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AS RUAS DO RIO DE JANEIRO OITOCENTISTA E A CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NO

CONTO “PAI CONTRA MÃE”, DE MACHADO DE ASSIS

“Há meio século, os escravos fugiam com frequência. Eram muitos, e


nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente
apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada.
Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia
de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento
da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói.”
(MACHADO DE ASSIS, “Pai contra mãe”)

O escritor Machado de Assis [caixa bibliográfica]i, nascido


em 1939 e falecido em 1908, viveu toda a vida na cidade do Rio de
Janeiro. Está no auge da sua maturidade quando publica o conto
“Pai contra mãe”, na coletânea Relíquias da casa velha [caixa
obra]ii, em 1906. Um dos mais pungentes e bem realizados contos
do autor, o que não é pouco dado o inegável valor estético de sua
obra, sobretudo em prosa, essa obra-prima desenvolve a história de
Cândido Neves, ou Candinho, homem branco e pobre que, em
meados do século XIX, não tendo talento nem disposição para
Machado de Assis em foto de 1904, por
Henrique e Rodolfo Bernardelli ofício mais sólido, vive de caçar escravos fugidos. A demanda do
serviço, porém, cai na medida em que lhe aumenta a concorrência, catalisada pelo
recrudescimento das carências econômicas da população da cidade (sem tantas
ocupações remuneradas em uma sociedade escravagista) e a necessidade de outras
pessoas sem opções melhores de sobrevivência recorrerem à vida de caçadores de
recompensa, o que tem ápice quando Candinho mais precisa de recursos, por ocasião do
nascimento do seu primeiro filho com a recém-esposa Clara. Eis que, diante do receio
da impossibilidade de criar a criança em razão de os pais estarem, no fim da narrativa,
sem recursos, vivendo de favor em um quarto nos fundos da cocheira da casa de uma
senhora após despejados do imóvel em que residiam, a tia de Clara, Mônica, que
também mora com eles, sugere que, ao nascer, o menino fosse levado à Roda dos
Enjeitados, na Rua dos Barbonos.
Criada entre os séculos XV e XVI na Europa (acredita-se que na Itália) para
coibir o infanticídio, a roda dos enjeitados ou dos expostos era uma estrutura (um
cilindro oco de madeira com prateleira que era girado 180o horizontal ou verticalmente
por um impulso, o que fazia tocar uma campainha para chamar a atenção de alguém que
recolhesse a criança do outro lado do muro) cuja mecânica permitia que pessoas
anonimamente deixassem recém-nascidos,
recém que seriam abandonados em lugares públicos
(por isso chamados de expostos
expostos), aos cuidados de uma instituição filantrópica ou do
Estado.. A roda da cidade do Rio de Janeiro,
Janeiro adotada
da pela Santa Casa de Misericór
Misericórdia,
tem origem em 1738, esteve ativa por mais de dois séculos passando por diversos
endereços até 1948 e, atualmente,
atualmente encontra-se em exposição no Museu do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiroiii. Ora, publicado já no início do século XX, tempo da
voz do narrador, o enredo de “Pai contra mãe” desenvolve-se,
se, segundo suas palavras,
“há meio século”, o que nos encaminharia aproximadamente aos meados dos anos de
1850. Mas, dado que a roda dos injetados
injetados somente foi transferida para a Rua dos
Barbonos em 1860 (lá ficando, curiosamente, até o ano de publicação desse conto de
Machado), podemos concluir que, por coerência, a narrativa ocorre em algum momento
desse ano em diante (mas, factualmente,
fact apenas até 1970, quando a Rua dos Barbonos
ganha o nome de Evaristo da Veiga [caixa explicatica]iv, que se mantém até hoje) de
modo que tomamos 1960, dos anos possíveis o mais próximo da expressão há meio
século, como referência da geografia urbana da cidade.
cidade

Rio de Janeiro em 1860: Rua dos Barbonos, Rua de Matacavalos e Passeio Público
A Rua dos Barbonos, antiga Rua Nova dos Arcos, pode ser identificada na
imagem do mapa extraído do interessante e bem executado Projeto ImagináRio [caixa
v
explicativa] em que identificamos parte do
o Centro do Rio de Janeiro em 1860.
1860 Tendo
ligação com as Ruas das Marrecas e das Mangueiras (batismos que remetem a um
espaço ainda bucólico), esse logradouro tinha um nome que advinha do fato de ali estar
localizado o convento Nossa Senhora de Oliveira, ocupado por frades capuchinhos da
Ordem Franciscana (os quais andavam sempre barbados, daí Barbonos) até 1808,
quando foram desalojados para dar lugar aos Carmelitas [caixa explicativa]vi. Mais
tarde ocupado ainda pelos frades de Jesus da Terceira Ordem da Penitência, em 1831 o
convento passou a abrigar o Corpo de Guardas Municipais Permanentes (posteriormente
designado Corpo Militar de Polícia da Corte), tornando-se o famoso Quartel dos
Barbonos, que hoje é o Quartel General da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro,
em edifício profundamente reformado na última década do século XIX – quando foi
adquirido, para promover a sua ampliação, o prédio, que havia na mesma rua, da Santa
Casa de Misericórdia, em que, lembremos, funcionava a Roda dos Expostos.

A partir de Santa Teresa, vista do Aqueducto da Carioca (Arcos da Lapa) e da Rua dos Barbonos,
em foto de Geoges Leuzinger dos anos 1860, do acervo da Biblioteca Nacional Digital
Como um assunto puxa outro... uma curiosidade que não é possível ignorar
quando tratamos da obra de Machado de Assis é que a Rua dos Barbonos ligava-se à
longa Rua de Matacavalos [caixa explicativa]vii, endereço que o autor escolhera para
abrigar a casa em que viviam os personagens de Dom Casmurro [caixa obra]viii:
Bentinho – com sua mãe e outros familiares e o agregado – e, no mesmo terreno, a
família pobre de Capitu. O nome “matacavalos”, aliás, surgira em razão de, nos
primórdios (no tempo de Machado, ao contrário, já seria um logradouro sofisticado em
que habitava a alta classe carioca), a rua atravessar um terreno alagadiço e muitos
cavalos terem que ser sacrificados após se
lesionarem em atoleiros ao tentar percorrê-la. Esse
fato, aliás, faz lembrar que a cidade do Rio de
Janeiro foi erguida sobre um terreno que
originalmente é caracterizado pela presença larga
de mangues e seu desenvolvimento exigiu diversos
processos de drenagem e aterramento, incluindo
de muitas lagoas (a famosa Lagoa Rodrigo de
Freitas [caixa explicativa]ix é uma das poucas que
Vista da extinta Lagoa do Boqueirão e do Aqueduto de escapou). No mapa anterior, por exemplo, é
Santa Teresa em tela de Leandro Joaquim de 1790
possível observar o Passeio Público [caixa
explicativa]x, o qual vem a ocupar o espaço do que antes era a Lagoa do Boqueirão,
ligada diretamente ao oceano e que foi secada e aterrada no último quarto do século
XVIII para a construção do parque, a fim de combater o potencial foco de peste que o
charco representava e tornar a cidade mais salubre.
Mas parece que nos desviamos um pouco do assunto e talvez, parodiando o
próprio Machado, deveria dizer, caro leitor, que escrevi um parágrafo inútil.xi E daí,
não... ele nos resume a atmosfera da cidade daquele tempo e representa um pedacinho
do Rio pelo qual Machado pudera passear. Mas retomemos então “Pai contra mãe”. O
trecho do conto que nos interessa narra o momento em que Cândido Neves, na noite em
que levava o filho à Roda dos Expostos, oportunamente encontra uma escrava que há
muito ele procurava e por que havia sido oferecida uma gratificação fabulosa de cem
mil-réis, recompensa polpuda que lhe resolveria os problemas financeiros por algum
tempo. O importante nesse momento é chamarmos a atenção para as ruas pelas quais a
ação se desenvolve e verificarmos o significado que o nome de cada uma delas parece
trazer para os sentidos do texto. O mesmo já acontecia, sob confissão da narração, com
os nomes dos personagens: “O casal ria a propósito de tudo. Os mesmos nomes eram
objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam que comer, mas davam que rir, e
o riso digeria-se sem esforço.” Podemos considerar então que as opções de trajeto do
autor também não são aleatórias e relacionam-se com os nomes dessas ruas.
“Ao
Ao entrar na Rua da Guarda Velha, Cândido Neves começou a afrouxar o
passo.
– Hei de entregá
entregá-lo o mais tarde que puder, murmurou ele.
Mas não sendo a rua infinita ou sequer longa, viria a acabá
acabá-la;
la; foi então que
lhe ocorreu entrar por um dos becos que ligavam aquela à Rua da Ajuda.
Chegou ao fim do beco e, indo a dobrar à direita, na direção do Largo da
Ajuda,
a, viu do lado oposto um vulto de mulher; era a mulata fugida. Não dou
aqui a comoção de Cândido Neves por não podê
podê-lo
lo fazer com a intensidade
real. Um adjetivo basta; digamos enorme. Descendo a mulher, desceu ele
também; a poucos passos estava a farmácia onde obtivera a informação, que
referi acima. Entrou, achou o farmacêutico, pediu
pediu-lhe
lhe a fineza de guardar a
criança por um instante; viria buscá-la
buscá sem falta.
– Mas...
Cândido Neves não lhe deu tempo de dizer nada; saiu rápido, atravessou a
rua, até ao pon
ponto
to em que pudesse pegar a mulher sem dar alarma. No extremo
da rua, quando ela ia a descer a de S. José, Cândido Neves aproximou-se
aproximou
dela. Era a mesma, era a mulata fujona.
– Arminda! bradou, conforme a nomeava o anúncio.
Arminda voltou
voltou-se sem cuidar malícia.
a. Foi só quando ele, tendo tirado o
pedaço de corda da algibeira, pegou dos braços da escrava, que ela
compreendeu e quis fugir. Era já impossível. Cândido Neves, com as mãos
robustas, atava
atava-lhe
lhe os pulsos e dizia que andasse. A escrava quis gritar,
parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de costume, mas
entendeu logo que ninguém viria libertá
libertá-la,
la, ao contrário. Pediu então que a
soltasse pelo amor de Deus.
– Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho,
peço-lhe
lhe por am
amor
or dele que me solte; eu serei tua escrava, vou servi-lo
servi pelo
tempo que quiser. Me solte, meu senhor moço!
– Siga! repetiu Cândido Neves.
– Me solte!
– Não quero demoras; siga!
Houve aqui luta, porque a escrava,
gemendo, arrastava-se
se a si e ao
filho. Quem passava ou estava à
porta de uma loja, compreendia o
que era e naturalmente não acudia.
Arminda ia alegando que o senhor
era muito mau, e provavelmente a
castigaria
garia com açoutes, – cousa
que, no estado em que ela estava,
seria pior de sentir. Com certeza, ele lhe mandaria dar açoutes.
– Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois?
perguntou Cândido Neves.
Não estava em maré de riso, por causa do filho que lá ficara na farmácia, à
espera dele. Também é certo que não costumava dizer grandes cousas. Foi
arrastando a escrava pela Rua dos Ourives, em direção à da Alfândega, onde
residia o senhor. Na esquina desta a luta cresceu; a escrava pôs os pés à
parede, recuou com grande esforço, inutilmente. O que alcançou foi, apesar
de ser a casa próxima, gastar mais tempo em lá chegar do que devera.
Chegou, enfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda ali ajoelhou-se,
mas em vão. O senhor estava em casa, acudiu ao chamado e ao rumor.
– Aqui está a fujona, disse Cândido Neves.
– É ela mesma.
– Meu senhor!
– Anda, entra...
Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e
tirou os cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas
de cinquenta mil-réis, enquanto o senhor novamente dizia à escrava que
entrasse. No chão, onde jazia, levada do medo e da dor, e após algum tempo
de luta a escrava abortou.”

O percurso portanto será a descida pela Rua da Guarda Velha em direção à Rua
dos Barbonos, o desvio antecipado por um beco para Rua da Ajuda, a subida de volta à
Rua São José (continuação da Rua do Parto, referida antes como um dos locais em que
Candinho havia procurado a escrava), a interrupção do percurso de Arminda que não
mais desceria a São José para ser arrastada pela Rua dos Ourives por seis quarteirões e a
chegada afinal à Rua da Alfândega. Esses são os logradouros que nos interessarão.
A Rua da Guarda, ainda que assim fosse conhecida em razão da necessidade de
haver no século XVIII um posto da guarda municipal para organizar a fila de escravos
que ia buscar água no Chafariz da Carioca e tivesse ganhado o adjetivo Velha após
outros postos terem se instalado pela cidade, no contexto do conto parece ter outra
conotação, com a expressão guarda velha remetendo a um serviço policial, a princípio,
fora de uso na contemporaneidade da sua escrita mas que existia no tempo da narrativa,
pré-abolição, e é relativo exatamente a esse ofício que Candinho extraoficialmente
exerce de caçar escravos fugidos. Mas não se deve pensar que a obra machadiana encara
de forma ingênua a complexa questão da abolição de 1888: muitas obras do autor, da
ficção à crônica, poderiam atestar essa constatação [caixa explicativa]xii.
Rua da Guarda Velha, em Xilogravura do Império Instituto Artístico do Rio de Janeiro publicada
em 1878 na revista Ilustração Brasileira, dirigida por Henrique Fleuiss
O próprio conto, porém, o faz, ao iniciar com a descrição de aparelhos que
teriam caído em desuso com o fim da escravidão, como o ferro ao pescoço ou a máscara
de folha-de-flandres. “Mas não cuidemos de máscaras”, diz-se a certa altura, do que se
subentende também que o conto não irá mascarar o assunto que se empenha em ilustrar.
Trechos de explícita ironia demonstram o discurso, caricaturado pela emulação do
narrador, de uma elite a quem não interessa compreender (como não raras vezes ocorre
até hoje) o tamanho do sofrimento e da indignidade promovida pela escravidão, ao
assim descrever os escravizados: “Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão.
Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar
pancada.” – como se possível fosse gostar da escravidão ou de apanhar. Machado de
Assis parece previamente contestar a tese que três décadas mais tarde Gilberto Freyre
divulgaria em Casa-Grande & Senzala [caixa obra]xiii, que pintava um cenário em que
senhores não eram tão maus e escravizados seriam mais dóceis à sua condição.
Atentemos ainda para a afirmação de que “eram muitos”: afirmam estudos atuais
que a cidade no período colonial foi a que mais teve escravos no mundo, levando em
conta mesmo as do tempo do Império Romano e, segundo o censo de 1872 promovido
por D. Pedro II, da população brasileira da época (quase 10 milhões de pessoas), mais
de 1,5 milhões eram escravos. Não poderia mesmo esse contexto gerar a partir de 1888
negros libertos sem grandes consequências sociais, com as quais, afinal, os poderes
públicos fracassaram em lidar já desde a época. Daí que a descrição do percurso de
Candinho comece estrategicamente nessa Rua da Guarda Velha, nome em que o
narrador do início do século XX insiste apesar de sua voz pertencer a um tempo em que
ela já fora rebatizada exatamente com a alcunha que enverga até hoje, Treze de Maio,
em homenagem à Lei assinada pela Princesa Isabel. Essa omissão do narrador de uma
informação que ele conhece (mas não usa, como é verdade acontece também com a Rua
dos Barbonos) de modo algum deve ser vista como fortuita. Representa, para a vida dos
ex-escravos oficiais, uma ausência mais efetiva de consequências oriundas da data que
renomeou a rua, já que eles seguem submetidos a uma guarda velha que lhe persegue de
modo semelhante até então (e mesmo até hoje, como de certa forma atestaria uma
adaptação bastante livre do conto para o cinema em 2005: Quanto vale ou é por quilo?
[caixa obra]xiv, de Sérgio Bianchi).

Machado de Assis na Missa Campal em que se celebrou a Abolição da Escravatura em 1888, com a
Princesa Isabel ao centro, em pequeno fragmento ampliado de fotografia de Marc Ferrez
Sigamos por outras ruas do trajeto. A aparição no texto das ruas da Ajuda e do
Parto referem-se às circunstâncias especulares que vivem Candinho e Arminda. Os dois
partos descritos, eivados de potencial para o trágico, careceriam de algum auxílio para
terem bom termo. A rua contígua a do Parto, no entanto, é a de São José, figura paterna
emérita por se tratar do pai biológico de Jesus, indicando quem sairá vencedor desse
embate de pai contra mãe, ao qual não parece mesmo ser possível que ambos
sobrevivam. O fortuito ajuda Candinho a encontrar a escrava e a recompensa o permite
continuar com o filho, que não será enjeitado; e não é casual que tenha sido nessa
mesma Rua da Ajuda que ele recebera o auxílio do farmacêutico que, se antes lhe
indicara como pista ter vendido qualquer onça de droga para uma mulata com as
características que ele procurava, depois é quem abriga o seu filho enquanto ele captura
Arminda. Esta, pelo contrário, precisaria do auxílio do próprio Candinho. Seria
necessário que ele, apiedado da condição da mulher, deixasse que ela seguisse o
caminho que pretendia, o de descer a de São José. Reparemos no mapa que, nesse caso,
ela chegaria à Rua da Misericórdia (hoje definitivamente desaparecida, restando-lhe
apenas pequeno trecho da ladeira que subia o Morro do Castelo, demolido em 1921) e,
mais do isso, poderia alcançar o Largo da Misericórdia. A misericórdia de Candinho
permitiria que Arminda chegasse a esse utopicamente simbólico lugar para o qual
pretendia seguir sob sua frágil e fugidia liberdade. Assim, novamente aquilo que no
conto não se conta é significativo: o que
impede Arminda de seguir seu presumível
caminho rumo à Rua da Misericórdia é
precisamente a falta de misericórdia de
Candinho, que, contrariando então o seu nome,
não é nada cândido com ela, não demonstrando
empatia pelo drama da escrava nem mesmo em
razão daquilo que de seu próprio drama ali
poderia refletir, respondendo-lhe rispidamente
Trecho restante da Ladeira da Misericórdia, tombada pelo questionamentos que, quando tia Mônica fizera
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional por ser
umas das ruas mães da cidade, em foto contemporânea em que a ele mesmo, como o porquê de ter filho nas
se vê a preservação do calçamento original em pé de moleque
condições em que vivia, mereceram outras
palavras mais flexíveis, outras desculpas mais razoáveis. E pensa ele ao fim do conto,
isentando-se de culpa, a frase dura, fria, empedernida: “Nem todas as crianças vingam.”
Por fim, devemos ressaltar, ainda que óbvias, as referências à Rua dos Ourives,
não por acaso a que representa a parte mais longa do percurso de Candinho (o caminho
ainda era extenso antes das obras que abriram as Avenidas Central, hoje Rio Branco, e
Presidente Vargas), e à Rua da Alfândega, em que ele realiza a troca do serviço que
pretende vender. A semântica desses nomes revela definitivamente uma Arminda
tratada como mero artigo ou produto, corroborando a mentalidade da organização
político-econômica da Colônia e do Império. O conto demonstra que, no contexto da
Corte oitocentista do Rio de Janeiro, se havia (e evidentemente havia) uma diferença
socialmente reconhecida entre ser um trabalhador livre e ser escravizado, ela tinha um
valor prático menor do que se poderia supor, dado que as circunstâncias precárias e
instáveis sob que aqueles viviam eram menos distantes do que se consideraria à
primeira vista da já bárbara condição destes, que oficialmente eram apenas mercadoria.

Fragmento de Guia e Plano da Cidade do Rio de Janeiro de 1858, de A.M.Mc. Kinney e Roberto
Leeder, com os percursos do conto, do arquivo da Biblioteca Nacional Digital
O conto expõe uma sociedade em que a luta pela sobrevivência pode colocar os
necessitados uns contra os outros. Arminda ainda busca negociar com Candinho, mas o
fracasso da tentativa a leva a ter que lutar. Será em vão, como seu nome também indica:
o radical arm- faz dela uma guerreira bélica, no entanto, seu final em gerúndio -inda
indica uma ação que se estende indefinidamente, porque, ao contrário de Candinho, que
ainda pode ter um momento de triunfo como aquele, a condição de Arminda a condena
a uma constante e interminável luta sem trégua contra seus ferros aos pés e ao pescoço e
sua máscara de folha-de-flandres. Trata-se de uma condição grotesca e cruel essa a que
a escrava é submetida para que Cândido Neves possa manter seu filho junto a si, no
entanto, como o próprio narrador já antecipara cinicamente em sua descrição dos
instrumentos de tortura (aqui chamados “de ofício”) dos escravos, “a ordem social e
humana nem sempre se alcança sem o grotesco e alguma vez o cruel”.
Marcelo Pacheco Soares (IFRJ)
i
Joaquim Maria Machado de Assis nasceu no Morro do Livramento, no Rio de Janeiro, em 21 de junho
de 1839. Filho de um pintor de paredes (cujos pais eram negros alforriados) e de uma lavadeira
portuguesa açoriana, Machado de Assis tinha pais alfabetizados (algo raro na época para sua classe
social) e cresceu interessado na efervescência cultural do centro da cidade. Ascendeu assim socialmente a
partir da manifestação de uma apurada competência intelectual, embora a escola não o seduzisse, como
seus biógrafos apontam. Além de ter exercido diversos cargos públicos, foi romancista, contista, poeta,
cronista, dramaturgo e crítico literário e de teatro. Em 1897, compunha o grupo de intelectuais que fundou
a Academia Brasileira de Letras, sendo seu primeiro presidente. Desde 1869, com Carolina Augusta
Xavier de Novaes, portuguesa e irmã de seu amigo poeta Faustino Xavier, viveu um, como atestam os
registros da época, feliz casamento de 35 anos que durou até a morte da esposa em 1904. Muito culta,
Carolina apresentou-lhe a obra de escritores portugueses e ingleses e revisava seus manuscritos. O
escritor testemunhou importantes acontecimentos na história do Brasil, transformações políticas e sociais
como a Proclamação da República e a Abolição da Escravatura, assuntos que comentou em suas crônicas
de jornal e também em sua produção ficcional, ainda que tantas vezes por um viés mais sutil. Da sua obra,
destacam-se especialmente os romances Memórias póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, obras-
primas da literatura mundial. Machado de Assis faleceu em 29 de setembro de 1908.

Machado de Assis em foto de Juan Gutierrez em 1892

ii
Capa da primeira edição da obra
iii
O museu situa-se na Avenida Augusto Severo, 8, 10o andar, Glória, Rio de Janeiro. Embora aberto à
visitação, o museu não permite fotos do acervo, o que nos impede de trazer uma imagem da Roda.
iv
Foi um jornalista, político, livreiro e poeta que residiu na Rua dos Barbonos até seu falecimento em
1837 e foi o principal redator do jornal A Aurora Fluminense, cuja gráfica também nessa rua funcionava.
É autor da letra do Hino à Independência.
v
Acessível em imaginerio.org, o projeto, desenvolvido pelo Humanities Research Center da Rice
University de Houston (EUA) na plataforma cartográfica Axis Maps, é um atlas diacrônico que localiza
no tempo e no espaço a evolução urbana do Rio de Janeiro desde 1500 até os dias atuais.
vi
Os Carmelitas precisaram deixar o antigo convento, que se tornou moradia de D. Maria I, a Louca, na
chegada da Família Real Portuguesa ao Brasil.
vii
Antes Azinhaga de Matacavalos e mais cedo ainda Caminho para o Engenho dos Padres, essa rua, que
ligava o Centro à região da Tijuca, é a hoje chamada Rua do Riachuelo.

viii
Capa da primeira edição da obra
ix
Sobre essa lagoa – na verdade uma laguna – localizada na região da Gávea e do Jardim Botânico, em
1894 o sanitarista Oswaldo Cruz propôs aterrá-la por não crer ser possível recuperá-la de seu processo de
poluição. Partes dela de fato sofreriam aterramentos no decorrer do século XX, atendendo à especulação
imobiliária.
x
Projetado pelo arquiteto Valentim da Fonseca e Silva, o Mestre Valentim, o parque foi construído entre
1779 e 1784 e está presente até hoje naquele cenário.
xi
Em Memórias póstumas de Brás Cubas, o galhofeiro narrador resume o capítulo CXXXVI à seguinte
frase: “Mas, ou muito me engano, ou acabo de escrever um capítulo inútil.” No início do capítulo
seguinte, porém, contesta sua própria conclusão: “E daí, não; ele resume as reflexões que fiz no dia
seguinte...”

xii
Recomendamos a leitura da coletânea crítica levantada por Eduardo de Assis
Duarte Machado de Assis afro-descendente.

xiii
Capa da primeira edição da obra

xiv
Cartaz do filme

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