que se tinham feito profissionais das

(4) Cidade de onde escreve o autor da carta e que se refere ao "nosso" tratado
com a Espanha.
(5) Les Articles accordez entre le Roy d'Espagne et celuy de Portugal, avec ce qui s'est

passé en cette occasion, contenu en une lettre de Lisbone, Paris, Bureau d'Adresse,
26 de Abril de 1668.
(6) D. Luis de Meneses, História de Portugal Restaurado, ed. Alvaro Doria, s.d.,

vol. 4, pp. 526-8.

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Revista de Historia das Ideias

armas. A eles se referiria Dinis de Mello de Castro quando afirmava, a


propósito da cavalaria do Alentejo, que a sua desocupação em tempo de
paz compreendia o risco de passarem para o reino vizinho(7).
A descrição feita pelo autor da Historia do Portugal Restaurado não
dá o devido ênfase ao clima de revolta latente que se vivia no início do
ano de 1668 e que se manifestou, entre outras, nas posições que foram
tomadas pelos procuradores do estado dos Povos em Cortes. Havia
duas perspectivas perante o tema da celebração da paz. O marquês de
Liche publicara que tinha poderes da "rainha de Castela" para tratar
da paz. "Os plausíveis ecos destas suaves vozes soavam com agradável
consonância nos corações dos povos, e tomaram neles forças tão
vigorosas, que desejando o príncipe atalhá-las, por se lhe oferecerem
razões muito forçosas para entrar em outras considerações, lhe não
foi possível consegui-lo, por ser maior o poder divino, que confundia
as suas diligências"(8). Havia pois uma dimensão "de Estado", situada
na esfera da diplomacia e do estatuto da monarquia portuguesa entre
os príncipes europeus, cuja coerência própria conduziria a protelar a
assinatura da paz: a pressão que era feita pela Corte francesa para que
se mantivesse uma frente militar, mesmo numa fase de baixa pressão,
na fronteira portuguesa, impondo a atenção do governo de Madrid sobre
este flanco. O novo príncipe e os seus conselheiros próximos, depois de
afastados D. Afonso VI e o seu "escrivão da puridade", o conde de Castelo
Melhor, não deixavam de ser intérpretes da sua herança, nomeadamente
expressa na "liga" com o rei de França. A paz acabaria contudo por se
publicar solenemente a 10 de Março de 1668 em Lisboa e Madrid "com
inexplicável alegria dos povos de uma e outra coroa"(9).
Podemos fundamentadamente afirmar que o estado dos Povos impôs
em Cortes a celebração desta paz(10). Recordem-se, muito sucintamente,
as singularidades desta reunião dos três estados de 1668. O ambiente

(7) Cristóvão Ayres, História Orgânica e Política do Exército Português. Provas,

vol. 1, Lisboa, 1902, pp. 182-3.


(8) D. Luís de Meneses, ob. cit., pp. 521-2.
(9) Idem, p. 542.
(10) Sobre as Cortes no século XVII e o pensamento político em 1668: Pedro

Cardim, Cortes e cultura política no Portugal do Antigo Regime, Lisboa, Cosmos,


1998; Ángela B. Xavier, El rei aonde póde, & não aonde quer: razões da política no
Portugal seiscentista, Lisboa, Colibri, 1998.

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A Paz de 1668 e a Ilegitimidade dos Exércitos Permanentes

era excepcional. Debatia-se se esta reunião de Cortes era igual às


anteriores ou diferia delas, havendo nelas votos decisivos e não apenas
consultivos(11). Logo na sua primeira assembleia, os procuradores do
estado dos Povos queriam aclamar D. Pedro como rei (e idêntica posição
tomaram muitos elementos dos outros dois estados), consagrando
deste modo o carácter electivo dos reis, pelo menos naqueles casos em
que verificavam circunstâncias excepcionais na sucessão. Na consulta
que a junta que D. Pedro mandara formar sobre o modo como deveria
governar identificava-se o meio da deposição como muito arriscado
e exemplo de gravíssimo prejuízo por verem os povos que tinham a
faculdade para privarem os seus príncipes da Coroa e governo e sendo
necessário para se justificarem com o mundo fazer públicos os seus
defeitos e incapacidades11 (12).
O segundo grande tema de Cortes foi a paz. Nos primeiros dias de
reunião podia ser previsível um longo conflito com o príncipe D. Pedro.
O decreto que este assinara a 10 de Fevereiro de 1668 mandava ver as
propostas de paz de "Castela", sendo que nelas se reconhecia que a paz
seria celebrada com o rei de Portugal D. Afonso VI e que todas as praças
seriam restituídas, com a excepção de Ceuta. Perguntava-se aos estados
se uma tal paz era admissível sem esta praça e tendo-se em consideração
o capítulo 7o do tratado celebrado com o rei de França. Esse capítulo
impedia a qualquer um dos reis a celebração da paz com "Castela" sem o
acordo do outro, ponto central da chamada "liga", modelo de aliança que,
nos anos seguintes à sua aclamação, fora improficuamente procurado
pelos diplomatas de D. João IV. Recorde-se que o compromisso da "liga"
definia que o rei de Portugal ficasse obrigado, durante o período de
trinta meses até que o rei de França declarasse as hostilidades, a fazer a
guerra com todas as suas forças à Coroa de "Castela", sendo para esse
efeito financiado pela Coroa francesa(13).

(11) José Justino Andrade e Silva, Colecção Cronológica da Legislação Portuguesa,

volume 1675-1683 e suplemento a 1641-1683, Lisboa, 1657, p. 100, disponível em


www.iusiusticiae.fcsh.unl.
(12) 0 Instituto, vol. XII, 1864, p. 281.
(13) 'Tratado de liga ofensiva e defensiva entre D. Afonso VI e Luís XIV de

França contra o rei de Castela", Andrade e Silva, Colecção Cronológica..., volume


1657-1674, Lisboa, 1856, pp. 125-128, disponível em www.iusiusticiae.fcsh.unl.

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Revista de Historia das Ideias

Entretanto, a "situação pré-revolucionária" que se vivia em Portugal


foi assim apresentada pelo estado eclesiástico no final da sua consulta
de 7 de Fevereiro: "este Povo de Lisboa anda muito inquieto" e "cada
dia amanhecem pasquins e editaes pelas ruas contra os que encontrarem
a paz" e "não se fazendo, e sabendo-se que se procura tanto pela parte
de Castella" poder-se-ia "justamente recear um grande trabalho; e que
o mesmo receio há em todos os mais Povos do Reino, porque todos a
estão desejando com notáveis ancias, e ficarão não só desconsolados de a
não verem concluída, mas se levantarão com os tributos e contribuições
que agora pagam"(14). A posição que foi assumida pelo estado dos Povos
relevou-se muito clara(15). Oferecendo-se a paz, afirmavam, com aquela
honra e autoridade que convinha e pedia a razão, o estado representava
que não podia haver nenhuma legítima razão para se não aceitar porque
nesse caso seria injusta a guerra da "nossa parte" e muito perigosa na
consciência não apenas pelas mortes e calamidades que forçosamente
se lhe seguirão, mas também pela incerteza de poder haver uma outra
ocasião semelhante para uma recuperação da paz, único fim da "nossa
guerra", e ser "cousa menos segura deixal-a ir das nossas mãos, para a
esperar de futuro das mãos alheias, com as duvidas que por si se inculcam
e deixam considerar"(16). Por tais razões, protestou o mesmo estado dos
Povos não tomar as armas para essa guerra nem dar gente nem contribuir
com dinheiro por julgar menos justo procurar pelo estrago da guerra o
que pacificamente se oferecia com crédito, com honra, com reputação e
com maior segurança na consciência...
Ao considerar como injusta uma guerra que se seguisse ao desper­
dício da oportunidade (e um tal confronto prefigurava-se como
próximo no caso da aplicação das disposições da "liga" com Luís XIV),
os homens do estado dos Povos colocavam a sua ilegitimidade acima de
qualquer manifestação da autoridade régia e atribuíam-se a si mesmos a
capacidade de anunciarem que não tomariam armas nem financiariam
uma tal espécie de guerra. A justeza de uma guerra não era decidida
pela autoridade régia.

(14) Andrade e Silva, Colecção.. .1857, pp. 101-102.


il5)Idem,p. 103.
(16)Idem, p. 103.

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A Paz de 1668 e a Ilegitimidade dos Exércitos Permanentes

Significativamente, também o estado eclesiástico respondeu a


D. Pedro que "a liga de França no Capitulo 7o não deve tambem impedil-a
porque o Reino está em tal estado e os Vassallos tão desejosos desta paz
que não poderá VM observar a liga sem notável e provável risco da
sua Monarchia"(17). D. Pedro e os seus conselheiros se persistissem no
caminho da "razão" do "Estado" tinham uma grande probabilidade de
o perderem.

A opção pela assinatura da paz foi rapidamente assumida, logo a 14 de


Fevereiro. A questão da paz estava aparentemente encerrada. Na verdade,
prolongou-se, sob variadas formas, pois do ponto de vista predominante
entre os procuradores dos Povos a paz não constituía apenas a assinatura
de um tratado entre os príncipes, mas a liquidação dos efeitos sociais
do estado de guerra na vida das populações. Os aspectos centrais
eram necessariamente o desaparecimento dos tributos extraordinários
criados para o financiamento da guerra e, consequentemente, a defesa
de que não deveria subsistir em tempo de paz uma força levantada de
modo permanente.
O estado dos Povos reclamou que D. Pedro anulasse os tributos
criados em Cortes para financiamento da guerra. Alguns afirmavam que
tinham por levantados os tributos pois havia cessado a guerra que era
a razão por que estavam impostos(18). O marquês de Marialva, membro
destacado da primeira nobreza e procurador da cidade de Lisboa, usou
o seu papel de mediador privilegiado, afirmando que seria bom esperar
pela resposta à consulta que se tinha feito. Resolveram os Povos que se
fizesse outra consulta em que se declarasse que não poderiam "passar
adiante em couza algua" sem o levantamento dos tributos. Essa consulta
foi logo redigida e assinada(19).
O príncipe D. Pedro remetera aos estados um decreto datado de
14 de Março em que manifestava o objectivo de manter em tempo de
paz uma força de seis mil infantes e de mil cavalos, o terço de Cascais
e o bastante para se continuar a fortificação das praças, a criação de
um depósito e algum dinheiro para armas e munições(20). No sábado,

_____
{17)Idem, pp. 103-4.
y
(18) BN, Reservados, Cod. 275, fl. 17.
(19) Idem, fl. 19.
(20) Andrade e Silva, p. 123.

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Revista de História das Ideias

17 de Março de 1668, Marialva afirmou na reunião dos Povos que tentara


evitar que viesse esse decreto sobre a lotação das praças, mas, tendo já
sido mandado aos outros braços, não pudera deixar de chegar àquele,
mas distanciava-se do seu conteúdo: "lhe nam parecia comveniente o
que elle dezia, e que tinha entendido que S. Alt3 mandaria levantar todos
os tributos, e que entam se trataria da lotasão conveniente"(21).
O doutor António Velez Caldeira, secretário das cortes e procurador
de Portalegre, declarou que na noite anterior o príncipe lhe dissera que
haveria de levantar todos os tributos, o que todos aplaudiram muito.
Começava a entender-se entre os aconselhadores de D. Pedro que o
financiamento da força que se queria manter não poderia vir dos tributos
que tinham existido até então. Na terça-feira, 20 de Março, Marialva,
não tendo ainda baixado a consulta sobre o levantamento dos tributos,
secundava a ameaça de paralisação dos trabalhos, mas reafirmando as
boas intenções do príncipe: "a elle lhe parecia q. se nam tratase de outro
neg° atee aquelle se nam rezolver, pois era de tanta importância, ainda q.
lhe parecia q. o Infante estava rezoluto em os levantar"(22); e, para mais,
deveriam conferir a matéria com os outros braços. Todos os procuradores
foram do mesmo parecer. O príncipe estaria a ser mal aconselhado e o
marquês simulava uma ruptura: "Disse mais o Marques q. havia alguas
pessoas q. deziam a S. Alt3 q. se levantase os tributos, q. os povos nam
quereriam contribuir com nada, e q. elle dava sua palavra q. se elle os
nam tirase, o não havia de servir mais"(23).
A 21 de Março, o conde do Prado e o Monteiro Mor, da parte da
nobreza, vieram dizer que aquele braço se havia conformado com a
resolução dos povos, sobre se levantarem os tributos, havendo feito
consulta a D. Pedro em que lho pediam, e que estavam dispostos
a contribuir com o que lhes tocasse para as guarnições necessárias.
Chegou então aos Povos a resposta da consulta sobre o levantamento
dos tributos, nela se dizendo que se conferisse com os outros braços e
que, estando todos conformes, se tomaria a resolução. Tendo já havido
uma tal conferência, se fez de imediato uma nova consulta do estado
dos Povos.

(21)BN, Reservados, Cod. 275, fi. 20.


{22)Idem, Ü. 20v.
{23)Idem, Ü. 20V.

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A Paz de 1668 e a Ilegitimidade dos Exércitos Permanentes

Na sessão de 10 de Abril, um procurador de Arraiolos apresentou


uma posição em que se dispensava a necessidade de uma resolução
régia e em que afirmava a soberania das Cortes: "o Reino em Cortes
tinha todos os poderes, e era o Principe obrigado a defferir a tudo o q.
elle asentase,,(24).
A ausência de resposta às várias consultas, continuava o homem de
Arraiolos, devia resultar da acção de "inimigos do Reino" e o conselho
de Estado não estava acima do Reino em Cortes: "q. nam era rezam q.
votase o concelho de estado, e rezolvese as materias q. o Reino em Cortes
propunha, porq. isso era ter maior poder q. elle"* (25).
As décimas, concluía, estavam levantadas por efeitos dos "contratos"
de que durariam enquanto persistisse a guerra e, ainda que o príncipe
não resolvesse assim, os povos não as pagariam.
O marquês de Marialva referia entretanto as muitas diligências que
tinha feito para se levantarem os tributos, fazendo chegar ao príncipe
uma carta sobre a conveniência em que fosse dada resposta à consulta
sobre esse assunto. Outro procurador, João de Saldanha, afirmava que o
papel do procurador de Arraiolos tinha coisas muito boas, mas que era
necessário moderá-lo na liberdade com que falava sobre os ministros e
que naquelas matérias não havia que falar até vir respondida a consulta
e se tirarem os tributos. Entretanto, não se deveriam parar as contas que
se estavam tomando das décimas que se achavam em dívida e que eram
de pessoas que as podiam pagar.
Na quarta-feira, 11 de Abril, chegou finalmente respondida a consul­
ta de 21 de Março sobre os tributos, reafirmando-se na resolução a
necessidade de 600 mil cruzados para as guarnições, meios para as
reparações das fortificações, um assento "moderado" de munições e
a criação de um depósito para as necessidades que podiam sobrevir.
"E que havia por levantados os tributos". No sábado, 14 de Abril,
começando a "votar com tumulto" estas exigências apresentadas por
D. Pedro, ajustaram os procuradores que se reunissem por províncias.
A da Beira tinha já posição e leu-se um papel em que constava a afirmação
da desnecessidade de cavalaria e dos governadores das armas e de que
bastariam três mil infantes para a guarnição ordinária. Os do reino do

{24)Idem, fl. 23V.


(25) Wem.

363
Revista de Historia das Ideias

Algarve apoiaram o papel da Beira. Votou o Alentejo que se dessem


250 mil cruzados por tempo de três anos, findos os quais haveria
Cortes. Não havia acordo entre os de Trás-os-Montes. Três procuradores
defenderam que se desse tudo o que o príncipe pedia, mas os outros
apoiaram a proposta da Beira. Também não houve acordo entre os de
Entre-Douro-e-Minho, mas a maioria manifestou-se favorável à mesma
proposta. Entre os da Estremadura houve ajustamento e por ela falou
João de Saldanha, procurador de Santarém, afirmando que os Povos
apenas poderiam contribuir anualmente com 250 mil cruzados por um
período de três anos, findos os quais ficaria sem mais ordem levantada a
contribuição, aprovando o príncipe que não houvesse nenhuma cavalaria
nem governadores das armas. Findo esse tempo, se se julgasse necessária
a contribuição, chamaria a Cortes, "sem as quais se nam imporia couza
alguma',(26). Para mais, esses 250 mil cruzados seriam dados pelos três
estados "repartidamente cada hum o q. lhe tocase"* (27).
Na segunda-feira seguinte, dia 16, o braço da nobreza comunicou
ao dos Povos que havia ajustado dar para os presídios e mais despesas
400 mil cruzados e ainda mais 100 mil para um depósito que convinha
haver, ou seja, um total de 500 mil cada ano e por tempo de quatro anos,
no cabo dos quais haveria Cortes, se fosse necessário continuar-se aquela
contribuição. Os Povos não alteraram, contudo, a posição da reunião
anterior. Venceu-se que fosse a consulta na mesma forma em que se
votara. Na sessão do dia seguinte, foi lida e aprovada, sofrendo apenas
uma emenda por intervenção do marquês de Marialva, ameaçando que
a não assinaria com a referência ao carácter insuportável da vexação
que os governadores das armas faziam aos povos, afirmando que não as
tinha feito quando governava e não se deveriam sentenciar por infames
os que tinham servido(28).
Chegou a 20 a resposta do príncipe à consulta. Nela se dizia que se
a contribuição não fosse superior à soma indicada se arriscava o reino
e D. Pedro encomendava muito ao estado que considerasse bem aquela
matéria e se conformasse com o que oferecera o estado da nobreza.
A discussão nos Povos passou para 21 e depois para 23. Nessa segunda
feira, viu-se uma petição dos assentistas do Alentejo, remetida pelo

{26)Idem, fl. 26.


(27)Idem.
{28)Idem, fl. 26V.

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A Paz de 1668 e a Ilegitimidade dos Exércitos Permanentes

príncipe, em que pediam se lhes pagasse um milhão e meio de cruzados


que lhes seriam devidos do fim do ano anterior e já de 1668(29). Mandou-
-se consultar isso com a nobreza. Aparentemente, o príncipe pressionava
os povos através dessa súplica, mas isso implicava reconhecer as Cortes
como um "tribunal" ao qual se remetiam requerimentos para que
subissem consultas. D. João da Silva, procurador de Eivas, apresentou
uma condição prévia à resposta ao "negócio da contribuição que S.A.
pedia", apontando para uma contrapartida à cedência pelos Povos ao
montante pedido e já decidido pela nobreza. O príncipe resolveria que
não houvesse cabos acima do posto de mestre de campo e livrá-los-ia
da existência de cavalaria. Depois de terem a resposta daquela consulta,
resolveriam o que se havia de dar(30). Todos os procuradores concordaram
que se fizesse uma consulta neste sentido e que fosse levada por uma
pessoa de cada província. A 25 assinaram a consulta. Uma delegação
de sete procuradores (dois de Coimbra, dois do Porto, dois de Évora e
um de Eivas) foram a 30 de Abril falar com o príncipe "e lhe dissessem
quisesse despachar as consultas que lá tinha e particularmente a em que
se pedia que não houvesse cavalaria nem cabos maiores"(31).
A 2 de Maio, não tendo vindo as respostas a nenhuma das consultas,
Melchior de Soural, procurador de Arraiolos afirmou que a maioria se
queixava desse atraso e que todos quereriam ir falar ao príncipe. Foi-lhe
respondido que dois dias antes tinham ido os procuradores do primeiro
banco pedir-lhe essa resposta das consultas e que ele o podia fazer
se quisesse(32).
No sábado, dia 5, veio respondida a consulta sobre o pedido para
que não houvesse cavalaria nem governadores das armas e nela se dizia
que o príncipe ficava cuidando naquela matéria e com grande desejo de
acomodar os povos, mas que estes entretanto se deveriam ajustar com o
que tinha resoluto a nobreza e o eclesiástico, mandando estes para esse
efeito vir breve do Papa. Resolveu-se que três procuradores fossem falar
ao príncipe e dizer-lhe que, se quisesse resolver aquela matéria e tirar-lhe
a cavalaria e os governadores das armas, contribuiriam ainda com mais

(29) 'Tapei dos procuradores de Évora", Andrade e Silva, pp. 132-3.


(30) BN, Reservados, Cod. 275, fl. 28v.
(31) Idem, fl. 29V.
(32) Detecta-se aqui uma tensão (aliás conhecida como frequente) entre os
procuradores dos primeiros bancos e os dos bancos mais atrás.

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Revista de Historia das Ideias

do que pudessem. Neste sentido falou João de Saldanha ao príncipe e


este afirmou que responderia ao que lhe pediam.
A 7 disseram alguns procuradores que convinha fazer ainda uma nova
consulta pedindo a resposta do que haviam ido dizer os procuradores
a D. Pedro sobre as referidas abolições e foi assinada no dia seguinte.
A11 de Maio, disseram os procuradores que convinha que fossem todos
falar ao príncipe e pedir-lhe a resolução sobre o que haviam proposto.
Disse-se que não convinha irem todos e que se escolhessem alguns
para isso(33).
A 16 de Maio, o marquês de Marialva transmitia a sua conversa no
dia anterior com D. Pedro. Este havia-lhe dito que os povos lhe haviam
pedido que fizesse a paz e que, sendo de grande conveniência o esperar
mais tempo para a fazer pois se poderiam ajustar fazendo-se também as
da França, e que ele por satisfazer aos povos a havia feito sem esperar
tão grande circunstância; que se lhe havia pedido que levantasse os
tributos e que assim o fizera; agora pediam que se tirasse a cavalaria e
os cabos maiores e que não parecia razão todas estas condições e que
deviam confiar que em tudo desejava satisfazer os povos. O príncipe
teria assim feito reconhecer abertamente o clima de desconfiança que
marcava a relação dos Povos em Cortes com o seu governo.
Marialva forçou os procuradores a uma tomada de posição sobre o seu
discurso. O propósito fora o de mostrar de que modo o príncipe já havia
cedido benevolentemente aos Povos. Conferiram as províncias sobre o
que se devia prometer e veio depois cada um dos procuradores votar.
Votou primeiro o marquês de Marialva e disse que esperava que D. Pedro
resolvesse a consulta para se retirar a cavalaria e os governadores das
armas e que votava que se dessem 500 mil cruzados por tempo de quatro
anos. Votou Pedro Fernandes Monteiro que se dessem 400 mil cruzados,
não se considerando a eventual contribuição do estado eclesiástico,
e votou o mesmo Ruy da Silva, procurador de Évora. Votou João de
Saldanha, procurador de Santarém, que se dessem 400 mil, neles entrando
o que havia de dar o eclesiástico, e que estes se haviam de dar por três
anos com a condição de, acabados estes, haveria desde logo ordem às
Câmaras para que cessasse de imediato o dito donativo; parecendo que
era necessário continuar-se, se chamaria o reino a Cortes, sem o que não

™ldem, fl. 31.

366
A Paz de 1668 e a Ilegitimidade dos Exércitos Permanentes

havia de impor nada de novo. Foram votando os procuradores e 22 votos


seguiram o parecer do marqués e os mais o voto de João de Saldanha.
Dois outros, procuradores de Santarém e de Leiria, votaram que se
dessem só os 250 mil cruzados da proposta inicial. O marqués tivera um
apoio minoritário, mas a posição maioritária satisfazia as desconfianças
do estado. A 18 de Maio, veio finalmente respondida a consulta e nela
dizia o príncipe que, pelo desejo que tinha de fazer mercê ao reino,
havia por bem que não houvesse cavalaria nem governador das armas e
se fez logo nos Povos consulta em que se ofereciam os 400 mil cruzados.
Em conclusão, o estado dos Povos apenas cedeu à contribuição dos 400 mil
cruzados pedidos após a obtenção da contrapartida na "desmilitarização"
pedida. Chegou a 25 a resolução da consulta sobre os 400 mil cruzados
e nela o príncipe agradecia muito o ânimo com que lhe ofereciam esse
montante para o sustento dos presídios, definindo que se viesse bula para o
estado eclesiástico havia de ficar de fora daquela contribuição e finalmente
que passados os três anos, havendo causas para se continuarem os ditos
400 mil cruzados, não seria sem primeiro dar conta ao Reino(34).

Mas a vontade de erradicar as heranças do período bélico manifestou-


-se também na dissolução extemporânea do exército e também à
escala local. Em vários pontos do país, mobilizações tumultuosas das
populações locais agiram contra alguns dos constrangimentos típicos
da guerra.
A 29 de Fevereiro de 1668, o general de cavalaria do Alentejo Dinis de
Mello de Castro relatou o "desaparecimento" do exército: "Com a noticia
q. há nesta Provincia de se haver selebrado a paz entre estes Reynos e
o de Castella, tem tomado os officiais e soldados da Cavalaria deste
exercito tal ousadia, que huns se ausentão deixando os cav.os e outros lhe
não o trato conviniente para se comservarem" pelo que em consequência
muitos morreram por falta de sustento e de assistência dos soldados,
os quais "he impussivel reduzilos, porq. com esta ocazião se vão para
Caza de seus Pays, e outros que procurão livrarse desse trabalho pela
mizeria em que servem"(35). O seu objectivo era assinalar a urgência de
um plano de reformação da força.

Mldem, fis. 32-32v.


(35) Ayres, ob. cit., vol. I, p. 182.

367
Revista de História das Ideias

A cidade do Porto, a mais poderosa das cidades dotadas de governo


municipal, opõe-se às operações de recondução dos soldados depois
de terminada a guerra e foi secundada pela instância regional de poder.
O conflito entre o governador das armas, por um lado, e a Câmara e a
Relação do Porto, por outro, transformou-se num conflito com o próprio
governo régio. Em consulta de 23 de Abril, o Conselho de Guerra, face
ao teor das cartas da Câmara e do Chanceler da Relação, propôs que se
deveria "mandar estranhar" a omissão deste. A carta da Câmara do Porto
de 13 de Abril explicava as razões do conflito: "como esta recondussão
se promete fazer com estrondo militar, não pode deixar de renovar aos
povos as vexaçois da guerra quando estavão esquecidos com se conseguir
a pax tarn dezejada, de q. damos conta a V.Mag.de para mandar rezolver
o que for mais do seu Real Serviço"(36). Significativamente, o conde
governador Francisco de Sousa foi desautorizado e o centro político
capitulou à pressão da cidade do Porto. "Por carta de 24 de Abril castiga
V.Mag.de a obrigação, e zello com q. procurei reconduzir os soldados das
guarnições destas Praças, pello motivo q. para isso me deu a junta dos
castelhanos, e pella ordem, q. tive de V.Mag.de para as guarnesser com
tudo o necessário a sua deffença, como se ve de outra carta de V.Mg.de
de 3 de Abril"(37). Achara "os terços só com os seus officiaes pella rellação
do Porto não premitir se fizesse reconducção dos soldados". Ao conde
restava acompanhar a passagem ao estado de paz, ou seja, a tentativa
de pôr em prática a "reformação do exército", fazendo com que os
julgadores elaborassem as listas das pessoas por quem se deveriam
repartir os cavalos, obrigar os soldados a regressarem aos terços para se
arrecadarem as armas que tinham levado e escolherem-se os mil infantes
que ficariam no terço com que se guarneceriam as praças(38).
Em várias outras localidades, motins tiveram por objectivo a destrui­
ção de partes das fortificações, nalguns casos sob a direcção de elementos
do clero. Dinis de Mello de Castro afirmou que a razão que o obrigara a
não reformar o governador da praça de Vila Viçosa fora que totalmente
se arruinaria a sua fortificação se ele não assistisse naquele governo
pelo cuidado com que tratava de a conservar face ao desejo que os

(36) Anexa à consulta de 23 de Abril de 1668.


(37) Carta do Conde datada de Viana, 12 de Maio de 1668, anexa à consulta de
22 de Maio de 1668.
(38) Consulta de 22 de Maio de 1668.

368
A Paz de 1668 e a Ilegitimidade dos Exércitos Permanentes

moradores tinham de a verem desfeita, o que conseguiriam na ausência


do governador(39). Francisco de Távora, em carta de Chaves, em 19 de
Julho de 1668, dava conta do "excesso" cometido pelos moradores de
Bragança, indo em forma de motim romper as sentinelas até chegar à
muralha, desfazendo uma grande parte da estacada, abrindo juntamente
a cadeia. Dando-lhe aviso dessa desordem, Gregorio de Castro de
Moraes, governador da mesma cidade, logo ordenara ao ouvidor daquela
comarca que tirasse devassa do caso e porque lhe parecia ser "mayor"
que esse ministro, representava ao príncipe regente. Os conselheiros de
Guerra assinalavam que os mesmos casos se iam experimentando em
algumas das mais praças do reino(40). Dinis de Mello de Castro transmitia
a informação do mestre de campo Alexandre de Moura, governador
da praça de Portalegre, "de hum excesso que alguns moradores
daquella Cidade cometerão acompanhados do clero em quererem abrir
humas portas da mesma praça que estavão terraplanadas no tempo
da guerra"(41).
Temos notícia de outros motins em Gafete e Toloza, em Caminha,
onde os oficiais da Câmara tinham tirado o governo da praça a Francisco
de Araújo Bello(42), e em Setúbal (18 de Outubro). Em Gafete, alguns
moradores tinham-se juntado uma noite em forma de motim e arruinado
parte das trincheiras que existiam na povoação e, depois disso, cerca de
vinte homens dirigiram-se a Toloza e derrubaram a entrada das ruas
em cinco partes. A devassa identificou quatro homens (e prendeu três)
mas, por serem os de maiores cabedais e mais aparentados da vila,
não se soube a verdade sobre o assunto porque os perguntados eram
seus cúmplices(43). A Câmara de Olivença escrevia em 7 de Maio que,
perante a ruína das casas e o pequeno número de moradores existente,
"os menos soldados q. puder aver será acerto"(44).

O9) TT, CG, Consultas, Maço n.° 28, consulta de 23 de Maio de 1668.
(4°) TT, CG, Consultas, Maço n.° 28, consulta de 5 de Julho de 1668.
(41) TT, CG, Consultas, Maço n.° 28, consulta de 6 de Julho de 1668.
(42) TT, CG, Consultas, Maço n.° 28, consulta de 10 de Setembro de 1668.
(43) TT, CG, Consultas, Maço n.° 28, consulta de 6 de Agosto de 1668.
(44) TT, CG, Consultas, Maço n.° 28, carta de 7 de Maio, anexa à consulta de

24 de Maio de 1668.

369
Revista de Historia das Ideias

Esse género de acções continuaria no ano seguinte de 1669. Na praça


de Serpa, as cartas de João Leite de Oliveira, governador da praça de
Eivas, e do sargento-mor António Gomes Varela, a cujo cargo estava
o governo da praça de Serpa, deram conta do "excesso" com que o
povo tumultuosamente se ajuntara para abrir uma porta do muro que
estava tapada e como a abrira, sem considerar a diligência que fizera
para que o não executasse nem à presença do juiz de fora com alguns
oficiais para atalhar a esta desordem. Sendo que, acrescentava, se não
necessitava desta porta por haver quatro abertas. Tal como afirmava
João Leite, se não acudisse com remédio a estas "demasias" cada hora
iriam aumentando, pelo que fazia o Conselho presentes ao príncipe
estas razões e o desamparo em que se achavam as praças de Alentejo,
assim como as mais das províncias do reino para que mandasse
remediar estes inconvenientes, como o Conselho por outras consultas o
tem representado(45).
Uma consulta de 6 de Junho respondia ao desejo que o príncipe
manifestara ao Conselho de saber o estado em que se achavam as
fortificações da província de Alentejo. O Conselho de Guerra recebeu do
marquês de Marialva a informação de que "não só se deixou de trabalhar
nellas, mas se desfes muito do que estava obrado, como se tirarão os
presidios e governadores porque aos Povos pareceo que a conservação
da paz consistia em não haver forteficações, sem se lembrarem da
importancia que forão para sua deffensa"(46).
Idêntico panorama transmitia a Junta dos Três Estados, referindo-se
a danificação das praças e o estado miserável dos soldados, chegando
novas notícias sobre as fortificações que se iam arruinando com tanta
pressa que em brevíssimos anos (diziam) não haveria nem a memória
de onde tinham estado(47).
O juiz de fora da vila de Penamacor a propósito do que o Conselho
chamava as "desordens que o povo dela fazem na muralha e fortificação
da dita vila" explicava que os moradores daquele povo, para servirem
com mais facilidade sem andarem dando voltas às portas, tinham aberto
brechas nas muralhas do arrabalde em muitas partes e por elas se estavam

i45) TT, CG, Consultas, Maço n.° 29, consulta de 12 de Janeiro de 1669.
(46)TT, CG, Consultas, Maço n.° 29, consulta de 6 de Junho de 1669.
i47) TT, CG, Decretos, Maço n.° 28, consulta da Junta dos Três Estados, anexa
ao decreto de 11 de Julho de 1669.

370
A Paz de 1668 e a Ilegitimidade dos Exércitos Permanentes

servindo e haviam tirado uma estacada que estava na porta do barrocal


e, já depois de ele ter chegado à vila, tinham aberto uma brecha para a
parte a que chamam das escadinhas(48) 49.
Em alguns casos, previa-se já em 1669 os trabalhos de uma recons­
trução: fizera-se por exemplo uma "medição e orçamento e avaliação
do que se desmanchou e derrubou da fortificação da vila de alter do
chão,,(49); no mesmo sentido, Dinis de Mello de Castro preocupava-se
com os rendimentos que havia para se continuarem com as fortificações
das praças das províncias de Alentejo e sobre a aplicação dos reais
de água(50).

Estavam em confronto representações alternativas sobre o exercício da


autoridade. Circulavam papéis entre os procuradores dos Povos em que
se afirmava a extinção automática dos tributos extraordinários. "Axioma
he de direito, que cessando a razão da lei, cessa a disposição da Lei",
escrevia-se num deles. Seria princípio "natural" que faltando a causa
deixassem de ter efeito todos os decretos que mandaram acrescentar um
quartel e depois meia décima, para correr o papel selado, para os novos
impostos, o levantamento da moeda e todos os mais tributos porque não
tinham outro fundamento além da invasão que "o Castelhano" fizera no
reino, tal como se concluía. Esta argumentação evitava a interminável
questão da fonte de criação dos tributos (o rei ou os Povos) e remetia
para uma mais simples explicação pela via das causas e dos efeitos.
Para mais, sendo os tributos o ónus da "Republica toda", como
conheceria esta o benefício do fim da guerra se lhe permanecesse sujeita?
Pois era "couza evidente" que a destruição da monarquia eram os
tributos. O valor da cobrança da décima e meia que se pagava no final
da guerra importava tanto ou menos do que a décima nos seus primeiros
anos. Isto seria "signal" de "que a terça parte do cabedal se perdeo".
Havia um sentimento de grave empobrecimento que se atribuía à
acção tributária.
Seria para a conservação dos ofícios associados aos tributos que se
queria persuadir que se deveriam conservar a cavalaria e a infantaria
nos presídios e isso era "couza indigna de se propor" porque os soldados

i48) TT, CG, Consultas, Maço n.° 29, consulta de 23 de Julho de 1669.
(49) TT, CG, Consultas, Maço n.° 29, consulta de 24 de Outubro de 1669.
(50) TT, CG, Consultas, Maço n.° 29,consulta de 2 de Dezembro de 1669.

371
Revista de Historia das Ideias

apenas serviam para fazer a guerra e faltando esta, era ocioso que
existissem. Era a visão oposta à do Conselho de Guerra. Para guarnecer
as praças, argumentava-se, estariam os moradores assaz destros,
respondendo a algo que pudesse suceder. Entretanto, a cavalaria poder-
-se-ia conservar através de uma repartição pelo reino entre as pessoas
que sustentavam outras cavalgaduras(51).

O Estado contemporâneo, dos séculos XIX e XX, é um Estado que


se reclama da necessidade de manter uma força armada em estado
de alerta, como se fosse possível ser atacado a qualquer momento.
Constituiu-se pois como um estado de excepção permanente. Isso não
era compreensível para a grande maioria dos membros das sociedades
do século XVII, que viam nisto a criação, na sua proximidade, de uma
ameaça constante sobre as suas famílias, os bens e mesmo as vidas.
A construção do Estado pressupõe a inscrição da ameaça no tempo social
e a imposição do Estado como uma "necessidade"(52).
O estado, termo que é aqui sinónimo de estatuto do príncipe,
dependia, contudo, entre outras, da existência de uma força bélica, ainda
que fosse pouco operacional e efectiva. Pouco tempo depois da paz
de 1668, o governo de D. Pedro começou pouco a pouco a reconstituir
um sistema militar de maiores dimensões. Houve, como se viu, uma
manifesta relutância na cedência aos Povos durante as Cortes de 1668
e tal transigência terá sido ditada pela máxima da arte política que
mandava ceder aos povos exaltados (embora neste caso se tratasse da
inflexibilidade de procuradores em Cortes e não de um furor da plebe nas
ruas) para que se acalmassem, sabendo-se à partida que não se aplicaria
aquilo em que eram satisfeitos.

Os Povos em Cortes não apenas impuseram a celebração imediata


da paz com a Casa de Áustria; contra o espírito e a letra do tratado de
'liga" entre o rei de Portugal e Luís XIV, forçaram a que os tributos que
tinham oferecidos aos reis em Cortes para a sustentação do exército

(51) BPE,Cod. CIV/2-4.


(52) Fernando Dores Costa, 'Interpreting the Portuguese War of Restoration
(1641-1668) in a European Context", www.e-Journal of Portuguese History, vol. 3,
n.° 1, Summer 2005; Nicolas Israel, Spinoza. Le temps de la vigilance, Paris, Éditions
Payot et Rivages, 2001.

372
A Paz de 1668 e a Ilegitimidade dos Exércitos Permanentes

fossem abolidos e obrigaram a que o reino fosse quase completamente


desmilitarizado. Com efeito, os registos da vedoria do Alentejo
comprovam que todos os terços foram reformados nesse ano de 1668.
O príncipe D. Pedro, relutante em ceder a essa perspectiva, teve de
negociar longamente com o estado dos Povos o montante com que este
aceitava contribuir para uma pequena força subsistente e as condições
em que o fazia.
O ideal que perseguiam os procuradores dos Povos era o de uma
sociedade sem tributos (ou com o mínimo possível de imposições,
aquelas que o tempo consagrara como tradição) e sem exército
permanente. Note-se que o estado dos Povos reclamava em 1668 a
tomada de contas do destino dado a 29 milhões de cruzados, o que
implicitamente traduzia a reivindicação do direito de supervisão sobre
os montantes tributados(53) 54. A defesa, quando necessária, fazia-se através
da mobilização das forças dos vassalos (o que, na verdade, não se tinha
revelado uma solução facilmente governável) ou, no pior dos casos,
através de homens levantados por tempo limitado. Manter uma força
permanente em tempo de paz não era considerado aceitável, sendo visto
como uma agressão injustificada contra os povos.
Isto era, aliás, consequente com outros pontos que apontavam para
a desconfiança face aos postos criados na administração régia e ao
crescimento em geral de ónus que recaíam sobre os povos: os ministros
que se teriam acrescentado no Conselho da Fazenda e no Conselho
Ultramarino, a extinção da Relação do Brasil, o serviço dos ofícios pelos
proprietários e não por serventuários, o cumprimento dos estatutos
da Universidade de Coimbra e a limitação dos gastos dos estudantes,
as coudelarias. Podemos considerar que os Povos tinham um "programa"
fundado sobre a "simplicidade", por oposição à "esfera cortesã",
mas outros, caso dos eclesiásticos, participavam neste elogio da parci­
mónia^. Um conflito estava latente entre as províncias e a Corte,
articulando-se com um conflito entre o estado dos Povos e o estado da
Nobreza. Os pedidos que os Povos faziam em Cortes durante o conflito,
afirmavam os conselheiros de Guerra, minavam o esforço de organização

(53) BN, Cod. 275, f. 32v.


(54) Andrade e Silva, ob. cit., 1657, pp. 113-115.

373
Revista de Historia das Ideias

bélica e punham em causa a sua própria defesa(55). Depreende-se que


se acusavam as nobrezas provinciais que governavam os Povos de não
conseguirem tomar um ponto de vista mais amplo no espaço, a escala
do reino e não a das terras, e no tempo, o da previsibilidade dos riscos
futuros. Esse ponto de vista mais amplo seria (supostamente) o da
nobreza.
A Guerra da Restauração não representou um salto na dimensão e
na capacidade política da administração régia. Os meios mobilizados
para a acção bélica permaneceram limitados e o tecto tributário impôs a
dimensão da força levantada. Portugal escapou a um "efeito Cromwell",
a criação paradoxal de uma nova administração destinada à defesa dos
herdeiros políticos de uma revolta inicialmente motivada pelo combate
aos abusos do governo régio. Apesar disso, mesmo aquilo que poderia
passar para o Estado em tempo de paz (fossem tributos ou capacidade
militar) foi destruído por imposição dos Povos. Venceu a ilegitimidade
dos exércitos permanentes.

(55) Fernando Dores Costa, "As forças sociais perante a guerra: as Cortes de
1645-46 e de 1653-54", Análise Social, vol. 161, 2002, pp. 1147-1181.

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