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BECO DO CANDEEIRO NUMA LEITURA ANTROPOLÓGICA E

PSICANALÍTICA.

Ao pensar a cidade desde uma perspectiva de relações e menos de uma


perspectiva do “concreto armado”, autores da antropologia urbana e da
sociologia são categóricos em inscrever o território como “base material” em que
se assentam as relações sociais, essas entendidas desde uma perspectiva do
simbólico. Em outras palavras, é crível que o território, por ser nosso artefato de
“enraizamento”, seja a prova mais cabal da existência da diferenciação
estabelecidas entre seres humanos por eles mesmos – de seus preconceitos,
proximidades, empatias e antipatias - e, portanto, talvez seja o território o maior
responsável pela produção de “culturas” dentro das sociedades complexas 1.
Uma abordagem metodológica para pensar o território é empreendida
pelo antropólogo Tim Ingold (2006). Ingold vai diferir “mapear” de “elaborar um
mapa”, desenvolvendo uma ideia de que o “descobrir-caminho” (mapear) é uma
operação de indexação de um ponto de vista (o do descobridor) que é também
uma relação narrativa de uma “história vivida na paisagem”. Todo mapeamento
revela, portanto, uma indexação regionalizada, relativa a um ponto de vista – que
é também, ainda e sobretudo discursivo. A região ganha então todo o seu caráter
histórico, tornando o ato de mapear um ato que se relaciona com a “jornada” de
cada um. Assim para o autor, “mapear” não é o ato de “desenhar um espaço
conhecido”, mas de inscrever um espaço desconhecido numa “região” (INGOLD,
2006).
No movimento de se firmar no ambiente “humano”, de caminhar sem se
perder, o homem mapeia, apreendendo a cidade, fazendo do espaço, território.
Territorialização é assim algo bem mais profundo do que o simples ato de
“reconhecer um espaço”, territorialização é o ato de “incorporar um espaço”.
Desse ponto de vista lidamos com regiões não como uma área circunscrita por

1
Um conceito mais articulado de sociedades complexas é trazido por Gilberto Velho, ele
propõe para um campo de análise sociológica a noção de que uma sociedade complexa é: “(...)
uma sociedade na qual a divisão do trabalho e a distribuição de riquezas delineiam categorias
sociais distinguíveis com continuidade histórica, seja de classes sociais, estratos ou castas. Por
outro lado a noção de complexidade traz também a ideia de uma heterogeneidade cultural que
deve ser entendida como a coexistência, harmoniosa ou não, de uma pluralidade de tradições
cujas bases podem ser ocupacionais, étnicas, religiosas, etc.” Fonte bibliográfica inválida
especificada. (grifo nosso)

1
um perímetro previamente estabelecido, mas sim um espaço reconhecido que
possui certas “práticas de espaço” negociadas pelos que são “do pedaço”
(MAGNANI, 2014). É isso que leva Mariana Albinatti (O território nas políticas
culturais para as cidades, 2009), antropóloga urbana, a formular a máxima de
que na cidade: “Não há território sem cultura nem cultura sem território”, o que é
uma obviedade. Por exemplo: mudamos de estado entre o caminhar no Centro
do Rio e a entrada nas áreas de embarque no metrô. De uma hora para outra,
como se fosse natural, passamos a procurar um lixeiro para descartar o papel
de bala ou a “bituca” de cigarro que tenhamos consumido, coisa que no Centro
pouco de nós faríamos. O metrô é um território. Território que informa - com suas
abóbadas, granitos, seus aços inoxidáveis e suas propagandas elegantes – um
status que deve ser assumido pelos circunscritos. Estar no metrô é estar
submetido a suas regras. Ali somos todos hi-tech e não nos surpreenderia se
jogássemos um papel no chão e acontecesse um flash mob2 que nos
envergonhasse publicamente. Essa é a noção de território que nos acompanha
para pensar o Beco do Candeeiro enquanto local de reprodução histórica.
O Beco do Candeeiro é uma ferida na cidade. Nos arredores três garotos
foram chacinados em 1998 por um homem que fazia parte de um grupo de
extermínio chamado ‘A Firma’ a pedido dos comerciantes locais que queriam se
ver livres dos meninos que sempre rondavam por ali cometendo pequenos
delitos. A chacina foi encomendada para quatro, três morreram, um escapou com
vida, Edilson. Edilson (o sobrevivente) reconheceu o acusado por duas vezes
em fotografias diferentes, de perfil e frontal, quando esteve na prisão. Este foi o
motivo pelo o qual o Ministério Público do Estado abriu processo contra o
acusado. O acusado foi inocentado por falta de provas. O júri popular não confiou
no que relatou o sobrevivente por que “ele estava drogado na noite do
assassinato”. A versão sobre quem os assassinou e quem encomendou o crime
refere-se a que foi contada pelo sobrevivente no julgamento.
Logo após a chacina um escultor, Jonas Correa, esculpiu a tragédia
retratando os três meninos antes da morte com seus olhos de horror. Em uma
madrugada, ele fundou essa escultura na entrada do Beco do Candeeiro que é

2
Tipo de intervenção artística em que uma série de pessoas não uniformizadas nem
aparentemente ligadas realizam uma ação em conjunto - como uma dança coreografada ou um
mesmo grito -, em público, preferencialmente em territórios de alta densidade demográfica.

2
uma rua que liga uma pequena praça a outra. É uma escultura praticamente
invisível aos olhos da cidade. Uma escultura quase invisível de homens
invisíveis.
O Beco do Candeeiro fica em um vale da cidade que margeia o Córrego
do Coxipó. Geograficamente o vale constitui-se como uma depressão abrupta
de um lado e um declive mais suave do outro, no lado do declive suave iniciou-
se a construção da vila de Cuiabá a partir de 1721. Do lado da depressão
abrupta, ainda no século XVIII, foi erigida uma capelinha do Rosário e São
Benedito, ficando o morro conhecido como “Morro do Rosário”. Nesta margem
do córrego, a do morro, existiu o garimpo que marcaria a história de Cuiabá para
sempre: as “lavras do Sutil”. Miguel Sutil foi um agricultor que, tendo interesse
nenhum em vir aqui encontrar ouro, veio para fazer roça e ganhar dinheiro. Seu
objetivo era alimentar a população faminta de bandeirantes que vinham para cá
“prear” índios a fim de levar para São Paulo tendo em vista já terem “preado” os
indígenas aldeados nas missões sulistas - região da tríplice fronteira3. O “grande
ouro dessas terras são os índios”, como disse (levantar, amanhã trago) em
registro de ... levados a força para o trabalho escravo num lucro exorbitante.
Apesar de sua carta de fundação ser de 1719, foi somente com a abertura
do garimpo e a descoberta de quantidades exorbitantes de ouro que Cuiabá foi
desejada como território e tornou-se vila.
O “Beco do Candeeiro” pontua nesse enredo como a primeira rua da
capital e, apesar de ter a alcunha de “beco” – em geral logradouros sem saída -
trata-se de uma rua estreita que dá saída para o entrocamento das ruas Campo
Grande e da antiga “Rua de Baixo”, hoje nomeada Galdino Pimentel. Por ficar
às margens do Córrego do Coxipó, o local é conhecido como “Prainha” para os
moradores antigos tenho sido local onde as crianças tomavam banho e os
empregados lavavam roupas, despejavam dejetos, etc. Atualmente (2018) o
córrego há uma laje que tampa o córrego já canalizado.
Após o garimpo de Sutil o local ficou conhecido como “buracão” por
ocasião de ser “o” maior buraco dos muitos que a cidade apresentava. Em
relatos de viajantes ainda no início do século XIX (1818) podemos ler sobre o
“esburacamento” da cidade a procura de ouro4 que, a título de informação se

3
Livro (Toledo, 2012)
4
Livro (Carvalho)

3
diga, era de aluvião e acabou tão rapidamente quanto a facilidade de encontra-
lo.
No século XIX podia-se verificar a presença de escravizados que traziam,
em seus lombos, o esgoto em barris. Um pouco mais à frente encontravam-se a
fonte do Mundéu onde se apanhava água para levar ao casario do senhorio. Faz-
se interessante lembrar que a Rua Voluntários da Pátria, como é conhecida hoje,
era ainda chamada de “Rua da Alegria”. Isto se deve ao fato da intensa presença
da cultura africana que tem a “mania” de fazer seu trabalho cantando. Assim ao
fazerem seu ofício os escravizados subiam e desciam a mesma entoando cantos
de trabalho.
Como lugar de circulação de escravizados o córrego do Coxipó sempre
acumulou as funções de local de desova de dejetos e ponto de encontro entre
essas almas. Também as fontes que ficavam às suas margens, que
congregavam estes homens e mulheres nas suas voltas às “casas de família”,
são famosas por serem locais de conspiração de fugas e ponto de comunicação
entre pessoas aquilombadas e escravizadas que ainda trabalhavam nos
sobrados. De Cuiabá à Vila Bela da Santíssima Trindade, capital naquele
momento do estado de Mato Grosso, existiam diversos quilombos que
“influenciavam” outros escravizados a se “rebelarem”. Esses quilombos eram de
uma força extraordinária influenciados sobretudo pela existência do quilombo do
Quariterê, quilombo liderado pela heroína Teresa de Benguela, que resistindo
bravamente durante mais de 20 anos à invasão imperial, teve o dia 25 de julho
instituído em sua homenagem como dia nacional de Teresa de Benguela e da
mulher negra. Por isso mesmo era proibido aos escravizados conversarem entre
si e acessarem as fontes após o pôr-do-sol na vila5.
O “usuário de drogas” ou “noiado” como é comumente situado pelo Outro,
realiza um lugar de tal maneira abjeto que muitos duvidam se são mesmo gente,
ou pelo menos se “são gente como a gente”. Será que eles têm famílias?
Sentimentos? Amores? Será que se emocionam? Será que têm alma? No
encontro com esse lugar de alteridade radical que nossa sociedade “cola” no
morador de rua, vemos a reedição do encontro da ideologia europeia com os
indígenas e a imposição de um sistema de classificação e pensamento, de

5
Livro “Os cativos do sertão” de Luiza Rios Ricci Volpato

4
entendimento do mundo, a reedição de uma dominação cultural eurocêntrica. O
Beco como Território pisado pelas quatro patas do analista, atravessado a pé,
experimentando suas obscuridades, revela o “abuso de drogas” como sintoma
social, monumento na cidade assim como nos diz Freud em Cinco Lições de
Psicanálise (Freud, 1970). A cidade inscreve a “crackolândia” como um coletivo
de miseráveis sobrevivendo na venda e no consumo de crack ali mesmo onde
são consumidos em condições análogas à escravidão. Não só as condições
disponíveis de trabalho são análogas à escravidão, como muitos dos
marcadores sociais da diferença são análogos aos marcadores sociais dos
escravizados. A falta dos direitos sociais, a sujeira, os pés descalços, os
problemas de saúde que irrompem na pele, a negritude – ou quase pretos de tão
pobres, como diz Caetano apontando o “preconceito à brasileira” que é tanto
mais racial quanto mais marcado pela classe -, enfim, são marcadores que
indicam a posição social do “outro”.
Estranhamente, aquilo que era “buracão” passou a se chamar “Ilha da
Banana” - pelo menos a partir de 2014 -, e tornou-se o local de moradia de um
grupo de cerca de cem pessoas6 em situação de rua para as quais ofereceos
atendimento clínico psicanalítico há dois anos pelo projeto Psicanálise na Rua,
projeto saído do ventre da tese de doutorado com título análogo com uma
perspectiva de disponibilizar o dispositivo analítico às ruas.

6
(Lopes, 2016)

5
Ilha do Bananal

Figura 4. Mapeamento da região - escala macro / autora: Gabriela Rangel

Ilha do Bananal

Figura 5 - Caracterização da região - escala micro / autora: Gabriela Rangel

O espaço na “Ilha da Banana” que era habitado por moradores de rua era
chamado de “casarão”. Era um complexo de várias salas ligadas por um corredor
no térreo e um subsolo de vão livre de aproximadamente 30m X 60m. Os
moradores habituais ficavam no subsolo e, quando queriam privacidade subiam
em uma dessas salas que chamavam de “suíte”. Existiam ainda um edifício de
dois andares com duas salas em cada andar, uma de frente para a outra, que

6
foram as “suítes” que ficaram por um tempo habitando após a demolição do
casarão pela Prefeitura Municipal em convênio com o Governo Estadual em julho
de 2017.
O significante usado pelos “moradores de rua” para referirem-se ao lugar
que habitam é “buraco”, gozado, justamente se emburacavam no “buracão”. Isso
que aparece como coincidência é pensado em psicanálise como efeito do
inconsciente, deslizamento significante que retorna como efeito próprio do
campo simbólico, a repetição significante aparece como recurso frente ao trauma
que se quer esquecido. Como lembra Freud, a propósito do retorno do recalcado:
os sintomas são “resíduos e símbolos mnêmicos de experiências especiais
(traumáticas)” (Freud, 1970, p. 18)
O significante em seu radical de “buraco” que foi esquecido pela cidade
reaparece na boca dos moradores de rua apontando para a escravidão que
ainda existe mesmo com todas as mudanças de superfície, o que a gente sabe
com todas as posições de escuta é o reencontro com isso que ainda está como
superfície: a escravidão com toda a sua força segregatória e sua violência
fascista e totalitária. Essa é a causa traumática que se recalca e retorna no
mesmo ponto geográfico, com todos os seus marcadores sociais e pulsões
agressivas em forma de desejo de domínio e aniquilação. Em nosso tempo nas
ruas vimos pessoas escondendo droga no corpo e na rua exatamente como
ouvimos relatos antigos sobre como os negros escondiam pequenas pepitas de
ouro. São as “pedras” da liberdade. Anteriormente relativas a uma liberdade a
ser comprada, atualmente nem dessa se goza mais e o que se pretende é uma
liberdade a ser ilusionada.
Nesses dois anos de trabalho, leitura e principalmente escuta do Beco, o
que podemos dizer é sobre isto, que o que se recalca nas cidades e reaparece
como sintoma no abuso de drogas é a escravidão. Não nos esqueçamos que os
indígenas eram chamados de “negros da terra” e aqui nossos pretensas matizes
de cores de pele inexistem. Qualquer um que estiver na rua é preto – ou “quase
preto de tão pobre”.

7
Obras Citadas
ALBINATI, M. (2009). O território nas políticas culturais para as cidades. Políticas
Culturias em Revista, 72-83.
Carvalho, C. G. (s.d.). Cuiabá corpo e alma. Cuiabá: Verde.
Freud, S. (1970). cinco Lições de Psicanálise (1910 [1909]). Em S. Freud, Edição
Standart das Obras Completas de SIGMUND FREUD (pp. 3-46). Rio de
Janeiro: IMAGO.
INGOLD, T. (2006). Jornada ao longo de um caminho de vida: mapas,
decobridor-caminhos e navegação. Religião e Sociedade, 26 (1), 76-110.
Lopes, E. B. (2016). No front da vida. Cuiabá: TESE DE DOUTORAMENTO
UFMT.
Toledo, R. P. (2012). A capital da solidão. Rio de Janeiro: Objetiva.
Volpato, L. R. (1993). Cativos do Sertão. Cuiabá: Marco Zero.

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