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• Ana Maria Rudge
esta coletânea é um testemunho
da aposta do Programa de Pós-graduação Betty B. Fuks • Ana Maria Rudge
em Psicanálise, Saúde e Sociedade da [organização]
Universidade Veiga de Almeida, Rio de Janeiro,
Betty B. Fuks
no diálogo da psicanálise com outros saberes.
Inscrito na área interdisciplinar da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
psicanálise
de Nível Superior (Capes), o Programa vem
mantendo o compromisso de realizar simpósios
&
isbn 978-65-5700-099-1
psicanálise &
antropologia
psicanálise &
antropologia :
enfoques interdisciplinares
Betty B. Fuks
Ana Maria Rudge
[organização]
1ª edição
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continuada à convivência sexual entre os membros da família (Mason, 1985 | didos fundamentais. Alfred Kroeber, antropólogo americano, escreve, já em
1986: 253). Em carta de 12 de dezembro de 1897, a inusitada expressão “mitos 1920, o artigo “Totem e tabu: uma psicanálise etnológica”, em que critica du-
endopsíquicos” (: 287) é criada para designar a obscura percepção interna do ramente a tentativa de Freud de se utilizar de achados da antropologia, afir-
próprio aparelho psíquico que estimula ilusões do pensamento. Esses mitos mando que ele poderia ter escolhido autores melhores do que Frazer na área
são “projetados para o exterior e, mais caracteristicamente, para o futuro e para da antropologia nos quais se apoiar (Kroeber, 1920). Censura o psicanalista
um além” (: 287). Freud chega a aventar a criação do termo psicomitologia. também por se arriscar a adivinhações sobre o passado da humanidade, em
Na série de documentos sobre a relação entre mito e psicanálise, certa- especial sobre a origem do totemismo. Admite que não se pode saber sobre a
mente a correspondência entre Freud e Jung é uma das fontes mais preci- origem do totemismo, mas sugere que Freud poderia ao menos estudar como
sas de que dispomos para refletir sobre o tema. Encontramos, na carta de 13 ele se manifestaria na atualidade para fazer conjeturas mais abalizadas.
de agosto de 1908, uma confissão surpreendente de Freud ao colega suíço: De forma geral, existe uma crítica à falta de um trabalho de campo que jus-
“Começo a suspeitar que neurose e mito tenham uma essência comum” tificasse as conclusões do psicanalista, crítica que não leva em conta a especifi-
(McGuire, 1974 | 1993: 196). Essa foi a primeira vez em que Freud fez alusão ao cidade da metapsicologia, que tem sua pesquisa de base na clínica psicanalítica,
que mais tarde elaboraria teoricamente: fantasia e mito são construções do e não no trabalho de campo, como a antropologia. O próprio Kroeber reviu,
homem em face do real. Espécie de véu particular do sujeito, a fantasia, assim quase 20 anos depois, sua crítica a Totem e tabu, admitindo que a liberdade com
como o mito, permite ao homem avançar, pois elabora respostas possíveis que Freud criara seu mito das origens, em vez de representar uma desconside-
à inquietante estranheza diante do desconhecido. Freud estava decidido a ração com a história, refletia o fato de que seu fundamento era a experiência
convencer seus colegas do movimento psicanalítico acerca da necessidade de clínica e as descobertas a que a psicanálise pôde chegar (Kroeber, 1939).
entrar no campo da mitologia. É o que se pode deduzir de sua carta a Jung O brilhante antropólogo Bronislaw Malinowski, fundador da escola fun-
de 17 de outubro de 1909: “Folgo em saber que você compartilha minha cren- cionalista de antropologia, levantou críticas à psicanálise, sobretudo à uni-
ça de que devemos conquistar por completo o campo da mitologia. Até agora, versalidade do complexo de Édipo e a Totem e tabu, a partir de seu estudo
temos apenas dois pioneiros: Abraham e Rank” (: 276). de campo sobre os costumes familiares dos nativos das ilhas Trobriand.
Embora todos esses documentos sejam extremamente importantes para Seu argumento principal era de que o complexo de Édipo não existiria entre
iluminar a paixão de Freud pela mitologia, na verdade a tradição da metodo- os trobriandeses, cuja família seria matrilinear e a função paterna na concep-
logia interdisciplinar aplicada ao binômio psicanálise e antropologia remon- ção dos bebês, inteiramente desconhecida.
ta à escrita de Totem e tabu (1912–3), estudo que exigiu do autor, enquanto A repercussão desse texto e o debate que gerou foi proporcional à im-
pesquisador, evitar confrontos entre sua disciplina e outra já constituída, sem portância do antropólogo e a seu trabalho de campo inovador. Ernest Jones,
instalar uma falsa situação de complementariedade entre elas. Não há como psicanalista inglês e biógrafo de Freud, escreve em 1925 o artigo “Mother-
negar que seu gesto de pisar em campo estrangeiro, o da antropologia, cau- -Right and the Sexual Ignorance of Savages”, contestando a ideia de que
sou o devir de algo novo: a criação de um mito. Mito que figura, entre outras os trobriandeses efetivamente não soubessem da paternidade (Jones, 1925).
coisas, o recalque primário, a operação que nos obriga a refletir se a Lei pode Sugere que eles poderiam estar recusando um saber que lhes fosse gerador
ser pensada sem a proibição que a funda – a proibição do incesto – e o totem de angústia, como não é incomum ocorrer na clínica psicanalítica. O debate
que a simboliza, tanto hoje quanto em épocas remotas. Deve-se advertir ao prosseguiria nas décadas seguintes. Em 1982, Melford Spiro, professor e pes-
leitor de Totem e tabu que este não é um ensaio antropológico, como querem quisador americano de antropologia da Universidade de Chicago, fez uma
sustentar alguns psicanalistas. Trata-se de “um trabalho metapsicológico que revisão dos trabalhos de Malinowski sobre os trobriandeses e concluiu que os
articula um certo número de materiais clínicos e míticos e prepara o terreno dados da própria pesquisa de Malinowski apoiavam a hipótese da existência
à enunciação do princípio psicanalítico acerca do vínculo existente entre psi- do complexo de Édipo entre eles (Spiro, 1982; Roudinesco, 1988).
cologia individual e psicologia coletiva” (Rey-Flaud, 1998 | 2002: 23). Muitos autores participaram dessa intensa controvérsia, que assumiu tal
As incompreensões acerca dessa construção mítica que tanto marcou as importância, a ponto de o antropólogo e psicanalista Géza Róheim viajar à
relações com a antropologia desde os anos 1920 foram fruto de mal-enten- Austrália, por sugestão de Freud, para dedicar-se ao trabalho de campo, em
klein, Thais; verztman, Julio Sergio & pacheco-ferreira, Fernanda roudinesco, Elisabeth & plon, Michel
(2018) “A antropologia contribui para a pesquisa em psicanálise? Sobre o perspectivismo e a (1997) Dicionário de psicanálise, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
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spiro, Melford
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sonhos, à luz da tragédia de Sófocles. Lembremos que neste caso “a paixão por uma teoria política do contrato como forma fundamental de individuali-
um e o ódio pelo outro dos pais” (Freud, 1900 | 2019: 301) é algo que caracte- zação na história da modernidade, uma descrição psicológica do desenvol-
riza a experiência infantil dos futuros psiconeuróticos, e não de todas as pes- vimento infantil como interiorização progressiva de regras e uma hipótese
soas. O fato de nos reconhecermos em uma tragédia do destino, como a lenda antropológica sobre as formas elementares das trocas sociais.
de Édipo, nos comove, porque “poderia ser o nosso” (: 303). Ademais, se a Lembremos que o mesmo Foucault afirmara que a psicanálise e a etno-
tragédia de Édipo tem suas raízes no mesmo solo que Hamlet, de Shakespeare, logia ocupavam um lugar privilegiado entre as ciências humanas, não só por
isso não significa que o desejo de morte em relação ao pai seja universal, e sua proximidade positiva com conceitos e experiências, mas pelo “velho pro-
sim que ele é uma referência para entender a retomada ou o retorno deste em jeto de se tornarem científicas” (Foucault, 1966 | 1990: 518) e pela “função
certas situações específicas: crítica” que elas teriam, mantendo aberta a distância entre representação e
finitude, impedindo a unificação perfeita entre significação, conflito e fun-
Na obra de Georg Brandes Shakespeare (1896) encontro a informação de ção. Esta “mitologia freudiana” é o caminho pelo qual se mantém o desejo
que o drama foi escrito imediatamente após a morte do pai de Shakespeare como impensado no coração do pensamento, o enigma da origem da signi-
(1601), ou seja, em pleno luto por ele e, como podemos supor, no reaviva- ficação e a versão empírico-transcendental da morte como finitude, ou seja,
mento dos sentimentos de infância referentes ao pai. Sabemos que também o se mantém uma inconclusão ou intermitência do que significa ser humano.
filho de Shakespeare, falecido precocemente, se chamava Hamnet (idêntico “Por isso nada é mais estranho à psicanálise que alguma coisa como uma teo-
a Hamlet) (: 307). ria geral do homem ou uma antropologia” (: 521).
Como entender que no espaço psicanalítico da dissolução antropológi-
Ao que tudo indica, a observação de Foucault deve ser tomada no con- ca tenha se erguido a consistência prescritiva de um mito como o de Édipo?
texto da antropologia requerida ou suposta pela psicanálise. É neste plano Mito tomado como naturalização, sanção e perseverança de relação de classe, gê-
que podemos entender a disjunção entre dispositivo de aliança e dispositivo nero e raça. Mito que é também lenda, romance, tragédia e teoria sexual infantil.
de sexualidade, que é o cerne da crítica para a coligação de um conjunto de Mito individual que é também hipótese antropológica e discurso sobre o pai.
personagens sociais em uma mesma narrativa:
Mas por que o herói da tragédia tem de sofrer, e o que significa sua culpa
Aparecem, então, estas personagens novas: a mulher nervosa, a esposa frígi- “trágica”? [...] Ele tem de sofrer porque é o pai primevo, o herói daquela
da, a mãe indiferente ou assediada por obsessões homicidas, o marido impo- grande tragédia dos tempos primeiros, agora repetida tendenciosamente, e
tente, sádico, perverso, a moça histérica ou neurastênica, a criança precoce a culpa trágica é aquela que ele tem de tomar sobre si, a fim de livrar o coro
e já esgotada, o jovem homossexual que recusa o casamento ou menospreza de sua culpa (Freud, 1912–3 | 2012: 237).
sua própria mulher (Foucault, 1976 | 1985: 104).
A unificação de diferentes gêneros narrativos, a conjunção de expressões
Em um trabalho anterior tentei mostrar como as objeções à centrali de linguagem historicamente distintas, a articulação convergente de concei-
dade e soberania do complexo de Édipo poderiam ser reduzidas à crítica do tografias variáveis, a crer nas inúmeras leituras do Édipo em psicanálise, em
neuroticocentrismo da psicopatologia psicanalítica, muito menos comum e um único discurso, é parte do mito do mito de Édipo.
infrequente (Dunker, 2014). Para tanto, argumentei que o modelo de forma- Em parte, isso pode ser atribuído à gradual subordinação das outras nar-
ção de sintomas, gradualmente na história da psicanálise, começou a se es- rativas de sofrimento que habitam a psicanálise desde seu início ao discurso
tabilizar em torno da teoria de que o conflito psíquico possui uma estrutura do pacto e de sua reformulação simbolizante. Por exemplo, a narrativa da in-
genérica, derivada da narrativa da violação de um pacto. O desejo e a teoria trusão traumática de um objeto, dotado de valência sexual precoce, permane-
da defesa, pensada a partir da negação da lei e em contraposição aos inte- ceu oculta e incorporada ao mito fundador da psicanálise como posição a ser
resses do eu, demandarão uma espécie de confirmação de sua regularidade. abandonada para que a verdadeira psicanálise surgisse. Apesar das tentativas
E esta confirmação pode advir de três fontes mais ou menos convergentes: de Ferenczi e Laplanche em torno da importância do objeto intrusivo e da
acha. Esse estado primevo da sociedade não foi observado em nenhuma parte. O que vemos
como organização primitiva, que ainda hoje vigora em determinadas tribos, são bandos
de machos, compostos de membros com direitos iguais e sujeitos às restrições do sistema 2 “designar tais pessoas como ‘doentes obsessivos’, acharia apropriado o nome de ‘doença
totêmico, inclusive a herança por linha materna” (: 216, primeiro grifo adicionado). do tabu” (Freud, 1912–3 | 2012: 53; cf. também 54–6).
freud, Sigmund
(1900) A interpretação dos sonhos. In: Obras completas, vol. 4: A interpretação dos sonhos
(1900). São Paulo: Companhia das Letras: 2019.
(1912–3) Totem e tabu: algumas concordâncias entre a vida psíquica dos homens primitivos e dos
A psicanálise na ‘antropologia da emoção’
neuróticos. In: Obras completas, vol. 11: Totem e tabu, Contribuição à história do movi-
mento psicanalítico e outros textos (1912–1914). São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
foucault, Michel
(1966) As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes,
1990.
(1973) A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 2013.
(1976) História da sexualidade 1: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1985
das, Veena
(2011) “O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade”, Cadernos Pagu [online], n. 37,
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russo, Jane
(1998) “Raça, psiquiatria e medicina-legal: notas sobre a ‘pré-história’ da psicanálise no Brasil”,
Horizontes Antropológicos, vol. 4, n. 9: Corpo, doença e saúde, Porto Alegre, p. 85–102.
Introdução
schorske, Carl Emil No último capítulo de meu livro Fernando Pessoa e Freud: diálogos inquietan-
(1980) Viena fin-de-siècle: política e cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
tes, abordei a ambiguidade da posição freudiana diante da literatura (Silva
smith, Lindsay & kleinman, Arthur M. Junior, 2019: 309). O argumento ali é que tal ambiguidade não é uma pato-
(2010) “Emotional Engagements: Acknowledgement, Advocacy, and Direct Action”. In: davies, logia conceitual exclusivamente freudiana, mas, na medida em que é uma
James & spencer, Dimitrina (eds.). Emotions in the Field: The Psychology and Anthro posição partilhada por sua cultura, pode ser considerada uma patologia con-
pology of the Fieldwork Experience. Stanford: Stanford University Press, p. 171-187.
ceitual da própria cultura na modernidade. Creio ter demonstrado ali que
stocking jr., George W. esta ambiguidade com a literatura é reflexo da presença da palavra sofística
(1986) “Anthropology and the Science of the Irrational: Malinowski’s Encounter with Freudian na clínica freudiana, como também sua recusa, tal como seu retorno sinto-
Psychoanalysis”. In: stocking jr., George W. (ed.). Malinowski, Rivers, Benedict and
others: Essays on Culture and Personality. Wisconsin: The University of Wisconsin Press.
mático, na metapsicologia. Buscarei aqui localizar mais claramente a obra
freudiana nesse período ou, mais precisamente, naquilo que Foucault definiu
strenski, Ivan como a episteme da modernidade.
(1982) “Malinowski: Second Positivism, Second Romanticism”, Man New Series, vol. 17, n. 4,
Para tanto, gostaria de introduzir este trabalho com algo que, em geral,
London, December, p. 266–71.
chama pouco a atenção, a saber, o fato de que, para a primeira frase daquele
turner, Victor que é seu livro talvez mais ambicioso, As palavras e as coisas, Foucault es-
(1967) La selva de los símbolos: aspectos del ritual ndembu. México d. f.: Siglo xxi Editores, 1980. colhe uma declaração aparentemente anódina: “Este livro tem seu lugar de
nascimento em um texto de Borges” (Foucault, 1966 | 1984: 7). Afirmação
surpreendente para um livro cujo subtítulo explicita a ousadia de sua aposta:
uma arqueologia das ciências humanas. E, ainda que o capítulo final desse
50 … p sican álise & an t rop o l o g ia : en fo qu e s i n terdi s c i p l i na re s o inquietante em fernando pessoa como chave de leitura … 51
ências da alteridade, em que o Eu e o Outro se interseccionam e as diferen- há também uma outra dimensão, que podemos localizar no campo ontológi-
ças entre eles são perturbadas, como no caso do conto “William Wilson”, de co, a saber, a revelação da ausência do próprio solo de realidade, tal como na
Edgar Allan Poe, e também, de um modo específico, em Fernando Pessoa, classificação da enciclopédia chinesa. Essa segunda dimensão, que denomino
como veremos adiante. aqui de inquietante ontológico, encontra-se enigmaticamente ausente da teo-
Mas a perda desse solo pressupõe sua propriedade, ou a ilusão desta. ria freudiana do inquietante, apesar de estar claramente presente na literatu-
É fato que nem sempre essa perda se mostra definitiva, como no caso da enci- ra desde o início do século xix até o século xx. Como podemos entender essa
clopédia chinesa. Isso pode ser observado em alguns acidentes entre o sujeito ausência significativa da ausência de todos os significados?
e seu outro, suscitados por um método essencial na antropologia, inventado Retornemos a esta literatura da perda do solo comum da realidade, em
por Malinowski: aquele da observação participante. Trago aqui um exemplo particular à obra de Fernando Pessoa. De fato, Borges, Kafka, Musil, Baude-
desses acidentes no domínio da sociologia, que mostra bem um fenômeno laire, Rilke e muitos outros participam de um momento da literatura que
que se coloca para fora do campo do inquietante, mas não do solo que lhe dá toma as relações da palavra consigo própria como um ato de primeira ordem
origem. Loïc Wacquant, sociólogo com vários trabalhos com Pierre Bourdieu num mundo sem certezas. Cada um destes autores afirma a seu modo a inde-
e professor da Universidade da Califórnia, visando estudar as relações sociais pendência ou a primazia da palavra em relação ao referente. Mas, para a obra
no gueto negro da cultura norte-americana, inscreveu-se numa academia de pessoana e sua estrutura heteronímica, o referente central é o sujeito, e será
boxe (Wacquant, 2002). Os treinamentos físicos eram então apenas uma con- sua existência que a palavra sistematicamente dissolverá. Gregor Samsa acor-
dição de acesso a um contexto social especialmente fechado. Entretanto, após da no corpo de um inseto, mas não perde nem seu nome, nem sua identidade.
três anos de convívio e treinamento, o dilema entre aderir a uma carreira pro- Sua metamorfose respeita a fronteira do sujeito, quando o mundo inteiro vem
fissional nos ringues e a vida universitária estava formado. Somente a proibi- abaixo: corpo, família, espaço e tempo. Os heterônimos, por sua vez, compar-
ção expressa de seu treinador o impediu de abandonar o cargo de professor. tilham um espaço comum, sem rupturas com o nosso espaço vivido. Onde se
A metodologia da observação participante exige do pesquisador um tipo de localiza o inquietante da heteronímia, se é que há algum? Não se trata, nes-
experiência que vai além de uma mera observação prolongada em campo. se inquietante, de uma experiência de multiplicação das subjetividades, em
Trata-se de comungar um destino, isto é, de deixar um tipo de vida e unir-se que cada heterônimo abriria uma nova perspectiva, um novo ponto de vista.
a um outro, o que significa necessariamente um risco existencial. Ainda assim, há uma experiência de corrosão da realidade como um todo, em
Mas, no que diz respeito à psicanálise, esta prática igualmente arriscada que todos os pontos de vista parecem suspensos sobre um abismo. Veja-se,
de confronto com o estranho exige uma operação mais radical do que a ob- mais precisamente, em que esta experiência consiste: Fernando Pessoa, ao fa-
servação participante: a operação de subtração suplementar do próprio solo lar da realidade de Caeiro, Reis e Campos, de certa forma abre este insondável
comum de realidade. Tal subtração coincide com aquela feita pelas experiên- abismo sob os pés do sujeito: “Que essas três individualidades sejam mais ou
cias literárias a que se refere Foucault em As palavras e as coisas, ainda que a menos reais que Fernando Pessoa – o problema é metafísico; ele, afastado que
teoria freudiana nem sempre acompanhe essa exigência. Em Freud, uma das está do segredo dos deuses, e não sabendo portanto o que é a ‘realidade’, não
configurações do estrangeiro que possuem essa potencialidade de reflexão poderá jamais resolvê-lo” (Pessoa, 1928 | 1986: 1.424).
sobre a relação da metapsicologia e, portanto, da clínica psicanalítica com a Uma reação comum do leitor ao inquietante da heteronimia é a de su-
realidade como um todo é aquela do inquietante. blinhar a suposta diferença hierárquica entre o autor real e seus heterônimos,
Na trama conceitual na qual Freud o envolve, o inquietante é um afeto li- quando Pessoa assina “Fernando Pessoa, ele mesmo”, ou “Fernando Pessoa,
gado à uma perturbação específica da cognição. O afeto do inquietante surge ortônimo”. Mas o adjetivo “ortônimo” é utilizado por Pessoa pela primeira
a partir de um conflito de julgamento, precisamente quando algo que acredi- vez no sentido de uma reação à sua “inexistência enquanto Alberto Caeiro”
távamos ser da ordem da ficção se revela na realidade. Assim, por exemplo, a (Pessoa, 1990: 95). A suposta diferença do autor real em face de seus hete-
percepção equivocada de duplos ou de seres fantásticos. Uma parte do juízo rônimos se reduz assim apenas a uma negação pouco convincente e pouco
afirma que tais seres não podem existir e outra parte o refuta com a percep- convencida desta diferença. Há um nivelamento entre os heterônimos e Fer-
ção destes na realidade. Mas, juntamente com essa abordagem do inquietante, nando Pessoa, mas não no sentido de dar a estes seres ficcionais a realidade
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que julgamos como exclusiva de seu autor. Se eles são nivelados, é no sentido exclui dessa precisamente os elementos que questionam a consistência do
inverso, ou seja, pela sugestão de uma essência ficcional em todos eles, hete- discurso científico como discurso primeiro sobre a realidade, a saber, o que
rônimos e o autor deles em conjunto. estou chamando aqui de inquietante ontológico.
O sentimento inquietante imanente à obra de Fernando Pessoa surge as- Como exemplo desta exclusão seletiva na leitura freudiana da lite-
sim como um efeito de ficcionalização do sujeito. Se nossa identificação ao ratura inquietante, gostaria de evocar algo do texto de Hoffman que foi
narrador está presente, uma série de perguntas incômodas se segue imedia- omitido: Homem de areia começa com três cartas entre Nathaniel, Clara e
tamente. Seriam nossas lembranças, nossa história e nossa identidade mera Lonthario que apresentam versões diferentes e incompatíveis dos mesmos
ficção? Em seu Livro do desassossego, tais questões ocupam uma posição cen- acontecimentos, incoerência que não é solucionada pelo narrador. O texto,
tral na obra pessoana. Bernardo Soares escreve: portanto, começa marcando precisamente a ausência do acesso absoluto
do narrador à verdade, mas esse início incômodo é simplesmente “igno-
Cheguei hoje, de repente, a uma sensação absurda e justa. Reparei, num re- rado” por Freud em seu resumo e em suas análises do inquietante (Møller,
lâmpago íntimo, que não sou ninguém. [...] Roubaram-me o poder ser antes 1984 | 1991: 125–8).
que o mundo fosse. Se tive que reencarnar, reencarnei sem mim, sem ter eu Em suas análises da fotografia, Barthes busca sempre o punctum, isto é, o
reencarnado (Pessoa, 1913–34 | 2011: 261). elemento discordante, mas revelador daquilo que faz parte da imagem, mas
não deveria ser mostrado por ela (Barthes, 1980). Assim, considerada a partir
Encontramos aqui o elemento inquetante da obra pessoana: o desocul- da estrutura paradoxal das ciências humanas descrita por Foucault, podemos
tamento de um fundamento ficcional da forma de existir do sujeito. Note-se nos aventurar a dizer que esta omissão de Freud vale como uma espécie de
que o inquietante provocado pela heteronímia parece exigir uma inversão punctum de todo o seu trabalho de teorização psicanalítica sobre o inquie-
da fórmula freudiana. O inquietante, diz Freud, surge “quando se apresenta tante: ela revela que o que deveria ficar de fora está no interior do próprio texto.
a nós como real algo que até então havíamos considerado como fantástico” Pois, na medida em que o trabalho freudiano de teorização parte da premissa
(Freud, 1919 | 1982: 267). O conflito do julgamento se dá em um movimento do discurso científico como um narrador potencialmente capaz de unificar o
que parte da premissa que algo era fantástico, mas se apresenta como real. real em suas incoerências de sentido, não há como não incluir a modalidade
Ora, o inquietante na heteronímia se desencadeia segundo uma fórmula específica do inquietante ontológico, em que se revelam as fissuras desta pro-
perfeitamente inversa. Ele aparece quando se apresenta a nós como fantástico messa de unificação da ciência que Freud construía.
algo que até então havíamos considerado real. Nesse caso, o conflito do julga- Mas esta premissa diz respeito não apenas à psicanálise então nascente,
mento se dá em um movimento que parte da premissa que algo era real, mas como também a todas as ciências humanas do período inseridas na dobra da
subitamente se apresenta como fantástico. modernidade descrita por Foucault. Em outras palavras, uma coisa é consi-
Assim, os limites entre a realidade material e a ficção se encontram no derar tal impossibilidade como exclusiva à obra freudiana, outra é compre-
centro do fenômeno da heteronímia, mas num movimento diferente daquele ender esta impossibilidade dessa obra como pertencente à episteme mesma
descrito por Freud. Note-se ainda que esse algo é o próprio sujeito, e a rebo- de seu tempo. Isso implica que essa configuração do estrangeiro, constituída
que dele, sua realidade como um todo. Isto permite que tomemos sua leitura pelo inquietante ontológico, é não apenas uma figura conceitual deste famo-
como uma potencialização da experiência do inquietante em sua vertente so texto de Freud, como também uma modalidade experiencial cujo valor
ontológica. crítico diz respeito à modernidade e suas ciências humanas. Nesse sentido,
Mas qual o sentido desta forma de inquietante ontológico não ser tema- pode-se inferir que a metapsicologia freudiana e a antropologia sejam as-
tizada pelo texto freudiano, quando boa parte do mundo literário já o estava sombradas pelo inquietante ontológico advindo da literatura. Menciono, a
fazendo? Isto pode ser compreendido a partir da localização da psicanálise na título de exemplo, Roland Barthes, que explicitou a ameaça de a literatura ab-
episteme da modernidade descrita por Foucault. Esta ausência é necessária sorver a antropologia: “de todos os discursos instruídos, o etnológico parece
para a metapsicologia freudiana, como também para qualquer ciência huma- ser o que chega mais perto de uma ficção” (Barthes, 1975 | 1989: 84). De fato,
na localizada nessa episteme. Assim, o confronto de Freud com a literatura Bruner é um dos poucos antropólogos que assume produtivamente o risco
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de considerar o discurso antropológico radicalmente ficcional, ainda que re- hiato posteriormente tornado evidente por sua ruptura. Todas as formas do
sultante de um processo dialético entre as ficções do pesquisador e aquelas saber da episteme clássica se manteriam até então nesse quadro geral aberto
dos seus informantes (Bruner, 1986: 148). pelo discurso, que permitia ordenar as semelhanças e diferenças da realidade
empírica, e associá-las sem rupturas à lógica e à filosofia. Ao ocaso da época
clássica, os saberes tomam formas autônomas, independentes da ordem dis-
Eventos arqueológicos cursiva que os mantinha sobre um mesmo plano geral. A vida, o trabalho e
a linguagem passam a organizar suas condições de possibilidade de conheci-
Para Foucault, a tópica geral da chamada episteme da modernidade tem mento a partir de seus próprios objetos. Mais especificamente no campo da
como origem a ruptura da episteme clássica. Esta última estava solidamente linguagem, três formas gerais de reorganização ocorreriam em suas experi-
apoiada sobre um Discurso ordenador, capaz de unir em um mesmo quadro ências a partir desse evento arqueológico. Primeiro, a tentativa de uma for-
de continuidades as palavras e as coisas a partir da representação. O homem malização radical da linguagem, dela retirando todos conteúdos empíricos.
como questão não era uma possibilidade. Já a episteme da modernidade faz Em segundo lugar, a exegese, ou seja, a abordagem da linguagem como repo-
surgir o homem como questão limite através das ciências humanas. Limite sitório de um discurso que antecede os falantes. Nessa região se encontrariam
não apenas porque o homem é simultaneamente sujeito e objeto do conheci- as três hermenêuticas da suspeita do século xix criadas por Marx, Nietzsche
mento, mas porque ele, a cada passo que dá na direção de seu objeto, é obri- e Freud. Em terceiro lugar, esta ruptura teria dado origem à literatura como
gado a recuar enquanto sujeito. Em outras palavras, na leitura de Foucault, experiência radical da linguagem na enunciação infinita de si própria, eman-
as ciências humanas são estruturalmente críticas no sentido em que estão cipada do saber e da verdade. De fato, Novalis havia dito, no início daquele
essencialmente preocupadas com os limites de sua possibilidade de conhecer. século, que “precisamente o mais próprio da linguagem, a saber, que ela só se
O título do capítulo que introduz a episteme moderna é, não por acaso, ocupa de si própria, ninguém o sabe”. Mas no final do mesmo século muitos
“O homem e seus duplos”, referência explícita à interseção das ciências huma- suspeitavam disso e alguns já o sabiam perfeitamente.
nas com o campo do estrangeiro pensado pela literatura. A questão é saber Podemos agora começar a organizar a direção de uma resposta a uma de
a razão pela qual o inquietante ontológico deve ficar do lado de fora dessa nossas perguntas iniciais. A episteme da modernidade é marcada por uma
interseção, isto é, a razão pela qual essa modalidade de inquietante não pode duplicidade que simultaneamente captura e dissolve o homem. A transfor-
ser absorvida no espaço dos objetos legítimos do pensamento das ciências mação incessante do sujeito epistêmico é, portanto, indissociável dessa forma
humanas. Tentemos esboçar uma resposta para essa pergunta, colocada no de inquietante que, de certo modo, comanda todas as ciências humanas da
início deste texto. modernidade.
Segundo Foucault, as “heterotopias [como a enciclopédia chinesa] in- Uma certa dimensão do inquietante se mostra assim como experiência
quietam, talvez por minarem secretamente a linguagem, [...] por arruina- indissociável da abordagem do outro na modernidade. Mais especificamente,
rem de antemão a ‘sintaxe’, e não apenas aquela que constrói as frases, mas o inquietante na experiência moderna está articulado ao “dever de pensar o
sim aquela menos manifesta que faz ‘manter juntas’ as palavras e as coisas” impensado” (: 338). Nesse sentido, a antropologia e a psicanálise se discrimi-
(Foucault, 1966 | 1984: 9). Ora, há uma sintaxe nesse laço entre palavras e nam de outras ciências humanas, uma vez que fazem desse confronto com
coisas que pode ser rompida e cuja ruptura foi necessária para o surgimento a alteridade não apenas seu objeto de reflexão, mas também seu princípio
da psicanálise e da etnologia. metodológico. Isto faz com essas duas contraciências produzam saberes apenas
Dito de outro modo, o surgimento destas contraciências só se teria tor- sobre o não saber do sujeito epistêmico.
nado possível a partir de um mesmo evento arqueológico, a saber, a ruptu- Contudo – sempre há um contudo –, em seu horizonte, um saber po-
ra do discurso como quadro geral das relações entre a linguagem e o ser. tencialmente positivo da alteridade faz parte e é indissociável desse processo.
O exemplo incontornável dessa função unificadora do Discurso clássico en- Estas contraciências não podem abrir mão desse referente sem serem ab-
tre ser e linguagem é evidentemente o cogito cartesiano. Entre o “eu penso” sorvidas pelas outras duas práticas da linguagem que surgiram do mesmo
e o “eu sou”, o Discurso clássico recobre com uma certeza inquestionável o evento arqueológico, isto é, a formalização da linguagem, por um lado, e a
56 … p s ican álise & an t rop o lo g ia : en fo qu e s i n terdi s c i p l i na re s o inquietante em fernando pessoa como chave de leitura … 57
literatura, por outro. Tampouco podem se distanciar dessas duas práticas, na bruner, Edward M.
(1986) “Ethnography as Narrative”. In: turner, Victor W. & bruner, Edward M. The Anthro
medida em que estas conferem às duas contraciências em questão “régua e
pology of Experience. Urbana/Chicago: University of Illinois Press, p. 139–55.
compasso” da evidência de um conhecimento. Em outras palavras, a prática
de recuo crítico a partir da alteridade que pode ser considerado o denomi- foucault, Michel
nador comum entre a psicanálise e a antropologia pressupõe o inquietante (1966) Les mots et les choses: une archéologie des sciences humaines. Paris: Gallimard, 1984.
ontológico, mas não pode fazer dele seu objeto. Abrir mão de seu referente freud, Sigmund
implicaria em seu desaparecimento como práticas da linguagem. (1919) „Das Unheimliche“. In: Studienausgabe, Band ix: Fragen der Gesellschaft, Ursprünge
Temos ainda duas questões: a relação da arqueologia foucautiana com a der Religion. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag, 1982.
literatura e as estruturas de transformação dos dois tipos de inquietante. møller, Lis
Primeiro, vejamos a razão pela qual a remota enciclopédia chinesa de (1984) The Freudian Reading: Analytical and Fictional Constructions. Philadelphia: University
Borges pode ser usada por Foucault para explicitar o projeto de As palavras of Pennsilvania Press, 1991.
e as coisas. Em qual solo epistêmico se baseia a crítica foucaultiana ao solo
pessoa, Fernando
de evidência natural de nossas classificações? Do ponto de vista das “cuentas (1913–34) O livro do desassossego. Composto por Bernardo Soares, ajudante de Guarda-livros na
largas”, isto é, da grande história, Foucault descreve dois eventos arqueoló- cidade de Lisboa. Organização de Richard Zenith. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 3ª ed.
gicos, isto é, dois momentos de ruptura entre sucessivas epistemes: 1) entre (1928) “Quadro bibliográfico”. In: Obra poética em prosa, vol. iii. Porto: Lello & Irmãos, 1986.
(1990) Obra em prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.
o Renascimento e o Iluminismo; e 2) entre o Iluminismo e a Modernidade.
Entre cada um desses pares de epistemes, há o espaço entreaberto pelos silva junior, Nelson da
eventos arqueológicos. Este espaço garante o caráter contingente das dife- (2019) Fernando Pessoa e Freud: diálogos inquietantes. São Paulo: Blucher.
rentes epistemes. De todas as práticas discursivas com a linguagem, apenas a wacquant, Loïc
literatura do inquietante é convocada para nomear o solo do não necessário, (2002) “A ascese do combate” [Entrevista a Caio Caramico Soares], Folha de S. Paulo, Caderno
solo que sustenta o campo de trabalho da arqueologia foucaultiana. De fato, Mais, 9 de junho.
Foucault atribui um estatuto à literatura fantástica equivalente à própria dé-
marche de As palavras e as coisas: Borges ilustra o objeto do livro, sem ser
jamais objeto de análise do livro. Isto significa que Foucault confere à litera-
tura do inquietante ontológico um poder de iluminação equivalente ao seu
projeto nessa obra.
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58 … p s ican álise & an t rop o lo g ia : en fo qu e s i n terdi s c i p l i na re s o inquietante em fernando pessoa como chave de leitura … 59
olivier douville
Primeiros contatos...
O que mudou há pouco mais de três anos na minha prática de psicólogo clínico
em uma instituição psiquiátrica, onde participo de uma equipe “Psiquiatria e
Precariedade”,2 é que somos cada vez mais chamados por abrigos para pessoas
em situação “ilegal” por migração clandestina, e que se encontram à espera de
papel de registro civil e status de requerente de asilo, aguardando status de refu-
giados. Esses homens, com idade entre 21 e 45 anos, deixaram seu país, que foi e
continua sendo devastado, e que tanto pode ser a Eritreia, como o Afeganistão,
especialmente uma área de linha de frente entre Afeganistão e Paquistão, Sudão
e Sudão do Sul, às vezes, a Líbia. A equipe responsável por esta instituição se
reuniu com a equipe de um desses abrigos a pedido da prefeitura de Neuilly-
-sur-Marne. Alguns meses depois, a Agência Regional de Saúde nos disse para
dar continuidade às reuniões regulares. Se nos pedem para nos encontrar-
mos com essas pessoas, é por razões em que a saúde e o social se confundem.
O abrigo nos faz um apelo porque os abrigados apresentam distúrbios do sono
muito graves e depressões, frequentemente marcadas mais por uma espécie de
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anestesia da vida, de irrealidade da existência, do que pela tristeza. Se a tristeza às vezes para certificar que seu estado mental requer cuidados por um período
pode dar a cada um o sentimento da realidade de sua existência, o que se maior ou menor de tempo, o que o médico da equipe também faz.
mostra ali é diferente: a dor moral acompanhada por uma vida fantasmática. Se assumirmos que a psicanálise é uma clínica da fala e que também é uma
Um isolamento frequente no mutismo e o retraimento parecem ser o abrigo clínica do ato, apostaremos que as narrativas que se tecem e criam nos permi-
mental destes “hóspedes” em sofrimento psíquico, abrigo do qual eles saem tem revisitar os tormentos da vida, considerando-os também como atos que a
por meio de agirs: crises clássicas ou perambulações, na maior parte dos casos. pessoa refugiada pôde e soube levar a cabo. Ajudamos ao surgimento do sen-
As primeiras coisas que essas pessoas nos dizem parecem refletir o curso de tido das decisões que ele pôde e soube tomar, aquele que na maioria das vezes
uma existência comum e banal. A forma como passaram o dia é narrada muito se via como tendo se tornado um ser transtornado pelos acasos, as boas e más
factualmente. É importante observar que, para esses homens refugiados, falar fortunas, e arrastado numa perambulação sem fim e sem saída.
dessa forma já é uma construção importante, pois a sensação de levar uma Há acidentes traumáticos. A partida para o exílio foi marcada por uma
vida cotidiana não é de todo evidente para eles. Aquele que escuta essa difi- catástrofe. Por exemplo, um paciente afegão me conta o que aconteceu cer-
culdade em reunir todas as horas que passam, em aceitar se apegar aos gestos ta noite durante uma festa em que um pequeno grupo de homens mais ou
mais básicos de uma vida cotidiana e retê-los, percebe que cabe a essas pessoas menos jovens cantavam, dançavam e bebiam vinho. Os talibãs chegaram e
marcar as passagens do tempo, dividi-lo e ordená-lo. Referenciar-se no espaço assassinaram com rajadas de kalashnikovs os que estavam nessa reunião, a
também lhes é difícil, porque elas experimentam uma relação com o lugar em qual lhes permitia manter uma pequena chama de alegria em um país de-
que estão retraídas sobre si mesmas (muitas vezes, prostradas em seu quarto), vastado. Ele tinha saído por um tempo e, ao voltar para o grupo, deu de cara
recolhimento do qual elas saem por meio de condutas motoras, que raramente com a pilha de cadáveres ensanguentados. Muitos desses refugiados vêm de
são orientadas para um objetivo e levam rapidamente à exaustão. lugares onde a violência matou pessoas que eles amavam, mas onde a palavra
humana se transformou em uma palavra de traição.
Eles conheceram uma humanidade sem fé, nem lei. Deixaram sua terra
Espaço em catástrofe, território errante natal por caminhos extremamente difíceis, périplos durante os quais somente
funcionaram como passadores as pessoas em quem eles acreditaram poder
A sensação que sinto na companhia desses homens é a de que se produziu, confiar e que, apesar de tudo, tiveram êxito em fazê-los passar. Muitas vezes
para muitos deles, uma verdadeira catástrofe espacial; parece que o espaço os é com uma promessa verbal que eles chegam aqui.
poderia engolir, fechar-se e cair sobre eles. Não são apenas os entes queridos
e os objetos familiares contidos no espaço, cuja memória é comandada pelo
tempo, que foram perdidos, é o próprio continente espaço-temporal desses Notas sobre o uso do termo trauma e o sonho traumático
seres e objetos que implodiu durante os traumas que motivaram a partida e
os que vieram em seguida. Nenhum desses homens apresenta ou testemunha “Trauma” é uma palavra pesada e não deve ser banalizada. Do choque ao trau-
alucinações ou delírio; todos abrigam em si mesmos uma dor imensa que ma, há mais de um tempo. É importante ser preciso e cuidadoso. Este termo
não encontra o silêncio necessário para cicatrizar e as palavras necessárias é anfibológico; assim, a palavra trauma é usada para os chamados desastres
para dar forma a ela. Escutar em outros lugares algumas melancolias graves naturais, tanto para um tsunami, um incêndio, quanto para algo que real-
me permite entender a natureza dessa relação com o espaço. mente tem a ver com a quebra elementar do pacto humano. É uma pena
A perda da evidência “natural” de que o espaço nos abriga e nos contém se usar a mesma palavra para tudo isso. Quando falamos de trauma, dois mo-
deflagra na experiência corporal dos migrantes com quem me encontro; e seu delos são necessários: o primeiro modelo (trauma psíquico) é o de um equi-
território é extremamente restrito até que a palavra tenha feito seu trabalho líbrio quebrado por uma sobrecarga de violência que não podemos suportar.
de desdobramento. Seu território é terrivelmente encolhido em seus corpos e Mas este modelo não é suficiente. O traumático também pode vir do fato de
nos poucos objetos associados a eles. O que eles estão nos pedindo para fazer? que o sujeito se sente “lançado para fora do mundo”, ele também é vítima de
Para melhorar, é óbvio. Eles nos pedem para ajudá-los, para acompanhá-los e uma completa falta de atenção por parte das mais variadas pessoas.
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1 Citado como epígrafe por José Ribamar Bessa Freire (2004 | 2011).
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teoria importada que não é qualquer, tendo em vista o fato de ela ser edifica- que distingue a psicanálise de outras abordagens do psíquico. Dali a cinco
da justamente sobre uma prática linguística. E isso mais especificamente nes- anos, escrevendo para o suíço Oskar Pfister, pastor luterano e psicanalista, vai
sas nossas bandas latino-americanas da cartografia psicanalítica – ou, como dizer que o shibōleth de sua ciência era a sexualidade, distinguindo-se então
diria Derrida, geopsicanalítica –, o que não deixa de ter lá as suas implicações da escola de Zurique – o que havia coroado, poucos anos antes, o fim do ro-
(cf. Derrida, 1981). mance teórico e político-institucional com C. G. Jung (Freud, 1919a | 1998: 71).
Seres esquisitos, que costumamos atribuir um certo papel inusitado à Em 1920, numa nota acrescentada a Três ensaios sobre a teoria da sexualida-
palavra, aqueles que praticam a psicanálise são potencialmente instigados – de, é o Édipo que ocupa esse lugar, quando Freud afirma que reconhecê-lo
digo “potencialmente”, pois isso depende de a qual perna do elefante freudia- tornou-se o shibōleth que distingue entre aqueles que são os adeptos e aque-
no nós nos agarramos – a tirar consequências do fato de que não se nasce com les que são os opositores da psicanálise (Freud, 1905 | 2016: 149). E três anos
uma língua e que, no limite, toda língua é estrangeira para todo e qualquer depois é o conceito de inconsciente que, por sua vez, será apontado como o
falante (Leite & Souza Jr., 2021). Bem, mas se é um fato que, uma vez dentro primeiro shibōleth psicanalítico (1923 | 2011: 15). Por fim, logo no começo das
de uma língua, ela se torna um lugar de relativo conforto, o incômodo com Novas conferências introdutórias à psicanálise, os sonhos voltam a ocupar esse
a diversidade linguística – sobretudo para nós, brasileiros, que geralmente lugar (Freud, 1933 | 2010: 126): o lugar daquilo que, por ser o que haveria de
aderimos ao mito do monolinguismo – cai facilmente na chave de uma espé- mais característico e peculiar da psicanálise, desempenha o papel de decidir
cie de maldição, como nos ensinou um outro mito, a saber: a Torre de Babel entre quem poderia se tornar um adepto e quem continuaria vendo, no cam-
(Gn 11:1–9). E é a partir desse lugar de maldição que se abre a possibilidade po da psicanálise, uma coisa inteiramente incompreensível.2
de procurar formas de conjurá-la; por exemplo, mediante a proposta de uma O shibōleth (xibolete, em português) denuncia, então, que alguém, ainda
língua artificial, como o esperanto de Ludwik Ł. Zamenhof (Morais & Souza que pareça falar a nossa língua, no fundo não fala; ou, pelo menos, não como
Jr., 2007). Assim, nós nos vemos obrigados aqui a pensar outra saída que não nós. E isso nos dá, no mínimo, uma garantia aparentemente boa de se ter:
seja negligente, mas que também não seja especialmente conciliatória. a de que nós sabemos, então, qual língua estamos falando – o que nos leva a
Na psicanálise, a ideia de barbárie não foi exatamente aquela que se pri- um segundo postulado.
vilegiou para pensar a língua do outro, a língua como uma espécie de divisor
das gentes. Interessado sobretudo no que nos escapa, no que dá com a língua
nos dentes, o edifício teórico freudiano vai realçar a figura do delator que aju- Toda identidade é linguística
da a deliberar pela inclusão ou exclusão do falante de um certo contexto, de
uma certa cena: aquilo que denuncia, que entrega o falante, por assim dizer. Paradigma corrente nas discussões sobre identidade, a ideia de que a língua
Para isso serviu um elemento bíblico curioso: o shibōleth []שבולת, ao qual é o que marca a unidade de um povo é algo muito presente ao longo da
S. Freud recorreu diversas vezes ao longo de sua obra. história humana, em sentido amplo, mas também das pessoas em suas mais
O termo hebraico está associado a um episódio relatado no Antigo Tes- diversas agremiações dentro de um mesmo povo, nas suas interinclusões
tamento, mais precisamente no livro dos Juízes (12:4–6). Reza a lenda que o cotidianas. Para muitos, talvez a mais icônica figuração desse paradigma
povo de Efraim, após ter sido derrotado pelo povo de Gileade, bateu em reti- resida no lugar ocupado pelo grego no universo bárbaro, isto é: grego como
rada e quis cruzar o rio Jordão, que era vigiado justamente pelos vencedores. sendo aquele que – apesar de viver em um território fragmentado, salpi-
Estes, para identificar os fugitivos, obrigavam quem tentasse atravessar o rio cado pelas beiradas do Mediterrâneo – fala uma mesma língua, a qual lhe
a pronunciar um termo banal: shibōleth (espiga de trigo). E nessa os efraimi- confere certa unidade.
tas eram sempre pegos – e executados, evidentemente –, pois pronunciavam
sibōleth.
Ecoando essa passagem, em que um traço do sotaque era alçado a ele-
mento decisório numa questão de vida ou morte, Freud diz em 1914 que os 2 Na esteira desses usos freudianos, outras afirmações são possíveis. Por exemplo, Douglas
sonhos são o shibōleth da psicanálise (Freud, 1914 | 2012: 314) – isto é, aquilo Kirsner argumenta que a análise didática é o xibolete do ensino psicanalítico (Kirsner, 2010).
O Tupi Austral era falado no litoral brasileiro até meados do século xviii,
quando foi desaparecendo na mão dos paulistas, que, com as suas costumei-
ras bravatas de sempre estarem supostamente à frente, conseguiram dar fim
6 O Nheengatu é língua cooficial do município de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas,
desde o ano de 2002. Em tempo: há 14 línguas cooficiais em 34 municípios de nove estados
brasileiros (já oficializadas ou em tramitação): Tukano, Nheengatu, Baniwa, Guarani, Akê
3 Sobre línguas e fronteiras, é digno de nota o filme Portuñol (2020), dirigido por Thaís Xerente, Macuxi, Wapichana, Ingaricó, Saterê Mauê, Mebêngokrê (Kayapó), Pomerano,
Fernandes. Alemão, Talian e Hunsriqueano. Cf. Ipol (2020).
4 Línguas que surgem em contextos de urgência comunicativa, “quando os representantes 7 O primeiro dicionário brasileiro, um dicionário de anatomia, foi escrito em tupi. A seu
de dois grupos de falantes tiveram necessidade de comunicação imediata”, e que não têm respeito, cf. Ayrosa (1937).
falantes nativos (Hlibowicka-Węglarz, 2016: 36). 8 “Na passagem para o século xx, embora continuasse desempenhando o papel de língua
5 Língua de contato que se constitui como língua materna, implicando “a formação de de contato com comerciantes e regatões em área exclusiva do alto rio Negro, ela retornou
uma língua mista, cujo léxico é proveniente da língua dominante, mas as características à condição de língua de índios, com uso predominante nas práticas sociais étnicas, restri-
sistêmicas são da língua dominada” (Lagorio & Freire, 2014: 583). to aos grupos dentro das aldeias” (Freire, 2004 | 2011: 253).
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(1957–8) O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:
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S. Paulo, Cotidiano, 23 de abril. Disponível em www1.folha.uol.com.br
100 … p s ican álise & an t rop o lo g ia : en fo qu e s i n terdi s c i p l i na re s corpos que escutam … 101
capacidade de cruzar devires diferentemente diferentes, de traduzir formas apresentados pelos agentes envolvidos nos procedimentos de cura. Desta
de vida inassimiláveis. A tradutibilidade aqui se refere não a sistemas sim- forma, ao dar um recobrimento de linguagem, permitiriam a estes uma al-
bólicos, mas a perspectivas, pois o xamã, “apenas ele, por definição, pode ver teração nas relações com sofrimentos e sintomas, posto que a reordenação
de diferentes modos, colocar-se em perspectiva, assumir o olhar de outrem. narrativa daria condição para uma transformação das relações subjetivas,
E é por isso que, por vocação, desses mundos disjuntos e alternativos, inco- individuais e coletivas, com estes mesmos eventos patológicos.
mensuráveis de algum modo, ele é o geógrafo, o decifrador, o tradutor” (: 113).
Ou seja, sua função social estaria ligada à tarefa tanto de dar inteligibilidade,
estofo narrativo a eventos incompreendidos no interior de sua comunidade, O perspectivismo ameríndio e
fazendo a mediação entre os acontecimentos do mundo ordinário (dado à a (des)centralidade do corpo no debate
sensibilidade imediata) e o(s) mundo(s) suprassensível(is), quanto de inter-
vir nos conflitos e impasses cosmopolíticos – de forma mais ou menos asser- Uma constatação marcante para tal debate está no fato de que após esta pon-
tiva, o xamã promoveria transformações nas relações múltiplas entre os dois tual incursão sobre a aproximação entre as terapêuticas Lévi-Strauss não
ou mais planos, e nesse espectro se incluem seus procedimentos rituais. se debruçará em maiores desenvolvimentos de seus termos. É nos últimos
Deste ponto, podemos nos acercar dos modos como a tese lévi-straussiana trinta, quarenta anos que encontramos, no interior da antropologia social,
da homologia entre o psicanalista e o xamã tomou forma e assim avançar so- um crescente movimento de reintrodução daqueles fatos e fenômenos que
bre as declinações desta à dimensão corporal do clínico em seus respectivos tinham sido excluídos da matriz lévi-straussiana de análise [the dark side of
contextos. the structuralism moon], a saber, o xamanismo, o animismo e a participação.
É em “A eficácia simbólica” (Lévi-Strauss, 1949a) e em seu par indissociá- A principal motivação se encontra em uma “insatisfação generalizada com a
vel, “O feiticeiro e sua magia” (Lévi-Strauss, 1949b), que estão primeiramente ênfase unilateral na metáfora, no totemismo e na lógica classificatória que
caracterizados os eixos da comparação entre as duas terapêuticas. Ambas, marcaria a imagem lévi-straussiana do pensamento selvagem” (Viveiros de
como sustenta o antropólogo, operariam através da indução de experiên- Castro, 2002: 362). No interior desse movimento, que poderíamos denominar
cias produtivas de determinação, ou seja, tanto no campo da cura xamânica de uma virada ontológica (Holbraad & Pedersen, 2017) sobre os discursos da
como no da psicanalítica teríamos o estabelecimento de significações social- área, se encontram autores centrais para a reflexão antropológica na atuali-
mente partilhadas para vivências “informuladas”, sem possibilidade imediata dade, como Marilyn Strathern, Philippe Descola, Roy Wagner e, em especial,
de tratamento discursivo e, por tal fator, fontes de sofrimento. Nas palavras antropólogos brasileiros, como Eduardo Viveiros de Castro, Manuela Car-
do antropólogo: “A cura xamânica parece ser de fato um exato equivalente da neiro da Cunha e Tânia Stolze Lima, que revolucionaram os estudos amerín-
cura psicanalítica, mas com uma inversão de todos os termos. Ambas buscam dios, ao propor o modelo perspectivista como conformador da cosmovisão
provocar uma experiência, e ambas conseguem fazê-lo reconstituindo um desses povos.
mito que o paciente deve viver, ou reviver” (Lévi-Strauss, 1949a | 2009: 215). O perspectivismo ameríndio se define por um conjunto de teses formula-
Das diferenciações preliminares às aproximações subsequentes do escrito, das – em contraposição a um perspectivismo clássico – a partir da concepção
temos o lugar central referido à dimensão do mito, cujas bases estruturais ameríndia (índios da América como um todo) de mundo (Sztutman, 2005).
analisamos em outro espaço (Domiciano, 2014). O mito permitiria o tra- Em vez de tomarem a epistemologia ocidental como base de sua empreitada,
tamento discursivo a questões que estão fora dos limites do enunciável ou, fazendo grandes descrições infraestruturais dos seus modelos classificatórios e
como Lacan colocará em seguida, daria “expressão significante ao insolúvel, simbólicos, tais teóricos buscam caracterizar a cosmovisão perspectivista, sua
significando sua insolubilidade, fornecendo assim o significante do impossí- Weltanschauung, como o modo ameríndio de ver e representar o mundo, um
vel” (Lacan, 1956). regime discursivo que carregaria consigo as especificidades pelas quais esses
A aproximação realizada por Lévi-Strauss neste primeiro momento, por- povos dariam sustentação ontológica ao mesmo. E é nesta via que ela reconfi-
tanto, inscreve ambas as práticas como realizadoras de nomeações, inserindo gura as relações do que entendemos por natureza e cultura, corpo e alma, apa-
em um regime discursivo os eventos mais ou menos patogênicos que são rência e essência, universal e particular etc. de nossa epistemologia dominante.
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O perspectivismo não é um relativismo, mas um multinaturalismo. O relati- Tensionar a tese de partida deste trabalho com essas alterações nos mo-
vismo cultural, um multiculturalismo, supõe uma diversidade de represen- dos de concepção e inscrição do sistema xamânico no interior de sua raciona-
tações subjetivas e parciais, incidentes sobre uma natureza externa, una e lidade própria nos convoca justamente a tomar o campo do corpo como um
total, indiferente à representação; os ameríndios propõem o oposto: uma aspecto central de tal homologia com as práticas psicanalíticas. A corporei-
unidade representativa ou fenomenológica puramente pronominal, aplica- dade do xamã, por essa via, entra em um lugar central do perspectivismo na
da indiferentemente sobre uma diversidade real. Uma só ‘cultura’, múltiplas determinação da possibilidade de transição entre pontos de vista. E podemos
‘naturezas’; epistemologia constante, ontologia variável – o perspectivismo é começar tal análise a partir das condições de possibilidade no percurso de
um multinaturalismo, pois uma perspectiva não é uma representação. formação de um xamã para que este tenha acesso e trânsito entre mundos,
Uma perspectiva não é uma representação porque as representações são entre diferentes perspectivas.
propriedades do espírito, mas o ponto de vista está no corpo (Viveiros de
Castro, 2002: 379–80, segundo grifo adicionado). &
104 … p s ican álise & an t rop o lo g ia : en fo qu e s i n terdi s c i p l i na re s corpos que escutam … 105
“A pessoa espiritizada já vai antecipando seu estado póstumo; é como se já es- social e comunitária distintiva, em encontrar um lugar nas representações
tivesse em parte morta” (Cesarino, 2011), ou ainda Métraux entre os Bororo: que sustentam a mítica de base da sua comunidade.2 Salientamos que o re-
“Os pajés dos bororos [...] são escolhidos pela alma de um morto: de seu corpo conhecimento público e coletivo do xamã também vem como um reconhe-
emana um cheiro de podridão e de urucum (como se vê já é um ser morto). cimento do seu modo de presentificação, seja nas marcas que seu corpo traz
De repente, uma rajada de vento o faz vacilar e ele desaba como morto. Nesse das experiências de iniciação, seja pelos modos como esta transformação im-
momento, tornou-se o receptáculo de um espírito que fala por sua boca. A partir primem nele um conjunto de novas codificações de expressão social.
deste instante é pajé” (Métraux apud Eliade, 1951, grifos adicionados). O corpo do xamã, portanto, por carregar as marcas das trilhas pelas quais
A desintegração corporal aparece como um tópos comum no conjunto chegou a vir a ser quem é, dota-o de um lugar distintivo. Aqui, por tal acep-
dos relatos acerca dos ritos iniciáticos. E é nos modos de assimilação e in- ção, podemos nos questionar, no bojo das nossas condições de laço social
corporação destes traços vivenciais em narrativas coletivas que encontramos contemporâneas, o que viria a ser um “corpo de analista”. Ou melhor, qual
o valor mítico das descrições do processo transformacional para o acesso seu lugar na gramática de reconhecimento das potencialidades de sua prática.
ao dito devir-xamã. Da realização da desintegração corporal, e de todos os À primeira vista, pode parecer um contrassenso ao campo psicanalítico
efeitos de predicação que esta implica na sociedade ameríndia, decorre uma o entendimento de que poderíamos falar do corpo de um analista fora do
jornada de recomposição de um corpo. Recomposição cujos elementos cons- seu espaço de sustentação transferencial. Ora, em sentido estrito, um analista
tituintes principais são tanto restos que decantaram de sua decomposição seria aquele a quem se supõe um saber e que se constitui como tal no dispo-
anterior, assim como objetos e outros adornos coletados dos seus contatos sitivo analítico pelos efeitos dos deslocamentos representacionais e afetivos
com o outro mundo, como insígnias hierofânicas. decorrentes de um endereçamento específico. A falta-a-ser do analista apenas
A partir destes pontos podemos retomar a tese lévi-straussiana em outros receberia um recobrimento positivo a partir deste sistema de crenças que é
termos, especialmente no que ela nos convoca a questionar as dimensões da fundado pelo fenômeno da transferência.
corporeidade presente e constitutiva na configuração do campo de tratamento Entretanto, quando nos deparamos com todo o conjunto de atravessa-
homólogo entre as práticas de cura aqui postuladas. mentos da esfera discursiva de tensão sociopolítica, reconhecendo sua pre-
sença também no interior da prática analítica – de vez que esta não seria
realizada em uma torre de marfim, desconectada do contexto pragmático em
O que extrair daí para retomar a categoria de “corpo do analista”? que se insere –, dificilmente podemos sustentar que um analista em sua pre-
sentificação seja como uma página em branco (com o perdão do trocadilho).
Primeiramente, podemos salientar que, ao fim desta travessia preliminar, Reconhecer tal dinâmica é reconhecer que o corpo já carrega em si as
o corpo do xamã recebe uma série de atributos que assinalam as marcas do marcas que denotam uma posição diferencial nos discursos sociais, econô-
processo de formação. Adornos, pinturas, gestuais e outros caracteres são micos e políticos que se efetivam em nossa sociedade. Os ditos marcadores
especialmente indicativos dos meios pelos quais este xamã circulou e rece- sociais de diferença, nomeadamente raça, etnia, gênero etc., viriam como sig-
beu, no interior da comunidade da qual faz parte, um reconhecimento de nificantes especiais que já posicionariam um analista no interior dessa malha
seu lugar distintivo. A recomposição corporal do xamã e sua presentificação discursiva. Significantes, poderíamos dizer, que teriam pregnância maior nas
estética são uma marca essencial de seu novo devir, que tem, no interior da vias possíveis de significação, dada tal configuração política. Neste sentido,
simbologia de cada tribo, a função de estabelecer sua capacidade de fazer
contato com o mundo-outro.
Este reconhecimento é central para que um xamã se torne um grande 2 O reconhecimento público, por sua vez, não deixa de vir acompanhado de uma narrativa
xamã (Lévi-Strauss, 1949b) e, consequentemente, tenha maior influência so- moral um tanto rígida dos modos de expressão cotidiana desse xamã: além de ser “capaz
de romper com o mundo ordinário, ou que na posição de xamã se tem uma essência
bre os estados patológicos em seus rituais de cura. Tal potência tem como
diferente”, ele precisa demonstrar uma contenção e um controle de possíveis excessos das
condição o modo como este é acolhido e reconhecido pela comunidade. Nes- afecções da vida. Não nos surpreende a proximidade dessas narrativas daquelas presentes
te sentido, parte do percurso do xamã se funda na construção de uma posição no campo psicanalítico de maneira mais ou menos institucionalizada e ostensiva.
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ainda que não faça toda a diferença para o curso de uma análise, os atributos quer estado de desamparo proveniente destas travessias. Neste sentido, po-
que se presentificam em um corpo fazem alguma diferença. Ignorar esta variá- demos tomar o lugar da ritualística e da repetição do setting analítico como
vel seria deixar de fora da escuta dos condicionantes de efetivação da prática sustentando um modo de presença não ausente, essencialmente necessária
analítica um importante elemento a modular a dinâmica transferencial. nas voltas e giros discursivos incontornáveis com os quais uma análise se
Um segundo ponto que a aproximação com as práticas xamânicas coloca defronta. O lugar da ritualística no decurso de uma cura analítica, sustentada
ao fazer psicanalítico pode ser delimitado pelo modo como se inscreve a ri- também pelo modo de presença corporal do analista, se mostra necessário
tualística específica no conjunto das operações terapêuticas do xamã. Como nos momentos em que um limite simbólico está para ser ultrapassado, em
vimos, em seus processos iniciáticos, o candidato a xamã recebe dos espíritos que a malha que sustenta o liame social borda uma possível ruptura. Aí a
aliados do mundo outro uma série de danças e cantos, além de indicações imagem estabilizante do analista e dos modos como este se presentifica nas
para procedimentos particulares, que marcariam suas futuras intervenções. repetições inscritas no tratamento poderia ser vista como tendo a função
O escopo de uma ritualística inclui ações mais ou menos coordenadas, repe- de tornar possíveis estes atravessamentos perigosos, que beiram os riscos de
titivas, que assinalam um modo de presença do corpo social que daria con- brusca ruptura do laço social.
dições de possibilidade para que uma consistente transformação simbólica Por fim, uma última implicação desta aproximação com o xamanismo,
ocorra. Nesta via, encontramos o lugar central da repetição ritual em uma relido na chave da antropologia contemporânea, se apresenta no que podería
série de ritos de passagem, processos esses que dão condições sociopolíticas mos nomear como um modo de sustentação de uma presença inconsistente
para que o estatuto simbólico de um determinado indivíduo se altere. ou de uma presença que põe em marcha a potência de produção singular de
Em “A eficácia simbólica”, apresenta-se uma interessante descrição de experiências de indeterminação.
como a cena da cura se constitui a partir de uma seriação reiterativa das nar- No conjunto de seu ritual, um xamã aparece como um alguém posicio-
rativas: temos aí um modo de repetição no canto xamânico que progressiva- nado entre mundos. Isso tem correlatos para a efetivação de sua presença.
mente aproxima a cena dos pormenores da situação imediatamente presente Entretanto esta só é garantida pelo modo como seu corpo a sustenta. E não só
com a da rede mítica coletiva. Se a vertente lévi-straussiana enfatiza a via das a ampara na ritualística – como uma derivação do ponto anterior – mas tam-
repetições narrativas, com seus correlatos práxicos, a apresentação da dinâ- bém de como se inscreve após sua jornada iniciática. Notemos que o corpo
mica ritual, por sua vez, não acompanha necessariamente um solo comum do xamã, por tais travessias em regimes ontológicos distintos, é reconfigura-
de compreensão entre os que estão envolvidos, dado que muitos rituais são do em seus processos formativos como disjunto em sua unidade, compósito,
realizados em línguas sagradas, secretas, ou até em fragmentos não gramati- heteróclito e heterogêneo. O corpo que resta, o corpo mortificável, corpo
calizavéis. Em outros termos, no que condiz à ritualidade, para que esta tenha mítico, é um corpo que é irredutível à tentativa de fazer uma unidade fechada.
efeitos, não é necessária uma compreensão consciente de todos os sujeitos O que se pode nomear aqui como uma abertura do corpo do xamã, por-
sobre os quais ela influi. tanto, é consubstancial à sua presença não-toda na cena dos ritos de cura. Seus
A repetição dos refrãos, a reiteração narrativa e também gestual, dá con- gestos, palavras, cantos e procedimentos gerais não são de todo imediatamente
tornos a um procedimento de cura que acompanha uma intervenção trans- acessíveis em uma possível significação coletiva e comum, como vimos.
formativa de expressão cosmicopolítica e sociossimbólica. A possibilidade de
se outrar, como veremos abaixo, é amparada por tal ritualística. A dimensão O doente de fato compreende apenas uma coisa: a incompreensibilidade
corporal aqui colocada, nas formas de sustentação da cena em que uma cura dos cantos, mas essa forma de metacompreensão não é anódina: ela induz o
se dará, aparece, portanto, não apenas nos estados mais passivos – como por paciente a duvidar da identidade ontológica do xamã. [...] E as modalidades
indução das substâncias possivelmente presentes nos rituais –, mas também desta crença, por conseguinte, obedecerão essencialmente a um critério que
como modalidades ativas de sustentação de um ritmo, de uma base serial na ultrapassa o saber xamânico: a eficácia ou não da cura (Déléage, 2006: 19).
qual as diferenças poderão encontrar espaço para se inscreverem.
É na ultrapassagem de limites que os ritos, em determinados momentos, O xamã não repete simplesmente uma performance padronizada desse
são convocados como formas de presença que fazem um anteparo a qual- conjunto para todas as afecções ou em todas as situações em que é convocado.
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Ele repete a diferença e inscreve novos elementos à cadeia narrativa a cada vez, E a Quimera propõe um enigma ao homem Édipo, que talvez já tivesse
e uma vez mais. um complexo, mas não certamente aquele ao qual haveria de dar seu nome.
Nesta toada, a inconsistência de sua presentificação tem um correlato im- Ele lhe responde de uma certa maneira, e é assim que se torna Édipo. [...]
portante no que esta ressoa de sua corporificação, pois estar entre mundos Creio que vocês veem o que aqui quer dizer a função do enigma – é um
somente é possível por meio deste corpo que nunca se dá de todo a ver, a ler. semidizer, como a Quimera faz aparecer um meio-corpo, pronto a desapare-
É justamente em sua fractalidade, para usar um termo de Roy Wagner, que cer completamente quando se deu a solução (Lacan, 1969–70 | 2009: 34, grifo
observamos a multiplicidade enunciativa desse modo de sustentação de lin- adicionado).
guagem no que ela carrega de correspondência com um discurso ontológico
de fissuras entre sistemas estáveis de autorreferência. Ainda que possamos entender esta face quimérica dos “meios-corpos”
Encontramos um caso análogo desta disjunção corporal nas proposições que o postulado lacaniano associa ao lugar do enigma, aqui cabe registrar
lacanianas acerca do corpo do analista em seu ato. No modelo de formalização que o corpo aí não só é requisitado como condição discursiva, como tam-
dos quatro discursos, Lacan produz um sistema de termos e posições nos quais bém é presentificado como um corpo que recusa toda unificação. Susten-
inscreverá uma modulação da ligação disjuntiva entre saber e verdade (Lacan, tar o lugar do enigma, como Lacan salienta, implica a emergência de um
1969–1970). Está em jogo um debate sobre a possibilidade de sustentação de suporte corporal homólogo a tal modulação de enunciação, um suporte que
uma verdade no lugar do saber: a verdade aparecerá aí como uma posição no não se sustenta consistentemente em si. A esfinge, enquanto “ser ambíguo”,
discurso, enquanto o saber será um termo que circulará, nos distintos discursos, seria dotada, portanto, de uma dupla disposição: “tal como o semidizer, de
entre as posições disponíveis (agente, outro, produção e verdade). Do que nos dois semicorpos”.
cabe aqui, é importante notar que, no discurso que se nomeia como discurso Ora, Lacan aqui dá mais um elemento a tal dimensão corporal: não ape-
do psicanalista, o saber se posicionará especialmente no lugar da verdade, ou nas um meio-corpo, mas dois semicorpos – e poderíamos dizer dois ou mais
seja, este se funda em uma recusa de uma simples sobreposição entre tais fragmentos de corpos que se atualizam neste ser ambíguo, mas que não for-
termos. Sendo a verdade, em psicanálise, sempre semidita, este saber será aí mariam a consistência de um Uno. Se atentamos à fórmula do discurso do
incluído como um saber que recusa uma formulação totalizante, um saber analista, vemos como a posição de semblante é justamente a deste objeto cau-
não-todo, um saber que deixa em aberto uma palavra última sobre si. sa de desejo, modulado por uma teoria da economia de gozo que o faz ainda
Outro modo de apreender o que está em questão é reconhecer que este ser reposicionado como objeto mais-de-gozar, que marca prioritariamente
saber apenas se articula de forma específica, na medida em que se ancora em a presença de uma incompletude, de uma inconsistência e mesmo de uma
uma enunciação que se eleva como tal sobre um enunciado. Lacan aponta não unidade correlata da presentificação imaginária ou simbólica. O objeto a
esta forma de ancoragem de uma enunciação que afirma a si como a função viria aqui como este resíduo inassimilável da ordem simbólica no que esta
do enigma a denotar este semidizer. Ou seja, o discurso psicanalítico apenas não se completa por si.
pode se sustentar, sem se reduzir a outras formas discursivas, enquanto um Neste sentido, conjugando tais termos na matriz lévi-straussiana, ficamos
discurso que mantém presente a função do enigma de um saber irredutível a com a questão sobre a face estética, sensível da presentificação do analista em
qualquer modalidade de totalização consistente. seu ato. A radicalidade do discurso psicanalítico estaria no posicionamento
Entretanto tal discurso implicaria também a emergência de um suporte cor- de uma multiplicidade interna e estrutural. Um discurso que se articula no
poral homólogo a tal postulado, um suporte que não se imprime consistente- e através de um corpo falante é um discurso que não apenas reconhece a
mente em si, um meio-corpo que se decanta de um meio-dizer. Uma pergunta sem irredutibilidade de seu saber em face das posições enunciativas, como traz,
resposta unívoca, que tocaria na dimensão da verdade e que estaria presente na enquanto condição, esta diferença radical de cada ser falante.
psicanálise desde as primeiras remissões ao mito de Édipo. Em seus termos: Em outros termos, como sustentar um discurso psicanalítico sem a dis-
posição, ou mesmo condição, de se descompletar, de se desconhecer drasti-
A nossa querida verdade da imaginária de Épinal, que surge do poço, é sem- camente até mesmo na crença do que é mais próprio de seus resíduos corpo-
pre um corpo. [...] rais? Neste ponto, sustentamos que a travessia por tais cenas de ancoragem
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antropológica, no que esta resguarda de uma tensão interna no conjunto das lévi-strauss, Claude
(1949a) “A eficácia simbólica”. In: Antropologia estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
discursividades sobre uma universalidade não normativa, bota uma questão
(1949b) “O feiticeiro e sua magia”. In: Antropologia estrutural. Op. cit.
central à nossa prática cotidiana: em que medida um analista, em seus modos
de presentificação corporal, em toda sua materialidade significante e pulsio- maniglier, Patrice
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112 … p s ican álise & an t rop o lo g ia : en fo qu e s i n terdi s c i p l i na re s corpos que escutam … 113
ricardo goldenberg
Atualidade da virtualidade
115
Relendo-me, vejo que passei sem perceber da primeira para a terceira e que, por extensão, tornou-se sinônimo de número). O computador não
pessoa do plural. Por quê? Porque me conto entre os que há anos se servem “entende” sons ou raios de luz, apenas combinações de zeros e uns, em que
de uma rede Wi-Fi para atender pacientes, sem nunca ter achado que aquilo zero significa porta fechada e interrupção da corrente de elétrons, e um, a
não fosse psicanálise stricto sensu. O que não significa que tanto faça, apenas porta aberta para a sua passagem pontual. Com isso se compõem simu-
que o método analítico não se limita aos móveis e à posição dos corpos, mas lacros de ondas sonoras interpretados pelo alto-falante e de imagens re-
depende de um discurso para ser implementado. compostas ponto a ponto nas telas de cristal líquido. A realidade virtual é
Isto posto, tudo muda quando o único meio de praticar a psicanálise é a a reconstituição numérica de um estímulo que simula uma representação
telinha do smartphone ou a tela de um notebook. Uma coisa é trabalhar de vez analógica.
em quando deste modo, outra, que meu paciente e eu estejamos reduzidos a De que estou falando? Da diferença entre uma presença atual e outra
duas figuras planas de seis polegadas, feitas de 1.125 x 2.436 pixels, ou a duas virtual, e dos dois corpos distintos a que elas dão lugar. Antes de prosseguir,
vozes digitalizadas no telefone. o que significa “atual”? Em inglês, actual e, em alemão, wirklich querem
Colegas mais jovens, adeptos desde sempre dos videojogos, contam que dizer “de verdade”, como oposto a “faz de conta”. Actual é algo acontecendo
para eles esta mudança do regime de trabalho não gerou o menor estresse. aqui e agora, diferente do que pretendia, ou tinha a intenção, ou planejava,
Para mim e para os da minha geração, em compensação, isto não é bem assim. ou acreditava que poderia fazer. Em alemão, Wirklichkeit deve ser confron-
Por mais familiaridade que eu tenha com as redes sociais, termino esgotado tado com Realität. O primeiro é um termo construído com wirken, “agir”, e
de um modo em nada comparável ao meu estado depois de um dia intenso se refere à realidade humana tecida de signos; o segundo traduz o que co-
recebendo pacientes de corpo presente e de viva voz, como se diz. Radmila loquialmente entendemos por concreto ou de carne e osso, como diferente
Zygouris tem uma hipótese sobre este fenômeno: somos nós que damos cor- do que é imaginário.
po a estas sombras, às nossas custas. Qual Dantes, adentrando o inferno, ro-
deados de espectros atraídos pela nossa seiva vital.
Presença de uma ausência (atualidade da virtualidade)
Não vou elucubrar sobre a natureza dos corpos, apenas faço observar a interme- Voltando ao começo, para concluir. Não sei se alguém já percebeu que o ví-
diação da máquina, que caracteriza o que se denomina de encontros remotos. rus, que nos jogou na completa digitalização da vida, é da mesma natureza
A máquina é um corpo e constitui o suporte duro (hardware) da virtualidade que que ela. Com efeito, o vírus não é uma forma de vida, e sim um pequeno
nos transforma, diante do outro, em espectros. Quero dizer, o único corpo com o fragmento de informação que nem sequer é autônomo. Digamos que se trata
qual interajo, enquanto corpo, é com a máquina. Meu interlocutor, a sua imagem de uma sequência de letras incompleta, que precisa de nosso próprio arqui-
bidimensional re-produzida na tela com sua voz reconfigurada nos alto-falantes, vo informativo para replicar-se. E é só isso que ele faz: replicar-se. A inva-
não passa, para mim, de uma presença fantasmal, assim como eu o sou para ele. são, muitas vezes, destrói ou danifica o hospedeiro, mas atribuir qualquer
É claro que isso muda tudo na relação transferencial, como não? Talvez intenção a esse pacotinho de informação é apenas uma fantasia paranoica.
seja para o bem, não sabemos ainda. Em todo caso, o silêncio, por exemplo, Em todo caso, não se trata de reprodução, como numa bactéria; o vírus não é
deixou de ser o que era. “Você está calado ou a conexão caiu?” A sua imagem um bicho. Para todos os efeitos, é uma deriva digital, da mesma natureza que
congela ou se esfacela em quadradinhos coloridos que já não mais compõem um fragmento de software do meu computador.
o seu rosto (demonstrando o quanto você não estava aqui). Poderia carac- Os governos e os políticos já aprenderam a servir-se dos vírus aleatórios ge-
terizar-se o ato analítico como cortar a comunicação, sem mais nem menos, rados pela seleção natural, como o covid, ou fabricados intencionalmente para
qual namorado ofendido que “desliga na tua cara”? Não, certamente. Nunca infestar o corpo virtual da rede, com a finalidade de produzir entropia e caos,
saberíamos se foi intencional ou obra da máquina. O corretor automático mais ou menos sistemáticos e de acordo aos seus desígnios de poder. Trump e
do WhatsApp pode caracterizar-se como interpretação, surrealista e aleatória, Bolsonaro são dois tristes e patéticos exemplos disso (o grau de devastação que
quando escrevo para o meu paciente “seu pai” e ele manda para este “seu pau”, provocaram não os torna nem menos tristes, nem menos patéticos).
o que, depois de ser atribuído à minha intenção de analista, se revela justo? Harari esceveu em algum dos seus livros que o Homo sapiens sofre de
O sujeito suposto saber, então, tampouco é mais o que era. três tipos de medo atávicos. Dos predadores, desde que desceu das árvores.
Também a relação público versus privado fica transformada pela digitali- Da fome, desde que é assolado por secas e por enchentes. E da peste, desde
zação e a universalidade das redes virtuais. Não é a mesma coisa mandar uma as sete pragas do Egito narradas pela Bíblia, passando pela peste negra até
carta a um amigo e subir essa mesma carta ao Facebook para, dependendo o coronavírus. Eu acrescentaria mais um: a desinformação. O medo de ser
de quem for o emissor, atingir milhares, senão milhões de destinatários alea- ludibriado, que é a versão moderna, digital, da serpente do Éden. Em quem
tórios. Junto com isso, sai transformada a relação entre ética e etiqueta; entre podemos confiar, quando estamos submetidos à incerteza e à desinformação
o que se deve ou se pode subir às redes e o que não se deve, nem se pode. intencionais?
O “cancelamento”, por exemplo, é a liquidação virtual, com efeitos assaz ob-
jetivos na realidade de qualquer um que manifeste a menor diferença com
relação à Verdade absoluta que suporta a identidade dos membros de tal co-
munidade (em geral, a mesma a que o cancelado pertence).
Já foi notado o que significa esta globalização: somos uno. Um grande
corpo planetário de um trilhão de vozes; Gaia finalmente realizada. Um por
um, somos apenas pedaços desse corpo de dimensões planetárias. E o que foi
feito do desejo nestas condições? O que faz, com efeito, uma subjetividade ter
50 milhões de seguidores? Não digo pessoas, e sim seguidores. Isso ainda não
foi estudado. O que, aliás, quer dizer 50 milhões de seguidores? Que tipo de
poder é desencadeado quando se tem acesso a 50 milhões de seguidores? Bota
criação de opinião ali! O que é a transferência nestas condições?
121
um ato proibido ao indivíduo e justificável apenas pela participação de todo o conhecimento, para além do mito, de um operador estrutural. A posição do
clã, não podendo ninguém se ausentar da matança e da refeição. Quando ter- pai, tal como Freud a articula, ou seja, como um impossível, é o que faz com
mina, o animal morto é lamentado. O luto é obrigatório e seu objetivo principal, que seja imaginado necessariamente como privador.
renegar a responsabilidade pela matança. Mas é seguido por demonstrações de Além disso, a ênfase na função simbólica do pai desfaz a possibilidade de
júbilo festivo. Os sentimentos festivos e tudo que deles decorre poderiam ser uma leitura “naturalista” ou “familiarista” do complexo de Édipo. O assassi-
explicados pelo fato de os participantes da cerimônia terem incorporado a si nato do pai da horda é fundador de uma lei e, assim, do laço social; um laço
próprios a vida sagrada de que a substância do totem constitui o veículo. social político e religioso mais do que familiar.
Para Freud, o animal totêmico é, na realidade, um substituto do pai, e Nesse contexto, antropólogos que então já criticavam o evolucionismo
isso entra em acordo com o fato contraditório de que, embora a morte do reagiram a algumas ideias de Freud. Malinowski, por exemplo, posicionou-se
animal seja, em regra, proibida, sua matança é uma ocasião festiva. A dis- contra a universalidade do complexo de Édipo e a origem única da humani-
posição festiva é causada pela satisfação de realizar-se o que é desejado, mas dade. Claude Lévi-Strauss entrou nesse debate e, em seu livro As estruturas
normalmente proibido. elementares do parentesco, repensou a proibição do incesto, apresentando o
Ao juntar a tradução do totem dada pela psicanálise com o fato da re- tabu do incesto como marca na passagem da natureza para a cultura.
feição totêmica e a hipótese darwiniana sobre o estado primordial da socie- Para Lévi-Strauss, o tabu do incesto assume uma configuração particular
dade humana, Freud apresenta o mito do pai tirano, detentor do gozo e que em cada sociedade humana, em função das estruturas sociais reguladoras de
priva os seus filhos das mulheres do clã. O ódio dos irmãos e o vislumbre da caráter inconsciente. E, assim, soluciona o debate entre Freud e alguns antro-
possibilidade de um gozo sem limites os leva a assassinar o pai, tornando-se, pólogos, concebendo tanto a universalidade da proibição do incesto quanto a
contudo, rivais uns dos outros em relação às mulheres. Como a nova organi- diversidade das culturas. Com efeito, esse interesse pelo caráter inconsciente
zação terminaria numa luta de todos contra todos, pois nenhum deles teria das estruturas sociais é o que, principalmente, o aproxima de Freud.
força tão predominante, a ponto de poder assumir o lugar do pai com êxito, Ainda em As estruturas elementares do parentesco, Lévi-Strauss toma os
os irmãos, para viver juntos, não tiveram alternativa senão instituir uma lei estudos dos linguistas Saussure e Jakobson e concebe a primazia do simbóli-
pela qual todos, de igual modo, renunciariam às mulheres que desejavam. co. O simbólico foi considerado por ele uma condição a priori da sociedade.
Segundo Freud, os irmãos do mito estavam cheios dos mesmos senti- Assim, todos os elementos da cultura são expressão desse simbólico: a lingua-
mentos contraditórios que podemos perceber nos neuróticos. Odiavam o pai, gem, a arte, a ciência, a religião, as relações econômicas etc.
que representava um obstáculo tão formidável ao seu anseio de poder e aos Tais concepções de Lévi-Strauss referentes ao simbólico ecoam no psi-
desejos sexuais, mas também o amavam e o admiravam. Foi nesse contexto, canalista Jacques Lacan e são fundamentais para a afirmativa lacaniana do
marcado por uma ambivalência fundamental, que aconteceu o ato fundador inconsciente estruturado como uma linguagem, quando este concebe a pri-
da cultura: o pai morto tornou-se mais forte do que o fora vivo. mazia do simbólico, assim como para suas elaborações relacionadas à impor-
Em sua conferência “Introdução aos Nomes-do-Pai”, proferida em 20 de tância da função da fala e do campo da linguagem na psicanálise.
novembro de 1963, Lacan diz: Em seu “Seminário sobre ‘A carta roubada”, Lacan afirma:
Miticamente [...] o pai só pode ser um animal. O pai primordial é o pai Se o que Freud descobriu, e redescobre com um gume cada vez mais afiado,
anterior ao interdito do incesto, anterior ao surgimento da Lei, da ordem tem algum sentido, é que o deslocamento do significante determina os sujei-
das estruturas da aliança e do parentesco, em suma, anterior ao surgimento tos em seus atos, seu destino, suas recusas, suas cegueiras, seu sucesso e sua
da cultura. Eis por que Freud faz dele o chefe da horda, cuja satisfação, de sorte, não obstante seus dons inatos e sua posição social, sem levar em conta
acordo com o mito animal, é irrefreável (Lacan, 1963 | 2005: 71). o caráter ou o sexo, e que por bem ou mal seguirá o rumo do significante,
como armas e bagagens, tudo aquilo que é da ordem do dado psicológico
É nesse sentido que podemos considerar que Freud, em Totem e tabu, (Lacan 1956 | 1998: 33–4).
avança em suas teorizações sobre o complexo de Édipo, possibilitando o re-
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Freud, Lévi-Strauss e Lacan lançaram mão do mito em suas pesquisas preliminar, vivido em parte no Brasil, em 1930. E ele próprio relaciona esse
e elaborações teóricas, concebendo-o como uma ferramenta, uma maneira, trabalho preliminar a um dos requisitos da formação de um analista, a análise
uma forma épica de tratar das contradições, do indizível, daquilo que se ope- pessoal, no sentido de que é necessário viver a experiência para se colocar
ra na estrutura. como investigador no campo de pesquisa.
Lacan, em sua conferência “O mito individual do neurótico”, proferida O antropólogo norte-americano Horace Miner, no ilustre artigo “Body ritual
em 1952, a partir de uma versão preliminar do artigo “A análise estrutural among the Nacirema”, de 1956, evidencia isso de uma maneira surpreendente,
dos mitos”, de Lévi-Strauss, realiza uma releitura do caso freudiano do Ho- ao nos apresentar os rituais do corpo de uma cultura peculiar e enigmática.
mem dos ratos, valendo-se do método de análise proposto por Lévi-Strauss. Na descrição da vida dos Nacirema feita pelo antropólogo, podemos destacar
Na versão definitiva de seu artigo, publicada em 1955, o antropólogo pro- alguns rituais e cerimônias: os Nacirema visitam diariamente o santuário onde,
põe que os mitos se reproduzem com as mesmas características em diversas em uma pequena fonte, cada membro da família curva a cabeça diante de uma
regiões do mundo e o valor intrínseco a eles atribuído “provém do fato de caixa mágica, misturam diferentes tipos de água sagrada e realizam um breve
os eventos que se supõe ocorrer num momento de tempo também forma- rito de ablução; consultam o “homem-da-boca-sagrada” duas vezes ao ano, e o
rem uma estrutura permanente, que se refere simultaneamente ao passado, mago, com uma impressionante parafernália (perfuratrizes, furadores, sondas e
presente e futuro” (Lévi-Strauss, 1955 | 2012: 224). Além disso, identifica nos agulhas), faz uso destes objetos no exorcismo dos perigos da boca – cerimônia
mitos unidades constitutivas que, a partir de seu valor opositivo, formam fei- que implica desconforto e tortura; quando doentes, buscam o tempo Latipsoh,
xes de relações. O que se extrai como sentido não é necessariamente o que o onde, entre outras práticas, os curandeiros mantêm seus fiéis em leitos de dor e
mito significa no que tange ao seu conteúdo, mas as conclusões a que se pode lhes atiram agulhas magicamente tratadas em sua carne; há jejuns rituais para
chegar a partir da análise da estrutura deste. fazer pessoas gordas ficarem magras e banquetes cerimoniais para fazer pessoas
Em sua abordagem do caso do Homem dos ratos, Lacan dá ênfase ao fio magras ficarem gordas; outros ritos ainda são usados para tornar maiores os
que Freud estabeleceu entre a história de Ernst Lanzer e o passado de seu seios das mulheres, se são pequenos, e menores, se grandes. Em suma, o foco de
pai, evidenciando que ele estava fixado às condições que presidiram sua exis- seus rituais e cerimoniais é o corpo humano, cuja aparência e cuja saúde consti-
tência. Seu pai fora apaixonado por uma moça pobre, mas escolheu se casar tuem a preocupação dominante para essa cultura.
com outra mulher, por esta ser de uma família rica. Ao passo que, no caso de O antropólogo conclui que é difícil compreender como esse povo, obce-
Lanzer, a dúvida entre se casar com a moça pobre, por quem é apaixonado, cado pela magia, conseguiu sobreviver por tanto tempo sob os pesados far-
ou seguir com o planejamento da família de se casar com uma prima rica o dos que eles próprios se impuseram. Nacirema, anagrama de American, é
leva a permanecer doente por anos, o que o impede de terminar o seu ensino a descrição do próprio povo americano, em suas rotinas de higiene, visitas
superior – condição para que se case –, postergando assim sua decisão. Além ao dentista, internações no hospital (Latipsoh), dietas, cirurgias plásticas etc.
disso, se temos na história do pai do analisante uma dívida paga em oposição Além de ser uma crítica à cultura ocidental, o artigo de Miner fundamenta-se
a outra que nunca pôde ser quitada, na história de Lanzer encontramos tam- como um alerta acerca das investigações atravessadas pela tendência a obser-
bém a oposição entre uma dívida paga e, por outro lado, uma complexa trama var o mundo a partir da perspectiva particular do povo e da cultura a que se
que criou para tornar impossível o pagamento de uma determinada quantia. pertence – etnocentrismo.
Conforme afirma Lacan, “tudo se passa como se os impasses próprios da si- Por fim, podemos acrescentar a este estudo a articulação entre psicanálise
tuação original se deslocassem para um outro ponto da rede mítica, como se e antropologia empreendida por Lévi-Strauss em seu artigo “A eficácia sim-
o que não é resolvido num lugar se reproduzisse sempre noutro”. E continua: bólica”, de 1949. Nesse texto, Lévi-Strauss analisa a prática do xamã em um ri-
“Ao tentar fazer um e outro se recobrirem, faz uma operação circular, nunca tual que tem por objetivo viabilizar um parto difícil. O xamã, por meio de um
satisfatória, que não consegue fechar seu ciclo” (Lacan, 1952 | 2008: 27). mito que é entoado como canto, permite uma certa subjetivação daquela ex-
Outra convergência que podemos estabelecer entre psicanálise e antro- periência que, até então, não fora integrada ao simbólico. A técnica da narrati-
pologia refere-se à comparação feita por Lévi-Strauss entre o psicanalista e o va visa restituir uma experiência real, “da qual o mito apenas substitui os pro-
antropólogo. Em seu projeto Mitológicas, Lévi-Strauss se impôs um trabalho tagonistas, que penetram no orifício natural” (Lévi-Strauss, 1949b | 2012: 210).
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Em suma, a cura consiste em “tornar pensável uma situação dada inicialmen- gação da verdade (como causa final) e a foraclusão da verdade (como causa
te em termos afetivos, e aceitáveis, pelo espírito, dores que o corpo se recusa a formal), a psicanálise vem introduzir a dimensão da verdade como causa ma-
tolerar” (: 213). O que a paciente “não aceita são as dores incoerentes e arbitrárias terial. Essa causa material é, propriamente, a forma de incidência do signifi-
que constituem um elemento estranho a seu sistema, mas que o xamã, recorren- cante que se define agindo, antes de tudo, separado de sua significação. É isso
do ao mito, irá inserir num sistema em que tudo se encaixa” (: 213). o que possibilita a consideração do sujeito do significante. A integração da
A partir disso, Lévi-Strauss destaca alguns pontos de aproximação entre o função da verdade como causa, no que se refere ao saber e ao sujeito, conduz
xamã e o psicanalista: 1) fornecer ao paciente uma linguagem na qual podem o psicanalista à interrogação da verdade como causa do desejo.
ser expressos estados não formulados e, de outro modo, informuláveis; 2) tra- A discussão sobre a verdade empreendida por Lacan na década de 1960
zer à consciência conflitos e resistências que até então haviam permanecido in- permanece válida e necessária no contexto atual, em que o Dicionário
conscientes; 3) a produção de uma experiência específica na qual os conflitos se Oxford caracterizou, em 2016, “pós-verdade” como a palavra do ano. “Pós-
realizam numa ordem e num plano que permite seu livre desenrolar e condu- -verdade”, segundo esse dicionário, significa “um adjetivo relacionado ou
zem ao seu desenlace; e 4) a posição do xamã é correlata à do analista durante a evidenciado por circunstâncias em que fatos objetivos têm menos poder de
transferência, já que se torna o protagonista dos conflitos vividos pelo paciente. influência na formação da opinião pública do que apelos por emoções ou
O antropólogo, contudo, reconhece que esse paralelismo não exclui dife- crenças pessoais”.
renças, das quais a principal é que o psicanalista escuta e o xamã fala. Segun- Concluímos, assim, com estas palavras de Eduardo Viveiros de Castro,
do o autor: um dos mais influentes antropólogos brasileiros da atualidade, que, recen-
temente, em sua residência no Rio de Janeiro, deu uma entrevista e falou
A cura xamânica parece ser de fato um exato equivalente da cura psicana- sobre nosso cenário atual: “um momento em que a palavra perdeu o fôlego,
lítica, mas com uma inversão de todos os termos. Ambas buscam provocar inclusive o valor. A gente não consegue mais distinguir a verdade da mentira”
uma experiência, e ambas conseguem fazê-lo reconstruindo um mito que (Viveiros de Castro, 2019).
o paciente deve viver, ou reviver. Contudo, num caso, é um mito individual
que o paciente constrói com elementos tirados de seu passado e, no outro, é
um mito social que o paciente recebe do exterior e que não corresponde a
um estado pessoal antigo (: 215).
Referências bibliográficas
No texto “A ciência e a verdade”, Lacan também dialoga com Lévi-Strauss
em seus estudos sobre a magia e o xamanismo, e afirma que a magia “supõe freud, Sigmund
o significante respondendo como tal ao significante” (Lacan, 1966 | 1998: 885). (1912–3) Totem e tabu: algumas correspondências entre a vida psíquica dos selvagens e a dos neuró-
Na cura xamânica, encontramos o significante na natureza sendo invocado e ticos. Porto Alegre: l&pm Editores, 2014.
metaforicamente mobilizado pelo significante do encantamento. A verdade
lacan, Jacques
é interrogada sob seu aspecto de causa eficiente, desconsiderando-se, contu- (1952) “O mito individual do neurótico ou Poesia e verdade na neurose”. In: O mito individual
do, a verdade do sujeito. Embora produza efeitos, o saber permanece velado, do neurótico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.
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fizerem a projeção de suas características no sujeito com quem lidam – para (1966) “A ciência e a verdade”. In: Escritos. Op. cit.
psicologizá-lo, ou seja, desconhecê-lo” (: 891).
Para além do diálogo com a antropologia, Lacan continua esse desen- lévi-strauss, Claude
(1949a) As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Vozes, 2012.
volvimento, indagando-se sobre o lugar da verdade não só na magia, mas (1949b) “A eficácia simbólica”. In: Antropologia estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
também na religião, na ciência e na própria psicanálise. Ao passo que nas três (1955) “A estrutura dos mitos”. In: Antropologia estrutural. Op. cit.
primeiras encontramos o recalque da verdade (como causa eficiente), a dene-
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Professora do Programa de Pós-graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade
da Universidade Veiga de Almeida, Rio de Janeiro. Professora Associada apo-
sentada da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (puc-rio).
Bolsista de Produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cien-
tífico e Tecnológico (cnpq). Pesquisadora da Associação Universitária de Pes-
quisa em Psicopatologia Fundamental. Membro Psicanalista da Sociedade de
Psicanálise Iracy Doyle.
betty b. fuks
Psicanalista. Doutora em Comunicação e Cultura (1998) pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Professora do Programa de Pós-graduação em
Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida, Rio de
Janeiro. Bolsista de Produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (cnpq). Pesquisadora da Associação Universitá-
ria de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Editora da revista online
Trivium: estudos interdisciplinares.
gloria sadala
Psicanalista. Membro da Internacional dos Fóruns – Escola de Psicanálise leonardo câmara
dos Fóruns do Campo Lacaniano (if-epfcl) e do Fórum Rio da epfcl-Brasil. Psicanalista. Professor adjunto-a do Departamento de Psicologia da Univer-
Membro do colegiado de Formação Clínicas do Campo Lacaniano – Rio sidade Federal de São Carlos (dpsi/ufscar). Doutor pelo Programa de Pós-
de Janeiro (fccl-rj). Doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. -graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Coordenadora do Doutorado em Psicanálise, Saúde e Sociedade, docente do Membro do Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi (gbpsf).
Programa de Pós-graduação stricto sensu em Psicanálise, Saúde e Sociedade
e cocoordenadora do curso de Pós-graduação lato sensu em Teoria Psicanalí-
tica e Prática Clínico-Institucional da Universidade Veiga de Almeida, Rio de luiz fernando dias duarte
Janeiro. Docente do Curso de Especialização em Psicologia Clínica da Ponti- Professor titular do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social,
fícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (puc-rio). Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisador sênior
do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (cnpq).
Foi Diretor do Museu Nacional, Rio de Janeiro. Praticando o que chama de
joana novaes uma “Antropologia da Pessoa”, trabalhou frequentemente com temáticas lin-
Pós-doutora em Psicologia Social (2008) e em Psicologia Médica (2012) pela deiras à psicanálise e aos demais saberes psi.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Coordenadora do Núcleo de
Doenças da Beleza do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção
Social (lipis) da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (puc-rio). marco julián martínez-moreno
Pesquisadora correspondente do Centre de Recherches Psychanalyse et Antropólogo da Universidade Nacional da Colômbia. Doutor em Antropo-
Médicine – Université Denis-Didetot Paris vii (crpm – Pandora). logia Social pela Universidade de Brasília. Bolsista de Pós-doutorado Nota 10
da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio
de Janeiro (Faperj) no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social,
joão felipe g. m. s. domiciano Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi professor no
Psicanalista. Doutorando em Psicologia Clínica no Instituto de Psicologia da Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais.
Universidade de São Paulo (ip-usp), com estágio de pesquisa na Université Seu trabalho e publicações exploram relações de violência familiar, masculi-
Paris vii. Coordenador da Rede Clínica do Laboratório Jacques Lacan e pes- nidades, a judicialização e a psicologização da vida cotidiana, e os processos
quisador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da Universi- de intervenção de dimensões da vida tidos como culturais em setores po-
dade de São Paulo (latesfip-usp). pulares do Rio de Janeiro e de Bogotá. Desde 2003, é membro do Núcleo de
Pesquisa Conflicto Social y Violencia da Universidade Nacional da Colômbia.