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]
• Ana Maria Rudge
esta coletânea é um testemunho
da aposta do Programa de Pós-graduação Betty B. Fuks • Ana Maria Rudge
em Psicanálise, Saúde e Sociedade da [organização]
Universidade Veiga de Almeida, Rio de Janeiro,

Betty B. Fuks
no diálogo da psicanálise com outros saberes.
Inscrito na área interdisciplinar da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
psicanálise
de Nível Superior (Capes), o Programa vem
mantendo o compromisso de realizar simpósios
&

psicanálise & antropologia


interdisciplinares, nacionais e internacionais,
de modo a dar continuidade à sua missão de
antropologia
desenvolver um trabalho de interlocução entre
vários saberes, capaz de abrir espaço à formulação enfoques interdisciplinares
de uma crítica reflexiva ao desenvolvimento
intelectual e social de nosso país.

Betty B. Fuks • Ana Maria Rudge

isbn 978-65-5700-099-1
psicanálise &
antropologia
psicanálise &
antropologia :
enfoques interdisciplinares

Betty B. Fuks
Ana Maria Rudge
[organização]

1ª edição

Rio de Janeiro, 2020


copyright © 2020, dos autores Sumário
capa, projeto gráfico e preparação
Contra Capa

p974 Psicanálise & antropologia : enfoques interdisciplinares / Betty B. Fuks, Ana


Maria Rudge [organização]. – Rio de Janeiro: uva, 2020.
152 p. : 23 cm Apresentação 7
“Trabalhos apresentados no iv Simpósio Interdisciplinar e Internacional betty b. fuks
realizado pelo Programa de Pós-graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade
ana maria rudge
da Universidade Veiga de Almeida, Rio de Janeiro”.
Coedição: Universidade Veiga de Almeida / Capes.
Inclui bibliografia.
isbn 978-65-5700-099-1
O totemismo edipiano e suas encruzilhadas 21
1. Psicanálise. 2. Antropologia. 3. Abordagem interdisciplinar do conhecimento. christian ingo lenz dunker
4. Freud, Sigmund, 1856–1939. 5. Lévi-Strauss, Claude, 1908–2009. i. Fuks,
Betty B. ii. Rudge, Ana Maria. iii. Universidade Veiga de Almeida. iv. Brasil.
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.

cdd 150.195 A psicanálise na ‘antropologia da emoção’ 31


luiz fernando dias duarte
Ficha catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da uva marco julián martínez-moreno
Bibliotecária Adriana R. C. de Sá crb 7–4049

O inquietante em Fernando Pessoa como


chave de leitura de As palavras e as coisas.
A literatura na arqueologia
da psicanálise e da antropologia 49
nelson da silva junior

Demanda de asilo, refúgio: destinos de


uma posição “traumática” do estrangeiro 61
olivier douville
2020
Todos os direitos desta edição reservados a
universidade veiga de almeida
Rua Ibituruna, 108 – Maracanã
Ferenczi e a catástrofe: ruptura dos limites 75
Rio de Janeiro – rj – 20271-020 leonardo câmara
www.uva.brr regina herzog
Fala boa, língua ruim: betty b. fuks
função e campo do geral e do extraordinário 89
paulo sérgio de souza jr. ana maria rudge

Corpos que escutam:


xamãs, psicanalistas e seus corpos retomados
pela antropologia contemporânea 99 Psicanálise na interdisciplinaridade
joão felipe g. m. s. domiciano

Atualidade da virtualidade 115


ricardo goldenberg

Psicanálise, antropologia e suas interlocuções 121


gloria sadala esta coletânea é um testemunho da aposta do programa de
josé maurício loures Pós-graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga
de Almeida, Rio de Janeiro, no diálogo da psicanálise com outros saberes.
Inscrito na área interdisciplinar da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pes-
O corpo obrigatório: soal de Nível Superior (Capes), o Programa vem mantendo o compromisso
estética, consumo e regulação social 129 de realizar simpósios interdisciplinares, nacionais e internacionais, de modo
joana novaes a dar continuidade à sua missão de desenvolver um trabalho de interlocução
entre vários saberes, capaz de abrir espaço à formulação de uma crítica refle-
xiva ao desenvolvimento intelectual e social de nosso país.
Sobre os autores 145 A escolha do tema de cada simpósio privilegia questões teóricas impor-
tantes na definição dos interesses e objetivos das múltiplas disciplinas ofe-
recidas a cada ano aos nossos mestrandos e doutorandos. Neste volume, os
trabalhos apresentados são respostas distintas e variadas ao convite feito
a diferentes pesquisadores a participar de nosso iv Simpósio Interdisciplinar e
Internacional, com o objetivo de promover reflexões sobre o diálogo entre
a psicanálise e a antropologia.
De fato, as relações entre a psicanálise e a antropologia, duas áreas do
saber que tiveram origem no século xix, sempre foram muito estreitas. Antes
mesmo de ter fundado sua ciência do particular, Freud, em cartas enviadas
ao amigo e colega Wilhelm Fliess, já demonstrava seu profundo interesse
pela origem da cultura e dos mitos. Vejamos. Na carta de 31 de maio de 1897,
conhecida como “Rascunho N”, nos deparamos com a afirmativa de que o
incesto é antissocial e que a cultura consiste numa renúncia progressiva e

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continuada à convivência sexual entre os membros da família (Mason, 1985 | didos fundamentais. Alfred Kroeber, antropólogo americano, escreve, já em
1986: 253). Em carta de 12 de dezembro de 1897, a inusitada expressão “mitos 1920, o artigo “Totem e tabu: uma psicanálise etnológica”, em que critica du-
endopsíquicos” (: 287) é criada para designar a obscura percepção interna do ramente a tentativa de Freud de se utilizar de achados da antropologia, afir-
próprio aparelho psíquico que estimula ilusões do pensamento. Esses mitos mando que ele poderia ter escolhido autores melhores do que Frazer na área
são “projetados para o exterior e, mais caracteristicamente, para o futuro e para da antropologia nos quais se apoiar (Kroeber, 1920). Censura o psicanalista
um além” (: 287). Freud chega a aventar a criação do termo psicomitologia. também por se arriscar a adivinhações sobre o passado da humanidade, em
Na série de documentos sobre a relação entre mito e psicanálise, certa- especial sobre a origem do totemismo. Admite que não se pode saber sobre a
mente a correspondência entre Freud e Jung é uma das fontes mais preci- origem do totemismo, mas sugere que Freud poderia ao menos estudar como
sas de que dispomos para refletir sobre o tema. Encontramos, na carta de 13 ele se manifestaria na atualidade para fazer conjeturas mais abalizadas.
de agosto de 1908, uma confissão surpreendente de Freud ao colega suíço: De forma geral, existe uma crítica à falta de um trabalho de campo que jus-
“Começo a suspeitar que neurose e mito tenham uma essência comum” tificasse as conclusões do psicanalista, crítica que não leva em conta a especifi-
(McGuire, 1974 | 1993: 196). Essa foi a primeira vez em que Freud fez alusão ao cidade da metapsicologia, que tem sua pesquisa de base na clínica psicanalítica,
que mais tarde elaboraria teoricamente: fantasia e mito são construções do e não no trabalho de campo, como a antropologia. O próprio Kroeber reviu,
homem em face do real. Espécie de véu particular do sujeito, a fantasia, assim quase 20 anos depois, sua crítica a Totem e tabu, admitindo que a liberdade com
como o mito, permite ao homem avançar, pois elabora respostas possíveis que Freud criara seu mito das origens, em vez de representar uma desconside-
à inquietante estranheza diante do desconhecido. Freud estava decidido a ração com a história, refletia o fato de que seu fundamento era a experiência
convencer seus colegas do movimento psicanalítico acerca da necessidade de clínica e as descobertas a que a psicanálise pôde chegar (Kroeber, 1939).
entrar no campo da mitologia. É o que se pode deduzir de sua carta a Jung O brilhante antropólogo Bronislaw Malinowski, fundador da escola fun-
de 17 de outubro de 1909: “Folgo em saber que você compartilha minha cren- cionalista de antropologia, levantou críticas à psicanálise, sobretudo à uni-
ça de que devemos conquistar por completo o campo da mitologia. Até agora, versalidade do complexo de Édipo e a Totem e tabu, a partir de seu estudo
temos apenas dois pioneiros: Abraham e Rank” (: 276). de campo sobre os costumes familiares dos nativos das ilhas Trobriand.
Embora todos esses documentos sejam extremamente importantes para Seu argumento principal era de que o complexo de Édipo não existiria entre
iluminar a paixão de Freud pela mitologia, na verdade a tradição da metodo- os trobriandeses, cuja família seria matrilinear e a função paterna na concep-
logia interdisciplinar aplicada ao binômio psicanálise e antropologia remon- ção dos bebês, inteiramente desconhecida.
ta à escrita de Totem e tabu (1912–3), estudo que exigiu do autor, enquanto A repercussão desse texto e o debate que gerou foi proporcional à im-
pesquisador, evitar confrontos entre sua disciplina e outra já constituída, sem portância do antropólogo e a seu trabalho de campo inovador. Ernest Jones,
instalar uma falsa situação de complementariedade entre elas. Não há como psicanalista inglês e biógrafo de Freud, escreve em 1925 o artigo “Mother-
negar que seu gesto de pisar em campo estrangeiro, o da antropologia, cau- -Right and the Sexual Ignorance of Savages”, contestando a ideia de que
sou o devir de algo novo: a criação de um mito. Mito que figura, entre outras os trobriandeses efetivamente não soubessem da paternidade (Jones, 1925).
coisas, o recalque primário, a operação que nos obriga a refletir se a Lei pode Sugere que eles poderiam estar recusando um saber que lhes fosse gerador
ser pensada sem a proibição que a funda – a proibição do incesto – e o totem de angústia, como não é incomum ocorrer na clínica psicanalítica. O debate
que a simboliza, tanto hoje quanto em épocas remotas. Deve-se advertir ao prosseguiria nas décadas seguintes. Em 1982, Melford Spiro, professor e pes-
leitor de Totem e tabu que este não é um ensaio antropológico, como querem quisador americano de antropologia da Universidade de Chicago, fez uma
sustentar alguns psicanalistas. Trata-se de “um trabalho metapsicológico que revisão dos trabalhos de Malinowski sobre os trobriandeses e concluiu que os
articula um certo número de materiais clínicos e míticos e prepara o terreno dados da própria pesquisa de Malinowski apoiavam a hipótese da existência
à enunciação do princípio psicanalítico acerca do vínculo existente entre psi- do complexo de Édipo entre eles (Spiro, 1982; Roudinesco, 1988).
cologia individual e psicologia coletiva” (Rey-Flaud, 1998 | 2002: 23). Muitos autores participaram dessa intensa controvérsia, que assumiu tal
As incompreensões acerca dessa construção mítica que tanto marcou as importância, a ponto de o antropólogo e psicanalista Géza Róheim viajar à
relações com a antropologia desde os anos 1920 foram fruto de mal-enten- Austrália, por sugestão de Freud, para dedicar-se ao trabalho de campo, em

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busca de outros instrumentos, além dos puramente teóricos para defender o forma – e mesmo formas muito diversas – de intervenção. Mas, antes de
ponto de vista psicanalítico. Róheim terminou por fundar um novo campo tudo, é intervenção, ou mais exatamente ainda, é a Intervenção (: 72).
de pesquisa, a etnopsicanálise, que, inspirada na psicanálise, estuda as confi-
gurações psicopatológicas ligadas a culturas específicas e às formas de classi- Lévi-Strauss não poupou críticas ao mito de Totem e tabu, mas soube ex-
ficação das doenças psíquicas que essas culturas utilizam. trair dele seu caráter inovador no último capítulo de As estruturas elementares
As críticas ao “mito científico” freudiano, que receberam a adesão de vá- do parentesco. Em seu entender, como qualquer outro mito, o mito freudiano:
rios antropólogos, refletem certo desconhecimento da epistemologia da psi-
canálise. Uma das respostas de Freud aos etnólogos que o censuraram pelo não corresponde a nenhum conjunto de fatos que ocupem um lugar na his-
fato de se ter apoiado em teorias antropológicas ultrapassadas, compromissa- tória. Mas traduzem, talvez, na forma simbólica, um sonho ao mesmo tem-
das com o evolucionismo, na escrita de Totem e tabu, pode ser encontrada no po duradouro e antigo. O prestígio desse sonho, seu poder de modelar, sem
texto Moisés e o monoteísmo (1939). Ele comenta estar sendo violentamente que se saiba, o pensamento dos homens, provém justamente do fato dos atos
criticado por manter inalterado seu mito científico, apesar de os etnólogos por ele evocados nunca terem sido cometidos, porque a cultura sempre e em
terem rejeitado unanimemente as hipóteses de Robertson Smith sobre o to- toda a parte se opôs a isso (: 532).
temismo em que se apoiara, e diz não estar convencido do erro de Smith:
“Uma negação não é uma refutação, uma inovação não é necessariamente Entre críticas e reconhecimento, Lévi-Strauss apresenta muitas vezes
um progresso. Acima de tudo, entretanto, não sou um etnologista, e sim um Freud como uma das mais importantes influências em seu pensamento.
psicanalista. Eu tinha o direito de selecionar da literatura etnológica aquilo No celebrado Tristes trópicos, por exemplo, ele é arrolado como uma de suas
de que poderia precisar para o trabalho da análise” (Freud, 1939 | 1975: 131). “três amantes” (Dosse, 1991 | 1993: 35), ao lado de Marx e da geologia. Essa
O livro fundador do estruturalismo na antropologia, As estruturas ele- influência não se resumiu ao achado freudiano de que a universalidade do
mentares do parentesco, de Lévi-Strauss, tem como ponto de partida, tal tabu do incesto evidenciava o desejo incestuoso (afinal, não se precisa proibir
como Totem e tabu, a proibição do incesto. “Um terrível mistério”, escreve alguém de pôr a mão no fogo), algo não reconhecido pelos trabalhos antro-
Lévi-Strauss (1949 | 1976: 49). Mistério que provoca, segundo o antropólogo, pológicos da época (Westermarck, por exemplo, considerava que o incesto
estranhamento em muitos cientistas sociais, a ponto de chegarem à repug- era evitado porque a proximidade entre pessoas que vivem juntas desde a in-
nância e à timidez para enfrentar o enigma da proibição. Ora, em oposi- fância provoca uma aversão à relação sexual, o chamado efeito Westermarck).
ção a esses afetos, Lévi-Strauss apoia a audácia freudiana em Totem e tabu. O próprio conceito de inconsciente, central na psicanálise, iluminou a
Considera que a proibição é, como tal, uma regra social, mas que apresenta o démarche de Lévi-Strauss. Este conta, também em Tristes trópicos, como des-
caráter de universalidade que a marca, ao mesmo tempo, como pré-social, o cobriu em sua prática a semelhança entre o trabalho do etnólogo e o do psi-
que faz dela um elo entre natureza e cultura. canalista. Ambos trabalham com fenômenos cujo deciframento não poderia
Com essa afirmativa, Lévi-Strauss retoma o gesto freudiano, e de uma jamais ser buscado em sua realidade mais evidente. As estruturas do paren-
forma que admite formas de organização familiar diversas, o que descarta a tesco são, para ele, inconscientes.
crítica feita à psicanálise de ater-se ao modo de organização da família bur- A conhecida proposta lacaniana de um retorno a Freud, em 1951, tem na
guesa europeia do século xix com o complexo de Édipo. Sobre a proibição do antropologia estrutural de Lévi-Strauss sua grande fonte de inspiração. Abre-
incesto, o antropólogo afirma: -se uma fase de intensa colaboração entre a psicanálise e a antropologia. Para
tanto, Jacques Lacan se distancia da teoria sociológica da contração familiar,
o fato da regra, considerado de maneira inteiramente independente de suas de Émile Durkheim, que o havia influenciado até o início dos anos 1950, e
modalidades, constitui com efeito a própria essência da proibição do incesto. passa a tomar como operador-chave para pensar o inconsciente o conceito de
[...] O papel primordial da cultura está em garantir a existência do grupo simbólico, de Claude Lévi-Strauss (Zafiropoulos, 2003 | 2018: 23).
como grupo, e, portanto, em substituir, nesse domínio como em todos os A partir desse giro, Lacan propõe: “o inconsciente é estruturado como uma
outros, a organização ao acaso. A proibição do incesto constitui uma certa linguagem” (Lacan, 1956–7 | 1998: 273). Esse aforisma pode ser considerado

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um dos baluartes do pensamento lacaniano e é reconhecido como o exemplo A antropologia pós-moderna começou na década de 1980 com a publica-
princeps do “diálogo entre duas disciplinas distintas que se ocupam respectiva- ção de Writing Culture. The Poetics and Politics of Ethnography (1986), coletâ-
mente de dois temas que estão nele associados: a psicanálise, tratando do in- nea organizada pelo historiador da antropologia James Clifford e pelo antro-
consciente, e a linguística, tratando da linguagem” (Machado, 1998 | 2000: 115). pólogo George E. Marcus. Essa antropologia, que está especialmente presente
Por fim, a originalidade do diálogo de Lacan com a antropologia na re- nos Estados Unidos, nasceu a partir de uma crítica ao “realismo etnográfico”
leitura que empreendeu nos grandes textos da clínica freudiana determinou da antropologia moderna (Versiani, 2008). O chamado realismo etnográfico
a construção da teoria do Nome-do-Pai. Como Freud, o diálogo profundo é uma forma de escrita que pretende representar a realidade de todo um
com a antropologia que esse analista empreendeu permitiu a enunciação que mundo ou forma de vida, segundo George Marcus e Dick Cushman (1982).
alavancou o relançar da elaboração teórica psicanalítica. O mito freudiano Em “Sobre a autoridade etnográfica”, James Clifford relata como alguns
do pai morto, à luz da lógica estrutural de Lévi-Strauss, provê a resposta de antropólogos contemporâneos propõem uma mudança na forma de etno-
Lacan àquilo que considerou a interrogação fundamental da teoria freudiana: grafia cunhada por Malinowski em Os argonautas do Pacífico Ocidental, de
“O que é ser um pai?” (Lacan, 1956–7 | 1994: 209). 1922, que representa os preceitos da antropologia moderna. O argumento é
Markos Zafiropoulus (2003) argumenta que a transferência desse psi- que as suas bases envolvem um paradoxo. A pesquisa de campo baseada na
canalista a Lévi-Strauss lhe permitiu reconhecer que Totem e tabu, um mito observação participante e registrada no diário de campo, que é uma expe-
moderno, desloca a questão de “O que é ser um pai? para “Onde está o pai?” riência pessoal, deve, paradoxalmente, adequar-se aos critérios de um texto
Totem e tabu é o mito moderno que busca responder a isso. “Para que exis- científico por ocasião da redação final. O uso da terceira pessoa no presente,
tam pais, é preciso que o verdadeiro pai, o único pai, o pai único, esteja antes o estilo impessoal no relato do antropólogo fazem com que, na leitura, não
da entrada na História, e que seja o pai morto. Mais ainda, que seja o pai se tenha acesso à realidade das situações discursivas, ou seja, aos aspectos
assassinado” (Lacan, 1956–7 | 1994: 210). O pai originário assume a forma dialógicos, situacionais da interpretação etnográfica. A disjunção entre expe-
de um supereu tirânico, o significante que sela a relação do homem com o riência e texto, o requisito da experiência de campo e da transformação desta
significado. numa descrição da cultura como um todo estão associados à ambiguidade da
Na contemporaneidade, o diálogo da psicanálise com a antropologia tor- presença do antropólogo nos textos.
nou-se um empreendimento que sem dúvida pode ter seu percurso iluminado Encerramos este breve histórico sobre a interdisciplinaridade entre o
pela história das controvérsias e influências mútuas entre ambos os campos. campo da psicanálise e o da antropologia, chamando atenção para o interesse
Passemos, então, a desenvolvimentos mais atuais do estudo interdisciplinar de elaborações atuais por parte de psicanalistas brasileiros em um diálogo
entre antropologia e psicanálise. Um deles é a etnopsicanálise. George Deve­ com a noção de perspectivismo ameríndio introduzida pelo antropólogo,
reux, psicanalista e etnólogo de campo, associando a teoria freudiana à de Lévi- também brasileiro, Eduardo Viveiros de Castro.
-Strauss, voltou-se para o atendimento clínico de grupos como índios, nos Es- Trata-se de uma noção que sintetiza uma série de observações encontradas
tados Unidos, ou populações migrantes (Roudinesco & Plon, 1997). em etnografias ameríndias mais antigas, principalmente na obra de Lévi-Strauss.
Posteriormente, a etnopsicanálise separou-se da antropologia e, opondo- Segundo a Enciclopédia de psicanálise da Universidade de São Paulo, o perspecti-
-se a qualquer universalismo, aderiu a um culturalismo radical. Essa vertente vismo diz respeito às concepções dos ameríndios de que “os seres humanos pro-
da etnopsicanálise representada por Tobie Nathan, aluno de Devereux, in- vidos de alma reconhecem a si mesmos e aqueles a quem são aparentados como
verteu o ensino do mestre, atacando a psicanálise como ciência dos brancos humanos, mas são percebidos por outros seres na forma de animais, espíritos
do Ocidente, ponto de vista que foi criticado por Roudinesco por reforçar o ou modalidades de não humanos” (Maciel, 2019). Por outro lado, sua cosmolo-
etnicismo (Nassif, 2011). De toda forma, tal perspectiva se opõe à proposta de gia não obedece à distinção clássica entre natureza e cultura. Viveiros de Castro
um estudo interdisciplinar entre psicanálise e antropologia, uma interlocu- sugere o termo “multinaturalismo” para caracterizar o pensamento ameríndio,
ção que tem trazido muitas descobertas e produções de indiscutível peso, sem em contraste com o multiculturalismo da cosmologia moderna.
dúvida para a psicanálise, mas também para a antropologia cultural, como a O perspectivismo pode ser entendido como um mecanismo de descolo-
sua influência na obra de Lévi-Strauss atesta. nização do pensamento, de forma a operar aberturas no real que facultem

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pensar outrem, o que está para além do alcance da percepção atual, mas que passemos, então, a uma breve apresentação dos artigos que
existe virtualmente enquanto potencialidade. Assim, se o trabalho do antro- compõem este livro, obedecendo à ordem da exposição dos trabalhos du-
pólogo se limita ao uso de um aparato interpretativo prévio para estudar o rante o iv Simpósio Interdisciplinar e Internacional do Programa de Pós-
nativo, Viveiros de Castro propõe “confiscar do discurso do antropólogo sua gradua­ção em Psicanálise, Saúde e Sociedade, da Universidade Veiga de
vantagem estratégica sobre o discurso do nativo” (2002a: 9) para que outrem Almeida, ocorrido em setembro de 2020.
emerja em sua singularidade. Trata-se então de uma experiência em que os Em “O totemismo edipiano e suas encruzilhadas”, Cristhian Dunker pro-
dois discursos – o do antropólogo e o do nativo – transformam e reatualizam põe uma releitura de Totem e tabu com base no perspectivismo ameríndio,
um mundo possível. O antropólogo deve abrir mão de seu aparato interpre- um contraexemplo às formas de vida de prevalência totemista excessivamente
tativo, abstendo-se com isso de colonizar o nativo com seu discurso e vanta- presentes na psicanálise contemporânea e que representam um sério obstá-
gens de sua linguagem sofisticada. culo epistemológico à teoria e à prática dos psicanalistas. Os antropólogos
Ousaríamos dizer que não estamos muito longe de algumas das reco- Luiz Fernando Dias Duarte e Marco Julián Martínez-Moreno, em “A psica-
mendações textuais de Freud aos que exercem a psicanálise. Referimo-nos nálise na ‘antropologia da emoção”, procuram revelar a potência das luzes
aqui à sugestão freudiana de que o analista não fixe sua atenção em determi- que a psicanálise lança sobre o campo da antropologia, em especial sobre a
nado ponto ao escutar o paciente, pois dessa forma se arriscaria a nunca des- ‘antropologia das emoções’. Para tanto, tecem uma série de considerações que
cobrir algo além do que já sabe. Uma outra recomendação mais parece uma envolvem estudos em que a configuração – desconsiderada frequentemente
prescrição avant la lettre da etnografia perspectivista: “casos por demais dedi- como “individual”, “subjetiva”, “mental”, “psicológica”, residual em relação à
cados, desde o princípio, a propósitos científicos, e assim tratados, sofrem em essência da vida coletiva – se coloca mais além da concentração na morfolo-
seus resultados, enquanto os casos mais bem-sucedidos são aqueles em que gia social e/ou nos sistemas simbólicos, permitindo ao antropólogo o resgate
mais se avança, por assim dizer, sem quaisquer pressuposições” (Freud, 1912 | da emoção como um discurso endereçado ao Outro. Em “O inquietante em
1976: 114). Cabe ao psicanalista se deixar tomar pela surpresa, por qualquer Fernando Pessoa como chave de leitura de As palavras e as coisas. A literatura
reviravolta no caso clínico, ou seja, sobrepor a experiência clínica à teoria na arqueologia da psicanálise e da antropologia”, Nelson da Silva Junior loca-
psicanalítica. liza, a partir da arqueologia das ciências humanas de Michel Foucault, limites
Inspirados pelos argumentos de Viveiros de Castro no âmbito da antro- na metapsicologia freudiana como algo estrutural da episteme da moderni-
pologia, os psicanalistas Thais Klein, Julio Verztman e Fernanda Pacheco- dade. Psicanálise e antropologia, qualificadas como contraciências por Fou-
-Ferreira propõem uma homologia entre pesquisa psicanalítica e perspec- cault, por terem como objeto e metodologia o confronto com a alteridade,
tivismo ameríndio, com a finalidade de perscrutar as contribuições que essa mantêm ainda um compromisso com o discurso científico como concernido
antropologia pós-estruturalista pode trazer à psicanálise (Klein, Verztman com a realidade. O inquietante é o terreno conceitual em que a limitação da
& Pacheco-Ferreira, 2018). No campo da diagnose psicanalítica, Christian metapsicologia é tematizada, em contraste com o que chama de “inquietante
Dunker se alinha às teses de Viveiros de Castro no intuito de tecer reflexões ontológico” presente na obra de Pessoa.
sobre a distância necessária que os psicanalistas precisam tomar em face de Olivier Douville, em “Demanda de asilo, refúgio: destinos de uma posi-
qualquer perspectiva neuroticocêntrica e androcêntrica na condução da cura ção ‘traumática’ do estrangeiro”, relata com muita sensibilidade sua experi-
de seus pacientes (Dunker, 2011). ência como psicólogo clínico convocado ao atendimento em albergues para
Concluímos que uma das consequências do diálogo entre a antropologia migrantes saídos de países devastados pela guerra. O modelo mais conhecido
marcada pela filosofia e a ética dos ameríndios e a psicanálise seria a de pro- de trauma como um equilíbrio rompido pela violência e impossível de inte-
mover o retorno ao gesto de Freud de estar sempre em movimento, buscando grar não é suficiente. O trauma de estar isolado, vítima da solidão e falta de
o sujeito da psicanálise fora do já pensado, vale dizer, mostrando ser possível atenção por parte de outras pessoas, também é fundamental nesta clínica,
dissipar as significações articuladas e completas para fazer surgir diferenças. para a qual seu artigo é de grande valor. Tendo em vista a pandemia da sars-
-cov-2 e motivados pelas mortes, a angústia e a perplexidade trazidas por ela,
& Leonardo Câmara e Regina Herzog, no texto “Ferenczi e a catástrofe: ruptura

14 … p s ican álise & an t rop o lo g ia : en fo qu e s i n terdi s c i p l i na re s apresentação … 15


dos limites”, contribuem com um rigoroso estudo sobre a noção de catástrofe mentação, expressão e gestos fala também em silêncio, empregando regras que
em Ferenczi e seus antecedentes epistemológicos. Em acréscimo, enfatizam o são sociais e inconscientes, como as da língua. Apoiando-se em antropólogos
ar e a respiração como elementos centrais que, ameaçados pela emergência como Marcel Mauss e filósofos como Michel Foucault, ela comenta destinos
do vírus, irradiam uma rede de fraturas e colapsos em diferentes aspectos do corpo em diferentes situações sociais, tais como o nazismo e a sociedade de
da realidade. O ensaio “Fala boa, língua ruim: função e campo do geral e do consumo.
extraordinário”, de Paulo Sérgio de Souza Jr., pretende ser uma reflexão sobre Esperamos que, em conjunto, a leitura destes dez textos contribua para re-
os limites da alteridade, a partir da ideia de que a língua é o que marca não novar os enfoques da interdisciplinaridade própria à psicanálise e à antropologia.
somente as fronteiras entre os povos, mas também entre as pessoas em suas
mais diversas segregações dentro de um mesmo povo. O texto se desdobra
num questionamento acurado acerca da necessidade do analista de ter de
se haver com uma teoria importada – a psicanálise –, que não é qualquer Referências bibliográficas
uma, levando em conta o fato de ser edificada justamente sobre uma prática
linguística. Em “Corpos que escutam: xamãs, psicanalistas e seus corpos reto-
basualdo, Carina
mados pela antropologia contemporânea”, o antropólogo João Felipe G. M. S.
(2013) “Uma nova versão do mito da horda parricida: As estruturas elementares do parentesco,
Domiciano convoca o leitor a questionar as dimensões da corporeidade pre- de Claude Lévi-Strauss”. In: fuks, Betty B.; basualdo, Carina & braunstein, Néstor
sentes na configuração dos campos de tratamento homólogos constituídos A. (org.) 100 anos de Totem e tabu. Rio de Janeiro: Contra Capa.
pelas práticas do xamã e do psicanalista. Nessa travessia, somos contempla-
caldeira, Teresa Pires do Rio
dos com uma bela exposição acerca da visão de mundo do perspectivismo (1988) “A presença do autor e a pós-modernidade em antropologia”, Novos Estudos Cebrap, n. 21,
ameríndio em relação ao xamã – designado como tradutor, aquele cuja ca- São Paulo, julho, p. 133–57.
pacidade de cruzar devires traduz formas de vida inassimiláveis –, dotada de
clifford, James
elementos importantes para dialogar com a visada lacaniana sobre o corpo (1983) “Sobre a autoridade etnográfica”. In: A experiência etnográfica: antropologia e literatura
do analista e o devir da eficácia clínica de seu ato. no século xx. Organização e revisão técnica de José Reginaldo Santos Gonçalves. Rio de
“Atualidade da virtualidade”, de Ricardo Goldenberg, apresenta as refle- Janeiro: Editora ufrj, 1998, p. 17–63.
xões de um psicanalista que se vê, em razão da pandemia, subitamente privado
dosse, François
de seu consultório, do setting habitual, e levado a atender seus pacientes (1991) História do estruturalismo, vol. 1: O campo do signo, 1945–1966. Campinas/São Paulo:
de forma apenas virtual. Será psicanálise o que ocorre nos encontros virtuais? Editora da Unicamp/Ensaio, 1993.
Goldenberg lembra a recomendação de Freud de que nada pode ser atingido in
dunker, Christian Ingo Lenz
effigie, com que ele se refere à transferência como fator fundamental na eficácia (2011) “Mal-estar, sofrimento e sintoma: releitura da diagnóstica lacaniana a partir do perspec-
de uma psicanálise. O cansaço é discutido como efeito da mudança para o am- tivismo animista”, Tempo Social, vol. 23, n. 1, São Paulo, p. 115–36.
biente virtual, assim como vários acidentes nele surgidos, como congelamen-
freud, Sigmund
to de imagem e queda da rede, com efeitos no tratamento, mergulhando-nos (1912) “Consejos al médico sobre el tratamiento psicoanalítico”. In: Obras completas, vol. xii.
numa situação de perplexidade. O artigo “Psicanálise, antropologia e suas inter- Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1976, p. 107–20.
locuções”, de Gloria Sadala e José Maurício Loures, tem como objetivo discutir (1912–3) Totem and Taboo: Some Points of Agreement between the Mental Lives of Savages and
algumas questões postas pela psicanálise à antropologia, e vice-versa, dentro do Neurotics. In: The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud,
vol. xiii, London: The Hogarth Press, 1975, p. 1–162.
espírito dos legados freudiano e lacaniano de compromisso com a interdisci- (1939) “Moses and Monotheism: Three Essays”. In: The Standard Edition of the Complete
plinaridade como uma possibilidade de manter viva a infinita emergência de Psychological Works of Sigmund Freud, vol. xxiii. Op. cit., p. 3–137.
um não dito na teoria. Por fim, em “O corpo obrigatório: estética, consumo e
gusmão, Neusa Maria Mendes de
regulação social”, Joana Novaes enfatiza a dimensão social e dialógica do corpo, (2008) “Antropologia, Estudos Culturais e Educação: desafios da modernidade”, Pro-Posições
mostrando que a linguagem não se reduz ao que se fala; o corpo em sua movi- [online], vol. 19, n. 3, Campinas, set.–dez., p. 47–82.

16 … p sican álise & an t rop o l o g ia : en fo qu e s i n terdi s c i p l i na re s apresentação … 17


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christian ingo lenz dunker

O totemismo edipiano e suas encruzilhadas

muito se tem questionado a psicanálise em função da hipótese


do complexo de Édipo. Por meio dela teríamos trazido para a clínica psicana-
lítica uma espécie de confirmação do patriarcalismo, do antrocentrismo, do
familiarismo, do falocentrismo e da sobreposição entre sexo e gênero. Todos
estes elementos estão na cúspide da crítica social contemporânea e nas rein-
vindicações transformativas mais importantes de nossa época. Da concepção
monovalente de família emergiria também uma série de consequências para
as noções de classe e raça, que seriam, por assim dizer, imunizadas pela expe-
riência psicanalítica.

Não se deve esquecer que a descoberta do Édipo foi contemporânea da or-


ganização jurídica da perda do poder paterno (na França, através das leis
de 1889 e 1898). No momento em que Freud descobria qual era o desejo
de Dora, e permitia-lhe manifestar-se, havia quem se armasse para desatar,
em outras camadas sociais, todas essas proximidades condenáveis (Foucault,
1976 | 1985: 122).

A julgar por trabalhos recentes de Van Haute, Geyskens e Westerink, que


demostraram a inexistência conceitual do complexo de Édipo no interior do
caso Dora (Van Haute & Geyskens, 2012), bem como seu estatuto completa-
mente alusivo na primeira edição, reconstruída, de Três ensaios para uma teo-
ria da sexualidade, Foucault está factualmente equivocado (Van Haute & Wes-
terink, 2020). A descoberta do complexo de Édipo é muito mais tardia do que
os sonhos de morte das pessoas queridas, examinados em A interpretação dos

21
sonhos, à luz da tragédia de Sófocles. Lembremos que neste caso “a paixão por uma teoria política do contrato como forma fundamental de individuali-
um e o ódio pelo outro dos pais” (Freud, 1900 | 2019: 301) é algo que caracte- zação na história da modernidade, uma descrição psicológica do desenvol-
riza a experiência infantil dos futuros psiconeuróticos, e não de todas as pes- vimento infantil como interiorização progressiva de regras e uma hipótese
soas. O fato de nos reconhecermos em uma tragédia do destino, como a lenda antropológica sobre as formas elementares das trocas sociais.
de Édipo, nos comove, porque “poderia ser o nosso” (: 303). Ademais, se a Lembremos que o mesmo Foucault afirmara que a psicanálise e a etno-
tragédia de Édipo tem suas raízes no mesmo solo que Hamlet, de Shakespeare, logia ocupavam um lugar privilegiado entre as ciências humanas, não só por
isso não significa que o desejo de morte em relação ao pai seja universal, e sua proximidade positiva com conceitos e experiências, mas pelo “velho pro-
sim que ele é uma referência para entender a retomada ou o retorno deste em jeto de se tornarem científicas” (Foucault, 1966 | 1990: 518) e pela “função
certas situações específicas: crítica” que elas teriam, mantendo aberta a distância entre representação e
finitude, impedindo a unificação perfeita entre significação, conflito e fun-
Na obra de Georg Brandes Shakespeare (1896) encontro a informação de ção. Esta “mitologia freudiana” é o caminho pelo qual se mantém o desejo
que o drama foi escrito imediatamente após a morte do pai de Shakespeare como impensado no coração do pensamento, o enigma da origem da signi-
(1601), ou seja, em pleno luto por ele e, como podemos supor, no reaviva- ficação e a versão empírico-transcendental da morte como finitude, ou seja,
mento dos sentimentos de infância referentes ao pai. Sabemos que também o se mantém uma inconclusão ou intermitência do que significa ser humano.
filho de Shakespeare, falecido precocemente, se chamava Hamnet (idêntico “Por isso nada é mais estranho à psicanálise que alguma coisa como uma teo-
a Hamlet) (: 307). ria geral do homem ou uma antropologia” (: 521).
Como entender que no espaço psicanalítico da dissolução antropológi-
Ao que tudo indica, a observação de Foucault deve ser tomada no con- ca tenha se erguido a consistência prescritiva de um mito como o de Édipo?
texto da antropologia requerida ou suposta pela psicanálise. É neste plano Mito tomado como naturalização, sanção e perseverança de relação de classe, gê-
que podemos entender a disjunção entre dispositivo de aliança e dispositivo nero e raça. Mito que é também lenda, romance, tragédia e teoria sexual infantil.
de sexualidade, que é o cerne da crítica para a coligação de um conjunto de Mito individual que é também hipótese antropológica e discurso sobre o pai.
personagens sociais em uma mesma narrativa:
Mas por que o herói da tragédia tem de sofrer, e o que significa sua culpa
Aparecem, então, estas personagens novas: a mulher nervosa, a esposa frígi- “trágica”? [...] Ele tem de sofrer porque é o pai primevo, o herói daquela
da, a mãe indiferente ou assediada por obsessões homicidas, o marido impo- grande tragédia dos tempos primeiros, agora repetida tendenciosamente, e
tente, sádico, perverso, a moça histérica ou neurastênica, a criança precoce a culpa trágica é aquela que ele tem de tomar sobre si, a fim de livrar o coro
e já esgotada, o jovem homossexual que recusa o casamento ou menospreza de sua culpa (Freud, 1912–3 | 2012: 237).
sua própria mulher (Foucault, 1976 | 1985: 104).
A unificação de diferentes gêneros narrativos, a conjunção de expressões
Em um trabalho anterior tentei mostrar como as objeções à centrali­ de linguagem historicamente distintas, a articulação convergente de concei-
dade e soberania do complexo de Édipo poderiam ser reduzidas à crítica do tografias variáveis, a crer nas inúmeras leituras do Édipo em psicanálise, em
neuroticocentrismo da psicopatologia psicanalítica, muito menos comum e um único discurso, é parte do mito do mito de Édipo.
infrequente (Dunker, 2014). Para tanto, argumentei que o modelo de forma- Em parte, isso pode ser atribuído à gradual subordinação das outras nar-
ção de sintomas, gradualmente na história da psicanálise, começou a se es- rativas de sofrimento que habitam a psicanálise desde seu início ao discurso
tabilizar em torno da teoria de que o conflito psíquico possui uma estrutura do pacto e de sua reformulação simbolizante. Por exemplo, a narrativa da in-
genérica, derivada da narrativa da violação de um pacto. O desejo e a teoria trusão traumática de um objeto, dotado de valência sexual precoce, permane-
da defesa, pensada a partir da negação da lei e em contraposição aos inte- ceu oculta e incorporada ao mito fundador da psicanálise como posição a ser
resses do eu, demandarão uma espécie de confirmação de sua regularidade. abandonada para que a verdadeira psicanálise surgisse. Apesar das tentativas
E esta confirmação pode advir de três fontes mais ou menos convergentes: de Ferenczi e Laplanche em torno da importância do objeto intrusivo e da

22 … p s ican álise & an t rop o lo g ia : en fo qu e s i n terdi s c i p l i na re s o totemismo edipiano e suas encruzilhadas … 23


sedução primária, a narrativa do trauma permaneceu periférica em relação Concluindo esta pesquisa extremamente abreviada, seu resultado seria que
ao verdadeiro freudismo. A narrativa da alienação narcísica do desejo, pre- no complexo de Édipo reúnem-se os começos da religião, moralidade, so-
sente nos primeiros trabalhos de Lacan, assim como a dissolução das unida- ciedade e arte, em plena concordância com a verificação psicanalítica de
des simbólicas do espírito, conforme uma certa leitura da noção de pulsão de que esse complexo forma o núcleo de todas as neuroses, até onde elas foram
morte ou de acordo com as variedades de enodamentos entre Real, Simbólico acessíveis ao nosso entendimento (: 238).
e Imaginário, que se consagram ao final de seu ensino, não são suficientes
para esclarecer ou derrogar o primado do Édipo. Mas o próprio texto fornece elementos para questionar não exatamente a
Continuando com Foucault. Em sua leitura específica sobre Édipo, ele primazia do complexo de Édipo, mas sua sustentação perfeita no totemismo.
ressalta que o drama do personagem é a sobreposição demasiada entre saber Lembremos que o totemismo é um operador antropológico importante para
e poder, associada pela razão judicialista. pensar sistemas simbólicos baseados em trocas sociais, mas ele convive com
outros operadores estruturais igualmente importantes, como o animismo e
[...] o que deve desaparecer para que esta sociedade exista é a união do poder o naturalismo. Nem toda a lógica das trocas é totemista, pois existem trocas
e do saber. A partir deste momento o homem do poder será o homem da ig- baseadas em sacrifícios, e estas não estão todas submetidas à lógica totemista,
norância. Finalmente, o que aconteceu com Édipo foi que, por saber demais, como argumentou Freud. Além disso, nem todo canibalismo compreende
nada sabia. A partir deste momento Édipo vai funcionar como homem do a aquisição acumulativa de traços do objeto, como Freud pensa, em acordo
poder, cego, que não sabia e não sabia porque podia demais. [...] Assim para com a antropologia de sua época. Como consequência, nem toda teoria da
além de um poder que se tornou monumentalmente cego como Édipo, há identificação em psicanálise precisa ser de tipo totemista, o que abre um
os pastores, que se lembram e os adivinhos que dizem a verdade. O Ocidente caminho de pesquisa que temos explorado com a introdução do perspectivis-
vai ser dominado pelo grande mito de que a verdade nunca pertence ao po- mo ameríndio em psicanálise.
der político, de que o poder político é cego, que o verdadeiro saber é o que se Desde a objeção de Jung ao sistema freudiano, que contava com a objeção
possui quando se está em contato com os deuses. [...] Esse é o grande mito levantada pelo antropólogo Bahofen em torno de sociedades matriarcais, até
que precisa ser liquidado (Foucault, 1973 | 2013: 50–1). a crítica de Malinowski de que nem sempre a interdição do incesto se dá entre
filho e mãe, ou entre pai e filha, fatos antropológicos são levantados contra
Ou seja, nada de errado com o pequeno mito de Édipo, o problema é o universalismo de Édipo. A polêmica que atravessou a famosa compilação
quando ele se faz versão do grande mito de exílio da verdade, na qual a exclu- de Kroeber, que foi reelaborada por Lévi-Strauss, leitor de Freud, e retomada
são entre saber e poder se resolve exclusivamente pela gramática do pacto e por Lacan, leitor de Lévi-Strauss, equivoca-se ao introduzir o Édipo como
do contrato, e por suas simbolizações reformulativas: equivalente do totemismo, elevando este último à condição de universal em
função da lei do incesto como marco da oposição cultura versus natureza.
O sistema totêmico foi, digamos, um contrato com o pai, em que este con- A questão aqui é se a hipótese, na verdade narrativizada por Darwin1 e com-
cedia tudo o que a fantasia da criança podia dele esperar, proteção, cuidado,
indulgência, em troca do compromisso de honrar sua vida, ou seja, não repetir
contra ele o ato que havia destruído o pai real (Freud, 1912–3 | 2012: 220–1). 1 “[...] a concepção mais provável é de que o homem primevo originalmente viveu em
pequenas comunidades, cada um com tantas esposas quantas podia obter e sustentar, que
Mas se Édipo não era a narrativa de sofrimento dominante, nem a pri- ele ciumentamente guardaria dos outros homens. Ou pode ter vivido sozinho com várias
meira nem a última a ser descrita por Freud, de onde ele extraiu sua força? esposas, como o gorila; pois todos os nativos concordam que apenas um macho adulto é
A resposta talvez nos envie ao grande esforço demonstrativo mobilizado por enxergado num bando; quando o macho jovem cresce, há uma disputa pelo domínio, e
o mais forte, matando ou expulsando os outros, estabelece-se como líder da comunidade”
Freud para pleitear a universalidade do Édipo em sua monumental obra an-
(Darwin apud Freud, 1912–3 | 2012: 193–4). E sua versão por Freud “[...] não há lugar,
tropológica, de 1912–3, chamada Totem e tabu. Ora, neste trabalho vemos o na horda primeva de Darwin, para o início do totemismo. Um pai violento e ciumento,
sistema totemista explicar uma série desconcertante de fatos conexos: que reserva todas as fêmeas para si e expulsa os filhos quando crescem, eis o que ali se

24 … p sican álise & an t rop o l o g ia : en fo qu e s i n terdi s c i p l i na re s o totemismo edipiano e suas encruzilhadas … 25


pletada por Atkinson, quanto à generalização da relação sexual intragrupo, é definindo assim uma continuidade de tipo sociomórfico entre natureza e
uma hipótese ou uma conjectura universal. cultura, fundada na ‘atribuição de disposições humanas e características
Temos aqui uma discussão intrincada em torno do que se deve entender sociais aos seres naturais’ [...]; e o naturalismo, típico das cosmologias oci-
por universal. Uma estrutura é universal sem que ao mesmo tempo compre- dentais que supõe uma dualidade ontológica entre natureza, domínio da
enda todos os casos e se identifique com a totalidade. Uma estrutura, como necessidade, e cultura, domínio da espontaneidade, regiões separadas por
argumentará Lacan, é feita de suas exceções, e mais, a soma das exceções uma descontinuidade metonímica (Viveiros de Castro, 2002: 361–2).
negativas e positivas não pode reestabelecer o universal como totalidade.
No caso da antropologia isso se ilustra pelo fato de que a oposição cultura Percebe-se aqui uma atualização antropológica das categorias foucaultia-
versus natureza não é a única compreendida pela teoria estrutural das trocas nas; conflito e desejo (totemismo), morte e função (naturalismo), norma e
sociais – aliás, é por isso que o estruturalismo tem que dividir seu espaço com significação (animismo). Segundo a definição freudiana, o animismo é um
as chamadas teorias do agenciamento (ou do ato) e com as teorias institucio- sistema de pensamento onipotente (Freud, 1912–3 | 2012: 136) que confunde
nalistas da sociedade. Cultura e natureza se compõem e se contrapõem com a vínculos reais com ideais (: 126), do pensar e do viver (: 137), ou uma visão de
relação entre indivíduo e coletivo, na compreensão da realidade social. mundo (: 124) segundo a qual ele é habitado por espíritos (que lhe conferem
Mas esta diferença não é reconhecida por Freud quando ele caracteri- uma significação), que interferem normativamente sobre causas, e que não
za o animismo como um tipo de pensamento mágico, causal e egocentrado, apenas animais e pessoas são animadas, mas também coisas.
típico dos povos primitivos das crianças e dos psicóticos, subordinando-o Pouco se observou que a comparação freudiana entre a mentalidade pri-
ao totemismo: mitiva e os neuróticos concentra-se em um tipo específico de neurose, a saber,
a neurose obsessiva, tipo clínico marcado pela ambivalência (: 60), pela des-
Então a fase animista corresponde, tanto cronologicamente como em termos confiança (: 86), pela repetição do proibido (: 88), além de incidência maior
de conteúdo, ao narcisismo; a fase religiosa, ao estágio de eleição de objeto, ca- em homens.2 Mas observemos como a neurose obsessiva é sincronizada com
racterizado pela ligação aos pais; e a fase científica tem sua plena contrapartida a ideia de morte sem luto: a projeção da hostilidade dos mortos sobre os vi-
no estado maduro do indivíduo que renunciou ao princípio do prazer e busca vos (: 102), o retorno vingativo do morto, os tabus de tocar e nomear o morto,
seu objeto no mundo exterior, adequando-se à realidade (: 142). identificação entre julgamento e ato (: 108), consciensiosidade (: 112), autopu-
nição (: 114). “Somente os neuróticos ainda turvam o luto pela perda de um
Ora, esta subordinação, que hierarquiza formas sociais e tipos de pensa- ente querido com autorrecriminações obsessivas” (: 110). Apesar de o único
mento, tendo no topo a ciência naturalista, depois o totemismo e finalmente caso discutido ter sido o de uma mulher, que manda jogar fora as navalhas do
o animismo, não se sustenta como herdeira óbvia e inesperada do comtismo marido, que haviam sido afiadas em uma loja ao lado de uma casa funerária
spenceriano no autor de Totem e tabu. (: 150), a neurose obsessiva é uma afecção típica em homens. Não seria isso
um motivo pelo qual a narrativa originária do mito tenha como protagonis-
[...] totemismo, onde as diferenças entre as espécies naturais são utilizadas tas apenas os homens em luta pela posse das mulheres? Ou deveríamos levar
para organizar logicamente a ordem interna à sociedade, isto é, onde a re- mais a sério a ilação freudiana de que:
lação entre natureza e cultura é de tipo metafórico e marcada pela descon-
tinuidade intra- e inter-serial; o animismo, onde ‘as categorias elementares A derradeira fonte do totemismo seria, então, a incerteza dos selvagens
da vida social’ organizam as relações entre os humanos e as espécies naturais, quanto ao processo pelo qual homens e animais se reproduzem. Em especial,
a ignorância do papel dos machos na fecundação. [...] Por isso o totemismo

acha. Esse estado primevo da sociedade não foi observado em nenhuma parte. O que vemos
como organização primitiva, que ainda hoje vigora em determinadas tribos, são bandos
de machos, compostos de membros com direitos iguais e sujeitos às restrições do sistema 2 “designar tais pessoas como ‘doentes obsessivos’, acharia apropriado o nome de ‘doença
totêmico, inclusive a herança por linha materna” (: 216, primeiro grifo adicionado). do tabu” (Freud, 1912–3 | 2012: 53; cf. também 54–6).

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é uma criação do espírito feminino, não do masculino. Suas raízes estão nos rismo acumulativo de traços por identificação ao pai-homem, e representa o
caprichos [...] da mulher grávida. [...] [Tais fantasias maternas, tão naturais maior obstáculo epistemológico da psicanálise contemporânea.
e, ao que tudo indica, tão universais, parecem ser a raiz do totemismo] (: 182).
Os nomes com que designam o parentesco não consideram o laço entre dois
Disso decorre que o canibalismo, que faz ingerir traços do pai morto pela indivíduos, mas entre um indivíduo e um grupo; pertencem, na expressão de
conjuração dos filhos, seja a base de um tipo de identificação positiva, assi- L. H. Morgan, ao “sistema classificatório”. Isto significa que um homem chama
milacionista, pela qual ingerir é acrescentar traços ao eu e não transformar o de “pai” não apenas seu genitor, mas qualquer outro homem que, conforme os
eu em outro, subtraindo-lhe positividade. estatutos da tribo, poderia ter desposado sua mãe e se tornado seu pai (: 26).
Disso decorre que exista uma sobreposição entre o gênero do pai com
a masculinidade da identificação que a ele se dirige. Todo pai é um homem, Observe-se, com Freud, que os dois tabus decorrentes do totem, o de in-
o que parece subsidiar, indevidamente, a eleição de famílias heterossexuais terdição sexual e o de não matar o totem, tem origens distintas, e que bastaria
como modelo universal. pensar que um é de natureza animista e outro propriamente totemista para
Disso decorre também que o mito que organiza a transmissão do saber substituir “qualquer outro homem” por qualquer outro ser vivo, animal ou
seja identificado com os personagens que executam seu rito. Aqui importa humano, homem ou mulher. É apenas do ponto de vista totemista que todo
a diferença entre o totemismo como organizador do sistema de parentes- pai é um homem e toda mãe é uma mulher. Do ponto de vista animista, por
co, como saber sobre a filiação, e o sacrifício, como organizador do sistema mais que isso possa gerar estranheza (Unheimliche), a distinção entre anima-
de aliança e poder. Freud parece ter percebido isso ao falar recorrentemente do (vida) e inanimado (morte), próximo e distante, familiar e estrangeiro, e
sobre as duas versões do pai: como um deus e como um animal. Mas ele oculto e revelado não é linear e opositiva, mas de “continuidade sociomórfica”.
não percebe que isso deveria fazê-lo questionar a sua teoria da identificação, Aliás, em acordo com a ambiguidade e a intradutibilidade do termo poliné-
considerando não apenas a existência de moções contrárias de amor e ódio sio tabu, ao mesmo tempo “santo”, “consagrado” e “inquietante”, “perigoso”,
em uma única identificação (ambivalência), como também a possibilidade “proibido” e “impuro” (: 48).
teórica de dois tipos de identificação concorrentes e irredutíveis entre si: Há ainda um motivo metodológico para que Freud não tenha percebido
totemista e animista. que o primado do totemismo estava longe de ser universal: suas fontes etno-
Disso decorre que a teoria da identificação em psicanálise presuma a gráficas. Notadamente, nos três primeiros ensaios, Freud é farto no uso de
identidade e não a diferença como regra de composição. Identificar-se não exemplos de culturas e povos ditos “primitivos”, mas há uma regularidade
precisa ser o equivalente de assimilar traços do outro ou erigir traços no eu. marcante nesta extensa seleção de fatos: eles se referem a povos da Ásia, da
Acompanhando o texto de Freud, existe uma perspectiva alternativa de África, da América do Norte, da Europa e da Oceania.3 Nada sobre os habi-
leitura que inverteria a soberania totemista. Para tanto, bastaria desassociar tantes da América do Sul. Em todo o livro há apenas duas alusões ao povo
a identificação entre animismo e narcisismo, bem como perceber que os ar- ameríndio Guaicuru (: 95), que habita o Paraguai. Ora, a nova antropologia
gumentos de Freud sobre o horror ao incesto, baseados na hereditariedade e pós-estruturalista ganhou forte impulso justamente ao trazer à luz a mitolo-
na punição associadas com o totem, e também o sistema classificatório de- gia e os sistemas de parentesco destes indígenas, entre eles os brasileiros.
corrente da exogamia, são extraídos de um grande contexto que engloba e faz
convergir as concepções totemistas, animistas e naturalistas, a saber, o luto.
É o dispositivo de luto como modelo de simbolização por incorporação cani- 3 Novas Hébridas, Nova Caledônia, península Gazelle, Novo Mecklenburg, battas de Su-
bal, como negação narcísica da finitude, como resolução coletiva do parricí- matra, barongos, gallas, celebes, massais e akambas da África Oriental, zulus da África do
dio, como comemoração festiva ao modo do banquete e como identificação Sul, basogas da África do Norte, ilhas Banks, dayaks de Timor, dakotas, natschez, choctaw,
com o pai morto que comanda todo o argumento freudiano. apaches, ouataouaks da América do Norte, logea, toaripi, monumbos da Nova Guiné,
maoris da Nova Zelândia, mikados e ainos do Japão, Polinésia e Melanésia, shuswaps da
Disso resulta que é o modelo de luto que subjaz aos argumentos de Totem
Colúmbia Britânica, palawans das Filipinas, aruntas e intchiumas da Austrália, zunis e
e tabu de ponta a ponta, baseado na finitude, no patriarcado e no proprieta- Hopis do Novo México.

28 … p sican álise & an t rop o l o g ia : en fo qu e s i n terdi s c i p l i na re s o totemismo edipiano e suas encruzilhadas … 29


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(2012) Psicanálise sem Édipo? Uma antropologia clínica da histeria em Freud e Lacan. Belo Hori- a psicanálise e a antropologia sociocultural entretiveram
zonte: Autêntica, 2016. um intenso diálogo desde os primeiros anos do século xx, quando ambas se
van haute, Philippe & westerink, Herman
encontravam em um estado incipiente, atravessadas por ambições, dúvidas e
(2020) Reading Freud’s Three Essays on the Theory of Sexuality: From Pleasure to the Object. impasses difíceis de equacionar.
London: Routledge. Já em trabalhos anteriores, um de nós tratou de mapear esse longo e aci-
dentado trajeto, coalhado de equívocos e más interpretações, mas também
viveiros de castro, Eduardo.
(2002) “Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena”. In: A inconstância da alma de algumas iluminações, em ambas as direções (cf. Duarte, 1989, 2013, 2017) –
selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. seguindo-se, evidentemente, a muitos outros autores (cf. Moscovici, 1961;
Berger, 1965; Figueira, 1978; Pulman, 1991; Lo Bianco, 1998).
Neste trabalho, resumiremos um capítulo específico dessa história, o que
respeita ao campo de uma ‘antropologia da emoção’, tanto em sentido lato
quanto estrito – do ponto de vista da presença aí de alguma psicanálise.
Afinal de contas, a disposição de compreensão dos fenômenos humanos
dificilmente poderia não estar envolvida com a compreensão dessa área de de-
safiadora delimitação dos “sentimentos”, “afetos”, “sensibilidades”, “sensações”,
“transportes”, “afetações”, “perturbações” – “emoções”. Uma boa parte da lite-
ratura pertinente tenta deslindar essa complexa categorização, que remete a
diferentes ênfases e classificações da experiência humana na cultura ocidental
moderna. Mas, em muitas tradições, um distanciamento dessa temática por
parte da antropologia realmente ocorreu, dada a concentração na morfologia
social, por um lado, ou nos sistemas simbólicos/cosmologia, por outro.
O que se chamará aqui de ‘antropologia da emoção’ são todas as outras
tradições em que essa configuração – desconsiderada frequentemente como

30 … p s ican álise & an t rop o lo g ia : en fo qu e s i n terdi s c i p l i na re s 31


“individual”, “subjetiva”, “mental”, “psicológica”; residual em relação à essên- Um traço importante, que irmana os dois saberes, é o do desenvolvimento
cia da vida coletiva – foi levada a sério, das mais variadas maneiras. de tradições “nacionais”, ou seja, afinadas com o ethos cultural prevalecente
Encontram-se nesse caso a obra pioneira de Bronislaw Malinowski, um em determinados contextos sociais e históricos em que se desenvolvem. Vai-se
dos pais fundadores da antropologia moderna, e a tradição estadunidense que mencionar aqui ao menos uma dessas interessantes afinidades entre ênfa-
decorreu da influência original do etnólogo Franz Boas, outro dos pais funda- ses reflexivas compartilhadas – no mínimo como hipóteses levantadas pela
dores (o que inclui a Escola de Cultura e Personalidade, em suas sucessivas ge- literatura.
rações), acrescida das do psicólogo George Herbert Mead, do filósofo Ludwig
Wittgenstein e do sociólogo de formação fenomenológica Alfred Schütz. &
Avultam também aí Clifford Geertz e seus discípulos estadunidenses – depois
considerados criadores de um dos “pós-modernismos” do final do século xx.
Dois outros prestigiosos ramos contiveram ‘antropologias da emoção’. provavelmente a questão mais básica desta reflexão é a do
O primeiro é o da etnopsiquiatria (chamada de etnopsicanálise em alguns de que se está comparando ao colocar na mesma tábua a psicanálise e a ‘antro-
seus desenvolvimentos – cf. Laplantine, 1973), iniciada a partir do trabalho pologia da emoção’. Afinal, não parece acertado dizer que a psicanálise con-
de discípulos de Freud, como o pioneiro Géza Róheim. Trata-se de um de- ceda um estatuto cognitivo genérico às “emoções”. Embora lide diretamente
senvolvimento de longo curso, em que avultam personagens como Georges com as múltiplas manifestações afetivas humanas na prática terapêutica e
Devereux (discípulo de Róheim), Weston La Barre e Tobie Nathan (discípulo sobre elas (ou a partir delas – ou de sua ausência) se baseie para o desenvolvi-
de Devereux). A orientação de trabalho oscilou aí entre a comparação de mento de suas análises e modelizações, seu interesse interpretativo se radica
dados sobre o psiquismo entre as culturas (incluindo, às vezes, etnografia na dinâmica intrapsíquica subjacente às expressões dos sentimentos e em
original) e a preocupação com a busca de soluções terapêuticas interculturais. suas implicações para a relação terapêutica.
Finalmente, cabe mencionar o amplo e variado continente da ‘antropo- Por outro lado, o tratamento antropológico do tema se enfrenta com
logia médica’, um desenvolvimento bastante característico da antropologia desafios estruturantes, largamente enfrentados na literatura. O que é que se
estadunidense, a cavaleiro entre os saberes biomédicos e psicológicos, por um observa a esse respeito na prática antropológica? A manifestação corpórea ou
lado, e a antropologia, por outro (cf. por exemplo, Kleinman & Good, 1985). comportamental de estados mentais invisíveis? Aquilo que seus portadores
Variações como a da ‘antropologia da saúde e da doença’, bem desenvolvida dizem que sentem ou experimentam (o chamado emotion talk)? Algo de ine-
no Brasil, também contribuíram para a pesquisa sobre as emoções, incor- fável ou intransmissível na experiência íntima de uma emoção? Uma experi-
porando eventualmente referências aos modelos psicanalíticos (cf. Alves & ência interior prévia à sua manifestação corporal ou apenas a manifestação
Rabelo, 1998). em si? Algum tipo possível de classificação generalizada ou universal desse
Pode-se considerar assim que a convivência entre os dois continentes de tipo de fenômeno humano?
saberes seguiu diversas vias. Excetuando-se as correntes totalmente estan-
ques, hostis às psicanálises, pode-se distinguir um movimento de utilização &
instrumental de certos aspectos ou categorias da psicanálise (trauma, com-
plexo, inconsciente, pulsão, transferência etc.) e um movimento de utiliza-
ção estrutural da visão de mundo da psicanálise na própria trama da prática em algumas leituras das topografias da mente de freud pos-
antropológica (cf. Devereux, 1967; Obeyesekere, 1981; Kracke, 2002; Pradelles tula-se a divisão preeminente entre uma entidade consciente, o “ego” (uni-
de La Tour, 2004 etc.). Nas últimas décadas, correntes neorromânticas, que dade que pode corresponder à noção antropológica de “indivíduo” – sensu
visam aprofundar a luta contra o etnocentrismo, com ênfase na denúncia da Louis Dumont –, consciente e racionalmente orientada), e o “inconsciente”,
polarização entre pensamento e emoção, e na afirmação da preeminência da local dos símbolos e processos que determinariam as “motivações profundas”
ação sobre a cognição, parecem se aproximar de algumas posições presentes da pessoa. De um modo geral, a noção de pessoa presente no desenvolvimento
no continente da psicanálise, embora nunca o tematizem. do núcleo específico da ‘antropologia das emoções’ (sobretudo a partir da

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antropologia cultural estadunidense) corresponde ao privilégio da primeira lhe faz perder a capacidade de discernimento. A crítica recentemente formula-
entidade, de maneira similar à forma como o desenvolvimento da psicanálise da ao campo da antropologia das emoções implicou o acolhimento dos aspec-
nos Estados Unidos privilegiou uma “psicologia do ego”, tendo como foco o tos “latentes” do discurso, com suas implicações teóricas e metodológicas deri-
discurso manifesto ou processo secundário. vadas da sociologia inaugurada por Durkheim, para registrar e analisar aquela
Apesar da crítica efetuada por Boas (1911) ao modelo evolucionista uni- dimensão das motivações profundas da pessoa e do “não-consciente”.
linear da “etnologia psicanalítica” que evocava Totem e tabu (Freud, 1912–3) –
que considerava uma moda passageira na antropologia –, Freud teve uma &
grande repercussão na vida intelectual norte-americana. Vários dos alunos
do etnólogo alemão encontraram na psicanálise uma maneira de dar res-
posta aos “problemas psicológicos em antropologia”, dado o interesse em para organizar de maneira mais sistemática a maneira como
documentar etnograficamente o funcionamento de processos psicodinâmi- os dois saberes interagiram do ponto de vista da antropologia, arrolamos, a
cos pessoais em relação a estruturas da mente culturalmente diferenciadas partir de agora, os principais pontos que são considerados por alguma lite-
(Groark, 2019). Como Duarte expressou em outra publicação, a ambivalência ratura como presenças da psicanálise, como inovação ou reforço, para toda a
da penetração de certos aspectos das propostas freudianas no campo ameri- antropologia – e, portanto, também para uma ‘antropologia da emoção’.
cano reforçou postulados e estratégias de uma escola de pensamento preocu- 1. A “universalidade e identidade da natureza e do espírito humano” é
pada com a reprodução de formas coletivas de “comportamento humano” e um dos pontos elencados pelo sociólogo/antropólogo Roger Bastide (1948)
teve repercussão na luta contra o evolucionismo, o eugenismo, o racismo, em sua resenha dos benefícios heurísticos da psicanálise. Esse princípio foi
e todas as formas de “universalismo” a priori (Duarte, 1989). sobretudo importante nos tempos heroicos dos dois saberes, contra os par-
Dado o interesse na socialização e nas transações interpessoais como fa- ticularismos de toda ordem, incluídas aí as ideologias degeneracionista, eu-
tores primários na conformação da personalidade, a emoção, nessa vertente, genista e racista da primeira metade do século xx (cf. Russo, 1998; Duarte,
seria a representação e – de certo modo – a racionalização de uma “força” ou 2000). Na psicanálise, plasmou-se numa concepção universalista do aparelho
“pulsão” (de difícil registro no campo e análise etnográfica). A emoção é vista psíquico contra as variadas fórmulas da medicina e da psiquiatria coetâneas,
como uma categoria que vincula as pessoas e dá o tom à relação social; ela se- tingidas pelo fisicalismo e pelas ideologias a ele associadas. Na antropologia,
ria assim apreensível empiricamente pelas categorias do discurso. Na divisão afirmou-se em luta acirrada contra os diferentes evolucionismos (que tam-
entre meaning e feeling / significado e sensação (segundo Leavitt, 1996), por bém incluíam o degeneracionismo e o eugenismo, ali pelo fim do século xix;
exemplo, o campo da antropologia das emoções privilegiou originalmente o além das resistentes teorias poligenistas).
meaning e, em certo sentido, a consciência do interlocutor que o antropólo- 2. O “método holístico”, ou seja, a ênfase na preeminência da totalidade.
go lograria capturar. Como a emoção, enquanto objeto, não é em princípio Uma aproximação é feita por Bastide entre esse enfoque e os métodos de Karl
sentida pelo etnógrafo, este último termina reproduzindo a relação sujeito- Marx e de Marcel Mauss. A preeminência do todo sobre as partes vinha se
-objeto ou observador-observado, que pode ser criticada como uma atualiza- afirmando desde meados do século xix, por influência do pensamento e da
ção de um dualismo que “desumaniza” o interlocutor no campo etnográfico. ciência romântica (incluindo a Naturphilosophie germânica) sobre a tradição
Muitos antropólogos formularam uma reflexão crítica do conhecimento característica da ciência iluminista do privilégio da parte sobre o todo – e da
antropológico que se busca quando o etnógrafo tenta compreender “a partir de separação metodológica essencial entre sujeito e objeto. O método holístico
dentro” aquela força (cf. Turner, 1967; Kapferer, 1979; Crapanzano, 1980; Favret- sublinha não apenas a preeminência da relação entre os elementos num
-Saada, 1990; Obeyesekere, 1990; Desjarlais, 1992; Robben, 1996; Leavitt, 1996; conjunto (como fez Claude Bernard com sua nova e influente concepção do
Allard, 2013; Hage, 2009; Berthomé & Houseman, 2010). A questão não é aí a conceito de organismo), mas também a inevitável imbricação entre o sujeito
separação, mas a fusão e a participação entre os interlocutores – e como o an- e o objeto da observação – tema que se desenvolveu mais rapidamente
tropólogo termina acolhendo essa força, que muitas vezes obscurece, produz na psicanálise do que na antropologia (apesar das comuns influências
resistências à compreensão do outro, ou fascina de tal forma o etnógrafo que românticas) – cf. Duarte (2013).

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3. A “continuidade entre o normal e o patológico” – é Bastide ainda quem mica decorram os agenciamentos da existência. Lévi-Strauss foi quem mais
evoca a influência comum, para tanto, do organicismo vitalista de Claude se aproximou de tal concepção, ao elaborar sua noção de “estrutura”, tendo
Bernard sobre Émile Durkheim e sobre Sigmund Freud. A temática foi objeto inclusive feito o elogio da concepção freudiana do que ele chamou de um
da análise esclarecedora de Georges Canguilhem sobre o “normal e o patoló- “inconsciente vazio” de significados, aproximável de seu próprio conceito
gico”, ela própria comprometida com uma apreensão vitalista dos fenômenos (cf. Lévi-Strauss, 1949). Pode-se ressaltar, nesse sentido, que o elogio se fa-
da saúde e da doença (Canguilhem, 1966). Essa continuidade se contrapõe zia acompanhar da crítica ao “inconsciente” de C. Jung – “cheio”. Há, porém,
à atitude mecanicista de mensuração da passagem graduada entre os dois uma corrente da antropologia que acompanha as propostas de Jung, conhe­
estados (à la Broussais), permitindo que se considerem as relações entre os cida como “antropologia do imaginário” (em torno de G. Durand, 1960).
entes e seus ambientes, para poder proceder a uma avaliação da possível per- 6. A “relação observador/observado” como constitutiva da realidade psí-
turbação negativa da “normalidade”. Embora o tema se apresente de modo quica. Este ponto também aparece no relatório de Holter de 1978, e já vinha
mais imediato para a psicanálise, ele se reflete na antropologia médica e na sendo aprofundado particularmente por G. Devereux, que o desenvolveu da
antropologia das emoções; além de inspirar uma precaução metódica com maneira mais sistemática encontrável na antropologia moderna (Devereux,
qualquer “patologização” de fenômenos sociais. 1967). Como já foi mencionado, é um tema inseparável do “método holístico”
4. A “preeminência do sentido” – Bastide segue, neste caso, nos seus pró- de extração romântica, na medida em que realça o modo como sujeito e obje-
prios termos, a leitura do filósofo Paul Ricoeur sobre o efeito de sentido to constituem uma unidade de significação, movendo-se de forma articulada,
da psicanálise como uma “interpretação”, uma hermenêutica produtora de constituinte e entranhada. Alguma homologia entre a relação psicanalista/
acrescida compreensão de si e do mundo. Trata-se de mais uma manifesta- analisando e a relação antropólogo/interlocutor veio sendo explorada por
ção do comum enraizamento romântico dos dois saberes, no sentido da afir- diversos autores, sendo provavelmente o mais explícito Crapanzano, em sua
mação da preeminência do “espírito” (Geist) sobre a materialidade imediata. análise da relação com um xamã marroquino (Crapanzano, 1980).
Por oposição à hegemonia da fisicalidade característica da ciência iluminista, 7. A “transferência” e a “contratransferência” são uma parte fundamen-
enfatiza-se aqui a dependência da “realidade” das condições do complexo tal do aprofundamento por Devereux da “relação observador/observado”,
processo de sensação, percepção, imaginação e juízo que precede a sua de- no sentido de formalizarem o jogo de emoções entranhadas circulantes
terminação. O tema é às vezes contraposto à ênfase na mediação pela cor- entre os participantes da díade, das quais o observador não tem controle e
poralidade e sua potência, tanto na psicanálise como na antropologia (mais que, no entanto, guiam todas as possibilidades de mútua compreensão (ou
recente), tendo, nesta última, assumido sua forma mais elaborada no estru- equivocação) durante o processo de pesquisa. Sublinha-se aí, obviamente, a
turalismo. De maneira mais pedestre, adverte para o risco de tratar os termos inarredável carga afetiva inscrita na relação entre pesquisador e interlocutor.
do discurso ao pé da letra, e não hermeneuticamente. Espera-se que a consciência de estar sujeito a tais circunstâncias propicie
5. O “inconsciente”, tema que aparece com frequência nos debates an- ao antropólogo alguma forma de apercepção do processo, tal como propõe
tropológicos, carrega as ambiguidades inevitáveis relativamente a um “não- a psicanálise para seu processo terapêutico.
-consciente”, por exemplo (cf. Holter, 1978). Essa chave-de-abóbada da cons- 8. O jogo de “sedução”, que Devereux considerava estar na raiz do proces-
trução da psicanálise ronda a antropologia imprecisamente. De um modo so da transferência e contratransferência. A noção de sedução designaria uma
geral, o princípio da não-literalidade das manifestações empíricas da vida experiência fundamental, posto que ocorrente em várias esferas, dando conta
social pressupõe a existência de uma realidade subjacente, que não se oferece da vivência da regra da troca, como diálogo na relação não só linguística e
à consciência dos sujeitos. O modelo linguístico da oposição entre langue societária, mas afetiva. Este ponto foi desenvolvido explicitamente também
e parole (formulado por F. de Saussure) expressa de maneira exemplar essa por Crapanzano (1994), Robben (1996) e por um de nós (Martínez-Moreno,
percepção, influenciando a maior parte da antropologia da segunda metade no prelo).
do século xx. Por outro lado, esse reconhecimento generalizado da existência 9. A “ansiedade” como motor da pesquisa nas “ciências do comportamento”,
de uma não-consciência como parte da vida simbólica humana não impõe que decorre da separação originária entre observador e observado, em um
o reconhecimento de uma instância dotada de lógica própria, de cuja dinâ- contexto em que uma participação é ao mesmo tempo desejada e temida, é

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outro foco da análise de Devereux. Indica que nosso corpo não é o limite da de um ponto de vista mais específico da ‘ antropologia da
observação, prolongando-se no corpo do outro, assim como o sujeito obser- emoção’, esta revisão da influência da psicanálise sobre a antropologia deve se
vado nos adentra. É uma dimensão crescentemente presente na antropologia iniciar pelo pioneiro Bronislaw Malinowski (1922, 1926, 1932), que constituía
contemporânea, em torno da teoria da “afetação” (cf. Favret-Saada, 1990) e o modelo do “trabalho de campo” da antropologia moderna, ao mesmo tem-
da ênfase na corporalidade (graças a uma grande influência atual da fenome- po que inaugurava investimentos sobre a sexualidade. Este aspecto da obra de
nologia pós-heideggeriana). Constitui um foco importante de tematização Malinowski não deixava de ter a ver com seu contato direto com a parte então
das “emoções” sob a forma das “afecções”, embora não se conecte com as disponível da obra de Freud (sugerida por seu mentor Charles G. Seligman) e
versões mais tradicionais de uma ‘antropologia da emoção’. com sua juvenil e intensa frequentação da Viena fin-de-siècle, onde despontavam
10. O “realismo psíquico”, que, para Devereux, obvia a crença numa base tantos investimentos reflexivos sobre essa temática (cf. Schorske, 1980; Strenski,
naturalista e fisicalista, exigindo de todo pesquisador uma severa vigilância 1982; Stocking Jr., 1986; Gay, 1988; Pulman, 1991), e não apenas os de Freud.
contra os reducionismos. Com efeito, tanto a psicanálise como as ciências O trato das “emoções” por Malinowski fazia referência a uma dimensão
sociais tiveram que afirmar a realidade “sui generis” de seus campos de ação a inefável da vida, cuja expressão, racionalização, representação ou simboli-
partir do final do século xix. Freud foi um pioneiro mais isolado nessa tarefa. zação daria conta da variabilidade da vida individual e social sob o império
Nas ciências sociais, as contribuições fluíram de diversos autores, comple- da cultura. As categorias emocionais podem ser consideradas aí similares à
mentando-se nessa direção – ainda que discordando em outras. Durkheim noção de “pulsão”, uma manifestação de “energia psíquica” para satisfazer ne-
foi provavelmente o mais explícito sobre a novidade científica dos “fatos so- cessidades, que nutre o comportamento, comportando não só o “amor” na
ciais”, mas o mesmo princípio pode ser retraçado nas obras antecedentes ou “vida sexual do selvagem”, mas formas de organização social tão peculiares –
coetâneas de E. B. Tylor, de G. Simmel, de W. Wundt ou de F. Boas – parti- aos nossos olhos – como a relação mediada pelo “medo” às bruxas voadoras
cularmente em relação a conceitos como “cultura” ou “ethos”. Um “realismo” trobriandesas. Tais categorias seriam o resultado dessa manifestação de ener-
sociocultural. gia psíquica e é o que permitiria, entre outras coisas, a constituição e manu-
11. A “elaboração simbólica da terapêutica” como iluminadora do vínculo tenção do vínculo social. Essa representação, indissociável da de “repressão”, é
etnográfico desenvolvido entre pesquisador e interlocutor foi sublinhada por bem característica da antiga “teoria hidráulica” das emoções, frequentemente
Crapanzano em sua intensa etnografia, centrada em uma interlocução com tida como reavivada por Freud.
um xamã marroquino (Crapanzano, 1994), e por Martínez-Moreno a propó- Apesar da presença freudiana precoce e eventual em autores como os
sito da violência intergênero (no prelo). Trata-se de uma ênfase mais concen- antropólogos de formação médica Charles G. Seligman e William H. Rivers,
trada em uma propriedade dos temas da “transferência”/“contratransferência” Malinowski pode ser considerado o primeiro antropólogo que dialogou di-
e da “sedução”, de modo a acentuar a responsabilidade do antropólogo na retamente com Freud, sendo o exemplo mais conspícuo sua busca de adapta-
atenção e na reflexão sobre as condições em que se desenvolve a relação com ção do “complexo de Édipo” ao contexto etnográfico matrilinear trobriandês.
os personagens do campo. Ele seria sucedido por outros antropólogos que dialogaram diretamente com
12. É ainda muito importante a referência ao tema da “atenção flutuante” a psicanálise, como Alfred Kroeber e os expoentes da Escola de Cultura e
desenvolvido na psicanálise – e sua capacidade de afinar a atenção do an- Personalidade. Recentemente, proponentes de uma antropologia psicanalíti-
tropólogo para os imponderáveis (a que se referia Malinowski) da vida em ca tendem a assumir a universalidade nas funções do complexo de Édipo no
campo, tornando a abertura não direcionada ao discurso de outrem um desenvolvimento humano, embora reconhecendo variabilidade cultural na
princípio metodológico de primeira linha. Isso inclui o registro sem contro- forma como os desejos incestuosos e as hostilidades são vividas pela criança
les e censuras no “caderno de campo” e a atenção aos processos mentais não e se manifestam na vida social (Obeyesekere, 1990; Moore, 2007).
intencionais (lapsos, sonhos, associações livres etc.). A valorização/relativização da diferença que iniciou o programa antro-
pológico proposto por Boas e Malinowski permitiu compreender como as
& estruturas sociais, as instituições e as práticas de socialização particulares in-
teragiam no desenvolvimento das crianças para produzir personalidades cul-

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turalmente diferenciadas com um perfil psicodinâmico característico. Este sua atenção na compilação de um vocabulário da emoção, a fim de entender
enfoque permitiu a Margareth Mead (1928) e a Ruth Benedict (1946) afirmar eventos nos quais surgem sentimentos, experiências e motivações individuais.
que as experiências comuns dentro de um determinado meio cultural engen- Também para compreender a variabilidade psicológica dos processos de
dram um conjunto de características de personalidade amplamente comparti- transmissão da cultura em contextos marcados por processos de colonização.
lhadas. A caracterização dessa “personalidade básica” permitiu compreender o A partir de observações e entrevistas com taitianos, Levy considera a emoção
sistema de valores que fundamenta a ética dos japoneses retratados por Bene- parte dos processos culturais de estruturação do conhecimento. Sendo uma
dict em O crisântemo e a espada. Também, retratar samoanos que, para Mead, subcategoria de feeling (sensação/sensibilidade), a emoção estaria mais pró-
cresciam “sem neurose”, em um ambiente no qual as mulheres tinham um de- xima da materialidade do corpo e da “consciência” que o indivíduo tem de
senvolvimento sexual sem as conotações morais da sociedade norte-americana, si, e que emerge como um discurso sobre o self e sobre a identidade nas re-
cuja “repressão” não permitia a liberdade que experimentavam as insulares. lações sociais. Comparando a linguagem sobre a emoção dos taitianos com a
Essa autora, que na época já se posicionava como feminista, é importante para ocidental, Levy caracterizou doutrinas sobre a “raiva”, em que várias palavras
começar a apreciar uma outra diferença, a do sexo, a qual constituiria persona- eram nomeadas para fazer referência a estados de irritabilidade em relação a
lidades diferenciadas que – não no divã, mas no campo – começam a reforçar uma gama ampla de relações. Esta emoção era “hiperconhecida”, isto é, provia
uma atitude política a propósito do questionamento das desigualdades. grande número de esquemas culturalmente fornecidos para interpretar e lidar
Conhecida é a parceria intelectual entre Mead e Gregory Bateson. Seria com essa emoção. E cada cultura teria suas próprias doutrinas sobre a emoção,
difícil conceber a noção de ethos deste último sem a valorização da diferença as quais permitiriam qualificar a pessoa e seu modo de estabelecer relações.
de sexo e, claro, sem o enquadramento dos “sistemas de parentesco”. A cultura Geertz se perguntou como as “paixões” no contexto da sociedade balinesa
aparece como uma rede imbricada, em que cada sexo opera um ethos específico seriam culturalmente configuradas e como elas contribuiriam para a manuten-
contrastante, fornecendo papéis na formação da pessoa Iatmul, no Naven, de ção de uma ordem regida pela serenidade de inspiração divina, que emana do
Bateson (1936). Ethos, enquanto um sistema culturalmente organizado dos rei para garantir a unidade do Estado balinês. Em Negara (1980), o autor ar-
instintos e emoções dos indivíduos, que dá conta da “tonalidade”, se diferen- gumentou que a imagem da realeza balinesa fornece, em si mesma, parte do
cia de “eidos”, como a normalização dos aspectos intelectuais no compor- poder do Estado, de onde extraiu sua “força”, suas “energias imaginativas” e sua
tamento dos indivíduos, aspecto mais facilmente apreensível pela pesquisa capacidade semiótica de fazer da desigualdade um “encanto”. Assim, a política
antropológica. Nos seus termos: “ethos, definido como a expressão de um sis- não seria tanto um jogo imutável de paixões naturais em que as instituições de
tema de organização culturalmente padronizado dos instintos e das emoções dominação são dispositivos de exploração. Para Geertz, as paixões são tão cultu-
dos indivíduos” (Bateson, 1936 | 2006: 169). A ideia batesoniana de double rais quanto os artifícios e mantêm relação com hierarquias, registros sensoriais,
bind (duplo vínculo – efeito de disrupção psicológica devido a orientações redes simbólicas e performances teatrais. Com uma abordagem das paixões sem
contraditórias na ontogenia) leva em conta o dinamismo da produção das sujeito ou indivíduo concreto, Geertz lembra a sociologia francesa e a influência
relações e o efeito de retorno intrínseco à cismogênese garante capacidade de weberiana em sua “teia de significados”. O autor assim interpreta a cultura, em
mudança aos sistemas culturais – sempre em relação à modelização das emo- que a representação do “sensorial” vira um elemento chave para compreender
ções em um ethos. Embora tivesse certamente notícia da psicanálise, por sua o “sentido” das ações visíveis (como o ritual). Alguns elementos fornecidos por
relação com Malinowski, Mead e Benedict, só usou de outras teorias psicoló- Freud para a interpretação, a hermenêutica, e a noção de que a emoção é amál-
gicas na monografia do Naven (como a caracterologia de Ernst Kretschmer). gama e se intensifica nas massas e nas instituições permitiram pensar como a
Inspiradas pela obra de Bateson, a antropologia psicológica centrada na pompa do ritual serve ao poder no ritual Negara balinês (Geertz, 1980).
primeira pessoa de Robert Levy (1973; 1984) e a antropologia interpretativa Desse modo, apesar dos caminhos diferentes, os dois autores deram o
de Clifford Geertz (1973) vieram a se perguntar como abordar a emoção e o tom da “antropologia psicológica”, que veio a ser desenvolvida por Michelle
lugar do indivíduo e da cultura no processo de coesão social. Rosaldo entre os Ilongot nas Filipinas (1980) e por Catherine Lutz entre os
Psiquiatra de formação, Levy se concentrou na relação entre os processos Ifaluk do Pacífico (1988). Ambas as autoras, consideradas as fundadoras do
mentais e o estudo comparativo transcultural das emoções, para o qual focou campo da ‘antropologia das emoções’, deram ênfase à pessoa e ao self como

40 … p s ican álise & an t rop o lo g ia : en fo qu e s i n terdi s c i p l i na re s a psicanálise na ‘ antropologia da emoção ’ … 41


loci para o entendimento do efeito dos sistemas simbólicos e outros aspec- a elaboração antropológica acerca do sofrimento, a violência e as vicissitudes
tos da cultura na ação social. Por trás da produção de Rosaldo, destaca-se a que enfrentam os interlocutores de campo. E a relação entre mal-estar e cultura
influência da fenomenologia e o uso da categoria self, acessível graças ao ma- parece ser um “discurso latente”, que serve de base para uma ação política de
peamento das categorias emocionais, combinadas às práticas performativas reivindicação de direitos humanos por parte dos antropólogos.
e experienciais, que seriam importantes para a formação de um emotional Dois autores que não foram antropólogos – e muito menos antropólogos
idiom, inseparável da experiência corporal, da sua sensação. Para Rosaldo, a da emoção –, mas cujas obras são seminais para todo o nosso campo, teriam
cultura faz diferença porque diz respeito não apenas ao que pensamos, mas merecido menção, já que se utilizaram de importantes referências à psicaná-
ao que sentimos sobre o pensar e o viver nossas vidas (Rosaldo, 1984). A cul- lise, estimuladoras de continuada atenção a suas propostas. Referimo-nos a
tura fornece imagens em termos das quais as pessoas inconscientemente co- Norbert Elias e a Michel Foucault, em reapropriações muito diferentes (aliás,
nectam ideias e ações, bem como horizontes de possibilidade e de sentido diferentes até entre o jovem Elias e o Elias maduro), que não só trabalharam
que são protagonistas na aquisição de um senso de self. Os afetos não são com fenômenos que envolvem “emoções” de maneira crítica (autocontrole,
menos culturais e não são mais privados do que as crenças. violência, loucura, sexualidade, individualidade, risco, auto-observação,
Colocando menos ênfase na sensação e no registro corporal, Lutz argumen- desejo etc.), como propuseram modelos históricos para sua compreensão
tava que a teoria antropológica da pessoa deveria tomar conta do papel organi- dentro da cultura ocidental moderna (cf. Elias, 1939; Elias & Dunning, 1985;
zador das emoções no comportamento, no pensamento e nos sistemas de signi- Foucault, 1975 e 1976, sobretudo).
ficados. Contra uma “psicologia da emoção” na antropologia das emoções, os Embora Gilles Deleuze e Félix Guattari gozem de redobrada popularidade
discursos sobre a emoção e o domínio da emoção ou dos discursos emocionais na antropologia contemporânea, não nos parece que a devam à crítica à psi-
(aqueles que têm uma carga afetiva e que são “efetivos”) são abordados como for- canálise de O anti-Édipo (1975), mas a outros desenvolvimentos posteriores,
mas da linguagem e práticas que constroem diferenças categoriais naturalizadas inspiradores de uma renovação dos motivos românticos do fluxo/processo,
na vida social. Assim, Lutz (1988) e Abu-Lughod (1986) criticam a classificação da recusa da oposição entre sujeito e objeto e entre corpo e alma. O que os
da emoção como sendo relativa ao reino da natureza, da irracionalidade, da in- qualifica – afinal de contas – como companheiros de viagem dos impulsos
terioridade, da universalidade das categorias (as emoções como coisas comuns a originários da obra freudiana.
todos os seres humanos) e do feminino. A aproximação discursiva e contextual
está atenta à emoção como “atos pragmáticos” e “performances comunicativas”, &
que colocam em disputa múltiplos sentidos e significados (que entram em ten-
são e dão dinamismo ao conflito social) das categorias emocionais e afetivas, e
que constroem idiomas, gramáticas e linguagens emocionais que servem como nossa aposta neste texto é na possibilidade de uma continuada
mediadores simbólicos para comunicar outras coisas além da emoção em si. interfertilização, como a que se celebrou no seminário interdisciplinar em
Muitos outros desenvolvimentos vêm contribuindo para a ‘antropologia que foi inicialmente apresentado. Tanto a psicanálise como a antropologia se
da emoção’, mas a ressonância da psicanálise freudiana é cada vez mais tênue complexificaram enormemente desde o começo do século xx, configurando
(como já foi na obra de Rosaldo) ou simplesmente não tem espaço (como nas campos em conflito e debates disciplinares e especificações teóricas cada vez
obras de Lutz e Abu-Lughod). Agora, é a presença de Jacques Lacan a que pauta mais esotéricas para os não iniciados. A tarefa dos “diálogos possíveis” se tor-
boa parte da produção na antropologia psicanalítica (Moore, 2007; Fortis, 2018), na assim crescentemente árdua, uma vez que dificilmente pode alguém do-
e uma renovada discussão acerca dos processos de subjetivação na ‘antropologia minar o essencial dos dois campos para poder colocá-los em interação fértil.
médica crítica’. Trabalhos como os de Biehl, Good e Kleinman (2007), Smith e Mas também podemos apostar em fertilizações tópicas, como muitas das que
Kleinman (2010) e Veena Das (2011), entre outros, enfocam o trabalho etnográ- foram aqui evocadas. Os equívocos também podem, às vezes, redundar em
fico no registro de práticas cotidianas que dão forma a agências e engajamentos efeitos heurísticos inesperados.
que surgem como efeitos das relações de poder, vinculadas aos registros do pa- O que é mais importante é que persista uma disposição de não esquecer
rentesco, do Estado e do capitalismo. Uma “ética do desejo” serve de prisma para nosso parentesco originário e duradouro – como bem sublinhou Foucault

42 … p s ican álise & an t rop o lo g ia : en fo qu e s i n terdi s c i p l i na re s a psicanálise na ‘ antropologia da emoção ’ … 43


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(2010) “Emotional Engagements: Acknowledgement, Advocacy, and Direct Action”. In: davies, logia conceitual exclusivamente freudiana, mas, na medida em que é uma
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ceitual da própria cultura na modernidade. Creio ter demonstrado ali que
stocking jr., George W. esta ambiguidade com a literatura é reflexo da presença da palavra sofística
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Psychoanalysis”. In: stocking jr., George W. (ed.). Malinowski, Rivers, Benedict and
others: Essays on Culture and Personality. Wisconsin: The University of Wisconsin Press.
mático, na metapsicologia. Buscarei aqui localizar mais claramente a obra
freudiana nesse período ou, mais precisamente, naquilo que Foucault definiu
strenski, Ivan como a episteme da modernidade.
(1982) “Malinowski: Second Positivism, Second Romanticism”, Man New Series, vol. 17, n. 4,
Para tanto, gostaria de introduzir este trabalho com algo que, em geral,
London, December, p. 266–71.
chama pouco a atenção, a saber, o fato de que, para a primeira frase daquele
turner, Victor que é seu livro talvez mais ambicioso, As palavras e as coisas, Foucault es-
(1967) La selva de los símbolos: aspectos del ritual ndembu. México d. f.: Siglo xxi Editores, 1980. colhe uma declaração aparentemente anódina: “Este livro tem seu lugar de
nascimento em um texto de Borges” (Foucault, 1966 | 1984: 7). Afirmação
surpreendente para um livro cujo subtítulo explicita a ousadia de sua aposta:
uma arqueologia das ciências humanas. E, ainda que o capítulo final desse

48 … p s ican álise & an t rop o lo g ia : en fo qu e s i n terdi s c i p l i na re s 49


livro tenha como título “Psicanálise e etnologia”, estas duas contraciências, tal Em sua evocação da remota e antiga China, o trecho de Borges remete
como Foucault as adjetiva, são colocadas ali sob os auspícios da linguística à configuração do estrangeiro pela antropologia, ao confronto com formas
e da literatura como dois exercícios do discurso soberanos da modernidade. de pensamento e disposições da realidade para nós incompreensíveis, como
Assim, ainda que não receba oficialmente nenhum capítulo a ela dedicado, é é o caso desta incongruente classificação dos animais. Mas a pergunta ines-
a literatura que abre e fecha o livro. Como entender esse privilégio ambíguo capável nesse caso é se nossa própria classificação seria menos absurda do
que Foucault dá à literatura na arqueologia das ciências humanas? Creio que que a desta enciclopédia exótica. Pois, conforme afirma o narrador do conto,
é uma das modalidades do confronto com o estranho, particularmente aque- “sabidamente não há classificação do universo que não seja arbitrária e con-
la da experiência do inquietante que chamarei de ontológico, que pode nos jectural” (: 124). As classificações ocidentais, tão evidentemente ancoradas
esclarecer sobre essa questão. e em uníssono com a realidade, não estão excluídas dessa possibilidade.
Pois é na literatura que encontramos uma modalidade do inquietante E, antes mesmo da psicanálise, talvez seja a antropologia que, através do en-
que, por assim dizer, assombra as ciências humanas no breve período em contro com o estrangeiro e suas estranhas classificações, tenha sido exposta
que ainda se pensavam como ciências, e que acreditavam pensar o humano. à perda do lugar comum, à fragilização do solo categorial onde a realidade
Estou me referindo aqui à psicanálise de Freud e a uma escola presente na cotidiana se apoia. Mas esse problema não está restrito a essas ciências; a pró-
constituição da antropologia, mais precisamente, a de Malinowski. Ou seja, pria arqueologia das ciências humanas, que constitui o projeto deste livro de
o breve período entre o nascimento da antropologia e a dissolução definitiva Foucault, depende da premissa do conto de Borges: a sucessão das três episte-
pelo estruturalismo do humano como objeto destas ciências. Ora, essa disso- mes analisadas no livro, Renascimento, Iluminismo, Modernidade, supõe que
lução aparece e é antecipada como ameaça interior em cada uma dessas duas a evidência natural de nossas classificações é corroída por esta história de
ciências. Segundo minha hipótese, no caso da psicanálise freudiana, trata-se transformações. O conjunto de tais classificações naturais da história cultural
de uma ameaça de absorção da psicanálise pela literatura. do Ocidente é, a seu modo, uma outra enciclopédia chinesa. Eis o que permi-
Mas uma observação deve ser feita aqui. Não se trata de qualquer lite- te a literatura ter a função de abrir e de concluir esse livro. Sobre a estrutura
ratura que interessa a Foucault, apenas aquela que nasce no século xix jun- da enciclopédia, Foucault comenta que:
to com a própria modernidade, isto é, a literatura que questiona o humano.
É particularmente como uma prática desconstrutiva da linguagem, prática O absurdo [da classificação] arruína o “e” da enumeração condenando à im-
indissociável da psicanálise e da etnologia, que a literatura pontua a conclu- possibilidade o “em” onde se dividiriam as coisas enumeradas. Borges não
são de As palavras e as coisas. A escolha de sua abertura com Borges não se dá, acrescenta nenhuma figura ao atlas do impossível; não faz brotar em lugar
portanto, ao acaso. No exercício dessa dissolução do homem, nessa anátomo- algum o relâmpago do encontro poético; ele apenas desvia a mais discreta
-patologia do humano, Borges é um dos cirurgiões mais precisos. Retome- e a mais insistente das necessidades; ele subtrai a localização, o solo mudo
mos brevemente o texto de Borges citado por Foucault, pois ele localiza o que onde os seres podem se justapor (Foucault, 1966 | 1984: 9).
precisamente será atingido nessa desconstrução do humano:
Na literatura do século xix e início do século xx, essa subtração do mun-
Em suas remotas páginas [de certa enciclopédia chinesa intitulada “Empó- do familiar é objeto de uma exploração intensa. De modo geral, as experiên-
rio celestial de conhecimentos benévolos”] está escrito que os animais se cias do inquietante se dão ali em três dimensões, mas elas raramente ocorrem
dividem em [14 categorias]: a) pertencentes ao Imperador, b) embalsama- de modo separado: as experiências na dimensão da temporalidade, em que
dos, c) amestrados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cachorros soltos, o passado se presentifica e se torna contemporâneo ao presente, como nas
h) incluídos nesta classificação, i) que se agitam feito loucos, j) inumerá- repetições aparentemente implacáveis do destino dos antepassados naquele
veis, k) desenhados com um pincel finíssimo de pelo de camelo, l) et cetera, dos descendentes; as experiências na dimensão da espacialidade, em que o
m) que acabaram de quebrar o jarrão, n) que de longe parecem moscas longínquo e o próximo se encontram ou em que o espaço não funciona mais
(Borges, 1952 | 2007: 124). como um solo permanente, mexendo-se quando menos se espera, como, por
exemplo, no tema dos portais e dos quartos que desaparecem; e as experi-

50 … p sican álise & an t rop o l o g ia : en fo qu e s i n terdi s c i p l i na re s o inquietante em fernando pessoa como chave de leitura … 51
ências da alteridade, em que o Eu e o Outro se interseccionam e as diferen- há também uma outra dimensão, que podemos localizar no campo ontológi-
ças entre eles são perturbadas, como no caso do conto “William Wilson”, de co, a saber, a revelação da ausência do próprio solo de realidade, tal como na
Edgar Allan Poe, e também, de um modo específico, em Fernando Pessoa, classificação da enciclopédia chinesa. Essa segunda dimensão, que denomino
como veremos adiante. aqui de inquietante ontológico, encontra-se enigmaticamente ausente da teo-
Mas a perda desse solo pressupõe sua propriedade, ou a ilusão desta. ria freudiana do inquietante, apesar de estar claramente presente na literatu-
É fato que nem sempre essa perda se mostra definitiva, como no caso da enci- ra desde o início do século xix até o século xx. Como podemos entender essa
clopédia chinesa. Isso pode ser observado em alguns acidentes entre o sujeito ausência significativa da ausência de todos os significados?
e seu outro, suscitados por um método essencial na antropologia, inventado Retornemos a esta literatura da perda do solo comum da realidade, em
por Malinowski: aquele da observação participante. Trago aqui um exemplo particular à obra de Fernando Pessoa. De fato, Borges, Kafka, Musil, Baude-
desses acidentes no domínio da sociologia, que mostra bem um fenômeno laire, Rilke e muitos outros participam de um momento da literatura que
que se coloca para fora do campo do inquietante, mas não do solo que lhe dá toma as relações da palavra consigo própria como um ato de primeira ordem
origem. Loïc Wacquant, sociólogo com vários trabalhos com Pierre Bourdieu num mundo sem certezas. Cada um destes autores afirma a seu modo a inde-
e professor da Universidade da Califórnia, visando estudar as relações sociais pendência ou a primazia da palavra em relação ao referente. Mas, para a obra
no gueto negro da cultura norte-americana, inscreveu-se numa academia de pessoana e sua estrutura heteronímica, o referente central é o sujeito, e será
boxe (Wacquant, 2002). Os treinamentos físicos eram então apenas uma con- sua existência que a palavra sistematicamente dissolverá. Gregor Samsa acor-
dição de acesso a um contexto social especialmente fechado. Entretanto, após da no corpo de um inseto, mas não perde nem seu nome, nem sua identidade.
três anos de convívio e treinamento, o dilema entre aderir a uma carreira pro- Sua metamorfose respeita a fronteira do sujeito, quando o mundo inteiro vem
fissional nos ringues e a vida universitária estava formado. Somente a proibi- abaixo: corpo, família, espaço e tempo. Os heterônimos, por sua vez, compar-
ção expressa de seu treinador o impediu de abandonar o cargo de professor. tilham um espaço comum, sem rupturas com o nosso espaço vivido. Onde se
A metodologia da observação participante exige do pesquisador um tipo de localiza o inquietante da heteronímia, se é que há algum? Não se trata, nes-
experiência que vai além de uma mera observação prolongada em campo. se inquietante, de uma experiência de multiplicação das subjetividades, em
Trata-se de comungar um destino, isto é, de deixar um tipo de vida e unir-se que cada heterônimo abriria uma nova perspectiva, um novo ponto de vista.
a um outro, o que significa necessariamente um risco existencial. Ainda assim, há uma experiência de corrosão da realidade como um todo, em
Mas, no que diz respeito à psicanálise, esta prática igualmente arriscada que todos os pontos de vista parecem suspensos sobre um abismo. Veja-se,
de confronto com o estranho exige uma operação mais radical do que a ob- mais precisamente, em que esta experiência consiste: Fernando Pessoa, ao fa-
servação participante: a operação de subtração suplementar do próprio solo lar da realidade de Caeiro, Reis e Campos, de certa forma abre este insondável
comum de realidade. Tal subtração coincide com aquela feita pelas experiên- abismo sob os pés do sujeito: “Que essas três individualidades sejam mais ou
cias literárias a que se refere Foucault em As palavras e as coisas, ainda que a menos reais que Fernando Pessoa – o problema é metafísico; ele, afastado que
teoria freudiana nem sempre acompanhe essa exigência. Em Freud, uma das está do segredo dos deuses, e não sabendo portanto o que é a ‘realidade’, não
configurações do estrangeiro que possuem essa potencialidade de reflexão poderá jamais resolvê-lo” (Pessoa, 1928 | 1986: 1.424).
sobre a relação da metapsicologia e, portanto, da clínica psicanalítica com a Uma reação comum do leitor ao inquietante da heteronimia é a de su-
realidade como um todo é aquela do inquietante. blinhar a suposta diferença hierárquica entre o autor real e seus heterônimos,
Na trama conceitual na qual Freud o envolve, o inquietante é um afeto li- quando Pessoa assina “Fernando Pessoa, ele mesmo”, ou “Fernando Pessoa,
gado à uma perturbação específica da cognição. O afeto do inquietante surge ortônimo”. Mas o adjetivo “ortônimo” é utilizado por Pessoa pela primeira
a partir de um conflito de julgamento, precisamente quando algo que acredi- vez no sentido de uma reação à sua “inexistência enquanto Alberto Caeiro”
távamos ser da ordem da ficção se revela na realidade. Assim, por exemplo, a (Pessoa, 1990: 95). A suposta diferença do autor real em face de seus hete-
percepção equivocada de duplos ou de seres fantásticos. Uma parte do juízo rônimos se reduz assim apenas a uma negação pouco convincente e pouco
afirma que tais seres não podem existir e outra parte o refuta com a percep- convencida desta diferença. Há um nivelamento entre os heterônimos e Fer-
ção destes na realidade. Mas, juntamente com essa abordagem do inquietante, nando Pessoa, mas não no sentido de dar a estes seres ficcionais a realidade

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que julgamos como exclusiva de seu autor. Se eles são nivelados, é no sentido exclui dessa precisamente os elementos que questionam a consistência do
inverso, ou seja, pela sugestão de uma essência ficcional em todos eles, hete- discurso científico como discurso primeiro sobre a realidade, a saber, o que
rônimos e o autor deles em conjunto. estou chamando aqui de inquietante ontológico.
O sentimento inquietante imanente à obra de Fernando Pessoa surge as- Como exemplo desta exclusão seletiva na leitura freudiana da lite-
sim como um efeito de ficcionalização do sujeito. Se nossa identificação ao ratura inquietante, gostaria de evocar algo do texto de Hoffman que foi
narrador está presente, uma série de perguntas incômodas se segue imedia- omitido: Homem de areia começa com três cartas entre Nathaniel, Clara e
tamente. Seriam nossas lembranças, nossa história e nossa identidade mera Lonthario que apresentam versões diferentes e incompatíveis dos mesmos
ficção? Em seu Livro do desassossego, tais questões ocupam uma posição cen- acontecimentos, incoerência que não é solucionada pelo narrador. O texto,
tral na obra pessoana. Bernardo Soares escreve: portanto, começa marcando precisamente a ausência do acesso absoluto
do narrador à verdade, mas esse início incômodo é simplesmente “igno-
Cheguei hoje, de repente, a uma sensação absurda e justa. Reparei, num re- rado” por Freud em seu resumo e em suas análises do inquietante (Møller,
lâmpago íntimo, que não sou ninguém. [...] Roubaram-me o poder ser antes 1984 | 1991: 125–8).
que o mundo fosse. Se tive que reencarnar, reencarnei sem mim, sem ter eu Em suas análises da fotografia, Barthes busca sempre o punctum, isto é, o
reencarnado (Pessoa, 1913–34 | 2011: 261). elemento discordante, mas revelador daquilo que faz parte da imagem, mas
não deveria ser mostrado por ela (Barthes, 1980). Assim, considerada a partir
Encontramos aqui o elemento inquetante da obra pessoana: o desocul- da estrutura paradoxal das ciências humanas descrita por Foucault, podemos
tamento de um fundamento ficcional da forma de existir do sujeito. Note-se nos aventurar a dizer que esta omissão de Freud vale como uma espécie de
que o inquietante provocado pela heteronímia parece exigir uma inversão punctum de todo o seu trabalho de teorização psicanalítica sobre o inquie-
da fórmula freudiana. O inquietante, diz Freud, surge “quando se apresenta tante: ela revela que o que deveria ficar de fora está no interior do próprio texto.
a nós como real algo que até então havíamos considerado como fantástico” Pois, na medida em que o trabalho freudiano de teorização parte da premissa
(Freud, 1919 | 1982: 267). O conflito do julgamento se dá em um movimento do discurso científico como um narrador potencialmente capaz de unificar o
que parte da premissa que algo era fantástico, mas se apresenta como real. real em suas incoerências de sentido, não há como não incluir a modalidade
Ora, o inquietante na heteronímia se desencadeia segundo uma fórmula específica do inquietante ontológico, em que se revelam as fissuras desta pro-
perfeitamente inversa. Ele aparece quando se apresenta a nós como fantástico messa de unificação da ciência que Freud construía.
algo que até então havíamos considerado real. Nesse caso, o conflito do julga- Mas esta premissa diz respeito não apenas à psicanálise então nascente,
mento se dá em um movimento que parte da premissa que algo era real, mas como também a todas as ciências humanas do período inseridas na dobra da
subitamente se apresenta como fantástico. modernidade descrita por Foucault. Em outras palavras, uma coisa é consi-
Assim, os limites entre a realidade material e a ficção se encontram no derar tal impossibilidade como exclusiva à obra freudiana, outra é compre-
centro do fenômeno da heteronímia, mas num movimento diferente daquele ender esta impossibilidade dessa obra como pertencente à episteme mesma
descrito por Freud. Note-se ainda que esse algo é o próprio sujeito, e a rebo- de seu tempo. Isso implica que essa configuração do estrangeiro, constituída
que dele, sua realidade como um todo. Isto permite que tomemos sua leitura pelo inquietante ontológico, é não apenas uma figura conceitual deste famo-
como uma potencialização da experiência do inquietante em sua vertente so texto de Freud, como também uma modalidade experiencial cujo valor
ontológica. crítico diz respeito à modernidade e suas ciências humanas. Nesse sentido,
Mas qual o sentido desta forma de inquietante ontológico não ser tema- pode-se inferir que a metapsicologia freudiana e a antropologia sejam as-
tizada pelo texto freudiano, quando boa parte do mundo literário já o estava sombradas pelo inquietante ontológico advindo da literatura. Menciono, a
fazendo? Isto pode ser compreendido a partir da localização da psicanálise na título de exemplo, Roland Barthes, que explicitou a ameaça de a literatura ab-
episteme da modernidade descrita por Foucault. Esta ausência é necessária sorver a antropologia: “de todos os discursos instruídos, o etnológico parece
para a metapsicologia freudiana, como também para qualquer ciência huma- ser o que chega mais perto de uma ficção” (Barthes, 1975 | 1989: 84). De fato,
na localizada nessa episteme. Assim, o confronto de Freud com a literatura Bruner é um dos poucos antropólogos que assume produtivamente o risco

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de considerar o discurso antropológico radicalmente ficcional, ainda que re- hiato posteriormente tornado evidente por sua ruptura. Todas as formas do
sultante de um processo dialético entre as ficções do pesquisador e aquelas saber da episteme clássica se manteriam até então nesse quadro geral aberto
dos seus informantes (Bruner, 1986: 148). pelo discurso, que permitia ordenar as semelhanças e diferenças da realidade
empírica, e associá-las sem rupturas à lógica e à filosofia. Ao ocaso da época
clássica, os saberes tomam formas autônomas, independentes da ordem dis-
Eventos arqueológicos cursiva que os mantinha sobre um mesmo plano geral. A vida, o trabalho e
a linguagem passam a organizar suas condições de possibilidade de conheci-
Para Foucault, a tópica geral da chamada episteme da modernidade tem mento a partir de seus próprios objetos. Mais especificamente no campo da
como origem a ruptura da episteme clássica. Esta última estava solidamente linguagem, três formas gerais de reorganização ocorreriam em suas experi-
apoiada sobre um Discurso ordenador, capaz de unir em um mesmo quadro ências a partir desse evento arqueológico. Primeiro, a tentativa de uma for-
de continuidades as palavras e as coisas a partir da representação. O homem malização radical da linguagem, dela retirando todos conteúdos empíricos.
como questão não era uma possibilidade. Já a episteme da modernidade faz Em segundo lugar, a exegese, ou seja, a abordagem da linguagem como repo-
surgir o homem como questão limite através das ciências humanas. Limite sitório de um discurso que antecede os falantes. Nessa região se encontrariam
não apenas porque o homem é simultaneamente sujeito e objeto do conheci- as três hermenêuticas da suspeita do século xix criadas por Marx, Nietzsche
mento, mas porque ele, a cada passo que dá na direção de seu objeto, é obri- e Freud. Em terceiro lugar, esta ruptura teria dado origem à literatura como
gado a recuar enquanto sujeito. Em outras palavras, na leitura de Foucault, experiência radical da linguagem na enunciação infinita de si própria, eman-
as ciências humanas são estruturalmente críticas no sentido em que estão cipada do saber e da verdade. De fato, Novalis havia dito, no início daquele
essencialmente preocupadas com os limites de sua possibilidade de conhecer. século, que “precisamente o mais próprio da linguagem, a saber, que ela só se
O título do capítulo que introduz a episteme moderna é, não por acaso, ocupa de si própria, ninguém o sabe”. Mas no final do mesmo século muitos
“O homem e seus duplos”, referência explícita à interseção das ciências huma- suspeitavam disso e alguns já o sabiam perfeitamente.
nas com o campo do estrangeiro pensado pela literatura. A questão é saber Podemos agora começar a organizar a direção de uma resposta a uma de
a razão pela qual o inquietante ontológico deve ficar do lado de fora dessa nossas perguntas iniciais. A episteme da modernidade é marcada por uma
interseção, isto é, a razão pela qual essa modalidade de inquietante não pode duplicidade que simultaneamente captura e dissolve o homem. A transfor-
ser absorvida no espaço dos objetos legítimos do pensamento das ciências mação incessante do sujeito epistêmico é, portanto, indissociável dessa forma
humanas. Tentemos esboçar uma resposta para essa pergunta, colocada no de inquietante que, de certo modo, comanda todas as ciências humanas da
início deste texto. modernidade.
Segundo Foucault, as “heterotopias [como a enciclopédia chinesa] in- Uma certa dimensão do inquietante se mostra assim como experiência
quietam, talvez por minarem secretamente a linguagem, [...] por arruina- indissociável da abordagem do outro na modernidade. Mais especificamente,
rem de antemão a ‘sintaxe’, e não apenas aquela que constrói as frases, mas o inquietante na experiência moderna está articulado ao “dever de pensar o
sim aquela menos manifesta que faz ‘manter juntas’ as palavras e as coisas” impensado” (: 338). Nesse sentido, a antropologia e a psicanálise se discrimi-
(Foucault, 1966 | 1984: 9). Ora, há uma sintaxe nesse laço entre palavras e nam de outras ciências humanas, uma vez que fazem desse confronto com
coisas que pode ser rompida e cuja ruptura foi necessária para o surgimento a alteridade não apenas seu objeto de reflexão, mas também seu princípio
da psicanálise e da etnologia. metodológico. Isto faz com essas duas contraciências produzam saberes apenas
Dito de outro modo, o surgimento destas contraciências só se teria tor- sobre o não saber do sujeito epistêmico.
nado possível a partir de um mesmo evento arqueológico, a saber, a ruptu- Contudo – sempre há um contudo –, em seu horizonte, um saber po-
ra do discurso como quadro geral das relações entre a linguagem e o ser. tencialmente positivo da alteridade faz parte e é indissociável desse processo.
O exemplo incontornável dessa função unificadora do Discurso clássico en- Estas contraciências não podem abrir mão desse referente sem serem ab-
tre ser e linguagem é evidentemente o cogito cartesiano. Entre o “eu penso” sorvidas pelas outras duas práticas da linguagem que surgiram do mesmo
e o “eu sou”, o Discurso clássico recobre com uma certeza inquestionável o evento arqueológico, isto é, a formalização da linguagem, por um lado, e a

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literatura, por outro. Tampouco podem se distanciar dessas duas práticas, na bruner, Edward M.
(1986) “Ethnography as Narrative”. In: turner, Victor W. & bruner, Edward M. The Anthro­
medida em que estas conferem às duas contraciências em questão “régua e
pology of Experience. Urbana/Chicago: University of Illinois Press, p. 139–55.
compasso” da evidência de um conhecimento. Em outras palavras, a prática
de recuo crítico a partir da alteridade que pode ser considerado o denomi- foucault, Michel
nador comum entre a psicanálise e a antropologia pressupõe o inquietante (1966) Les mots et les choses: une archéologie des sciences humaines. Paris: Gallimard, 1984.

ontológico, mas não pode fazer dele seu objeto. Abrir mão de seu referente freud, Sigmund
implicaria em seu desaparecimento como práticas da linguagem. (1919) „Das Unheimliche“. In: Studienausgabe, Band ix: Fragen der Gesellschaft, Ursprünge
Temos ainda duas questões: a relação da arqueologia foucautiana com a der Religion. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag, 1982.
literatura e as estruturas de transformação dos dois tipos de inquietante. møller, Lis
Primeiro, vejamos a razão pela qual a remota enciclopédia chinesa de (1984) The Freudian Reading: Analytical and Fictional Constructions. Philadelphia: University
Borges pode ser usada por Foucault para explicitar o projeto de As palavras of Pennsilvania Press, 1991.
e as coisas. Em qual solo epistêmico se baseia a crítica foucaultiana ao solo
pessoa, Fernando
de evidência natural de nossas classificações? Do ponto de vista das “cuentas (1913–34) O livro do desassossego. Composto por Bernardo Soares, ajudante de Guarda-livros na
largas”, isto é, da grande história, Foucault descreve dois eventos arqueoló- cidade de Lisboa. Organização de Richard Zenith. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 3ª ed.
gicos, isto é, dois momentos de ruptura entre sucessivas epistemes: 1) entre (1928) “Quadro bibliográfico”. In: Obra poética em prosa, vol. iii. Porto: Lello & Irmãos, 1986.
(1990) Obra em prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.
o Renascimento e o Iluminismo; e 2) entre o Iluminismo e a Modernidade.
Entre cada um desses pares de epistemes, há o espaço entreaberto pelos silva junior, Nelson da
eventos arqueológicos. Este espaço garante o caráter contingente das dife- (2019) Fernando Pessoa e Freud: diálogos inquietantes. São Paulo: Blucher.
rentes epistemes. De todas as práticas discursivas com a linguagem, apenas a wacquant, Loïc
literatura do inquietante é convocada para nomear o solo do não necessário, (2002) “A ascese do combate” [Entrevista a Caio Caramico Soares], Folha de S. Paulo, Caderno
solo que sustenta o campo de trabalho da arqueologia foucaultiana. De fato, Mais, 9 de junho.
Foucault atribui um estatuto à literatura fantástica equivalente à própria dé-
marche de As palavras e as coisas: Borges ilustra o objeto do livro, sem ser
jamais objeto de análise do livro. Isto significa que Foucault confere à litera-
tura do inquietante ontológico um poder de iluminação equivalente ao seu
projeto nessa obra.

Referências bibliográficas

barthes, Roland
(1975) “The ethnological temptation”. In: Roland Barthes by Roland Barthes. New York:
Macmillan, 1989.
(1980) La chambre claire. Note sur la photographie. Paris: Gallimard.

borges, Jorge Luis


(1952) “O idioma analítico de John Wilkins”. In: Outras inquisições. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007.

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olivier douville

Demanda de asilo, refúgio: destinos de


uma posição “traumática” do estrangeiro1

Primeiros contatos...

O que mudou há pouco mais de três anos na minha prática de psicólogo clínico
em uma instituição psiquiátrica, onde participo de uma equipe “Psiquiatria e
Precariedade”,2 é que somos cada vez mais chamados por abrigos para pessoas
em situação “ilegal” por migração clandestina, e que se encontram à espera de
papel de registro civil e status de requerente de asilo, aguardando status de refu-
giados. Esses homens, com idade entre 21 e 45 anos, deixaram seu país, que foi e
continua sendo devastado, e que tanto pode ser a Eritreia, como o Afeganistão,
especialmente uma área de linha de frente entre Afeganistão e Paquistão, Sudão
e Sudão do Sul, às vezes, a Líbia. A equipe responsável por esta instituição se
reuniu com a equipe de um desses abrigos a pedido da prefeitura de Neuilly-
-sur-Marne. Alguns meses depois, a Agência Regional de Saúde nos disse para
dar continuidade às reuniões regulares. Se nos pedem para nos encontrar-
mos com essas pessoas, é por razões em que a saúde e o social se confundem.
O abrigo nos faz um apelo porque os abrigados apresentam distúrbios do sono
muito graves e depressões, frequentemente marcadas mais por uma espécie de

1 Do original: “Demande d’asile, refuge: destins d’une position ‘traumatique’ de l’étranger”,


Revue Chimères, n. 96, Paris, 2020, p. 36–52. Tradução de Vera Pollo.
2 Estabelecimento Público de Saúde de Ville-Évrard, Neuilly-sur-Marne, Polo g18, Serviço
da dra. Evelyne Lechner.

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anestesia da vida, de irrea­lidade da existência, do que pela tristeza. Se a tristeza às vezes para certificar que seu estado mental requer cuidados por um período
pode dar a cada um o sentimento da realidade de sua existência, o que se maior ou menor de tempo, o que o médico da equipe também faz.
mostra ali é diferente: a dor moral acompanhada por uma vida fantasmática. Se assumirmos que a psicanálise é uma clínica da fala e que também é uma
Um isolamento frequente no mutismo e o retraimento parecem ser o abrigo clínica do ato, apostaremos que as narrativas que se tecem e criam nos permi-
mental destes “hóspedes” em sofrimento psíquico, abrigo do qual eles saem tem revisitar os tormentos da vida, considerando-os também como atos que a
por meio de agirs: crises clássicas ou perambulações, na maior parte dos casos. pessoa refugiada pôde e soube levar a cabo. Ajudamos ao surgimento do sen-
As primeiras coisas que essas pessoas nos dizem parecem refletir o curso de tido das decisões que ele pôde e soube tomar, aquele que na maioria das vezes
uma existência comum e banal. A forma como passaram o dia é narrada muito se via como tendo se tornado um ser transtornado pelos acasos, as boas e más
factualmente. É importante observar que, para esses homens refugiados, falar fortunas, e arrastado numa perambulação sem fim e sem saída.
dessa forma já é uma construção importante, pois a sensação de levar uma Há acidentes traumáticos. A partida para o exílio foi marcada por uma
vida cotidiana não é de todo evidente para eles. Aquele que escuta essa difi- catástrofe. Por exemplo, um paciente afegão me conta o que aconteceu cer-
culdade em reunir todas as horas que passam, em aceitar se apegar aos gestos ta noite durante uma festa em que um pequeno grupo de homens mais ou
mais básicos de uma vida cotidiana e retê-los, percebe que cabe a essas pessoas menos jovens cantavam, dançavam e bebiam vinho. Os talibãs chegaram e
marcar as passagens do tempo, dividi-lo e ordená-lo. Referenciar-se no espaço assassinaram com rajadas de kalashnikovs os que estavam nessa reunião, a
também lhes é difícil, porque elas experimentam uma relação com o lugar em qual lhes permitia manter uma pequena chama de alegria em um país de-
que estão retraídas sobre si mesmas (muitas vezes, prostradas em seu quarto), vastado. Ele tinha saído por um tempo e, ao voltar para o grupo, deu de cara
recolhimento do qual elas saem por meio de condutas motoras, que raramente com a pilha de cadáveres ensanguentados. Muitos desses refugiados vêm de
são orientadas para um objetivo e levam rapidamente à exaustão. lugares onde a violência matou pessoas que eles amavam, mas onde a palavra
humana se transformou em uma palavra de traição.
Eles conheceram uma humanidade sem fé, nem lei. Deixaram sua terra
Espaço em catástrofe, território errante natal por caminhos extremamente difíceis, périplos durante os quais somente
funcionaram como passadores as pessoas em quem eles acreditaram poder
A sensação que sinto na companhia desses homens é a de que se produziu, confiar e que, apesar de tudo, tiveram êxito em fazê-los passar. Muitas vezes
para muitos deles, uma verdadeira catástrofe espacial; parece que o espaço os é com uma promessa verbal que eles chegam aqui.
poderia engolir, fechar-se e cair sobre eles. Não são apenas os entes queridos
e os objetos familiares contidos no espaço, cuja memória é comandada pelo
tempo, que foram perdidos, é o próprio continente espaço-temporal desses Notas sobre o uso do termo trauma e o sonho traumático
seres e objetos que implodiu durante os traumas que motivaram a partida e
os que vieram em seguida. Nenhum desses homens apresenta ou testemunha “Trauma” é uma palavra pesada e não deve ser banalizada. Do choque ao trau-
alucinações ou delírio; todos abrigam em si mesmos uma dor imensa que ma, há mais de um tempo. É importante ser preciso e cuidadoso. Este termo
não encontra o silêncio necessário para cicatrizar e as palavras necessárias é anfibológico; assim, a palavra trauma é usada para os chamados desastres
para dar forma a ela. Escutar em outros lugares algumas melancolias graves naturais, tanto para um tsunami, um incêndio, quanto para algo que real-
me permite entender a natureza dessa relação com o espaço. mente tem a ver com a quebra elementar do pacto humano. É uma pena
A perda da evidência “natural” de que o espaço nos abriga e nos contém se usar a mesma palavra para tudo isso. Quando falamos de trauma, dois mo-
deflagra na experiência corporal dos migrantes com quem me encontro; e seu delos são necessários: o primeiro modelo (trauma psíquico) é o de um equi-
território é extremamente restrito até que a palavra tenha feito seu trabalho líbrio quebrado por uma sobrecarga de violência que não podemos suportar.
de desdobramento. Seu território é terrivelmente encolhido em seus corpos e Mas este modelo não é suficiente. O traumático também pode vir do fato de
nos poucos objetos associados a eles. O que eles estão nos pedindo para fazer? que o sujeito se sente “lançado para fora do mundo”, ele também é vítima de
Para melhorar, é óbvio. Eles nos pedem para ajudá-los, para acompanhá-los e uma completa falta de atenção por parte das mais variadas pessoas.

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Trauma causa muitos ferimentos. Eu mencionaria a angústia, mas o que por causa do que eles poderiam ter feito de “bom” ou de “mau”. É assim: nas
eu quero realmente abordar é este momento de confusão mental no traumatis- políticas de extermínio, a vítima “honesta” que será morta não está destinada
mo que não é loucura, mas em que o sujeito não sabe se ele está vivo ou se está à morte porque teria cometido atos vis, transgressões cruéis ou perigosas.
morto. O que provoca o trauma, é claro, é a violência de ver a sua família, seus Ao contrário, é mais satisfatório para o genocida matar alguém que não fez
entes queridos, sendo mortos, mas o que aprofunda o trauma para aqueles nada de errado. Neste caso, quem quer que seja levado à morte, ele o é de
que buscam refúgio é serem jogados em um mundo sem interlocutor, sem acordo com uma só razão: a de seu nascimento em tal grupo étnico, tal clã ou
testemunha, sem ninguém que possa lhes dar razão, que possa acolhê-los. tal grupo linguístico. Não há inocência possível. Eis o que tivemos de encon-
É a falta de acolhimento que aprofunda o trauma. Não é só sentir-se longe da trar. “Eu não fui ameaçado pelo que fiz, mas por quem eu sou”, diz Zola3 T.,
pátria, não é apenas sentir-se longe do seu país, é sentir-se sem ninguém a do Congo. Ninguém veio para salvar o sujeito em perigo, o sujeito ameaçado.
quem se dirigir, ninguém com quem conversar, ninguém em quem se apoiar. Nesse momento de ausência radical do próximo que o socorra, a cultura é
Os refugiados que se sentiam melhor eram aqueles que tinham uma ati- tão afetada pelo sujeito traumatizado, que qualquer abordagem clínica inspi-
tude de luta, e que podiam dizer uns aos outros e dizer-nos: “O que está acon- rada em uma ideologia culturalista ou identitária é arruinada. Essas pessoas
tecendo comigo é injusto, não é fácil de compreender. Mas eu estou agora do foram expulsas de sua cultura e seus companheiros morreram assassinados.
lado das pessoas que lutaram, que sobreviveram – sobreviver é lutar. Eu estou Por isso ruiu o lugar do terceiro que protege e testemunha.
em uma comunidade”. As pessoas que estavam piores eram pessoas que esta- Adianto aqui uma hipótese importante: o que falta é o lugar terceiro, o
vam isoladas, perdidas em sua história; além disso, pessoas que tinham uma qual vamos reanimar e trazer à vida. Estamos sustentando esse lugar gradual­
relação muito particular com a linguagem. Uma relação que pode muito bem mente, pouco a pouco. Nas primeiras reuniões, os pedidos dos refugiados
ser explicada por condições materiais, mas também porque alguns não têm são captados em uma urgência factual. Às frases que muitas vezes escutamos,
em torno deles pessoas que são da sua cultura ou da sua cidade. A vivência é “Preciso de Valium”, “Preciso dormir”, “Eu preciso disso, daquilo”, nós res-
então dominada por um terrível sentimento de isolamento. O trauma psíqui- pondemos com perguntas: “O que mais pode ser feito?” Então o contato fica
co aprofunda o choque e a ferida atual como resultado desse desespero nos muito mais tenso e ansioso e é com uma perplexidade ansiosa que a possível
poderes de sua palavra. O discurso é inútil. Não toca em ninguém, não evoca transferência nasce: “Mas o que você quer de mim?” “Por que você está vindo?”
nada mais. Quem perde a esperança de alcançar o outro por sua palavra pode “O que há de errado com você?”... Essas são as perguntas que estão diante de
entrar em uma experiência vivida em que o sujeito é invadido por sua pró- nós, e essas são perguntas muito boas. Não seria conveniente aplicar aqui as
pria voz, já que não pode ser levado pelas vozes dos outros. Quando alguém referências psicanalíticas convencionais sobre a ambivalência dos sentimen-
sofre violência traumática, ele se encontra na maior solidão, fragmentado tos, pois participamos de fato na recomposição de uma alteridade confiável.
a ponto de não ser capaz de articular-se sobre os ritmos essenciais da vida Somos então questionados sem rodeios sobre nosso próprio desejo de manter
humana (o dia, a noite, a fome, a saciedade). Todos os ritmos parecem presos o vínculo. Claro que, ao retornar sobre nós, essa clínica remete cada cuidador
em uma espécie de confusão letárgica; a experiência é crepuscular. à fragilidade de suas próprias montagens de identidade. Nossa identidade é
A pessoa que sofreu um trauma enfrenta um quebra-cabeça em que fal- frágil como qualquer identidade, nosso senso de legitimidade é abalado, mas
tam algumas peças. Para aqueles que fugiram de seu país porque sua própria se não aceitarmos viver essa fragilidade, então não poderemos nos envolver
existência estava em jogo, aqueles que foram torturados e, na vida real, se em um trabalho de acompanhamento terapêutico com esses homens.
viram entregues à maldade ilimitada de quem, em uma indiferença gelada, A fala refugiada é marcada por uma melancolia na qual se diz a ruína
em um ódio frio e calculista, deseja o desaparecimento do sujeito, a pró- do momento vital, o Trieb freudiano. É necessário que haja vínculo com os
pria possibilidade de encontrar alguém para conversar é muito prejudicada. outros. É preciso não se sentir rejeitado da humanidade para ter a sensação
Oumar B., que vem do Sudão, Ahmet C., que vem do Afeganistão, assim como de que se está vivendo uma vida humana. O espaço psíquico dos refugiados
um outro sujeito que venha deste ou daquele país, todos experimentam essa
certeza de que o que os condenou à morte foi seu nascimento. Isso já é uma
certeza: a de estar condenado à morte por causa de seu nascimento. Não é 3 Prenome que não se refere ao escritor francês Émile Zola, mas significa “amor” em lingala.

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sobrevive em um esforço obstinado para se alojar em um cantinho do espaço Sonho, nome, objeto: corpo
e reter pedacinhos de tempo, sob o risco da sideração e de momentos de estu-
por. Mas eles não extraem nenhuma certeza que lhes permitiria saber se estão Muitas vezes, o sonho traumático encontra suas próprias variações; repetin-
vivos ou mortos. De que dispositivos mentais cada um deles pode dispor para do-se, modula e apenas redobra a sideração com o pavor. Cria-se aos poucos
assegurar-se de que está verdadeiramente em uma vida humana comparti- um nicho para o sujeito. O mundo não está mais inteiramente vitrificado
lhada? Para que se confirme esta sensação de base, chave da evidência natural pelo desastre. Proponho considerar que a sucessão de sonhos traumáticos
do mundo, é preciso ideal e comunidade. Também lá o respeito pelo singular narrados pelos refugiados me ensina sobre o modo segundo o qual um nome
que guia a clínica não poderia se confundir com a indiferença diante da so- próprio está aí para nomear e não apenas para designar o ser no mundo.
lidão radical desses homens neste tipo de casa. Toda singularidade subjetiva Muitos desses sonhos que seguem a repetição monótona dos sonhos traumá-
é também uma solidão povoada. O isolamento resultante de exclusão é um ticos inaugurais, inteiramente repletos de angústia, são sonhos de duplicação
despovoamento das solidões. do nome. No início, o sonhador é nomeado por uma voz que o domina por
Colaboramos também, e isto é fundamental, na restauração de um coleti- meio do seu nome. Ele ouve seu nome como um insulto e uma ameaça; ele
vo no singular. Esse apoio criativo permite que qualquer pessoa aposte no fato ouve seu nome como uma condenação, um veredito. Depois, no segundo
de que é bem possível encontrar, de forma duradoura, alguém a quem confiar tempo do sonho (que eu teria dificuldade em chamar de “instante traumá-
em suas alegrias e tristezas Em seu aspecto imediato e cru, a palavra do refu- tico”, pois o enunciado do nome apresenta então uma nova qualidade), o
giado é a palavra de um sobrevivente que não se reconhece cercado por seres nome não é mais entendido como um veredito ou uma condenação, mas
vivos autênticos. A sobrevivência pode ser reduzida a uma vida automatizada. como um apelo, um convite. Para situar esse desdobrar que produz alívio,
Depois vem o confronto com nossa oferta da palavra. A confrontação é muito imaginemos que, estando perdidos em um lugar estrangeiro, ouvimos nosso
viva. Todos os cenários de caridade não nos são apropriados, pois promovem próprio prenome duas vezes: uma vez como um insulto, outra como um ape-
desvios. O confronto é duro, hostil às vezes, mas não odioso. Tal dureza é per- lo, um convite à reinvenção. Em outras palavras, em tais sonhos, certamente
ceptível da seguinte maneira: as consultas são desmarcadas, o cansaço é vívido porque eles podem ser narrados (ou seja, endereçados), o chamado do nome
em ambos os lados, multiplicam-se as observações sobre nossa impotência em é primeiramente entendido como uma afirmação que objetaliza, esse nome
ajudá-los. Suponho que essas atitudes têm uma razão psíquica extremamente é quase como um número, um número de ameaça. A outra modulação do
importante: a aposta dos refugiados em salvar a própria raiva. Eles vitupe- sonho do nome é um apelo ao advento do sujeito. Nesse tecido evolutivo do
raram contra o outro que não o protegeu, não estava lá, chegou tarde de- sonho traumático, o segundo tempo do apelo salva o sujeito de um trauma,
mais. Assim me dizia o refugiado afegão que mencionei no início deste artigo: não porque o esvazia, mas porque o cicatriza. Essa última operação pode
“Mas quando sonho com a festa, quando tenho sonhos com essa festa, tenho permitir que se restabeleça uma relação com o outro que não é mais uma
medo. Vou chegar mais perto do lugar onde meus amigos cantavam e bebiam, relação de desafio ou ameaça.
estou com medo e não vou. E, se tivesse sido assim na realidade, eu poderia O que salva o sujeito do trauma não é ser capaz de encontrar uma identi-
tê-los avisado”. O sonho traumático fabrica tarde demais o que deveria estar dade perdida, mas inventar algo com o estrangeiro, o estrangeiro de si mesmo,
lá no momento da invasão: um sinal de perigo. A este aspecto clássico, bem estrangeiro às suas determinações, à sua cultura, à sua história. Uma estra-
descrito por Freud em Além do princípio do prazer (1920) e ainda atual, eu nheza habitável, porque está destinada ao que virá. A novidade do que vai
acrescentaria que o fato de contar seu sonho faz também do interlocutor, nes- acontecer com ele a partir dessa estranheza e a novidade daquilo que ele vai
te caso o clínico, uma “testemunha” do que aconteceu. Com toda a aparência se tornar vão iluminar a sonoridade humana do sonho. Finalmente, viver
de caos implacável e repetitivo, tais sonhos são o primeiro rascunho de um sem terror e sem vergonha na companhia de autênticos seres vivos, esta po-
testemunho. O trauma não é testemunhado pela narrativa, mas pelo pesade- deria ser a fórmula feliz que designaria o fim de uma aventura psicoterapêu-
lo, pela perambulação, pela agitação ou pela prostração do corpo. Dizer seu tica. Essa fórmula adquire aqui o caráter de emergência.
sonho é acrescentar ao sinal de angústia prolongado que tais sonhos fabricam, Tanto quanto possível, eu gostaria de me livrar do clichê “a culpa dos so-
incansavelmente, a possibilidade, endossada pelo clínico, de uma testemunha. breviventes”. Pois se o que fosse sentido pelos refugiados de que estou falando

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aqui fosse culpa, não seria tão ruim. É muito mais da vergonha de ser um Esta é uma das razões convincentes pelas quais não podemos fixar nin-
sobrevivente que estamos falando. Se guiássemos nossa escuta apenas pelo guém em uma determinada afiliação cultural; nenhum desses homens foi
dogma dessa suposta culpa, então seríamos reduzidos ao uso de fórmulas reduzido ao espécime folclórico do afegão das montanhas, do sudanês dos
conjuratórias como: “Mas você tinha o direito de deixar um lugar onde você desertos etc. No entanto todos nós precisamos – eles precisam tanto quanto
corria um grande risco e felizmente você não está morto”. Claro, estas são nós – entrar em uma comunidade, mas não uma comunidade congelada; ao
palavras que devem ser ditas, porém dizer, mesmo com verdadeira benevo- contrário, uma comunidade que se movimenta. Certamente não uma comu-
lência, “Você tem o direito de estar lá” não é suficiente para tecer uma existên- nidade sob jugo.
cia duradoura. Temos que trabalhar na fenomenologia dessa existência em O tempo passa. Às vezes, apesar da brutalidade estigmatizante, buro-
trânsito. Muitas vezes eu me aproximo dessas pessoas com perguntas: “Como crática e policialesca do nosso tempo, obtêm-se autorizações de estadia ou
você se sente quando você fala? Como se sente quando acorda? Como se sente documentos
quando come? Como se sente quando bebe?”. Esses homens acordam de um Falar com aqueles que aguardam status de refugiados legais nos coloca
cansaço, um torpor triste, e me dizem que gostariam muito de fazer, não para às vezes entre a realidade e a poesia: como lhes é necessário, para dar anda-
si mesmos, mas para o outro, um determinado prato que costumavam comer mento, que eles passem pelo desastroso discurso de transferência que vai
em casa, na pátria perdida. Quando a doçura amarga da nostalgia é desperta- tentar ultrapassar a memória da violência, sem negá-la, sem fazer folclore, é
da, nódulos de impulso oral entram em jogo e na partilha. complicado ajudá-los a falar de si com certa distância, para que sua demanda
É correto trabalhar sobre o fato de que o sujeito suporta estar vivo e que de asilo seja aceita. Tomemos o caso de uma situação que não responde à
sua presença não é mais para ele uma obscenidade e um absurdo. Então, de refugiado estipulada na Convenção de Genebra: o migrante pode se be-
como podemos nos libertar da vergonha, se não é justamente deixando-a à neficiar do que é chamado “proteção subsidiária”. Para obter tal proteção, o
vista que nós fazemos uso do pudor? Para mostrar que fazemos uso do pudor, migrante deve provar que está exposto em seu país à pena de morte, tortura
deixamos vê-lo em nosso corpo. Se reconhecemos que o pudor não é apenas ou tratamento degradante, ou que é objeto de uma grave ameaça, direta
consequência do recalque pulsional, então vemos nele um modo de emprego e individual, contra sua vida ou sua pessoa em caso de conflito armado.
do corpo. Ao contrário, colocar-se de forma catatônica esticado em sua cama Eis um programa claro e nítido e, sem dúvida, de fácil redação. Na crueza
e embaixo de um cobertor, isso não é pudor, mas uma maneira de não poder das situações humanas com que nos deparamos, as perícias médicas que
estar de outra forma na cena do mundo, a não ser a de uma aflição infindável. devem explicar se de fato merece proteção a pessoa que a busca são muitas
O pudor se conjuga com o dom. Sente-se que algo é da ordem do pudor vezes postergadas. É paradoxal que essas avaliações exijam um testemunho
assim que o sujeito realmente adota uma maneira particularmente sociável, linear, claro e preciso de pessoas verdadeiramente traumatizadas e sobre-
agradável e não muito sedutora para poder doar, para conectar sua história carregadas pelo abismo cultural, apavoradas com a frieza dos procedimen-
à história dos outros. Claro, a grande História entrou em seu corpo e em sua tos e incapazes de produzir uma narrativa convincente, bem argumentada e
palavra, em seu ritmo vital, a ponto de saturar o sono por meio da insônia, límpida. Os refugiados chegam até mesmo a temer, e não sem razão, serem
a ponto de adoecer a motricidade do corpo. A grande História e a pequena confundidos com fabuladores. Eles, de certo modo, esforçam-se em contar
história estão aqui umbilicadas em um ponto de catástrofe. Mas, em casa, há uma história de identidade que é uma história policiada, mas que torna-
a história dos outros. O que compartilhamos não é trauma. Não há traumas ria plausível e aceitável o fio de infortúnios e a demanda de reparação e
coletivos, mas há comunidades traumatizadas. Não é a mesma coisa. Nin- de acolhimento. A narrativa previamente padronizada é diferente do que
guém tem o mesmo trauma que o outro. É por isso que você não pode se nossas trocas tecem, que dão lugar aos efeitos do espanto e dos afetos in-
identificar com um determinado trauma. Considerar alguém como vítima conscientes, a ponto de às vezes ser necessário adiar a continuação de um
é atribuir-lhe um trauma, identificá-lo com um trauma coletivo. Mas pode- acompanhamento psi, o tempo em que a narrativa “oficial” que permite a
mos falar das bordas de seu trauma, ou seja, falar sobre sua história, como mudança de status está sendo montada.
também da possibilidade de sair de sua história, não para esquecê-la, mas Mas alguns desses refugiados ficam muito assustados assim que obtêm os
para finalmente ser capaz de dar um salto para o desconhecido. documentos. Eles se sentem ilegítimos. É aí que eu acho que a ajuda psicoló-

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gica é mais uma vez absolutamente necessária. Eles se sentem ilegítimos, por ram, que morreram no país, no Mediterrâneo.4 Estes são “objetos-assinatura”.5
isso multiplicam-se os atos e ausências que decepcionam as equipes; faltam Não são apenas objetos rituais que cercam esses homens. Os objetos-assinatura
às consultas marcadas pelo assistente social, o que lhes permitiria encontrar definem o trajeto do exílio, conservam de algum modo o trajeto do exílio.
trabalho, não vão às consultas na prefeitura etc. Como entender isso? Penso Não são objetos rituais. Um objeto ritual está ligado à dimensão do dom
que nosso trabalho principal naquele momento é permitir que o sujeito e, às vezes, do sacrifício e, como tal, tem o seu lugar, seu pretenso abrigo, no
aceite que, embora esteja preso em sua história, também é estrangeiro a ela, decorrer do ritual. Também possui sua eficácia, que pouco depende da invenção
visando construir uma nova identidade que lhe permita não dar aos fenô- do sujeito que o confronta. Assim, o fetiche combina o húmus com os vivos,
menos antigos a prerrogativa de condensarem em si o que seria a aventura coaliza em sua desordem sufocante humores e substâncias, representa aquilo de
de um destino humano. Então somos chamados, nesse momento, para cons- que o iniciado deve se separar por uma série de operações de ajustamento da
truir pontes entre o que ainda poderia dar sinal de vida em seu país e o que sua corporeidade. Uma diferença é necessária aqui, e é significativa: os objetos
vai dar sinal de vida na França. Dar sinal de vida no país pode ser coisa encontrados-criados no exílio não se referem ao sacrifício, mas referem-se ao
muito simples: digo algumas palavras em Bambara para um determinado assassinato, à morte. Eles são o que atesta que uma destruição ocorreu e que
paciente de Mali. Ele fica contente, porque vê em mim um cara que tenta eles resistiram. Nisso, não são relíquias ancestrais de um sacrifício ritual. Além
se desembaraçar com uma língua estrangeira. Isso lhe faz bem, ele ri. A essa disso, são invenções do sujeito, resíduo de trauma; eles são, como o trauma, sem
altura, ele pega seu celular e me coloca em comunicação direta com sua precedentes na economia geral do objeto e estão mais destinados a um culto
irmã em Bamako que fala relativamente bem o francês. Eu pego o telefone privado, o de um “ás” que força o testemunho para forjar uma possibilidade
e troco duas ou três palavras com ela. Três dias depois, este homem me diz: de memória. Então, temos de interrogar o que se deposita e o que se inventa, e
“Foi muito bom o que você fez, me deu força para ir conseguir um emprego cabe a nós, do lugar de terapeutas, apoiar essa invenção, sustentar sua potência
em Porte de la Chapelle”. Opera-se aí um intercâmbio muito importante, no de inquietação. O jogo é delicado e as apostas humanas, enormes. Devo agir por
qual é claro que é questão de tranquilizar o outro e de ajudá-lo a recuperar intervenções que são trocas de palavras, pelo fato de eu afirmar que este é um
a familiaridade com seu corpo. objeto que deve ser cuidado, pois facilita o poder de acompanhar e de sustentar
palavras verdadeiras e dignas. Caso contrário, haveria um grande risco de que
essa invenção acabasse sendo coberta pelas rachaduras do terror ou da vergonha
Objetos – assinatura e relíquias vivas Nomearei o objeto que se faz assinatura de um trauma de “objeto relíquia”,
pois remete às cenas em que o sujeito encontrou o real da morte. Mas insisto
Neste lugar em que a equipe, sobrecarregada mas dedicada, se reúne para em dizer que ele só é eficaz, se for colocado em jogo na dinâmica do encontro
recebê-los, esses homens, isolados e solitários, experimentam fraternidades e da transferência. Se os objetos do exílio são objetos-vestígios que evocam
transnacionais e translinguísticas. Não há escassez de ajuda mútua. E todo para mim o despedaçamento dos objetos de que falamos e de que também
mundo traz consigo o seu velho objeto, seu objeto “cultural”. Os objetos ri­ fala George Perec em W ou a lembrança da infância (1975), eles se ligam não
tuais vivem das almas do passado: este ou aquele ícone, esta ou aquela ima- ao sacrifício, mas à morte. Qual morte? Não a morte sacrificial, não a morte
gem, este ou aquele livro religioso (o Alcorão na maior parte do tempo, mas pela perda de um pedacinho de si e por afirmar-se solidário ao ser vivo. Esses
nem sempre). Eles me mostraram manuscritos abissínios já gastos e enrola- homens e essas mulheres estiveram sob o golpe de uma ameaça no que tange
dos em si mesmos. No entanto os refugiados manipulam simultaneamente à própria qualidade humana anterior. São os objetos pharmakon da melan-
outras coisas, outros objetos que eles nos mostram e através dos quais o con-
tato é feito mais facilmente.
Não se encontrará nenhum traço dsses objetos e nenhuma menção a eles 4 Quando o Ocidente percebeu que muitos mares estavam se tornando cemitérios mari-
em qualquer catálogo acadêmico de objetos habituais; eles são faixas de rou- nhos, um público muito grande ficou fascinado pelo filme Titanic.
pas, montagens de fotos. São também pulseiras ou mesmo pedaços de lentes, 5 Peguei emprestado esse termo de minha amiga Christine Davoudian, médica do Serviço
fragmentos de caneta, roupas retiradas dos corpos daqueles que não sobrevive- de Proteção Materna e Infantil (pmi) em Saint-Denis.

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colia não apenas porque traduzem uma certa melancolia da existência, mas desaparecimento, da destruição e do assassinato evacua o tempo histórico
talvez por serem também um remédio para a melancolia da existência, sob a do sujeito para reduzi-lo a um tempo mitológico, em uma espécie de gula
condição de terem sido um apoio da fala. A fabricação dos objetos-relíquia pela etnografia classificatória ou pela facticidade identitária?
acontece em determinados momentos muito precisos. Ele é criado quando a Esse objeto só pode passar na transferência – mas não na neurose de
pessoa exilada, ainda sem qualquer recurso tangível, experimenta não apenas transferência, pois não é simulacro, nem semblante, mas uma peça de re-
que ela perdeu os seus, mas também que ela está perdida para os seus. Não alidade que, ao ser tecida na troca, serve de esboço de uma narrativa não
se trata aqui de uma clínica da perda. Não estamos em uma clínica do luto automática. Nesse momento, o sujeito pode começar a habitar sua história.
classicamente freudiana; é a clínica da melancolia que nos ajuda a compreen-
der esses movimentos psíquicos ao mesmo tempo tímidos e decisivos, o que
é diferente. Se a clínica do luto é a clínica da perda, a clínica da melancolia Um cerimonial que envolve a psicanálise
é a clínica do desaparecimento. Isso indica a impossibilidade de encontrar
um abrigo memorial identificatório com o objeto perdido. É no momento O cerimonial é muito importante. O homem é um animal cerimonial. Então,
em que reina o terror, que o mundo humano pode se encontrar completa- o que inventamos como cerimonial? O que podemos inventar sem recuar
mente privado dos vestígios deixados pelos pais e pelos ancestrais, que se para uma identidade? A oportunidade de se encontrar em uma nova comu-
cria o objeto que condensa tais vestígios. O objeto não restaura uma filiação nidade com amigos sudaneses, afegãos, malianos etc., com este ou aquele
fechada, de início ele não é um signo identitário. Ele pode funcionar como empregador. Assim, é claro, para que essas pluralidades de vínculos sejam
um instrumento por meio do qual o sujeito reafirma que, apesar de tudo, ele forjadas e para que as relações de poder entre sujeitos e instituições se tornem
não perdeu sua humanidade, por meio do qual se afirma uma outra cena, legíveis, não basta estarmos com eles; devemos também manter contato com
diferente da cena do refúgio ou do acolhimento. Para esses homens, o que outras equipes, outras associações, estruturas terceiras.
está em jogo é afirmar sua humanidade diante dos outros, estes que, assim Completamente exauridos, com intenso risco de exclusão e sentindo-se
como os terapeutas, os assistentes sociais, sobretudo os empregados da ofpra deslegitimados, esses sujeitos ainda têm uma extraordinária capacidade de
[Agência Francesa de Proteção dos Refugiados e Apátridas], os advogados ou criar o social, uma vez que criam em nós a necessidade de nos socializarmos
os policiais, quase nunca se colocam a questão de saber se eles são humanos. com outras equipes e outros dispositivos. A doxa psicanalítica se encontrar
E também a configuração política do sujeito que o levaria, no máximo, a abalada é também a possibilidade de que ela seja reinventada. Trabalhar com
ter direitos e ao reconhecimento estatutário de sua legitimidade de viver na e sobre a “posição traumática do estrangeiro”, deixar-se dominar por essa po-
França se desdobra em vontade subjetiva de reintegração do sujeito em um sição, permite sair de uma leitura edipiana e normativa. Podemos nos deixar
mundo no qual se poderia reconhecer e compartilhar o que faz uma vida.6 ensinar, humildemente, por meio da construção dessas alteridades complexas,
Ninguém pode ser deixado sozinho com tal objeto, pois, em decorrência reais, históricas e políticas, forjadas pela palavra endereçada e recebida, que se
de sua característica pharmakon, ele também aparece como algo que pode movimentam com o passar do tempo, que são remanejadas pelos procedimen-
eventualmente esmagar e aniquilar aquele que fizer dele seu parceiro. Eis algo tos concretos e administrativos, e pelo acolhimento que lhe é dado. Elas tam-
de que ele também pode se envergonhar. É a tessitura do fio de fala que, ao bém se metamorfoseiam nas nervuras dos sonhos reencontrados. Essa prática
mesmo tempo, desnuda, decompõe e refaz esse objeto, refeito pelo resto psí- de acolhimento e de escuta dos chamados “migrantes” estremece a base de um
quico. É necessário “falar” esse objeto, para aquecer as palavras inertes que psicanalista ocidental. Mergulhar a psicanálise em novas questões culturais e
se enrolam nele. Sim, ele deve ser devolvido a um laço social e a terceiros. humanas interroga o que haveria de reducionismo na dimensão da transferên-
Mas quem não percebe que esse objeto é o repositório da violência do cia, se ela se reduzisse a uma tentativa de colonizar o espírito, promovendo a
identificação com as insígnias culturais do psicanalista (Douville, 2014; Piret &
Douville, 2017). Se essa clínica o conclama à reumanização universal, é porque
6 Aqui, tomo a bela expressão de Judith Butler em O que faz uma vida. Ensaio sobre a violên-
as regras, supostamente intangíveis, de um trabalho clínico apoiado na psica-
cia, a guerra e o luto (Butler, 2004–8). nálise se encontram em estado de crise e de reinvenção, compartilhadas.

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Referências bibliográficas leonardo câmara
regina herzog
butler, Judith
(2004–8) Ce qui fait une vie. Essai sur la violence, la guerre et le deuil. Paris: Zones, 2010.

douville, Olivier
(2014) Les figures de l’Autre: pour une anthropologie clinique. Paris: Dunod.

freud, Sigmund
(1920) Au-delà du principe de plaisir. In: Œuvres complètes, vol. xv: 1916–1920. Paris: Presses
Ferenczi e a catástrofe: ruptura dos limites
Universitaires de France, 1996, p. 271–338.

perec, Georges
(1975) W ou le souvenir de l’enfance. Paris: Gallimard, 1975.
[...] o erro é a contingência permanente em
piret, Bertrand & douville, Olivier (dir.) torno da qual se desenrola a história da vida e
(2017) Psychologie Clinique nouvelle série, n. 43: Migrants, refugiés, la politique interroge la o futuro dos homens.
clinique, Paris, juin. Michel Foucault (1984 | 2015: 383)

[...] ‘um pouco de possível, senão eu sufoco...’


Gilles Deleuze (1990 | 1992: 131)

foucault nos ensina que investigar a história e o desenvol


vimento de um conceito é inseparável da vida e do presente (Foucault, 1984).
De acordo com essa perspectiva, o que nos convoca a retomar o passado, o
que nos leva a revisitar ideias, são as questões vitais, urgentes, impostas pelo
agora. A pandemia de sars-cov-2 (ou Covid-19) foi a questão vital que, pre-
sente, demasiado presente, nos convocou a tratar da concepção ferencziana
de catástrofe. Certamente, pode-se questionar as razões que nos levaram a tra-
zer para este livro a noção de catástrofe, e ainda por cima a partir de Ferenczi,
para refletir sobre a pandemia. Cabe, a respeito dessa indagação e logo de saída,
afirmar que compartilhamos, com muitos outros que expuseram e continuam
expondo suas visões acerca da pandemia, que a mesma é uma catástrofe.
Entretanto, ainda que seja pertinente associar à pandemia o atributo de
catástrofe, é necessário esmiuçarmos o que esse atributo pode significar e,
sobretudo, que elementos pode trazer para entendermos e transformarmos a
citada questão vital que se nos impõe. Se para tanto elegemos Ferenczi, isso se
justifica por ele ter sido um autor, de dentro da psicanálise, que tomou a catás-
trofe como uma das categorias principais de seu pensamento (Torok, 2000).

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Para conseguirmos vislumbrar as potencialidades que essa noção adquire em Sabemos quão cara é, para Ferenczi, a concepção segundo a qual eventos
sua obra e, assim, atualizá-las para o momento presente – o que, acreditamos, catastróficos teriam feito surgir, de um oceano primitivo e universal, o mun-
pode trazer um pouco de alento para esse tempo que parece nos sufocar –, é do terrestre. Ele precisa, por um lado, que aí teria havido uma catástrofe e,
importante, no entanto, investigarmos os antecedentes epistemológicos que por outro, que essa catástrofe teria consistido em uma secagem dos oceanos
ofereceram as condições para que Ferenczi desenvolvesse sua ideia particular (Ferenczi, 1924). A esse respeito, importa sublinhar que Ferenczi atribui ao
de catástrofe. Um estudo epistemológico acerca da noção não pode ser ne- clima, isto é, à temperatura, o fator decisivo dessa catástrofe. Ao propor a catás-
gligenciado, visto introduzir algumas ideias essenciais, como as de tempo, de trofe da glaciação, responsável pela hominização e a partir da qual Freud des-
transformação e de criação. Após essa etapa preliminar, vamos apresentar a creveu os eventos que antecederam Totem e tabu, a temperatura, como se pode
noção de catástrofe conforme formulada por Ferenczi, para então tecermos notar, desempenha um papel não negligenciável (Freud, 1915; Ferenczi, 1924).
algumas reflexões acerca da pandemia. Ainda que se possa rastrear, no século xviii, a origem da ideia de catás-
trofe que influencia decisivamente Ferenczi, um abismo o separa das con-
cepções daquela época. É verdade que se encontram em Benoît de Mallet e,
Catástrofe na história natural e na biologia principalmente, em Buffon relações entre as catástrofes sofridas pelo planeta
e suas consequências nos seres vivos. Contudo, como bem observa François
A ideia de catástrofe marca sua entrada no campo da história natural no sé- Jacob, verifica-se nesses e em outros historiadores naturais oitocentistas uma
culo xviii. Até então, tanto o planeta quanto os seres que o habitam não nítida separação entre a história da Terra e a história das espécies, como se
possuíam história (Jacob, 1970). Todos os animais, todas as montanhas, todos ambas traçassem linhas paralelas que, somente em poucos pontos, entrariam
os rios e os mares preservavam sua forma desde a Criação ou, pelo menos, em contato entre si. para depois se distanciarem (Jacob, 1970). Para Buffon,
desde o Dilúvio. Os seres vivos estavam distribuídos em uma ordem perfeita, por exemplo, as catástrofes que remodelam os territórios seriam responsáveis
em uma hierarquia fixa, e não havia razão para pensar que eram entidades quase tão somente pela redistribuição dos seres vivos no globo, mas nunca –
precárias e transitórias, produtos de incontáveis transformações pretéritas, ao menos nunca significativamente – pelas suas transformações.
sujeitos a imprevisíveis variações futuras. Somente ao longo do século xix é que as histórias da Terra e dos seres
A descoberta de fósseis de conchas, plantas e animais marinhos em re- vivos, antes separadas, convergem para uma só história. A partir de então, há
giões afastadas do mar, e até mesmo no alto de montanhas, iniciou uma de- uma interação inextrincável e de mão dupla entre as transformações da Terra
sestabilização de largas consequências na concepção que se tinha. Os fósseis e dos seres vivos. Isso se deve, em parte não negligenciável, ao desenvolvimen-
revelavam que a Terra não tinha sido a mesma desde sempre. Pelo contrário, to da ideia de meio. Tomada de Newton, para quem o meio – o éter – seria o
ela sofrera inúmeras transformações, e essas transformações estavam in- veículo que transmite a ação de um corpo sobre outro corpo, a história natu-
dissoluvelmente ligadas à ocorrência de catástrofes de grandes magnitudes. ral e, depois, a biologia irão progressivamente absorver e modelar essa noção
Observa-se, assim, que a ideia de catástrofe protagoniza a introdução da his- até transformá-la em um conceito (Canguilhem, 1965). É verdade que Buffon
tória, e sobretudo do tempo, nas concepções oitocentistas sobre o mundo vivo. e Lamarck empregam essa ideia. Lamarck trata das circunstâncias exteriores
A princípio, simplesmente um oceano universal, de onde iniciou-se e que interferem na progressão natural de um organismo rumo a sua maior
consolidou-se a vida, a Terra sofreu sucessivas catástrofes que fizeram emer- complexificação, e, associando cada elemento da natureza com um meio di-
gir um continente, e desse continente tantas outras catástrofes o levaram a ferente (a água, o ar), acaba por descrever os “meios” de forma relativa e no
se dividir e a gerar múltiplas e heterogêneas paisagens. Portanto, da mono- plural. O meio torna-se um conceito primário e abstrato, como o conhecemos
tonia de uma superfície integralmente formada pelo mar, sobrevêm extensas atualmente, somente a partir de Auguste Comte (Canguilhem, 1965).
porções de terra que, por sua vez, são esculpidas e decalcadas em diferentes Ferenczi é tributário, pois, da ideia de catástrofe conforme estabelecida
formatos (Jacob, 1970). As catástrofes seriam as grandes artífices dessas trans- no século xviii, mas somente até certo ponto. A ideia de meio, enquanto um
formações, dando ao planeta um passado e um futuro, e ao mesmo tempo sistema complexo de interações entre o vivente e o que o cerca, enquanto um
legando-os – o passado e o futuro – à incerteza e à instabilidade. nó que mistura as histórias do planeta e do vivente, é absolutamente essencial

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em seu pensamento, e tal sentido só pode ser localizado no século xix. Sabe- de impulso imanente do ser vivo em direção a uma maior complexidade e à
mos que Ferenczi, junto a Freud, se encontra mais próximo de Lamarck, mas perfeição, conforme proposta pelo naturalista francês. Ferenczi recusa essa
sua leitura de Lamarck é mediada, de maneira incontornável, por um conceito ideia e qualquer outra análoga, como a de elã vital de Bergson, e assevera que
de meio do qual o naturalista francês não dispunha. Se, sob a perspectiva a única força em ação nos processos de transformação das espécies, quan-
da ideia de catástrofe, há algum autor que possui uma proximidade signifi- do submetidas a uma catástrofe, é a regressão talássica, isto é, uma espécie
cativa com a teoria esboçada por Ferenczi em Thalassa, este autor é Cuvier: de força de atração que leva o ser vivo a realizar tentativas de restabelecer
para este, com base nos estudos dos fósseis e das formações geológicas, o um estado anterior à catástrofe sofrida – em última instância, de retornar ao
planeta teria sofrido sucessivas catástrofes, verdadeiras revoluções em sua oceano universal primitivo (Ferenczi, 1924).
superfície, as quais teriam forçado as espécies a incontáveis transformações
(Jacob, 1970; Foucault, 1984).
Na mesma medida em que, no século xix, a concepção de meio toma for- Catástrofe em Thalassa
ça, a de catástrofe torna-se progressivamente questionável, e isso por obra de
duas frentes (Jacob, 1970). De um lado, a geologia afirma não haver necessi- A noção de catástrofe surge e adquire uma centralidade inquestionável no
dade de considerar as transformações do planeta como se dando por eventos pensamento ferencziano em Thalassa. Esse ensaio não apenas inaugura uma
excepcionais, sendo mais acurado dizer que elas, as transformações, são pro- nova (e natimorta) disciplina científica, a bioanálise, como também forma-
dutos de processos contínuos e homogêneos. De outro, o darwinismo recusa liza um método, o utraquismo, e fabrica uma narrativa histórica sobre como
a ideia de evolução por saltos derivada de catástrofes; em vez disso, a história o coito adquiriu sua forma atual na espécie humana (Ferenczi, 1924; Câmara
evolutiva das espécies é um processo gradual, encabeçada pela reprodução, a & Herzog, 2014). Cada etapa, cada parte e movimento do corpo, cada alte-
qual abre espaço para pequenas mutações contingenciais que podem ser fa- ração fisiológica, cada experiência emocional envolvidos no ato sexual são
vorecidas ou não pelos fatores ambientais. Curiosamente, apenas em meados decompostos e remetidos a épocas ancestrais. Tomado em seu conjunto, o
do século xx, a ideia de catástrofe volta a adquirir certa preeminência, par- coito, em sua configuração atual, é a expressão de uma história de transfor-
ticularmente no campo da topologia. O matemático René Thom, inspirado mações, e essas transformações são resultantes de adaptações às grandes ca-
pelas concepções de embriologia de Conrad Hal Waddington, desenvolve a tástrofes que assolaram a Terra e, ao mesmo tempo, os seres que nela viviam
teoria das catástrofes para descrever a morfogênese, isto é, a criação de no- (Câmara & Herzog, 2018).
vas formas. Segundo Thom, uma estrutura qualquer sofreria uma instabi- Ferenczi postula cinco catástrofes, desde a que deu surgimento à vida até
lidade crescente até chegar a um ponto crítico no qual se reorganizaria em a responsável pela hominização. Fundamentando-se na chamada “lei bioge-
uma nova forma. Esse ponto crítico seria o ponto k, quer dizer, o ponto de nética fundamental”, proposta pelo darwinista Ernst Haeckel, segundo a qual
catástrofe (Thom, 1972). a ontogênese repete a filogênese, Ferenczi estabelece paralelos entre as ca-
Seja como for, nota-se que Ferenczi seleciona, voluntariamente ou não, tástrofes que assolaram os viventes em tempos ancestrais e a repetição delas
elementos esparsos de dois séculos de teorizações da história natural e da na vida atual de seus descendentes. Em outras palavras, o indivíduo – aqui,
biologia para compor sua concepção de catástrofe, tal como exposta em Tha- indivíduo é um atributo que se opõe à espécie – sofre catástrofes em sua his-
lassa. Isso nos impossibilita de inseri-lo em dado ramo genealógico da histó- tória ontogenética que são repetições abreviadas das catástrofes às quais seus
ria do pensamento ou de afirmar sua adesão ou recusa radical a determinado descendentes foram submetidos em sua relação com o meio. O nascimento,
autor que o precedeu. Mesmo que ele afirme, de próprio punho, que se sente processo no qual o feto é expulso de um meio aquático para habitar um meio
mais próximo de Lamarck do que de Darwin, a proximidade e o afastamento terrestre (ou aéreo), seria uma catástrofe individual que repete a catástrofe da
aí descritos não são cisões. secagem dos oceanos (Ferenczi, 1924).
De Lamarck, por exemplo, as ideias de desejo, de adaptação e de novas Conforme antecipado, essa catástrofe da seca e consequente emergência
necessidades impostas pelas circunstâncias exteriores são afirmadas e desen- de largas extensões de terra afigura-se como o principal evento sobre o qual
volvidas por Ferenczi. Não se pode dizer o mesmo em relação à concepção Ferenczi se debruça para construir sua teoria. Populações massivas de seres

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vivos que habitavam o meio aquático se viram, subitamente, lançadas e aban- respeito não ao retorno a uma situação anterior per se, mas a um momento
donadas no meio terrestre. A parcela das espécies que não sofreu extinção que deu certo, a um momento de potência de vida, o qual, paradoxalmente,
encontrou-se em um ambiente cujo modo de vida anterior não oferecia con- permite inaugurar e instaurar novas alternativas, novos modos de vida na si-
dições mínimas de sobrevivência. Ainda que seja plausível postular a ocor- tuação posterior à catástrofe. Para Ferenczi, em suma, progressão e regressão
rência de um interregno, no qual as porções de terra guardariam certa umidade são dois processos simultâneos.
e, assim, poderiam oferecer um ambiente mais próximo do aquático, os viven-
tes foram forçados, de maneira incontornável e inegociável, a se adaptarem ao
meio terrestre (Ferenczi, 1924). A adaptação consiste, assim, na construção de Catástrofe e normas vitais
um novo modo de vida – o que implica até mesmo alterações estruturais do
corpo –, de forma que se continue a sobreviver em um meio completamente Observa-se que Ferenczi partilha, tanto com seus antecessores quanto com
novo e, caso se persevere nas condições antigas de vida, inóspito. aqueles que o sucederam, ao menos alguns pontos de concordância quanto
Ferenczi introduz três pontos que tornam sua ideia de adaptação muito à ideia de catástrofe: ela é considerada uma força morfogenética, isto é, res-
particular (Câmara, 2018). Em primeiro lugar, a adaptação consiste em um ponsável pela criação de novas formas; ela consiste em uma descontinuidade
processo de destruição parcial da forma de vida a que se visa substituir. entre as condições anteriores e posteriores; ela representa a história como
Reduzida a componentes mais simples, a parte que foi destruída possui maior uma sucessão violenta e brutal de eventos que provocam, como bem o expri-
plasticidade, no sentido de ser remodelada e gerar estruturas mais bem afei- me Cuvier, revoluções absolutamente incontornáveis.
tas ao novo meio (Ferenczi, 1934). O sistema respiratório do ser marinho, na No que diz respeito à dimensão morfogenética das catástrofes, Can­
medida em que é inadequado para capturar o oxigênio no ar, é progressiva- guilhem desenvolveu dois conceitos relacionados ao campo da vida, perti-
mente dissolvido e dele se formam os pulmões etc. nentes para esboçarmos uma leitura da ideia de catástrofe em Ferenczi: o de
Em segundo lugar, entre as transformações a que é submetido, o sobre- norma e o de normatividade. A norma envolve duas funções inextrincáveis
vivente introjeta o ambiente que perdeu com a catástrofe: se ele foi exilado (Canguilhem, 1966). A primeira consiste em atribuir valor aos acontecimen-
do ambiente aquático, recria, agora dentro de si, um meio aquático. O ser tos. Mesmo no plano de vida mais simples, os valores são distribuídos em
transforma-se no ambiente do ambiente perdido (Ferenczi, 1924). O exemplo dois polos: aquilo que é bom e aquilo que é ruim para o organismo. A segun-
mais sustentado por Ferenczi é o do útero e, enfim, de todas as estruturas da função da norma é a regra, quer dizer, a diretriz de ação acoplada ao valor.
que envolvem o feto humano: este vive, literalmente, em um meio aquático, O que é bom agrupa certas ações, como a de se aproximar do acontecimento,
assim como a mãe viveu, quando era um feto, e assim como nossos ancestrais ao passo que o que é ruim envolve ações opostas, como a de se distanciar de
viveram, quando no oceano primevo. O processo de introjeção do ambiente um acontecimento. Se a norma é aquilo que a vida estabelece para valorar o
é classificado como uma “perigênese”, a qual é alicerçada como uma categoria mundo e organizar ações sobre ele, a normatividade exprime o processo no
do mesmo porte da ontogênese e da filogênese. qual o vivente modifica as normas que fundamentam o seu modo de vida.
O terceiro ponto que Ferenczi descreve a propósito da adaptação é o Em outras palavras, a normatividade é a capacidade de reorganizar a maneira
fato de que, ainda que o sobrevivente da catástrofe seja submetido a uma de viver, rejeitando certos valores e regras com o intuito de constituir novos
variedade de transformações, ele tende, em alguma parte sua, a retornar ao signos e regimes de ação. Como se pode notar, Canguilhem postula uma es-
ambiente que perdeu com a catástrofe. A essa tendência dá-se o nome de pécie de ética vital.
“regressão talássica” (Ferenczi, 1924). Longe de a finalidade evolutiva ser o Antes de prosseguirmos no uso dos conceitos de norma e normatividade,
aperfeiçoamento ou progressão da espécie, a tendência a que todos os seres é necessário precisar que o médico filósofo, à esteira de Kurt Goldstein,
estão submetidos é, em última instância, a regressão. Se, de forma imediata, possui uma concepção distinta de catástrofe quando comparado a Ferenczi.
a adaptação visa estabelecer um modo de vida que seja adequado ao novo Em primeiro lugar, para Canguilhem e Goldstein, catástrofe é um atributo
ambiente, o horizonte é sempre a regressão, isto é, o retorno a um mundo ligado à reação do organismo. Daí utilizarem a expressão “reação catastró-
do qual se foi exilado. É necessário, contudo, esclarecer que a regressão diz fica”. Em segundo lugar, a catástrofe – ou melhor, a reação catastrófica – diz

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respeito a um problema específico: a patologia ou o processo de adoecimento Catástrofe e pandemia
(Canguilhem, 1966). Para esses autores, a reação catastrófica se refere a uma
experiência na qual o organismo, quando doente, não encontra condições de Em que pese a catástrofe da secagem dos oceanos ser o cenário no qual Fe-
continuar vivendo no mesmo meio que o cercava antes da doença, uma vez renczi se debruça para estabelecer a história evolutiva da vida sexual dos
que reduz o alcance de sua normatividade. A reação catastrófica é algo rela- seres terrestres e, em última instância, da espécie humana, destaca-se a im-
cionado, portanto, primariamente ao indivíduo e secundariamente ao meio. portância por ele atribuída à respiração. A passagem da vida aquática para
Se, por exemplo, uma pessoa está infectada pelo novo coronavírus e seu a terrestre impôs a dramática luta pela constituição de um novo modo de
quadro se agrava a tal ponto que entra em estado de síndrome respiratória respirar. O nascimento de cada ser humano repete essa luta: o choro e o grito
aguda grave, seu organismo entra em reação catastrófica, pois não consegue representam, por um lado, a ruptura do meio no qual se estava abrigado e,
mais, por seus próprios meios, respirar. Para que isso seja possível, precisa ser por outro, o ato imprescindível para inaugurar um novo modo de respirar
internada e acoplada a um respirador artificial, isto é, inserida em um novo am- no meio inédito para o qual se foi lançado (Ferenczi, 1924). Sabemos, com
biente. Em contraste, para Ferenczi, a catástrofe diz respeito a um evento vindo Freud, que esses comportamentos são as reações motoras mais concretas de
do fora – a um colapso do meio –, o qual afeta indistintamente todos que se uma experiência emocional que, uma vez vivida, passará a ser o protótipo do
encontram envoltos por esse meio. Em outros termos, para o psicanalista, a ca- afeto da angústia. Sabemos também como o mesmo Freud traça uma relação
tástrofe diz respeito, primariamente, ao meio e, secundariamente, ao indivíduo. íntima entre a angústia e a respiração (Freud, 1917; 1926).
Retomando os conceitos de norma e normatividade, entendemos que, Balint, discípulo e herdeiro de Ferenczi, ao expor sua visão de como deve
para Canguilhem, um modo de vida é um conjunto complexo e interativo ser a relação entre a criança em um estado pós-natal precoce e os objetos,
de normas tecidas entre o ser e o meio que, estabilizadas, estão não obstante frequentemente utilizava, como analogia, a nossa atividade irrefletida e ga-
em perpétua ameaça de entrar em instabilidade, até se tornarem inválidas e rantida de respirar. Nós necessitamos do ar e, não obstante isso, se o temos
se reorganizarem em novas normas, mais adequadas ao ambiente. Um modo à nossa disposição, não nos atentamos a ele e, muito menos, consideramos
de vida e as normas que o compõem estabelecem a margem de liberdade e sua existência. Dele retiramos o que precisamos e nele lançamos o que não
de ação do vivente, o que significa dizer que, da mesma forma, traçam e de- precisamos (Balint, 1967). Não há nenhum contorno, não há nenhuma de-
lineiam os limites de viabilidade da vida em sua interação com o ambiente. limitação, não há nenhum dado que desperte nossa consciência quanto ao
Limites fora dos quais, acrescente-se, o vivente é lançado a um território de ar que respiramos constantemente. Pelo menos, não enquanto o tivermos à
risco e eminentemente atentatório à sua existência. nossa disposição.
Com Ferenczi, consideramos que a catástrofe é um evento que desafia Na medida em que esse mesmo ar – que está dentro e fora de nós, e o qual,
modos de viver consolidados e, portanto, que provoca uma ruptura tanto da não obstante sua necessidade vital, utilizamos sem nenhuma concernência –
margem de liberdade e de ação quanto dos limites estabelecidos da existência é o meio, o veículo através do qual o coronavírus passa de um corpo para
(Câmara, Herzog, Pinheiro et al., 2017). Se a catástrofe invalida as normas outro, ele forçou sua materialidade e o ato de respirar tornou-se um problema.
consolidadas, rompendo os limites de segurança da vida e catapultando o ser A pandemia reativou em todos, ainda que em diferentes latitudes e propor-
para um além dos limites, esse além dos limites, entretanto, consiste poten- ções, a luta para respirar e a angústia a ela associada. Se é lícito qualificar a
cialmente na reformulação de novas normas, na instauração de novos limites, pandemia de sars-cov-2 como uma catástrofe, parece-nos que o ar e a res-
enfim, na geração de um novo modo de viver, tão vulnerável e precário, é piração retornaram como elementos centrais, os quais, uma vez ameaçados
verdade, quanto o anterior. Não se esquecendo de que as adaptações e reações e afetados pela emergência do vírus, fizeram irradiar uma rede de fraturas
de cada vivente à catástrofe são heterogêneas, gerando múltiplas vicissitudes, e colapsos em diferentes aspectos da realidade humana – denunciando, de
ainda que se bifurquem em dois grandes destinos mutuamente excludentes: forma mordaz, que todos esses aspectos são, afinal, entrelaçados, e impondo
a extinção ou a transformação do modo de vida. Sendo o destino a transfor- a todos transformações de largas consequências em seus modos de vida.
mação – e é esse o destino no qual Ferenczi aposta –, não se pode prever nem O indivíduo cujo quadro clínico se agrava para uma síndrome respirató-
antecipar, a priori, que configuração tomará. ria aguda grave perdeu a capacidade mais básica de respirar. Todo o seu orga-

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nismo se mobiliza, sem sucesso, para lutar contra esse estado. O processo, em da alma. Não à toa, ambas as palavras guardam uma surpreendente seme-
sua totalidade, é tão trágico, é de tal maneira eivado de horror, que somente lhança na língua hebraica: alma é “neshama”, respiração é “neshima”. Jung
o termo “agonia” é adequado para qualificá-lo. Sem possibilidade de respi- acrescenta que o termo hebraico ruah e o árabe ruh “significam alento e es-
rar às suas próprias custas, o sujeito está radicalmente dependente do outro pírito” (Jung, 1928 | 2015: 23), do mesmo modo que a palavra grega pneuma.
para continuar a lutar pelo ar de que necessita. O outro que pode ampará-lo, Pneuma que, com os estoicos, alicerça uma categoria fundamental de sua
entretanto, não consiste no Nebenmensch, isto é, no próximo, mas em uma Física, guardando três níveis de tensão e diferenciação: como hexis, coesão
complexa rede formada por profissionais de saúde, medicamentos, máquinas de todas as coisas; como physis, o princípio da vida de todos os viventes; e
de respiração artificial, ambiente hospitalar, diretrizes de tratamento, tecno- como psyché, a alma de todos os animais que percebem, se movimentam e se
logia de ponta, grandes aportes financeiros, decisões micro e macropolíticas. reproduzem (Sellars, 2006).
Mesmo que todos esses elementos se articulem eficazmente, o desfecho
da luta pelo ar não é necessariamente bem-sucedido, tendo, ao contrário, não
raras vezes um prognóstico aterrador. Entretanto a escassez de alguns desses À guisa de conclusão
elementos e a falha em outros, ao produzir buracos e curtos-circuitos na rede,
vêm catalisando um processo acelerado e virtualmente evitável de perda de Para concluir, a catástrofe da pandemia de sars-cov-2 modificou nossa ma-
vidas, sobretudo de camadas mais vulneráveis da sociedade; expandindo a neira de viver, nossas normas de vida, nossos limites quanto à vida, nossas
sensação, cada vez mais próxima, de ameaça de morte e de ausência de espe- concepções sobre o que nos faz viver. As descontinuidades e fraturas dela
rança; dilatando, enfim, a incerteza quanto à duração, aos custos individuais advindas são percebidas nas fábricas e escolas vazias, nos pratos e mesas va-
e sociais, e às consequências de longo prazo dessa catástrofe. zios, nos consultórios e no tempo vazio. Quais serão as transformações, quais
Ao associar-se ao desamparo, o ato de respirar tornou-se, portanto, uma delas serão boas ou ruins, quais delas vão perdurar e quais não vão, que novas
das raízes dos motivos morais que se tornaram mais urgentes na pandemia. formas de vida, de sociabilidade e de ética vão se estabilizar, enfim, o quanto
O grito de impotência de George Floyd, “I can’t breath”, ao misturar o ar, a sairemos mudados, feridos ou fortalecidos, não podemos prever.
morte e as práticas de imobilização, solidificou-se em um monumento de No momento em que estas linhas são escritas, no qual paisagens conti-
questionamento ético sobre a violência policial. As medidas de distancia- nuam desmoronando e se erguendo em formas insólitas diariamente, parece-
mento e isolamento social, somadas ao uso de máscaras, fez todos se torna- -nos, entretanto, que não devemos nos desviar do exercício diário de, estando
rem responsáveis pelo ar que respiram e que expelem, estabelecendo, assim, no interior desta catástrofe, assumirmos como dever o processo de adaptação
um problema ético sobre o ar que compartilhamos uns com os outros: não conforme proposto por Ferenczi em seu mais pleno sentido: não como uma
o ar que poluímos com máquinas, mas o ar que utilizamos para as nossas mera submissão e perda de nós próprios diante das circunstâncias, não como
necessidades mais vitais, o ar que entra em nós saído do outro, o ar que sai de uma assunção de um “novo normal” ou algo correlato, e nem como uma
nós e entra no outro, o ar, enfim, que está entre nós e o outro, o ar que está esperança passiva associada a uma ruminação nostálgica – mas como o dever
em nós e no outro. de criar outras formas de estar no mundo com base nos restos e nos fragmen-
Importante evocar também que, ao nos forçar sentir sua inseparabilidade tos que a catástrofe produziu, e que clamam por uma transformação. Formas
da vida, o ato de respirar, na pandemia, fez retornar, com uma clareza ex- essas que se, por um lado, são inéditas, por outro, se reconectam a significa-
traordinária, intuições surgidas na aurora do pensamento humano, as quais dos ancestrais sobre o valor do ar que respiramos, do ar que nos envolve e do
insistimos em esquecer. O rabino Shlomo Buxbaum, ao refletir sobre o ano ar que trocamos com todas as coisas.
novo judaico (Rosh Hashanah), afirma que tocar o shofar é o único dos mais
de seiscentos mandamentos que consiste em ser cumprido usando a respira-
ção (Buxbaum, 2020). Os toques desse artefato, segundo o rabino, “marcam o
nascimento da humanidade, quando Deus ‘soprou’ nas narinas do homem a
sua alma, dando-lhe o ‘fôlego da vida”. A respiração seria, assim, um símbolo

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paulo sérgio de souza jr.

Fala boa, língua ruim:


função e campo do geral e do extraordinário

E então, coléricos, nos despossuíram, nos


arrebataram aquilo que havíamos guardado
como um tesouro: a palavra, que é o arco da
memória.
Anônimo (Tlatelolco, México)1

Toda alteridade é linguística

Paradigma corrente nas discussões sobre alteridade, a ideia de que a língua


é o que marca os limites entre os povos é algo muito presente ao longo da
história humana, em sentido amplo, mas também das pessoas em suas mais
diversas segregações dentro de um mesmo povo, nas suas interexclusões co-
tidianas. Para muitos, talvez a mais icônica figuração desse paradigma resida
no lugar ocupado pelo bárbaro no universo grego, isto é: bárbaro como sen-
do aquele que não fala a língua da civilização.
A ideia aqui é tentar desdobrar um pouco mais a reflexão, distinguindo os
matizes presentes nessas questões, que venho procurando investigar nos úl-
timos anos, a respeito das possíveis interfaces da diversidade linguística com
a psicanálise (Souza Jr., 2014, 2019, 2021). Não apenas no sentido de pensar o
que fazer e como, mas, antes mesmo, de procurar reconhecer o que foi feito
e a que custo, justamente nesse panorama em que nós nos metemos, isto é:
ter de nos haver com esta teoria importada, chamada de psicanálise; mas uma

1 Citado como epígrafe por José Ribamar Bessa Freire (2004 | 2011).

89
teoria importada que não é qualquer, tendo em vista o fato de ela ser edifica- que distingue a psicanálise de outras abordagens do psíquico. Dali a cinco
da justamente sobre uma prática linguística. E isso mais especificamente nes- anos, escrevendo para o suíço Oskar Pfister, pastor luterano e psicanalista, vai
sas nossas bandas latino-americanas da cartografia psicanalítica – ou, como dizer que o shibōleth de sua ciência era a sexualidade, distinguindo-se então
diria Derrida, geopsicanalítica –, o que não deixa de ter lá as suas implicações da escola de Zurique – o que havia coroado, poucos anos antes, o fim do ro-
(cf. Derrida, 1981). mance teórico e político-institucional com C. G. Jung (Freud, 1919a | 1998: 71).
Seres esquisitos, que costumamos atribuir um certo papel inusitado à Em 1920, numa nota acrescentada a Três ensaios sobre a teoria da sexualida-
palavra, aqueles que praticam a psicanálise são potencialmente instigados – de, é o Édipo que ocupa esse lugar, quando Freud afirma que reconhecê-lo
digo “potencialmente”, pois isso depende de a qual perna do elefante freudia- tornou-se o shibōleth que distingue entre aqueles que são os adeptos e aque-
no nós nos agarramos – a tirar consequências do fato de que não se nasce com les que são os opositores da psicanálise (Freud, 1905 | 2016: 149). E três anos
uma língua e que, no limite, toda língua é estrangeira para todo e qualquer depois é o conceito de inconsciente que, por sua vez, será apontado como o
falante (Leite & Souza Jr., 2021). Bem, mas se é um fato que, uma vez dentro primeiro shibōleth psicanalítico (1923 | 2011: 15). Por fim, logo no começo das
de uma língua, ela se torna um lugar de relativo conforto, o incômodo com Novas conferências introdutórias à psicanálise, os sonhos voltam a ocupar esse
a diversidade linguística – sobretudo para nós, brasileiros, que geralmente lugar (Freud, 1933 | 2010: 126): o lugar daquilo que, por ser o que haveria de
aderimos ao mito do monolinguismo – cai facilmente na chave de uma espé- mais característico e peculiar da psicanálise, desempenha o papel de decidir
cie de maldição, como nos ensinou um outro mito, a saber: a Torre de Babel entre quem poderia se tornar um adepto e quem continuaria vendo, no cam-
(Gn 11:1–9). E é a partir desse lugar de maldição que se abre a possibilidade po da psicanálise, uma coisa inteiramente incompreensível.2
de procurar formas de conjurá-la; por exemplo, mediante a proposta de uma O shibōleth (xibolete, em português) denuncia, então, que alguém, ainda
língua artificial, como o esperanto de Ludwik Ł. Zamenhof (Morais & Souza que pareça falar a nossa língua, no fundo não fala; ou, pelo menos, não como
Jr., 2007). Assim, nós nos vemos obrigados aqui a pensar outra saída que não nós. E isso nos dá, no mínimo, uma garantia aparentemente boa de se ter:
seja negligente, mas que também não seja especialmente conciliatória. a de que nós sabemos, então, qual língua estamos falando – o que nos leva a
Na psicanálise, a ideia de barbárie não foi exatamente aquela que se pri- um segundo postulado.
vilegiou para pensar a língua do outro, a língua como uma espécie de divisor
das gentes. Interessado sobretudo no que nos escapa, no que dá com a língua
nos dentes, o edifício teórico freudiano vai realçar a figura do delator que aju- Toda identidade é linguística
da a deliberar pela inclusão ou exclusão do falante de um certo contexto, de
uma certa cena: aquilo que denuncia, que entrega o falante, por assim dizer. Paradigma corrente nas discussões sobre identidade, a ideia de que a língua
Para isso serviu um elemento bíblico curioso: o shibōleth [‫]שבולת‬, ao qual é o que marca a unidade de um povo é algo muito presente ao longo da
S. Freud recorreu diversas vezes ao longo de sua obra. história humana, em sentido amplo, mas também das pessoas em suas mais
O termo hebraico está associado a um episódio relatado no Antigo Tes- diversas agremiações dentro de um mesmo povo, nas suas interinclusões
tamento, mais precisamente no livro dos Juízes (12:4–6). Reza a lenda que o cotidianas. Para muitos, talvez a mais icônica figuração desse paradigma
povo de Efraim, após ter sido derrotado pelo povo de Gileade, bateu em reti- resida no lugar ocupado pelo grego no universo bárbaro, isto é: grego como
rada e quis cruzar o rio Jordão, que era vigiado justamente pelos vencedores. sendo aquele que – apesar de viver em um território fragmentado, salpi-
Estes, para identificar os fugitivos, obrigavam quem tentasse atravessar o rio cado pelas beiradas do Mediterrâneo – fala uma mesma língua, a qual lhe
a pronunciar um termo banal: shibōleth (espiga de trigo). E nessa os efraimi- confere certa unidade.
tas eram sempre pegos – e executados, evidentemente –, pois pronunciavam
sibōleth.
Ecoando essa passagem, em que um traço do sotaque era alçado a ele-
mento decisório numa questão de vida ou morte, Freud diz em 1914 que os 2 Na esteira desses usos freudianos, outras afirmações são possíveis. Por exemplo, Douglas
sonhos são o shibōleth da psicanálise (Freud, 1914 | 2012: 314) – isto é, aquilo Kirsner argumenta que a análise didática é o xibolete do ensino psicanalítico (Kirsner, 2010).

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Mas, barbaridades à parte, as civilizações sempre estiveram em contato. primeiro em tudo (e todos) que puderam dos povos originários na região.
E as fronteiras, relativamente permeáveis, por vezes não se deixavam definir Ao passo que o Tupi Amazônico, que passou a ser conhecido como Nheengatu,
direito.3 Nesse contato surgem línguas, línguas de contato: pidgins,4 criou- era falado em áreas extensas do território amazônico, e ainda hoje se faz pre-
los5 etc. Aqui na América Latina, por exemplo, as línguas de comunicação sente – consistindo, inclusive, em uma das 14 línguas cooficiais de municípios
inter­étnica já existiam bem antes da chegada de Colombo, e foram diferentes brasileiros.6
as estratégias mobilizadas pelos europeus em relação ao uso desses idiomas. Os portugueses acharam por bem fortalecer as línguas gerais por uma
No universo hispânico, por exemplo, as suas funções como línguas gerais fo- simples razão: ao permitir a comunicação, elas viabilizavam e otimizavam
ram logo identificadas pelos colonizadores europeus: o náhuatl no território o projeto colonial – o que teve também como efeito, não por acaso, o en-
mesoamericano; o quéchua na região andina; o guarani na planície do Chaco fraquecimento de diversas línguas locais e, por sua vez, identidades locais.
e no Paraguai. Todas essas línguas passaram a ser não apenas utilizadas, mas Assim, o tupinambá foi escolhido para desempenhar as funções de língua
também legalmente reconhecidas pela administração colonial espanhola, al- geral, com o apoio do governo e da Igreja, marcando sua presença desde
gumas delas chegando a ser ensinadas em universidades no Peru e no México, o primeiro dicionário7 publicado no Brasil no ano de 1613 até meados do
nos séculos xvi e xvii (Lagorio & Freire, 2014: 575–6). século xviii, quando a Coroa decidiu finalmente portugalizar o Grão-Pará,
Aqui mais para os nossos lados, as pesquisas do grande Aryon Rodri- proibindo o uso da língua geral e obrigando o uso do português – o que
gues (1996) pontuaram a presença de duas línguas gerais de base indígena levou um século para acontecer, efetivamente.8 Essa proposta, como afir-
tupinambá no território que hoje consiste no Brasil: a Língua Geral Paulista ma Bessa Freire, “inexequível no século anterior, tornou-se tecnicamente
(o Tupi Austral, de que o naturalista austríaco Von Martius havia falado) e a viável, graças, em tese, à universalização da língua geral, que havia dotado
Língua Geral Amazônica, ou Nheengatu (fala boa): a região de uma relativa unidade linguística, anteriormente desconhecida”
(Freire, 2004 | 2011: 251).
O exacto nome da lingua fallada no Brazil, segundo os proprios indios, é O cenário das línguas gerais no Brasil era tal que, durante a guerra do
Abanheenga ou Nheengatu, que teve depois a denominação de Tupy ou Gua- Paraguai (1864–1870), muitos soldados amazonenses que eram falantes ape-
rani, tirados dos que a fallavam no Norte ou no Sul. As línguas extrangei- nas de Nheengatu morreram no Paraguai falando uma língua que era com-
ras, dos conquistadores, eram por eles denominadas Karainheenga, ou falla preendida pelo inimigo, mas desconhecida por muitos de seus próprios co-
do estrangeiro, como aos dialectos dos naturaes inimigos denominavam mandantes europeus. Assim como havia soldados paraguaios que, falantes
Nheengaiba ou falla má (Rodrigues, 1905: 28). monolíngues de guarani criollo, ao serem feitos prisioneiros de guerra pelos

O Tupi Austral era falado no litoral brasileiro até meados do século xviii,
quando foi desaparecendo na mão dos paulistas, que, com as suas costumei-
ras bravatas de sempre estarem supostamente à frente, conseguiram dar fim
6 O Nheengatu é língua cooficial do município de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas,
desde o ano de 2002. Em tempo: há 14 línguas cooficiais em 34 municípios de nove estados
brasileiros (já oficializadas ou em tramitação): Tukano, Nheengatu, Baniwa, Guarani, Akê
3 Sobre línguas e fronteiras, é digno de nota o filme Portuñol (2020), dirigido por Thaís Xerente, Macuxi, Wapichana, Ingaricó, Saterê Mauê, Mebêngokrê (Kayapó), Pomerano,
Fernandes. Alemão, Talian e Hunsriqueano. Cf. Ipol (2020).
4 Línguas que surgem em contextos de urgência comunicativa, “quando os representantes 7 O primeiro dicionário brasileiro, um dicionário de anatomia, foi escrito em tupi. A seu
de dois grupos de falantes tiveram necessidade de comunicação imediata”, e que não têm respeito, cf. Ayrosa (1937).
falantes nativos (Hlibowicka-Węglarz, 2016: 36). 8 “Na passagem para o século xx, embora continuasse desempenhando o papel de língua
5 Língua de contato que se constitui como língua materna, implicando “a formação de de contato com comerciantes e regatões em área exclusiva do alto rio Negro, ela retornou
uma língua mista, cujo léxico é proveniente da língua dominante, mas as características à condição de língua de índios, com uso predominante nas práticas sociais étnicas, restri-
sistêmicas são da língua dominada” (Lagorio & Freire, 2014: 583). to aos grupos dentro das aldeias” (Freire, 2004 | 2011: 253).

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brasileiros, só podiam ser interrogados com o auxílio dos soldados amazo- e traços fonéticos característicos do multifacetado português brasileiro.
nenses que eram bilíngues em língua geral e português.9 Um deles, sobretudo do meio do mapa para baixo, é o traço muito interessante
O paradigma do bárbaro também se verifica aqui. Os falantes das lín- de um dos nossos dialetos: a execução fonética do erre retroflexo (chamado
guas do tronco tupi, que se compreendiam em Nheengatu, opunham-se aos de “/r/ caipira”), que foi levado pelos bandeirantes em direção ao Sul do país
chamados tapyia [tapuia], os falantes de “línguas travadas”, como diziam e ocupou uma parte significativa do mapa dialetal brasileiro.10
os jesuí­tas, por conta das dificuldades de pronúncia que elas impunham. Esse som – que, em termos anatômicos, faz com que a língua se volte sobre
Ora, cada qual com o seu shibōleth! Tapuia, portanto, era aquele que não era ela mesma – é muito comumente o xibolete que entrega os falantes do dialeto
nativo da fala boa, Nheengatu, e sim da fala ruim, Nheengaíba. caipira. E isso, vale dizer, não somente onde há o erre e outros falantes o pro-
O fato é que o próprio Nheengatu – que foi fala boa para os portugueses ao nunciariam de outra forma; afinal, o dialeto caipira também apresenta o dito
cumprir uma função precisa em seu projeto de entranhamento no universo e fenômeno da “rotacização do l”. Esse fenômeno, por exemplo, teria entregado
nos corpos sul-americanos —, quando pareado ao português, recebe o estatuto duplamente o soldado Manoel Coelho, que em 1807, forçado a se casar com a
de língua ruim, um nocivo nhe-nhe-nhem (o blablablá cunhado pelos portugue- filha de um fazendeiro, a qual teria seduzido, disse que não se casaria de jeito
ses com base no verbo “falar” desse idioma que era, então, digno de desprezo). nenhum: “nem por bem nem por mar” (Fioravanti, 2015). Somam-se a esse
Com isso, a dita língua brasílica foi silenciada, considerada um excesso, como, traço a chamada “iotização do lh” (palha vira paia, filho vira fio) e a ausência
aliás, a nudez e as moradias coletivas; ela e a memória a seu respeito, bem como de diferenciação entre o singular e o plural – plural que é marcado apenas pelo
o papel histórico por ela desempenhado durante tantos séculos no país (: 257). determinante (as pessoas vira as pessoa, as coisas vira as coisa, e por aí vai).
Se com a grande antropóloga Lélia González abriu-se a possibilidade de Com base nisso, aliás, José da Silva Lisboa (1753–1835), deputado baiano,
pensar tanto o negro quanto as suas línguas como uma figuração do objeto chegou a argumentar contra a instalação, no começo do século xix, da primei-
em nossa sociedade, ra universidade do país em São Paulo – a atual Faculdade de Direito do largo de
São Francisco, da Universidade de São Paulo (usp) – em razão do fato de que
E por falar em pretuguês, é importante ressaltar que o objeto parcial por ex- “nas províncias há dialetos com seus particulares defeitos”, mas “é reconhecido
celência da cultura brasileira é a bunda (esse termo provém do quimbundo que o de São Paulo é o mais notável”. Segundo ele: “A mocidade, fazendo aí os
que, por sua vez, e juntamente com o ambundo, provém do tronco linguís- seus estudos, contrairia sotaque mui desagradável” (apud Mena, 2018). E isso
tico bantu que “casualmente” se chama bunda). E dizem que significante nos leva ao terceiro e último postulado, para assim concluir esta breve reflexão.
não marca... Marca bobeira quem pensa assim. De repente bunda é língua,
é linguagem, é sentido, é coisa. De repente é desbundante perceber que o
discurso da consciência, o discurso do poder dominante, quer fazer a gente Toda língua é incômoda
acreditar que a gente é tudo brasileiro, e de ascendência europeia, muito
civilizado etc. e tal (Gonzalez, 1984: 238), Em seu ensaio de 1919, Freud pega carona com Ernst Jentsch (1906), num
ensaio escrito 13 anos antes, e tira consequências do fato de que no termo
talvez possamos então pensar a figura do índio e de suas línguas como alemão unheimlich [incômodo] mora a ideia de comodidade, de acomoda-
um intrangeiro; esse nativo que nos é estranho e, por isso, incômodo (Freud, ção. É ali onde nos sentimos em casa, portanto, que sempre pode brotar algo
1919b), mas que fala dentro da nossa língua: desde os nomes de plantas, co- que nos lembra que a morada nunca foi nossa; ou que, por mais que nos
midas, animais e lugares, mas também verbos e funcionamentos sintáticos tenhamos acomodado nela – à custa de muitos, cumpre dizer –, ela própria
reconhece o nosso despejo ao seu bel-prazer.

9 No fundo intitulado “Guerra do Paraguai”, pertencente ao Arquivo Histórico do Exército,


é possível consultar relatórios de interrogatórios com prisioneiros e demais documentos 10 O /r/ retroflexo é encontrado em São Paulo, mas também em Minas Gerais, Mato Grosso,
associados. Cf. Freire (2004 | 2011: 102). Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

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Se o inconsciente, isso que é estruturado como uma linguagem, é uma Referências bibliográficas
espécie de língua geral a que a psicanálise soube dar ouvidos, isso que há de
interétnico e supraindividual11 – que nos tornamos, enquanto analistas, mais ayrosa, Plinio
ou menos capazes de ouvir em meio ao nhe-nhe-nhem – é justamente a fala (1937) Os “Nomes das partes do corpo humano pella lingua do Brasil” de Pero de Castilho.
São Paulo: Revista dos Tribunais. Disponível em etnolinguística.wdfiles.com.
boa, a fala plena, com a qual trabalhamos. Assim, é preciso distinguir na es-
cuta analítica uma dimensão outra: não a que apaga as diferenças e apara as derrida, Jacques
rebarbas, mas sim justamente a que se interessa por aquilo que destoa, quan- (1981) “Géopsychanalyse ‘and the rest of the world”. In: Psyché: inventions de l’autre. Paris: Galilée,
1987, p. 327–52.
do a língua se volta sobre si mesma nos entregando, de bandeja, o significante.
Nessa toada, a palavra, retroflexa no tempo, diz a posteriori de onde vem fioravanti, Carlos
o sujeito – e isso quer o falante queira, quer não.12 E diz também de onde (2015) “Ora pois, uma língua bem brasileira”, Pesquisa Fapesp, n. 230, abril. Disponível em revis-
vieram aqueles que o colonizaram, seja no berço ou depois, ao longo da vida. tapesquisa.fapesp.br.
Ela marca o seu corpo, orgânico e social; a sua forma de investir o próprio freire, José Ribamar Bessa
corpo e o entorno. Assim, se há um português brasileiro ordinário – pretu- (2004) Rio Babel: a história das línguas na Amazônia. Rio de Janeiro: Eduerj, 2011. 2ª ed.
guês de substrato indígena, intrangeiro –, esse português definitivamente não
freud, Sigmund
é um, mas vários, extraordinários uns aos outros. (1905) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Obras completas, vol. 6: Três ensaios sobre
E se é esse idioma que nos escapa enquanto falantes relativamente aco- a teoria da sexualidade, Análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) e outros
modados não apenas na língua, mas no subsistente imaginário de coloniza- textos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 13–172.
dor, talvez valha a pena se deixar desacomodar pelos traços que nos fazem (1914) “Contribuição à história do movimento psicanalítico”. In: Obras completas, vol. 11: Totem
e tabu, Contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos. Tradução de
estranhos não somente a ele (o colonizador), mas a nós mesmos, entre nós, Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 245–327.
nos nossos acentos embranquecidos. Assentos em que muitas vezes a nossa (1919a) “Sigmund Freud an Oskar Pfister, 27.5.1919”. In: freud, Ernst L. & meng, Heinrich
escuta cochila para essas marcas que nos lembram que, algum dia, por inva- (Hrsg.) Sigmund Freud, Oskar Pfister: Briefe (1909–1939), Frankfurt am Main: S. Fischer
Verlag, 1998, p. 70–2. 2ª ed.
sores coléricos, povos foram despossuídos, arrebatados daquilo que haviam (1919b) O incômodo. Tradução de Paulo Sérgio de Souza Jr. São Paulo: Blucher, 2021 [no prelo].
guardado como um tesouro que sobrevive em nós, para o bem ou para o mar: (1923) “O eu e o isso”. In: Obras completas, vol. 16: O eu e o isso, Autobiografia e outros textos.
a palavra, que é o arco da memória. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 13–74.
(1933) Novas conferências introdutórias à psicanálise. Conferência 29: Revisão da teoria do
sonho. In: Obras completas, vol. 18: O mal-estar na civilização, Novas conferências in-
trodutórias à psicanálise e outros textos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo:
11 “O Outro é, justamente, o lugar do tesouro, digamos, das frases ou até das ideias feitas
Companhia das Letras, 2010, p. 126–56.
sem as quais a tirada espirituosa não pode adquirir valor e alcance. Mas, observe-se que,
ao mesmo tempo, não é nele que se visa seja lá o que for que é precisamente acentuado gonzalez, Lélia
como significação. Ao contrário, esse tesouro comum de categorias apresenta um caráter (1984) “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, Ciências Sociais Hoje 1984 [Anuário de Antro-
que podemos chamar de abstrato. Aludo aqui, muito precisamente, àquele elemento de pologia, Política e Sociologia], São Paulo, p. 223–44.
transmissão que faz com que haja nisso alguma coisa que, de certa maneira, é supraindi-
vidual, e que se liga por uma comunhão absolutamente inegável a tudo o que foi prepara- hlibowicka-weglarz, Barbara
(2016) “Pidgin, língua franca, sabir – um estudo terminológico”, Romanica Olomucensia, vol. 28,
do desde a origem da cultura. Aquilo a que nos dirigimos, ao visar o sujeito no plano dos
n. 1, Olomouc, p. 35–41.
equívocos do significante, tem, por assim dizer, um caráter singularmente imortal. É esse,
na verdade, o outro termo da questão” (Lacan, 1957–8 | 1999: 122–3). instituto de investigação e desenvolvimento em política linguística – ipol
12 A língua marca inclusive a identidade indígena ao longo da colonização: “Monolinguismo (2020) “Lista de línguas cooficiais em municípios brasileiros”. Atualizada em janeiro. Disponível
em http://ipol.org.br.
(Língua indígena) Índio tribal, “selvagem”, “brabo” | Bilinguismo (Língua indígena – Língua
Geral Amazônica) Índio “manso” | Monolinguismo (Língua Geral Amazônica) Índio “tapuio” jentsch, Ernst
| Bilinguismo (Língua Geral Amazônica – Língua Portuguesa) Índio “civilizado” | Monolin- (1906) “Psicologia do incômodo”. In: freud, Sigmund. O incômodo. Tradução de Paulo Sérgio
guismo (Língua Portuguesa) “Caboclo”: paraense, amazonense” (Freire, 2004 | 2011: 185). de Souza Jr. São Paulo: Blucher, 2021 [no prelo].

96 … p sican álise & an t rop o l o g ia : en fo qu e s i n terdi s c i p l i na re s fala boa, língua ruim … 97


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Jorge Zahar Eitor, 1999.

lagorio, Consuelo Alfaro & freire, José Ribamar Bessa


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ção de Estudos em Linguística Teórica e Aplicada, vol. 30, nº especial, São Paulo, p. 571–89. xamãs, psicanalistas e seus corpos retomados
leite, Nina & souza jr., Paulo Sérgio pela antropologia contemporânea
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(org.) Corpo [Psicanálise e parentalidade, vol. 4]. Belo Horizonte/São Paulo: Autêntica/
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morais, Marta Maria & souza jr., Paulo Sérgio


(2007) “esperanto-modelo: o que Zamenhof quis da língua”, Língua, Literatura e Ensino, vol. 2, desde os primeiros movimentos do pensamento psicanalítico
Campinas, p. 275–81. nos deparamos com momentos em que a remissão a registros etnográficos
rodrigues, Aryon D. e teses oriundas de um saber antropológico tiveram papel significativo na
(1996) “As línguas gerais sul-americanas”. In: papia: Revista Brasileira de Estudos do Contato retificação de concepções amparadas em racionalidades vistas como inques-
Linguístico, vol. 4, n. 2, São Paulo, p. 6–18. tionáveis à sua época. No interior do campo de uma práxis crítica, podemos
rodrigues, João Barbosa
dizer que a antropologia se apresenta como uma importante aliada da psi-
(1905) Mbaé kaá: tapyiyetá enoyndaua [A botânica e a nomenclatura indígena]. Rio de Janeiro: canálise no questionamento radical de discursividades dominantes. Por uma
Imprensa Nacional. Disponível em www.etnolinguistica.org/biblio:rodrigues-1905- espécie de traço contra-hegemônico, esta produziria uma abertura à escuta
mbae. Acesso em 12 de outubro de 2020. de temas e indagações por vezes desqualificados, postulados que ficavam
souza jr., Paulo Sérgio de fora da esfera do que seria reconhecido como legítimo num conjunto de
(2014) “Uma zona linguística franca: o psíquico”. In: rossi, Emiliano de Brito; tavares, Pedro saberes – fossem estes exteriores ou interiores à própria teoria psicanalítica.
Heliodoro & costa, Walter Carlos (org.) Psicanálise entre línguas. Rio de Janeiro: 7Letras, Nesta via, a antropologia, mais do que simplesmente tratar do Outro exóti-
2017, p. 17–26.
(2019) “O sexual no corpo da língua”, Gragoatá – Revista dos Programas de Pós-gradução do
co, externo, distante, teria a especial capacidade e a função de devolver uma
Instituto de Letras da uff, vol. 24, n. 49, Niterói, 2019, mai.–ago, p. 536–49; imagem de nós em que não nos reconhecemos (cf. Maniglier, 2002), ou seja,
(2021) “A língua do outro e a nossa: política, tradução e psicanálise”, Estudos avançados [online], de nos permitir reposicionar o sistema de pensamento em que assentamos
São Paulo, no prelo.
certezas mais elementares sobre nós e sobre o outro.
O potencial crítico deste contato, a título de ilustração, se mostra patente
desde o esforço de Freud, na esteira do pensamento de Charcot, de sustenta-
ção do quadro histérico como uma categoria nosográfica a ser acolhida pela
diagnóstica médica predominante no fim do século xix, momento em que
este se remete a descrições semiológicas recorrentes ao longo da história para
assinalar assim um valor antropológico da categoria da histeria (Freud, 1888);

98 … p sican álise & an t rop o l o g ia : en fo qu e s i n terdi s c i p l i na re s 99


ou ainda, quando da defesa da terapêutica pela palavra, descrita como uma Xamãs: afinal, quem são? O que fazem? Por que estudá-los?
forma de “magia atenuada” (Freud, 1905), que o levara à busca por modos
de intervenções discursivas eficazes na transformação de um dado estado Na exploração das potencialidades a serem extraídas desta tese, faz-se neces-
patológico. sário estabelecer o que delimitamos aqui como xamanismo. Uma definição
Mais próximo do tema que trataremos neste artigo, encontramos no operacional nos permite situar tal fenômeno com os termos nos quais foi
contato de Lacan com Claude Lévi-Strauss, e toda a operacionalidade e am- caracterizado pela etnologia indígena, no escopo de uma antropologia social.
pliação do método estrutural proposta por este, um evento que marcará o As representações ordinárias que circulam acerca do xamanismo, também
psicanalista de tal forma, que a obra do antropólogo receberá um lugar es- presentes nos meios psicanalíticos, tendem a restringir o campo de inscrição
pecial na constituição do extenso projeto de revisão global das bases de fun- deste aos modos de presentificação nas grandes cidades, e assim confundi-lo
damentação e formalização da prática psicanalítica, projeto conhecido como com formas híbridas provenientes de processos de assimilação transcultural.
“retorno a Freud”, vindo à luz nos anos 1950. Em outros termos, Lacan se As modalidades de práticas ritualísticas e religiosidades não ocidentais fago-
depara com uma antropologia há muito ansiada e na qual reconhece que, citadas por um capitalismo tardio, particularmente adaptadas por uma apro-
entre as diversas dívidas para com Lévi-Strauss – estas sempre manifestas –, ximação com um ideário neoliberal, se não são de todo estrangeiras à defi-
está uma ainda mais fundamental: é do contato com seu pensamento que nição etnológica, impõem um conjunto de variáveis que mereceriam uma
encontrará um meio de (re)ler Freud, ou melhor, de confiar em suas palavras análise em sua complexidade intrínseca, mas escapam a este trabalho.
(cf. Zafiropoulos, 2003).1 No contexto ameríndio, o xamã seria representado como multifacetado:
Em consonância com as pesquisas que realizamos em torno do estabele- “Ele pode, sim, ser ao mesmo tempo um gerente de recursos e um terapeu-
cimento de precisão conceitual ao sintagma “corpo do analista”, nos detere- ta, um porta-voz dos deuses e um estrangeiro político, um especialista dos
mos aqui nos modos como este é atravessado pelo horizonte de interlocução mitos e um observador fino e psicólogo, prestidigitador e artista” (Perrin
com a disciplina antropológica, especialmente a que se decanta de seus últi- 1995: 3). Se fôssemos conceber em que consiste a especificidade da sua prática,
mos desenvolvimentos. Ou seja, trataremos neste breve recorte de apresentar poderíamos colocar em relevo a extraordinária capacidade de comunicação
quais questões para a delimitação desta dimensão da prática clínica são trazi- com todos os seres actantes (para uma visão animista), sua possibilidade de
das à luz por um aprofundamento de categorias pouco exploradas e disponí- extrapolar limites e abrir vias de diálogo com outros mundos, aqueles não
veis neste vasto espaço de trocas com a antropologia social. acessíveis aos homens comuns.
E é precisamente no momento inicial do contato de Lacan com a an- Pensar o xamanismo nesta chave é tomá-lo, acima de tudo, como um sis-
tropologia lévi-straussiana que se encontra um postulado central para este tema. Em uma acepção mais ampla, este seria constituído por um conjunto
recorte. Ao fim dos anos 1940, em uma franca tentativa de explorar os limi- de ideias e representações particulares das formas de comunicação e alianças
tes das teses apresentadas em As estruturas elementares do parentesco (1949), intensivas estabelecidas entre os homens e os habitantes do mundo-outro –
Lévi-Strauss traz a dimensão da intervenção terapêutica como objeto de es- mundo dos “espíritos”, dos duplos, dos entes divinos ou, simplesmente, das
tudo e afirma que o psicanalista manteria uma forma de equivalência, nas agências que participam de outros devires, perspectivas – com vista a preve-
sociedades modernas, ao xamã em sociedades ditas tradicionais. Mais ainda: nir desequilíbrios sociocósmicos e a responder a todo infortúnio, desde seu
haveria entre as práticas de cura psicanalíticas e xamânicas uma espécie de evitamento até sua explicação e tratamento. O xamanismo, desta forma, está
homologia estrutural. Tomemos seus termos. relacionado a um metadiscurso cosmológico que justificaria os modos de
ação e intervenção no próprio cosmos (: 10).
No interior da visão de mundo do perspectivismo ameríndio, que trata-
remos adiante, xamã seria aquele que transpõe perspectivas, devires, e transi-
ta num espaço no qual são tecidas as tramas das narrativas míticas. Como um
1 Projeto cujas ressonâncias se apresentarão nos primeiros anos de seu Seminário e que
permitirá uma reconciliação com termos centrais à práxis psicanalítica, como o próprio ser mítico, na fronteira entre a vida e a morte, o xamã é designado como um
conceito de inconsciente. tradutor por excelência (Cf. Carneiro da Cunha, 2009), tendo em essência a

100 … p s ican álise & an t rop o lo g ia : en fo qu e s i n terdi s c i p l i na re s corpos que escutam … 101
capacidade de cruzar devires diferentemente diferentes, de traduzir formas apresentados pelos agentes envolvidos nos procedimentos de cura. Desta
de vida inassimiláveis. A tradutibilidade aqui se refere não a sistemas sim- forma, ao dar um recobrimento de linguagem, permitiriam a estes uma al-
bólicos, mas a perspectivas, pois o xamã, “apenas ele, por definição, pode ver teração nas relações com sofrimentos e sintomas, posto que a reordenação
de diferentes modos, colocar-se em perspectiva, assumir o olhar de outrem. narrativa daria condição para uma transformação das relações subjetivas,
E é por isso que, por vocação, desses mundos disjuntos e alternativos, inco- individuais e coletivas, com estes mesmos eventos patológicos.
mensuráveis de algum modo, ele é o geógrafo, o decifrador, o tradutor” (: 113).
Ou seja, sua função social estaria ligada à tarefa tanto de dar inteligibilidade,
estofo narrativo a eventos incompreendidos no interior de sua comunidade, O perspectivismo ameríndio e
fazendo a mediação entre os acontecimentos do mundo ordinário (dado à a (des)centralidade do corpo no debate
sensibilidade imediata) e o(s) mundo(s) suprassensível(is), quanto de inter-
vir nos conflitos e impasses cosmopolíticos – de forma mais ou menos asser- Uma constatação marcante para tal debate está no fato de que após esta pon-
tiva, o xamã promoveria transformações nas relações múltiplas entre os dois tual incursão sobre a aproximação entre as terapêuticas Lévi-Strauss não
ou mais planos, e nesse espectro se incluem seus procedimentos rituais. se debruçará em maiores desenvolvimentos de seus termos. É nos últimos
Deste ponto, podemos nos acercar dos modos como a tese lévi-straussiana trinta, quarenta anos que encontramos, no interior da antropologia social,
da homologia entre o psicanalista e o xamã tomou forma e assim avançar so- um crescente movimento de reintrodução daqueles fatos e fenômenos que
bre as declinações desta à dimensão corporal do clínico em seus respectivos tinham sido excluídos da matriz lévi-straussiana de análise [the dark side of
contextos. the structuralism moon], a saber, o xamanismo, o animismo e a participação.
É em “A eficácia simbólica” (Lévi-Strauss, 1949a) e em seu par indissociá- A principal motivação se encontra em uma “insatisfação generalizada com a
vel, “O feiticeiro e sua magia” (Lévi-Strauss, 1949b), que estão primeiramente ênfase unilateral na metáfora, no totemismo e na lógica classificatória que
caracterizados os eixos da comparação entre as duas terapêuticas. Ambas, marcaria a imagem lévi-straussiana do pensamento selvagem” (Viveiros de
como sustenta o antropólogo, operariam através da indução de experiên- Castro, 2002: 362). No interior desse movimento, que poderíamos denominar
cias produtivas de determinação, ou seja, tanto no campo da cura xamânica de uma virada ontológica (Holbraad & Pedersen, 2017) sobre os discursos da
como no da psicanalítica teríamos o estabelecimento de significações social- área, se encontram autores centrais para a reflexão antropológica na atuali-
mente partilhadas para vivências “informuladas”, sem possibilidade imediata dade, como Marilyn Strathern, Philippe Descola, Roy Wagner e, em especial,
de tratamento discursivo e, por tal fator, fontes de sofrimento. Nas palavras antropólogos brasileiros, como Eduardo Viveiros de Castro, Manuela Car-
do antropólogo: “A cura xamânica parece ser de fato um exato equivalente da neiro da Cunha e Tânia Stolze Lima, que revolucionaram os estudos amerín-
cura psicanalítica, mas com uma inversão de todos os termos. Ambas buscam dios, ao propor o modelo perspectivista como conformador da cosmovisão
provocar uma experiência, e ambas conseguem fazê-lo reconstituindo um desses povos.
mito que o paciente deve viver, ou reviver” (Lévi-Strauss, 1949a | 2009: 215). O perspectivismo ameríndio se define por um conjunto de teses formula-
Das diferenciações preliminares às aproximações subsequentes do escrito, das – em contraposição a um perspectivismo clássico – a partir da concepção
temos o lugar central referido à dimensão do mito, cujas bases estruturais ameríndia (índios da América como um todo) de mundo (Sztutman, 2005).
analisamos em outro espaço (Domiciano, 2014). O mito permitiria o tra- Em vez de tomarem a epistemologia ocidental como base de sua empreitada,
tamento discursivo a questões que estão fora dos limites do enunciável ou, fazendo grandes descrições infraestruturais dos seus modelos classificatórios e
como Lacan colocará em seguida, daria “expressão significante ao insolúvel, simbólicos, tais teóricos buscam caracterizar a cosmovisão perspectivista, sua
significando sua insolubilidade, fornecendo assim o significante do impossí- Weltanschauung, como o modo ameríndio de ver e representar o mundo, um
vel” (Lacan, 1956). regime discursivo que carregaria consigo as especificidades pelas quais esses
A aproximação realizada por Lévi-Strauss neste primeiro momento, por- povos dariam sustentação ontológica ao mesmo. E é nesta via que ela reconfi-
tanto, inscreve ambas as práticas como realizadoras de nomeações, inserindo gura as relações do que entendemos por natureza e cultura, corpo e alma, apa-
em um regime discursivo os eventos mais ou menos patogênicos que são rência e essência, universal e particular etc. de nossa epistemologia dominante.

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O perspectivismo não é um relativismo, mas um multinaturalismo. O relati- Tensionar a tese de partida deste trabalho com essas alterações nos mo-
vismo cultural, um multiculturalismo, supõe uma diversidade de represen- dos de concepção e inscrição do sistema xamânico no interior de sua raciona-
tações subjetivas e parciais, incidentes sobre uma natureza externa, una e lidade própria nos convoca justamente a tomar o campo do corpo como um
total, indiferente à representação; os ameríndios propõem o oposto: uma aspecto central de tal homologia com as práticas psicanalíticas. A corporei-
unidade representativa ou fenomenológica puramente pronominal, aplica- dade do xamã, por essa via, entra em um lugar central do perspectivismo na
da indiferentemente sobre uma diversidade real. Uma só ‘cultura’, múltiplas determinação da possibilidade de transição entre pontos de vista. E podemos
‘naturezas’; epistemologia constante, ontologia variável – o perspectivismo é começar tal análise a partir das condições de possibilidade no percurso de
um multinaturalismo, pois uma perspectiva não é uma representação. formação de um xamã para que este tenha acesso e trânsito entre mundos,
Uma perspectiva não é uma representação porque as representações são entre diferentes perspectivas.
propriedades do espírito, mas o ponto de vista está no corpo (Viveiros de
Castro, 2002: 379–80, segundo grifo adicionado). &

A noção de perspectiva animista, portanto, aqui destituída de seu conteúdo


representativo, marca um sistema de posições por meio do qual seus sujeitos de forma sucinta, podemos descrever as condições de acesso
(animais, humanos e outros viventes) configuram seu mundo. Neste sentido, a tal devir-xamã – como diversas narrativas desses processos iniciáticos assi-
há uma inversão de tese da nossa “epistemologia saussureana”, na qual o ponto nalam – como provenientes de uma experiência de travessia, de ruptura com
de vista cria o objeto: aqui, o deslocamento pragmático das relações – com os modos de predicação que sustentavam sua forma de ser no mundo, com
incidências da função dêitica na lógica pronominal – dos encontros faz com vista a uma reconfiguração global de seu estatuto no conjunto das relações
que a palavra de ordem seja a de que o ponto de vista cria o sujeito. Aliando sociais, ou seja, de um modo outro de afecção e vivência no cotidiano da vida
epistemologia à ontologia pressuposta pela posição assumida, o perspectivis- ordinária.
mo ameríndio, em oposição à lógica totêmica, funda-se na ideia de um mundo Nestes processos, um lócus discursivo comum é encontrado em narrati-
onde há uma única posição de sujeito, universal, a da cultura – entendida como vas de experiências patologizantes preliminares: um sujeito pode ser acome-
a posição de humano – para vários mundos, naturezas, aqui tomadas pelo par- tido por sintomas dolorosos – ou outros sinais patognômicos extensivos que
ticular, constituídas a partir do sistema diferencial de perspectivas marcadas assinalam uma forma de adoecimento –, assim como por sonhos e/ou visões
pelo corpo, nas e através das contingências de cada encontro. vívidos e desestabilizadores. Todos esses índices são denotados como signos
É patente a inversão de posicionamento com relação ao dualismo oci- de eleição, de “disposição para as trocas entre mundos”. A partir daí, encon-
dental moderno de conceber as relações entre natureza e cultura, em última traríamos nos processos de cura um conjunto de práticas que já fariam parte
análise, entre o que seria da materialidade universal e do psíquico particu- dos ritos iniciáticos que, ao mesmo tempo que reestabeleceriam um estado
lar. O valor da concepção perspectivista para uma teoria do reconhecimento normativo entendido como não patológico, trariam ao sujeito um saber so-
está no fato de que, nessa pluralidade infinita de mundos possíveis, have- bre os elementos cosmopolíticos em jogo na base de formações patológicas.
ria uma indeterminação essencial da experiência. Indeterminação na leitura No interior destas práticas, teríamos a presença de uma série de experiências
honnethiana, que não deve ser concebida apenas como negação, suspensão extremadas, intensas, nas quais não raro estão presentes sensações narrativi-
ou transgressão da lei (autômaton), mas também como contingência e en- zadas como de “desintegração corporal”, perda dos limites e da organização
contro (tiquê) (cf. Dunker, 2011). interna do corpo – “Meu corpo não era mais o mesmo em todos os lugares”,
Ora, esta retomada do conjunto de teses que constituem parte significa- como testemunha um feiticeiro amazulu.
tiva dos esforços da antropologia contemporânea nos permite complexificar Todas essas vias caminham para um destacamento da vida ordinária, que
e explicitar pontos secundarizados ou mesmo ignorados das descrições lévi- será intensificado no processo transformativo das experiências de formação
-straussianas das terapêuticas aqui retomadas, em particular, pelas constri- xamânicas. Temos aí, portanto, uma trilha de sinais que se aproximam de uma
ções de sua epistemologia estrutural. forma de mortificação do sujeito. Como Cesarino aponta entre os Marubo:

104 … p s ican álise & an t rop o lo g ia : en fo qu e s i n terdi s c i p l i na re s corpos que escutam … 105
“A pessoa espiritizada já vai antecipando seu estado póstumo; é como se já es- social e comunitária distintiva, em encontrar um lugar nas representações
tivesse em parte morta” (Cesarino, 2011), ou ainda Métraux entre os Bororo: que sustentam a mítica de base da sua comunidade.2 Salientamos que o re-
“Os pajés dos bororos [...] são escolhidos pela alma de um morto: de seu corpo conhecimento público e coletivo do xamã também vem como um reconhe-
emana um cheiro de podridão e de urucum (como se vê já é um ser morto). cimento do seu modo de presentificação, seja nas marcas que seu corpo traz
De repente, uma rajada de vento o faz vacilar e ele desaba como morto. Nesse das experiências de iniciação, seja pelos modos como esta transformação im-
momento, tornou-se o receptáculo de um espírito que fala por sua boca. A partir primem nele um conjunto de novas codificações de expressão social.
deste instante é pajé” (Métraux apud Eliade, 1951, grifos adicionados). O corpo do xamã, portanto, por carregar as marcas das trilhas pelas quais
A desintegração corporal aparece como um tópos comum no conjunto chegou a vir a ser quem é, dota-o de um lugar distintivo. Aqui, por tal acep-
dos relatos acerca dos ritos iniciáticos. E é nos modos de assimilação e in- ção, podemos nos questionar, no bojo das nossas condições de laço social
corporação destes traços vivenciais em narrativas coletivas que encontramos contemporâneas, o que viria a ser um “corpo de analista”. Ou melhor, qual
o valor mítico das descrições do processo transformacional para o acesso seu lugar na gramática de reconhecimento das potencialidades de sua prática.
ao dito devir-xamã. Da realização da desintegração corporal, e de todos os À primeira vista, pode parecer um contrassenso ao campo psicanalítico
efeitos de predicação que esta implica na sociedade ameríndia, decorre uma o entendimento de que poderíamos falar do corpo de um analista fora do
jornada de recomposição de um corpo. Recomposição cujos elementos cons- seu espaço de sustentação transferencial. Ora, em sentido estrito, um analista
tituintes principais são tanto restos que decantaram de sua decomposição seria aquele a quem se supõe um saber e que se constitui como tal no dispo-
anterior, assim como objetos e outros adornos coletados dos seus contatos sitivo analítico pelos efeitos dos deslocamentos representacionais e afetivos
com o outro mundo, como insígnias hierofânicas. decorrentes de um endereçamento específico. A falta-a-ser do analista apenas
A partir destes pontos podemos retomar a tese lévi-straussiana em outros receberia um recobrimento positivo a partir deste sistema de crenças que é
termos, especialmente no que ela nos convoca a questionar as dimensões da fundado pelo fenômeno da transferência.
corporeidade presente e constitutiva na configuração do campo de tratamento Entretanto, quando nos deparamos com todo o conjunto de atravessa-
homólogo entre as práticas de cura aqui postuladas. mentos da esfera discursiva de tensão sociopolítica, reconhecendo sua pre-
sença também no interior da prática analítica – de vez que esta não seria
realizada em uma torre de marfim, desconectada do contexto pragmático em
O que extrair daí para retomar a categoria de “corpo do analista”? que se insere –, dificilmente podemos sustentar que um analista em sua pre-
sentificação seja como uma página em branco (com o perdão do trocadilho).
Primeiramente, podemos salientar que, ao fim desta travessia preliminar, Reconhecer tal dinâmica é reconhecer que o corpo já carrega em si as
o corpo do xamã recebe uma série de atributos que assinalam as marcas do marcas que denotam uma posição diferencial nos discursos sociais, econô-
processo de formação. Adornos, pinturas, gestuais e outros caracteres são micos e políticos que se efetivam em nossa sociedade. Os ditos marcadores
especialmente indicativos dos meios pelos quais este xamã circulou e rece- sociais de diferença, nomeadamente raça, etnia, gênero etc., viriam como sig-
beu, no interior da comunidade da qual faz parte, um reconhecimento de nificantes especiais que já posicionariam um analista no interior dessa malha
seu lugar distintivo. A recomposição corporal do xamã e sua presentificação discursiva. Significantes, poderíamos dizer, que teriam pregnância maior nas
estética são uma marca essencial de seu novo devir, que tem, no interior da vias possíveis de significação, dada tal configuração política. Neste sentido,
simbologia de cada tribo, a função de estabelecer sua capacidade de fazer
contato com o mundo-outro.
Este reconhecimento é central para que um xamã se torne um grande 2 O reconhecimento público, por sua vez, não deixa de vir acompanhado de uma narrativa
xamã (Lévi-Strauss, 1949b) e, consequentemente, tenha maior influência so- moral um tanto rígida dos modos de expressão cotidiana desse xamã: além de ser “capaz
de romper com o mundo ordinário, ou que na posição de xamã se tem uma essência
bre os estados patológicos em seus rituais de cura. Tal potência tem como
diferente”, ele precisa demonstrar uma contenção e um controle de possíveis excessos das
condição o modo como este é acolhido e reconhecido pela comunidade. Nes- afecções da vida. Não nos surpreende a proximidade dessas narrativas daquelas presentes
te sentido, parte do percurso do xamã se funda na construção de uma posição no campo psicanalítico de maneira mais ou menos institucionalizada e ostensiva.

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ainda que não faça toda a diferença para o curso de uma análise, os atributos quer estado de desamparo proveniente destas travessias. Neste sentido, po-
que se presentificam em um corpo fazem alguma diferença. Ignorar esta variá- demos tomar o lugar da ritualística e da repetição do setting analítico como
vel seria deixar de fora da escuta dos condicionantes de efetivação da prática sustentando um modo de presença não ausente, essencialmente necessária
analítica um importante elemento a modular a dinâmica transferencial. nas voltas e giros discursivos incontornáveis com os quais uma análise se
Um segundo ponto que a aproximação com as práticas xamânicas coloca defronta. O lugar da ritualística no decurso de uma cura analítica, sustentada
ao fazer psicanalítico pode ser delimitado pelo modo como se inscreve a ri- também pelo modo de presença corporal do analista, se mostra necessário
tualística específica no conjunto das operações terapêuticas do xamã. Como nos momentos em que um limite simbólico está para ser ultrapassado, em
vimos, em seus processos iniciáticos, o candidato a xamã recebe dos espíritos que a malha que sustenta o liame social borda uma possível ruptura. Aí a
aliados do mundo outro uma série de danças e cantos, além de indicações imagem estabilizante do analista e dos modos como este se presentifica nas
para procedimentos particulares, que marcariam suas futuras intervenções. repetições inscritas no tratamento poderia ser vista como tendo a função
O escopo de uma ritualística inclui ações mais ou menos coordenadas, repe- de tornar possíveis estes atravessamentos perigosos, que beiram os riscos de
titivas, que assinalam um modo de presença do corpo social que daria con- brusca ruptura do laço social.
dições de possibilidade para que uma consistente transformação simbólica Por fim, uma última implicação desta aproximação com o xamanismo,
ocorra. Nesta via, encontramos o lugar central da repetição ritual em uma relido na chave da antropologia contemporânea, se apresenta no que podería­
série de ritos de passagem, processos esses que dão condições sociopolíticas mos nomear como um modo de sustentação de uma presença inconsistente
para que o estatuto simbólico de um determinado indivíduo se altere. ou de uma presença que põe em marcha a potência de produção singular de
Em “A eficácia simbólica”, apresenta-se uma interessante descrição de experiências de indeterminação.
como a cena da cura se constitui a partir de uma seriação reiterativa das nar- No conjunto de seu ritual, um xamã aparece como um alguém posicio-
rativas: temos aí um modo de repetição no canto xamânico que progressiva- nado entre mundos. Isso tem correlatos para a efetivação de sua presença.
mente aproxima a cena dos pormenores da situação imediatamente presente Entretanto esta só é garantida pelo modo como seu corpo a sustenta. E não só
com a da rede mítica coletiva. Se a vertente lévi-straussiana enfatiza a via das a ampara na ritualística – como uma derivação do ponto anterior – mas tam-
repetições narrativas, com seus correlatos práxicos, a apresentação da dinâ- bém de como se inscreve após sua jornada iniciática. Notemos que o corpo
mica ritual, por sua vez, não acompanha necessariamente um solo comum do xamã, por tais travessias em regimes ontológicos distintos, é reconfigura-
de compreensão entre os que estão envolvidos, dado que muitos rituais são do em seus processos formativos como disjunto em sua unidade, compósito,
realizados em línguas sagradas, secretas, ou até em fragmentos não gramati- heteróclito e heterogêneo. O corpo que resta, o corpo mortificável, corpo
calizavéis. Em outros termos, no que condiz à ritualidade, para que esta tenha mítico, é um corpo que é irredutível à tentativa de fazer uma unidade fechada.
efeitos, não é necessária uma compreensão consciente de todos os sujeitos O que se pode nomear aqui como uma abertura do corpo do xamã, por-
sobre os quais ela influi. tanto, é consubstancial à sua presença não-toda na cena dos ritos de cura. Seus
A repetição dos refrãos, a reiteração narrativa e também gestual, dá con- gestos, palavras, cantos e procedimentos gerais não são de todo imediatamente
tornos a um procedimento de cura que acompanha uma intervenção trans- acessíveis em uma possível significação coletiva e comum, como vimos.
formativa de expressão cosmicopolítica e sociossimbólica. A possibilidade de
se outrar, como veremos abaixo, é amparada por tal ritualística. A dimensão O doente de fato compreende apenas uma coisa: a incompreensibilidade
corporal aqui colocada, nas formas de sustentação da cena em que uma cura dos cantos, mas essa forma de metacompreensão não é anódina: ela induz o
se dará, aparece, portanto, não apenas nos estados mais passivos – como por paciente a duvidar da identidade ontológica do xamã. [...] E as modalidades
indução das substâncias possivelmente presentes nos rituais –, mas também desta crença, por conseguinte, obedecerão essencialmente a um critério que
como modalidades ativas de sustentação de um ritmo, de uma base serial na ultrapassa o saber xamânico: a eficácia ou não da cura (Déléage, 2006: 19).
qual as diferenças poderão encontrar espaço para se inscreverem.
É na ultrapassagem de limites que os ritos, em determinados momentos, O xamã não repete simplesmente uma performance padronizada desse
são convocados como formas de presença que fazem um anteparo a qual- conjunto para todas as afecções ou em todas as situações em que é convocado.

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Ele repete a diferença e inscreve novos elementos à cadeia narrativa a cada vez, E a Quimera propõe um enigma ao homem Édipo, que talvez já tivesse
e uma vez mais. um complexo, mas não certamente aquele ao qual haveria de dar seu nome.
Nesta toada, a inconsistência de sua presentificação tem um correlato im- Ele lhe responde de uma certa maneira, e é assim que se torna Édipo. [...]
portante no que esta ressoa de sua corporificação, pois estar entre mundos Creio que vocês veem o que aqui quer dizer a função do enigma – é um
somente é possível por meio deste corpo que nunca se dá de todo a ver, a ler. semidizer, como a Quimera faz aparecer um meio-corpo, pronto a desapare-
É justamente em sua fractalidade, para usar um termo de Roy Wagner, que cer completamente quando se deu a solução (Lacan, 1969–70 | 2009: 34, grifo
observamos a multiplicidade enunciativa desse modo de sustentação de lin- adicionado).
guagem no que ela carrega de correspondência com um discurso ontológico
de fissuras entre sistemas estáveis de autorreferência. Ainda que possamos entender esta face quimérica dos “meios-corpos”
Encontramos um caso análogo desta disjunção corporal nas proposições que o postulado lacaniano associa ao lugar do enigma, aqui cabe registrar
lacanianas acerca do corpo do analista em seu ato. No modelo de formalização que o corpo aí não só é requisitado como condição discursiva, como tam-
dos quatro discursos, Lacan produz um sistema de termos e posições nos quais bém é presentificado como um corpo que recusa toda unificação. Susten-
inscreverá uma modulação da ligação disjuntiva entre saber e verdade (Lacan, tar o lugar do enigma, como Lacan salienta, implica a emergência de um
1969–1970). Está em jogo um debate sobre a possibilidade de sustentação de suporte corporal homólogo a tal modulação de enunciação, um suporte que
uma verdade no lugar do saber: a verdade aparecerá aí como uma posição no não se sustenta consistentemente em si. A esfinge, enquanto “ser ambíguo”,
discurso, enquanto o saber será um termo que circulará, nos distintos discursos, seria dotada, portanto, de uma dupla disposição: “tal como o semidizer, de
entre as posições disponíveis (agente, outro, produção e verdade). Do que nos dois semicorpos”.
cabe aqui, é importante notar que, no discurso que se nomeia como discurso Ora, Lacan aqui dá mais um elemento a tal dimensão corporal: não ape-
do psicanalista, o saber se posicionará especialmente no lugar da verdade, ou nas um meio-corpo, mas dois semicorpos – e poderíamos dizer dois ou mais
seja, este se funda em uma recusa de uma simples sobreposição entre tais fragmentos de corpos que se atualizam neste ser ambíguo, mas que não for-
termos. Sendo a verdade, em psicanálise, sempre semidita, este saber será aí mariam a consistência de um Uno. Se atentamos à fórmula do discurso do
incluído como um saber que recusa uma formulação totalizante, um saber analista, vemos como a posição de semblante é justamente a deste objeto cau-
não-todo, um saber que deixa em aberto uma palavra última sobre si. sa de desejo, modulado por uma teoria da economia de gozo que o faz ainda
Outro modo de apreender o que está em questão é reconhecer que este ser reposicionado como objeto mais-de-gozar, que marca prioritariamente
saber apenas se articula de forma específica, na medida em que se ancora em a presença de uma incompletude, de uma inconsistência e mesmo de uma
uma enunciação que se eleva como tal sobre um enunciado. Lacan aponta não unidade correlata da presentificação imaginária ou simbólica. O objeto a
esta forma de ancoragem de uma enunciação que afirma a si como a função viria aqui como este resíduo inassimilável da ordem simbólica no que esta
do enigma a denotar este semidizer. Ou seja, o discurso psicanalítico apenas não se completa por si.
pode se sustentar, sem se reduzir a outras formas discursivas, enquanto um Neste sentido, conjugando tais termos na matriz lévi-straussiana, ficamos
discurso que mantém presente a função do enigma de um saber irredutível a com a questão sobre a face estética, sensível da presentificação do analista em
qualquer modalidade de totalização consistente. seu ato. A radicalidade do discurso psicanalítico estaria no posicionamento
Entretanto tal discurso implicaria também a emergência de um suporte cor- de uma multiplicidade interna e estrutural. Um discurso que se articula no
poral homólogo a tal postulado, um suporte que não se imprime consistente- e através de um corpo falante é um discurso que não apenas reconhece a
mente em si, um meio-corpo que se decanta de um meio-dizer. Uma pergunta sem irredutibilidade de seu saber em face das posições enunciativas, como traz,
resposta unívoca, que tocaria na dimensão da verdade e que estaria presente na enquanto condição, esta diferença radical de cada ser falante.
psicanálise desde as primeiras remissões ao mito de Édipo. Em seus termos: Em outros termos, como sustentar um discurso psicanalítico sem a dis-
posição, ou mesmo condição, de se descompletar, de se desconhecer drasti-
A nossa querida verdade da imaginária de Épinal, que surge do poço, é sem- camente até mesmo na crença do que é mais próprio de seus resíduos corpo-
pre um corpo. [...] rais? Neste ponto, sustentamos que a travessia por tais cenas de ancoragem

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antropológica, no que esta resguarda de uma tensão interna no conjunto das lévi-strauss, Claude
(1949a) “A eficácia simbólica”. In: Antropologia estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
discursividades sobre uma universalidade não normativa, bota uma questão
(1949b) “O feiticeiro e sua magia”. In: Antropologia estrutural. Op. cit.
central à nossa prática cotidiana: em que medida um analista, em seus modos
de presentificação corporal, em toda sua materialidade significante e pulsio- maniglier, Patrice
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112 … p s ican álise & an t rop o lo g ia : en fo qu e s i n terdi s c i p l i na re s corpos que escutam … 113
ricardo goldenberg

Atualidade da virtualidade

escrevo no meio da pandemia que tomou o mundo inteiro.


Estou quarentenado há sete meses (“and counting”, como diriam em Cabo
Canaveral enquanto esperam o lançamento do foguete). Não sabemos quan-
do terminará (sequer se terminará), mas parece ser consensual que “nada será
como antes amanhã”.1 Não precisamos, os psicanalistas, aguardar o amanhã
para saber que já aconteceu o que não podia acontecer. O inimaginável, o hor-
ror, o completo afundamento das condições básicas do setting analítico: um
paciente no divã e seu analista aboletado atrás dele, sobre uma poltrona, desa-
pareceram da noite para o dia, dando lugar à completa substituição da presen-
ça real por uma presença fantasmal que, ao que parece, veio para ficar.
No início, enquanto aguardavam passar (“vai durar um mês ou dois, três,
no máximo”), concordavam entre si que “não é bem de psicanálise que se
trata, mas, enquanto não nos deixam atender em nossos consultórios, traba-
lhamos remotamente”. Por que não simplesmente suspender os atendimen-
tos, enquanto a psicanálise propriamente dita não acontece? Não explicou
Freud que ninguém pode ser justiçado in abstentia ou in effigie?2 Resposta:
porque alguns pacientes não podiam esperar tempos melhores para lidarem
com a angústia e porque eles, os analistas, vivem do seu trabalho e precisam
continuar recebendo dinheiro.

1 Flora Purim, Milton Nascimento e Ronaldo Bastos.


2 O que não é exato. O divino Marquês foi executado in effigie, depois de ter sido condena-
do à morte por sodomia, perdido as apelações ao rei e driblado seus algozes durante anos.
Depois de morto in absentia, continuou vivo durante mais vinte anos.

115
Relendo-me, vejo que passei sem perceber da primeira para a terceira e que, por extensão, tornou-se sinônimo de número). O computador não
pessoa do plural. Por quê? Porque me conto entre os que há anos se servem “entende” sons ou raios de luz, apenas combinações de zeros e uns, em que
de uma rede Wi-Fi para atender pacientes, sem nunca ter achado que aquilo zero significa porta fechada e interrupção da corrente de elétrons, e um, a
não fosse psicanálise stricto sensu. O que não significa que tanto faça, apenas porta aberta para a sua passagem pontual. Com isso se compõem simu-
que o método analítico não se limita aos móveis e à posição dos corpos, mas lacros de ondas sonoras interpretados pelo alto-falante e de imagens re-
depende de um discurso para ser implementado. compostas ponto a ponto nas telas de cristal líquido. A realidade virtual é
Isto posto, tudo muda quando o único meio de praticar a psicanálise é a a reconstituição numérica de um estímulo que simula uma representação
telinha do smartphone ou a tela de um notebook. Uma coisa é trabalhar de vez analógica.
em quando deste modo, outra, que meu paciente e eu estejamos reduzidos a De que estou falando? Da diferença entre uma presença atual e outra
duas figuras planas de seis polegadas, feitas de 1.125 x 2.436 pixels, ou a duas virtual, e dos dois corpos distintos a que elas dão lugar. Antes de prosseguir,
vozes digitalizadas no telefone. o que significa “atual”? Em inglês, actual e, em alemão, wirklich querem
Colegas mais jovens, adeptos desde sempre dos videojogos, contam que dizer “de verdade”, como oposto a “faz de conta”. Actual é algo acontecendo
para eles esta mudança do regime de trabalho não gerou o menor estresse. aqui e agora, diferente do que pretendia, ou tinha a intenção, ou planejava,
Para mim e para os da minha geração, em compensação, isto não é bem assim. ou acreditava que poderia fazer. Em alemão, Wirklichkeit deve ser confron-
Por mais familiaridade que eu tenha com as redes sociais, termino esgotado tado com Realität. O primeiro é um termo construído com wirken, “agir”, e
de um modo em nada comparável ao meu estado depois de um dia intenso se refere à realidade humana tecida de signos; o segundo traduz o que co-
recebendo pacientes de corpo presente e de viva voz, como se diz. Radmila loquialmente entendemos por concreto ou de carne e osso, como diferente
Zygouris tem uma hipótese sobre este fenômeno: somos nós que damos cor- do que é imaginário.
po a estas sombras, às nossas custas. Qual Dantes, adentrando o inferno, ro-
deados de espectros atraídos pela nossa seiva vital.
Presença de uma ausência (atualidade da virtualidade)

Digitalização Em psicanálise, aprendemos a opor a realidade à verdade (do desejo). E, em


filosofia, o atual se opõe ao potencial: o que está acontecendo, o que foi reali-
Cabe notar que a passagem do analógico para o digital, no que se refere ao zado ante o que poderia acontecer por estar em germe. O potencial é sempre
objeto, não deixa de ter consequências em nossa clínica que caberia pensar. uma aposta no futuro (como quando uma mulher não larga um homem
Nosso sensório, com efeito, é “naturalmente” analógico: raios de luz re- que, na atualidade, é um banana, porque reconhece ou imagina nele um
fletidos nos objetos são compostos ponto a ponto na retina para dar-me uma determinado “potencial”).
imagem em tudo semelhante ao objeto à minha frente; os sons emitidos por Já no mundo das redes, o atual se opõe ao virtual, sendo que este se de-
ele reverberam no tímpano, que transmite as vibrações aos nervos, que con- fine de modo negativo: irreal, simulado. Platão teria adorado este admirável
vertem a frequência e a amplitude da onda recebida diretamente em impul- mundo novo no qual vivemos e que representa uma realização acabada
sos nervosos, que me dão, depois de processados no cérebro, uma imagem do seu mito da caverna: estamos acorrentados aos nossos computadores,
acústica analógica (em que analógico significa assim aqui como ali). lidando com sombras, enquanto a realidade solar brilha lá fora, inacessível
No caso de um telefone analógico, digamos que o intermediário não para nós.
muda a natureza do fenômeno. O que não é mais o caso na digitalização. A atualidade do virtual é o modo da presença hoje em dia. A virtualidade
A onda sonora, recebida pelo microfone, precisa ser recortada e dividida do atual se refere a uma modalidade da ausência que se tornou patente en-
em pequenas amostras, que se compõem para reproduzir a amplitude e a quanto ausência. (Estou soando muito derridiano ou deleuziano, perdão!).
frequência mediante a sua representação em diversas combinações de zeros Em todo caso, quero dizer que o virtual é um objeto, construído como tal e
e uns (digital vem de dígito, o dedo, usado primordialmente para contar com o qual devemos aprender a lidar. Tudo está para ser inventado aqui.

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Outro corpo Informação

Não vou elucubrar sobre a natureza dos corpos, apenas faço observar a interme- Voltando ao começo, para concluir. Não sei se alguém já percebeu que o ví-
diação da máquina, que caracteriza o que se denomina de encontros remotos. rus, que nos jogou na completa digitalização da vida, é da mesma natureza
A máquina é um corpo e constitui o suporte duro (hardware) da virtualidade que que ela. Com efeito, o vírus não é uma forma de vida, e sim um pequeno
nos transforma, diante do outro, em espectros. Quero dizer, o único corpo com o fragmento de informação que nem sequer é autônomo. Digamos que se trata
qual interajo, enquanto corpo, é com a máquina. Meu interlocutor, a sua imagem de uma sequência de letras incompleta, que precisa de nosso próprio arqui-
bidimensional re-produzida na tela com sua voz reconfigurada nos alto-falantes, vo informativo para replicar-se. E é só isso que ele faz: replicar-se. A inva-
não passa, para mim, de uma presença fantasmal, assim como eu o sou para ele. são, muitas vezes, destrói ou danifica o hospedeiro, mas atribuir qualquer
É claro que isso muda tudo na relação transferencial, como não? Talvez intenção a esse pacotinho de informação é apenas uma fantasia paranoica.
seja para o bem, não sabemos ainda. Em todo caso, o silêncio, por exemplo, Em todo caso, não se trata de reprodução, como numa bactéria; o vírus não é
deixou de ser o que era. “Você está calado ou a conexão caiu?” A sua imagem um bicho. Para todos os efeitos, é uma deriva digital, da mesma natureza que
congela ou se esfacela em quadradinhos coloridos que já não mais compõem um fragmento de software do meu computador.
o seu rosto (demonstrando o quanto você não estava aqui). Poderia carac- Os governos e os políticos já aprenderam a servir-se dos vírus aleatórios ge-
terizar-se o ato analítico como cortar a comunicação, sem mais nem menos, rados pela seleção natural, como o covid, ou fabricados intencionalmente para
qual namorado ofendido que “desliga na tua cara”? Não, certamente. Nunca infestar o corpo virtual da rede, com a finalidade de produzir entropia e caos,
saberíamos se foi intencional ou obra da máquina. O corretor automático mais ou menos sistemáticos e de acordo aos seus desígnios de poder. Trump e
do WhatsApp pode caracterizar-se como interpretação, surrealista e aleatória, Bolsonaro são dois tristes e patéticos exemplos disso (o grau de devastação que
quando escrevo para o meu paciente “seu pai” e ele manda para este “seu pau”, provocaram não os torna nem menos tristes, nem menos patéticos).
o que, depois de ser atribuído à minha intenção de analista, se revela justo? Harari esceveu em algum dos seus livros que o Homo sapiens sofre de
O sujeito suposto saber, então, tampouco é mais o que era. três tipos de medo atávicos. Dos predadores, desde que desceu das árvores.
Também a relação público versus privado fica transformada pela digitali- Da fome, desde que é assolado por secas e por enchentes. E da peste, desde
zação e a universalidade das redes virtuais. Não é a mesma coisa mandar uma as sete pragas do Egito narradas pela Bíblia, passando pela peste negra até
carta a um amigo e subir essa mesma carta ao Facebook para, dependendo o coronavírus. Eu acrescentaria mais um: a desinformação. O medo de ser
de quem for o emissor, atingir milhares, senão milhões de destinatários alea- ludibriado, que é a versão moderna, digital, da serpente do Éden. Em quem
tórios. Junto com isso, sai transformada a relação entre ética e etiqueta; entre podemos confiar, quando estamos submetidos à incerteza e à desinformação
o que se deve ou se pode subir às redes e o que não se deve, nem se pode. intencionais?
O “cancelamento”, por exemplo, é a liquidação virtual, com efeitos assaz ob-
jetivos na realidade de qualquer um que manifeste a menor diferença com
relação à Verdade absoluta que suporta a identidade dos membros de tal co-
munidade (em geral, a mesma a que o cancelado pertence).
Já foi notado o que significa esta globalização: somos uno. Um grande
corpo planetário de um trilhão de vozes; Gaia finalmente realizada. Um por
um, somos apenas pedaços desse corpo de dimensões planetárias. E o que foi
feito do desejo nestas condições? O que faz, com efeito, uma subjetividade ter
50 milhões de seguidores? Não digo pessoas, e sim seguidores. Isso ainda não
foi estudado. O que, aliás, quer dizer 50 milhões de seguidores? Que tipo de
poder é desencadeado quando se tem acesso a 50 milhões de seguidores? Bota
criação de opinião ali! O que é a transferência nestas condições?

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gloria sadala
josé maurício loures

Psicanálise, antropologia e suas interlocuções

o diálogo entre antropologia e psicanálise data do início


do século xx, sendo marcado tanto por divergências, polêmicas, quanto por
convergências entre elas. Pode-se dizer que o início das articulações entre an-
tropologia e psicanálise acontece com Freud na primeira década do século xx,
quando ele se dedica aos estudos acerca da origem da humanidade e aos fun-
damentos da cultura, criando o seu mito científico em Totem e tabu (1912–3).
Nesse texto, Freud utilizou, entre suas fontes de pesquisa, os trabalhos de Fra-
zer, Tylor e Smith, antropólogos muito marcados pelas teorias evolucionistas.
Freud recorre a Frazer, ao defender a tese de que o totemismo e a exoga-
mia estão intimamente ligados e tiveram origem simultânea. Os estudos de
Frazer evidenciam a gravidade com a qual são tratadas pelos povos selvagens
as relações sexuais com pessoas de um clã proibido. Segundo o autor, a viola-
ção da proibição é vista com extrema repulsa e punida com a morte.
Tylor, tal como Frazer, explicita uma série de costumes que resguardam
as relações individuais entre parentes próximos – considerando-se que, no
sistema totêmico, o parentesco não se refere às relações consanguíneas. São
proibições morais que são respeitadas com rigor. E esses autores mostram
que sua difusão vai muito além dos povos totêmicos australianos.
De Smith, Freud se utiliza da descrição de uma cerimônia peculiar conheci-
da como “refeição totêmica”, que foi, desde o princípio, parte integrante do sis-
tema totêmico. A matança e a ingestão do totem animal, cujo consumo era proi-
bido em todas as outras ocasiões, constituíam uma característica importante
da religião totêmica. Cada homem se acha consciente de que está executando

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um ato proibido ao indivíduo e justificável apenas pela participação de todo o conhecimento, para além do mito, de um operador estrutural. A posição do
clã, não podendo ninguém se ausentar da matança e da refeição. Quando ter- pai, tal como Freud a articula, ou seja, como um impossível, é o que faz com
mina, o animal morto é lamentado. O luto é obrigatório e seu objetivo principal, que seja imaginado necessariamente como privador.
renegar a responsabilidade pela matança. Mas é seguido por demonstrações de Além disso, a ênfase na função simbólica do pai desfaz a possibilidade de
júbilo festivo. Os sentimentos festivos e tudo que deles decorre poderiam ser uma leitura “naturalista” ou “familiarista” do complexo de Édipo. O assassi-
explicados pelo fato de os participantes da cerimônia terem incorporado a si nato do pai da horda é fundador de uma lei e, assim, do laço social; um laço
próprios a vida sagrada de que a substância do totem constitui o veículo. social político e religioso mais do que familiar.
Para Freud, o animal totêmico é, na realidade, um substituto do pai, e Nesse contexto, antropólogos que então já criticavam o evolucionismo
isso entra em acordo com o fato contraditório de que, embora a morte do reagiram a algumas ideias de Freud. Malinowski, por exemplo, posicionou-se
animal seja, em regra, proibida, sua matança é uma ocasião festiva. A dis- contra a universalidade do complexo de Édipo e a origem única da humani-
posição festiva é causada pela satisfação de realizar-se o que é desejado, mas dade. Claude Lévi-Strauss entrou nesse debate e, em seu livro As estruturas
normalmente proibido. elementares do parentesco, repensou a proibição do incesto, apresentando o
Ao juntar a tradução do totem dada pela psicanálise com o fato da re- tabu do incesto como marca na passagem da natureza para a cultura.
feição totêmica e a hipótese darwiniana sobre o estado primordial da socie- Para Lévi-Strauss, o tabu do incesto assume uma configuração particular
dade humana, Freud apresenta o mito do pai tirano, detentor do gozo e que em cada sociedade humana, em função das estruturas sociais reguladoras de
priva os seus filhos das mulheres do clã. O ódio dos irmãos e o vislumbre da caráter inconsciente. E, assim, soluciona o debate entre Freud e alguns antro-
possibilidade de um gozo sem limites os leva a assassinar o pai, tornando-se, pólogos, concebendo tanto a universalidade da proibição do incesto quanto a
contudo, rivais uns dos outros em relação às mulheres. Como a nova organi- diversidade das culturas. Com efeito, esse interesse pelo caráter inconsciente
zação terminaria numa luta de todos contra todos, pois nenhum deles teria das estruturas sociais é o que, principalmente, o aproxima de Freud.
força tão predominante, a ponto de poder assumir o lugar do pai com êxito, Ainda em As estruturas elementares do parentesco, Lévi-Strauss toma os
os irmãos, para viver juntos, não tiveram alternativa senão instituir uma lei estudos dos linguistas Saussure e Jakobson e concebe a primazia do simbóli-
pela qual todos, de igual modo, renunciariam às mulheres que desejavam. co. O simbólico foi considerado por ele uma condição a priori da sociedade.
Segundo Freud, os irmãos do mito estavam cheios dos mesmos senti- Assim, todos os elementos da cultura são expressão desse simbólico: a lingua-
mentos contraditórios que podemos perceber nos neuróticos. Odiavam o pai, gem, a arte, a ciência, a religião, as relações econômicas etc.
que representava um obstáculo tão formidável ao seu anseio de poder e aos Tais concepções de Lévi-Strauss referentes ao simbólico ecoam no psi-
desejos sexuais, mas também o amavam e o admiravam. Foi nesse contexto, canalista Jacques Lacan e são fundamentais para a afirmativa lacaniana do
marcado por uma ambivalência fundamental, que aconteceu o ato fundador inconsciente estruturado como uma linguagem, quando este concebe a pri-
da cultura: o pai morto tornou-se mais forte do que o fora vivo. mazia do simbólico, assim como para suas elaborações relacionadas à impor-
Em sua conferência “Introdução aos Nomes-do-Pai”, proferida em 20 de tância da função da fala e do campo da linguagem na psicanálise.
novembro de 1963, Lacan diz: Em seu “Seminário sobre ‘A carta roubada”, Lacan afirma:

Miticamente [...] o pai só pode ser um animal. O pai primordial é o pai Se o que Freud descobriu, e redescobre com um gume cada vez mais afiado,
anterior ao interdito do incesto, anterior ao surgimento da Lei, da ordem tem algum sentido, é que o deslocamento do significante determina os sujei-
das estruturas da aliança e do parentesco, em suma, anterior ao surgimento tos em seus atos, seu destino, suas recusas, suas cegueiras, seu sucesso e sua
da cultura. Eis por que Freud faz dele o chefe da horda, cuja satisfação, de sorte, não obstante seus dons inatos e sua posição social, sem levar em conta
acordo com o mito animal, é irrefreável (Lacan, 1963 | 2005: 71). o caráter ou o sexo, e que por bem ou mal seguirá o rumo do significante,
como armas e bagagens, tudo aquilo que é da ordem do dado psicológico
É nesse sentido que podemos considerar que Freud, em Totem e tabu, (Lacan 1956 | 1998: 33–4).
avança em suas teorizações sobre o complexo de Édipo, possibilitando o re-

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Freud, Lévi-Strauss e Lacan lançaram mão do mito em suas pesquisas preliminar, vivido em parte no Brasil, em 1930. E ele próprio relaciona esse
e elaborações teóricas, concebendo-o como uma ferramenta, uma maneira, trabalho preliminar a um dos requisitos da formação de um analista, a análise
uma forma épica de tratar das contradições, do indizível, daquilo que se ope- pessoal, no sentido de que é necessário viver a experiência para se colocar
ra na estrutura. como investigador no campo de pesquisa.
Lacan, em sua conferência “O mito individual do neurótico”, proferida O antropólogo norte-americano Horace Miner, no ilustre artigo “Body ritual
em 1952, a partir de uma versão preliminar do artigo “A análise estrutural among the Nacirema”, de 1956, evidencia isso de uma maneira surpreendente,
dos mitos”, de Lévi-Strauss, realiza uma releitura do caso freudiano do Ho- ao nos apresentar os rituais do corpo de uma cultura peculiar e enigmática.
mem dos ratos, valendo-se do método de análise proposto por Lévi-Strauss. Na descrição da vida dos Nacirema feita pelo antropólogo, podemos destacar
Na versão definitiva de seu artigo, publicada em 1955, o antropólogo pro- alguns rituais e cerimônias: os Nacirema visitam diariamente o santuário onde,
põe que os mitos se reproduzem com as mesmas características em diversas em uma pequena fonte, cada membro da família curva a cabeça diante de uma
regiões do mundo e o valor intrínseco a eles atribuído “provém do fato de caixa mágica, misturam diferentes tipos de água sagrada e realizam um breve
os eventos que se supõe ocorrer num momento de tempo também forma- rito de ablução; consultam o “homem-da-boca-sagrada” duas vezes ao ano, e o
rem uma estrutura permanente, que se refere simultaneamente ao passado, mago, com uma impressionante parafernália (perfuratrizes, furadores, sondas e
presente e futuro” (Lévi-Strauss, 1955 | 2012: 224). Além disso, identifica nos agulhas), faz uso destes objetos no exorcismo dos perigos da boca – cerimônia
mitos unidades constitutivas que, a partir de seu valor opositivo, formam fei- que implica desconforto e tortura; quando doentes, buscam o tempo Latipsoh,
xes de relações. O que se extrai como sentido não é necessariamente o que o onde, entre outras práticas, os curandeiros mantêm seus fiéis em leitos de dor e
mito significa no que tange ao seu conteúdo, mas as conclusões a que se pode lhes atiram agulhas magicamente tratadas em sua carne; há jejuns rituais para
chegar a partir da análise da estrutura deste. fazer pessoas gordas ficarem magras e banquetes cerimoniais para fazer pessoas
Em sua abordagem do caso do Homem dos ratos, Lacan dá ênfase ao fio magras ficarem gordas; outros ritos ainda são usados para tornar maiores os
que Freud estabeleceu entre a história de Ernst Lanzer e o passado de seu seios das mulheres, se são pequenos, e menores, se grandes. Em suma, o foco de
pai, evidenciando que ele estava fixado às condições que presidiram sua exis- seus rituais e cerimoniais é o corpo humano, cuja aparência e cuja saúde consti-
tência. Seu pai fora apaixonado por uma moça pobre, mas escolheu se casar tuem a preocupação dominante para essa cultura.
com outra mulher, por esta ser de uma família rica. Ao passo que, no caso de O antropólogo conclui que é difícil compreender como esse povo, obce-
Lanzer, a dúvida entre se casar com a moça pobre, por quem é apaixonado, cado pela magia, conseguiu sobreviver por tanto tempo sob os pesados far-
ou seguir com o planejamento da família de se casar com uma prima rica o dos que eles próprios se impuseram. Nacirema, anagrama de American, é
leva a permanecer doente por anos, o que o impede de terminar o seu ensino a descrição do próprio povo americano, em suas rotinas de higiene, visitas
superior – condição para que se case –, postergando assim sua decisão. Além ao dentista, internações no hospital (Latipsoh), dietas, cirurgias plásticas etc.
disso, se temos na história do pai do analisante uma dívida paga em oposição Além de ser uma crítica à cultura ocidental, o artigo de Miner fundamenta-se
a outra que nunca pôde ser quitada, na história de Lanzer encontramos tam- como um alerta acerca das investigações atravessadas pela tendência a obser-
bém a oposição entre uma dívida paga e, por outro lado, uma complexa trama var o mundo a partir da perspectiva particular do povo e da cultura a que se
que criou para tornar impossível o pagamento de uma determinada quantia. pertence – etnocentrismo.
Conforme afirma Lacan, “tudo se passa como se os impasses próprios da si- Por fim, podemos acrescentar a este estudo a articulação entre psicanálise
tuação original se deslocassem para um outro ponto da rede mítica, como se e antropologia empreendida por Lévi-Strauss em seu artigo “A eficácia sim-
o que não é resolvido num lugar se reproduzisse sempre noutro”. E continua: bólica”, de 1949. Nesse texto, Lévi-Strauss analisa a prática do xamã em um ri-
“Ao tentar fazer um e outro se recobrirem, faz uma operação circular, nunca tual que tem por objetivo viabilizar um parto difícil. O xamã, por meio de um
satisfatória, que não consegue fechar seu ciclo” (Lacan, 1952 | 2008: 27). mito que é entoado como canto, permite uma certa subjetivação daquela ex-
Outra convergência que podemos estabelecer entre psicanálise e antro- periência que, até então, não fora integrada ao simbólico. A técnica da narrati-
pologia refere-se à comparação feita por Lévi-Strauss entre o psicanalista e o va visa restituir uma experiência real, “da qual o mito apenas substitui os pro-
antropólogo. Em seu projeto Mitológicas, Lévi-Strauss se impôs um trabalho tagonistas, que penetram no orifício natural” (Lévi-Strauss, 1949b | 2012: 210).

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Em suma, a cura consiste em “tornar pensável uma situação dada inicialmen- gação da verdade (como causa final) e a foraclusão da verdade (como causa
te em termos afetivos, e aceitáveis, pelo espírito, dores que o corpo se recusa a formal), a psicanálise vem introduzir a dimensão da verdade como causa ma-
tolerar” (: 213). O que a paciente “não aceita são as dores incoerentes e arbitrárias terial. Essa causa material é, propriamente, a forma de incidência do signifi-
que constituem um elemento estranho a seu sistema, mas que o xamã, recorren- cante que se define agindo, antes de tudo, separado de sua significação. É isso
do ao mito, irá inserir num sistema em que tudo se encaixa” (: 213). o que possibilita a consideração do sujeito do significante. A integração da
A partir disso, Lévi-Strauss destaca alguns pontos de aproximação entre o função da verdade como causa, no que se refere ao saber e ao sujeito, conduz
xamã e o psicanalista: 1) fornecer ao paciente uma linguagem na qual podem o psicanalista à interrogação da verdade como causa do desejo.
ser expressos estados não formulados e, de outro modo, informuláveis; 2) tra- A discussão sobre a verdade empreendida por Lacan na década de 1960
zer à consciência conflitos e resistências que até então haviam permanecido in- permanece válida e necessária no contexto atual, em que o Dicionário
conscientes; 3) a produção de uma experiência específica na qual os conflitos se Oxford caracterizou, em 2016, “pós-verdade” como a palavra do ano. “Pós-
realizam numa ordem e num plano que permite seu livre desenrolar e condu- -verdade”, segundo esse dicionário, significa “um adjetivo relacionado ou
zem ao seu desenlace; e 4) a posição do xamã é correlata à do analista durante a evidenciado por circunstâncias em que fatos objetivos têm menos poder de
transferência, já que se torna o protagonista dos conflitos vividos pelo paciente. influência na formação da opinião pública do que apelos por emoções ou
O antropólogo, contudo, reconhece que esse paralelismo não exclui dife- crenças pessoais”.
renças, das quais a principal é que o psicanalista escuta e o xamã fala. Segun- Concluímos, assim, com estas palavras de Eduardo Viveiros de Castro,
do o autor: um dos mais influentes antropólogos brasileiros da atualidade, que, recen-
temente, em sua residência no Rio de Janeiro, deu uma entrevista e falou
A cura xamânica parece ser de fato um exato equivalente da cura psicana- sobre nosso cenário atual: “um momento em que a palavra perdeu o fôlego,
lítica, mas com uma inversão de todos os termos. Ambas buscam provocar inclusive o valor. A gente não consegue mais distinguir a verdade da mentira”
uma experiência, e ambas conseguem fazê-lo reconstruindo um mito que (Viveiros de Castro, 2019).
o paciente deve viver, ou reviver. Contudo, num caso, é um mito individual
que o paciente constrói com elementos tirados de seu passado e, no outro, é
um mito social que o paciente recebe do exterior e que não corresponde a
um estado pessoal antigo (: 215).
Referências bibliográficas
No texto “A ciência e a verdade”, Lacan também dialoga com Lévi-Strauss
em seus estudos sobre a magia e o xamanismo, e afirma que a magia “supõe freud, Sigmund
o significante respondendo como tal ao significante” (Lacan, 1966 | 1998: 885). (1912–3) Totem e tabu: algumas correspondências entre a vida psíquica dos selvagens e a dos neuró-
Na cura xamânica, encontramos o significante na natureza sendo invocado e ticos. Porto Alegre: l&pm Editores, 2014.
metaforicamente mobilizado pelo significante do encantamento. A verdade
lacan, Jacques
é interrogada sob seu aspecto de causa eficiente, desconsiderando-se, contu- (1952) “O mito individual do neurótico ou Poesia e verdade na neurose”. In: O mito individual
do, a verdade do sujeito. Embora produza efeitos, o saber permanece velado, do neurótico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.
dissimulado na tradição operatória. “A magia só é para nós tentação se vocês (1956) “O seminário sobre ‘A carta roubada”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
(1963) “Introdução aos Nomes-do-Pai”. In: Nomes-do-Pai. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
fizerem a projeção de suas características no sujeito com quem lidam – para (1966) “A ciência e a verdade”. In: Escritos. Op. cit.
psicologizá-lo, ou seja, desconhecê-lo” (: 891).
Para além do diálogo com a antropologia, Lacan continua esse desen- lévi-strauss, Claude
(1949a) As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Vozes, 2012.
volvimento, indagando-se sobre o lugar da verdade não só na magia, mas (1949b) “A eficácia simbólica”. In: Antropologia estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
também na religião, na ciência e na própria psicanálise. Ao passo que nas três (1955) “A estrutura dos mitos”. In: Antropologia estrutural. Op. cit.
primeiras encontramos o recalque da verdade (como causa eficiente), a dene-

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malinowski, Bronislaw
(1927) Edipo destronado: la vida sexual en las sociedades primitivas. Madrid: Errata Naturae
joana novaes
Editores, 2013.

miner, Horace
(1956) “Body Ritual among the Nacirema”, American Anthropologist, vol. 58, n. 3, Arlington,
June, p. 503–7.

viveiros de castro, Eduardo O corpo obrigatório:


(2019) “Estamos assistindo a uma ofensiva final contra os povos indígenas”, El País, 12 de outu-
bro. Disponível em brasil.elpais.com. Acesso em 20 de novembro de 2020. estética, consumo e regulação social

Introdução

José Gil, filósofo português, refere-se ao corpo enquanto uma “infralíngua”


em comunicação com o mundo (Gil, 1988). No palco da cultura, à mercê de
seus signos, o corpo ultrapassa os limites do biológico – sua versão mecânica –
e se torna personagem/ator social, travestindo-se de seu aparato simbólico.
Assim ele espelha e, simultaneamente, se constitui. Se o imaginário cultural
engendra gestos, posturas, hábitos, vícios, expressões, enfim, há toda uma
cartografia corporal que insere e reconhece o sujeito como membro de um
grupo social. Implícita está a dinâmica perfeição/imperfeição, buscando
atender aos mais antigos desejos do ser humano, conforme narram os mitos,
os elixires e fontes de eterna juventude.
O corpo, nos dizia Lévi-Strauss, é a melhor ferramenta para aferir a vida
social de um povo. Ao corpo cabe algo além de ocupar um espaço no tempo.
Cabe a ele uma linguagem que se institui antes daquilo que denominamos
“falar” e que se exprime, evoca e suscita uma gama de marcas e falas implícitas.
Da utopia de Morus aos filmes de ficção científica, o corpo é o lócus privi-
legiado das aspirações de perfeição como símbolo de uma sociedade evoluída.
É também o lugar comum das políticas totalitárias, que buscam através dele
estabelecer a superioridade das nações pela representação de uma perfeição
corporal e pela supressão, se não da doença, ao menos de sua visibilidade.
A imagem de um corpo liberado, livre, é constantemente colocada no primeiro
plano de representação de uma sociedade evoluída.

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Frequentemente apresentado em par com a evolução da civilização, sem- A dimensão simbólica do corpo
pre que se busca representar o grau de maturidade de uma cultura, convoca-
-se o corpo liberto dos trabalhos escravizantes, das doenças infecciosas, do Para Marcel Mauss, o corpo é o lugar de diferentes formas de sociabilidade
sofrimento desnecessário. O corpo “liberado”, feliz e saudável, inscreve-se e, assim, espelha a vida social de uma comunidade (Mauss, 1934). O corpo
em uma perspectiva positivista, em um esquema discursivo que o considera produz, continuamente, um sentido, inserindo-o em um espaço social, ou
numa visão evolucionista, deixando de lado as determinações históricas que seja, longe de ser apenas algo da ordem do biológico, ele terá sempre uma
foram necessárias para produzi-lo, como veremos adiante. dimensão social e cultural.
O mito de uma ascensão progressiva a um corpo perfeito, situado no Segundo esse autor, a forma como caminhamos, sentamos, usamos as
futuro, confunde-se, igualmente, com o mito da perfeição da Antiguidade mãos à mesa ou choramos estará sempre referida a uma “educação” social, a
(Rodrigues, 1999). Corpo de origem, paraíso perdido, sem sofrimento ou qual, por sua vez, espelha a mágica, a eficácia simbólica, as origens e as cren-
imperfeição, corpo dos heróis ou corpo dos deuses mesclam-se em uma ças de determinada sociedade. Essas diferentes maneiras são, em seu vocabu-
galeria em que a humanidade, representada por super-homens, terá, fi- lário, técnicas do corpo. Em um trabalho mais antigo, “A expressão obrigatória
nalmente, atingido o corpo perfeito, a partir do seu grau evolutivo de dos sentimentos”, de 1921, Mauss mostra-nos como uma multiplicidade de
civilização. gestos, considerados banais da vida cotidiana, e mesmo os sentimentos estão
Presente na cultura científica através da imagem da perfeição corporal imbricados e são modelados pelo campo social, chamando atenção para a
(medicina), bem como em outros domínios da cultura, como a higiene ou a sua dimensão simbólica (apud Le Breton, 1985).
atividade física, é sobretudo a partir do século xviii que surge a ideia de um O corpo e suas manifestações não serão, então, jamais naturais. Mauss
corpo que se direciona a um aperfeiçoamento graças ao progresso da ciên- chama de técnica o que considera “um ato/ação tradicional eficaz”, não sendo
cia – além da medicina, a antropologia médica e suas derivações: morfologia, este/a diferente do ato mágico, religioso ou simbólico. “Ato técnico, ato psí-
genética, frenologia, psiquiatria, psicanálise. Na mesma tendência, a vertente quico, ato mágico-religioso são confundidos pelo agente” (Mauss, 1934 | 1968:
estética com a educação física e a cosmetologia, a dietética e a cirurgia. Cen- 371). A única diferença residiria no fato de que, no primeiro caso, o agente o
trados todos no mesmo discurso, o corpo do homem se educa, se aperfeiçoa, sente como uma ação de ordem mecânica, física ou psicoquímica.
se “civiliza” (Remaury, 2000), e também se aprisiona. Tal como entendemos, Mauss busca recuperar a dimensão social e sim-
Ainda segundo Remaury, é no princípio do século xx que o corpo passa bólica do corpo. Segundo ele, fazemos mais do que manifestar os nossos sen-
a reunir o conjunto de discursos hoje em vigor. Para a ciência do nosso mun- timentos aos outros; manifestamo-nos porque é necessário fazê-lo – porque
do contemporâneo, o corpo é uma das peças centrais de aferição do dispo- esta é a forma de expressá-los para nós mesmos. Para Le Breton, tal cisão
sitivo de civilização: cirurgia plástica intensiva, clonagem, manipulação ge- do corpo/mente, corpo/sociedade, está diretamente ligada ao individualismo,
nética etc., independentemente de seus aspectos positivos ou negativos, são que favoreceria o divórcio entre uma cultura da erudição e aquela dos sa-
medidas de “avanço” da civilização. Um passo adiante em direção do corpo beres populares. Na Idade Média, o homem era o seu corpo, não havendo a
perfeito, última promessa do processo evolutivo. distinção atual: “O corpo como objeto singular, autônomo, estatutariamente
Este corpo é, mais do que nunca, o centro do nosso cotidiano em suas diferente do homem, é uma consequência da montagem do individualismo,
aspirações de saúde perfeita, juventude eterna e beleza ideal. Ainda que suas no seio das camadas burguesas onde uma parte elabora uma cultura erudita,
aspirações individuais sejam frequentemente criticadas, estas são represen- na época do Renascimento” (Le Breton, 1985: 12).
tativas da cultura dominante, nas quais se inscrevem as representações de É preciso estar atento, relembra-nos o autor, para o fato de que, mesmo
homem, de corpo e de progresso da ciência. “O corpo deste fim de século quando, hoje em dia, falamos em sociologia ou antropologia do corpo, nos-
é mais do que nunca representado como expressão perfeita da evolução: so conhecimento muitas vezes perderá os elementos de uma outra herança
o corpo do homem é a própria imagem de sua cultura” (: 23). ou “Weltanschauung”, uma vez que o corpo, tal como o concebemos, é uma
invenção da episteme ocidental moderna. O tecido social, como aponta Le
Breton, é uma rede muito diversificada de simbolismos relacionados aos di-

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ferentes grupos ou classes sociais: a linguagem, o corpo, os rituais, o espaço, Qual seria o significado desta coisa inútil sem a qual não podemos pas-
o tempo etc. Assim, mesmo que o homem se conceba como autônomo, seu sar? Reza o ditado popular que uma imagem vale mais do que mil palavras!
corpo não pode escapar dessa ordem de significações mais amplas – o corpo Em uma cultura com cada vez mais telas e menos páginas, as imagens passam
é então, necessariamente, parte do simbólico. a constituir, por si só, a realidade, em vez de retratá-la, reproduzi-la e repre-
O corpo responderá a uma soma de solicitações da vida social através de sentá-la. A imagem toma o lugar do sujeito e para este, sem perspectiva de
gestos, sensações ou sentimentos que o inserem em uma lógica de significa- si mesmo, não há identidade possível – torna-se estrangeiro em seu próprio
ções – é esta subordinação relativa à ordem social que dá ao corpo a possibili- corpo, alienado em si mesmo, reduzido à suaimagem.
dade de ser o suporte essencial à vida do sujeito, sem que a vontade deste seja, Segundo Jean Baudrillard, a lógica social do consumo aponta para uma
constantemente, convocada para todas as manifestações da vida cotidiana. ideologia fundamentada no mito da felicidade e da igualdade. A matriz desse
No seio de uma mesma comunidade cultural, os indivíduos dispõem de pensamento tem origem nos ideais de democracia, propostos pela Revolução
um registro somático comum (sensações, sentimentos, gestos etc.) que re- francesa, quais sejam: liberdade, fraternidade e igualdade (Baudrillard, 1970).
gula as trocas sociais. O homem, como aponta Le Breton, não pode viver e Tais preceitos, contudo, caíram por terra, havendo uma apropriação desses
habitar num universo que ele não compreende, e o corpo seria o lugar de en- ideais pela lógica do consumo, passando os mesmos a funcionar como um
contro entre a existência do sujeito e o seu environment. Os órgãos sensoriais equalizador das diferenças, característico da sociedade contemporânea.
seriam o termostato ou filtro que regularia as trocas com esse meio ambiente. Baudrillard afirma ainda que aspectos como a “técnica midiática” e a
Daí o autor afirmar que “o corpo é o operador semântico sobre o qual se “política sexual” conduziram para uma libertação que redundou em um dis-
funda a condição humana e, consequentemente, o redutor da angústia por tanciamento do sujeito para com a sua história. Em suas palavras, “a perda
excelência” (: 37). das diferenças funda o culto da diferença” (: 134). Abolindo-se as diferenças
Para Le Breton, o corpo é uma construção social, da mesma forma que reais entre os homens, destituindo-os de suas histórias, homogeneízam-se
a linguagem ou o pensamento e sua relação com a própria comunidade é homens e objetos – meros produtos. O reino da diferenciação se dá agora a
de ressonância mútua – um jogo de espelhos infinito, no qual um faz eco ao partir da exclusão, entre aqueles que têm e os que não têm.
outro. Na mesma linha de raciocínio, Edgar Morin defende que a individuali-
Esta relação fez-nos pensar na dinâmica do mito com a fantasia. Se o dade sofre um processo de diluição, na medida em que só se tem identidade
primeiro está referido ao coletivo, não deixa de ser estruturante das fantasias em oposição ao que é público. Ressalta, assim, o sujeito que vive entre o real
individuais, como o mito de Édipo, por exemplo. e o ficcional, e que se constitui de um mix de imagens de sensacionalismo e
romanesco, dando suporte à dinâmica da sociedade de consumo.
[...] o mito contém, expressa e simboliza a vida fantasmática de um povo. Baudrillard radicaliza quando anuncia a “morte do sujeito”, fazendo re-
Mas é também a partir dele que se estruturam as fantasias. [...] Se o mito ferência a um texto de Virgílio Martini datado de 1935 (Baudrillard, 1995).
aparece como uma produção imaginária coletiva, a fantasia, no sentido psi- Em última análise, o texto discorre sobre a eliminação do feminino, tendo em
canalítico, é uma produção individual (Vilhena, 1991: 94–5). vista o lugar da mulher como o lugar da alteridade, e aborda de uma forma
mais ampla a eliminação da reprodução simbólica do outro.
Dessa forma, eliminando-se o outro, as diferenças não são toleradas. Nes-
Corpo e sociedade de consumo se caso, é importante entender quais os aspectos compreendidos no lugar da
alteridade, vale dizer, raça, língua e sexo. Cria-se um mundo homogeneizado,
Em O mal-estar na civilização, Freud mostra-se intrigado acerca da valoriza- globalizado, em tons pastéis, enfim, sem grandes distinções, não havendo mais
ção da beleza pela civilização, ainda que esta não lhe proporcione nenhuma lugar para o estranhamento, a negatividade, a doença e, finalmente, a morte.
utilidade. No mesmo texto, o autor caracteriza a fruição da beleza como uma Poderíamos, então, indagar qual a razão pela qual essas dimensões não
estratégia para buscar a felicidade. A essa fruição dá o caráter de um “senti- encontram mais espaço nas sociedades contemporâneas ou, mais precisa-
mento tenuamente intoxicante” (Freud, 1930). mente, na lógica do consumo. O que é feio, finito, perece e morre, não conso-

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me e, indiscutivelmente, ainda não se encontrou um valor mercadológico e/ não deviam esquentar a cabeça com o uso de maconha, mas sim com o uso de
ou de troca para esse fenômeno. ‘bombas’; ‘bomba’ é a gíria usada para designar o coquetel de anabolizantes,
Enfim, eliminam-se todas as singularidades, em busca de uma positivi- fórmula mágica de aquisição de músculos a curto prazo e sem esforço” (: 2).
dade total; em última análise, elimina-se o sujeito, a fim de reduzir sua exis- Prosseguem a sua análise, citando mais um exemplo tirado da fala de
tência à dimensão de consumidor. A engrenagem que sustenta a lógica do outra adolescente, que projeta uma banda de rock. O primeiro item a ser
consumo não deve ser quebrada e, para que isso aconteça, os sujeitos devem pensado, segundo as autoras, não é o aprendizado da música, do instrumento,
desejar o mesmo. A despeito desse desejo de uniformidade, as diferenças ét- mas a confecção do símbolo da banda, das camisetas e da propaganda. Enfim,
nicas, econômicas, de idade e raciais são abolidas. Cria-se uma aldeia global aspectos de marketing de um produto já pronto, mas antes mesmo de se ini-
com consequências que não escapam ao observador, por mais insensível que ciar a construção efetiva do grupo. Curiosamente, nenhum dos integrantes
este seja. dessa banda conhece seu ofício ou dispõe-se, inicialmente, ao aprendizado
Baudrillard introduz a partir daí a noção de transparência, que define da música.
uma cultura, cuja característica fundamental é a anulação da alteridade, em Os exemplos acima indicam o imediato como valor que permeia vários
oposição à supremacia do sujeito e na qual o gozo é ilimitado – sem restri- aspectos da cultura, constituindo uma qualidade essencial a qualquer bem a
ções. Como apontam Maia e Albuquerque (1999), a sociedade contemporâ- ser consumido. Mais precisamente, o que se veicula é a satisfação imediata:
nea, muito bem definida por Dumont como individualista, vem funcionan- esse é o bem maior.
do em grande escala sobre o imperativo do gozo. A ordem é: “Seja feliz, custe No que se refere ao uso do corpo, os efeitos de tal exigência de imediatis-
o que custar, haja o que houver”. O grande tirano da atualidade talvez tenha mo são particularmente marcantes: na busca de sensações de prazer e auto­
o nome de Sucesso. Esse ditador, contudo, torna-se cada vez mais exigente: estima, recorre-se a soluções milagrosas, cujas consequências, a médio ou
a realização tem de ocorrer na vida profissional, financeira, amorosa, sexual, longo prazo, são desconsideradas. Nesse sentido, o uso de anabolizantes ace-
física e familiar. Como bem observa Roudinesco, a sociedade moderna, lera o lento processo de preparação física em academias; cremes, massagens e
quanto mais submetida a essa lógica de excesso narcísico, menos interesse pílulas garantem a modelagem do corpo de modo rápido, eficiente e sem sa-
tem pelo sujeito, a não ser para contabilizar seu sucesso ou para olhá-lo como crifícios; excessos alimentares são neutralizados com medicamentos e pílulas
uma vítima (apud Mendlowicz, 2003). para eliminação de gordura, azia etc.; “o Viagra garante a boa performance
Segundo Mendlowicz, é na sociedade da globalização, onde os indivíduos com o mínimo de interferência do ‘contingente” (: 3). A indústria farmacêu-
são classificados, grosseiramente, entre os winners e os loosers, que os fra- tica, gradativamente, substitui o delicado autocontrole do corpo. Os sinais
cassos lançam o sujeito numa dor difícil de suportar. Sem encontrar outros corporais, indicadores de sua saciedade e de seus limites, são silenciados por
ideais aos quais se dedicar e incapaz de cumprir essas exigências, só lhe resta substâncias químicas.
a depressão. Impotentes para suportar as faltas, os sujeitos caem no desespero, De modo análogo, aponta Mendlowicz, estados de ansiedade, angústia,
na tristeza ou se entregam a compulsões. O tempo é o da urgência e a única tristeza e experiências de dor que sinalizam o modo como o homem posicio-
saída, “emagrecer rapidamente” – a espera virou sinônimo de desespero. na-se em certas situações, preparando-o para elas, também são aplacados por
O imediatismo na cultura atual é também o aspecto privilegiado por medicações (Mendlowicz, 2003). Busca-se permanecer num estado de prazer
Maia e Albuquerque em seu trabalho “Get there now!” (Maia & Albuquerque, e alegria, ao preço de se eliminar parte da experiência humana. Dito de outro
1999). No imaginário atual, o termo imediato aproxima-se mais do “instan- modo, a dor e a frustração não são mais reconhecidas como constitutivas do
tâneo” do que do rápido. Mas por que, então, associar a cultura contemporâ- percurso rumo aos ideais de prazer e alegria.
nea à ideia de imediato? Aspectos, aparentemente isolados, da vida cotidiana Mais ainda, dor e frustração passam a ser indicadores não de limites ine-
têm como traço comum essa ideia. De uma forma subliminar, os meios de rentes à experiência humana, mas da insuficiência de um sujeito singular.
comunicação de massa difundem-na em termos de consumo: adquira deter- Ou seja, veicula-se a ideia de que essa imagem ideal de pleno prazer está
minado produto e realize seus sonhos de imediato. Sugerem, assim, o relato disponível para todos a um mínimo esforço, indicando-se que a não concre-
de uma adolescente para melhor ilustrar sua argumentação: “Os pais de hoje tização desse modelo decorrerá, exclusivamente, da incapacidade individual.

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O sujeito da ordem ginário corporal”, no qual novas oposições se fazem presentes. Desta forma,
o adestramento de um corpo de musculatura metálica, esculpida como uma
Buscando ampliar a compreensão da dimensão social do corpo, é nossa in- obra de arte, se oporia à cadência e à leveza de um projeto californiano de cor-
tenção aprofundar esta reflexão à luz das teorias sociais do corpo. Dentre as po. Musicalidade de gestos e potencialidade para a dança versus perspectiva
teorias existentes, privilegiaremos as contribuições de dois autores que con- metálica e adestramento corpóreo.
sideramos fundamentais para o entendimento do corpo: Maurice Merleau- O autor ressalta também que a câmera veio contribuir para a fragmen-
-Ponty e Michel Foucault. Antes, contudo, faremos uma breve digressão, ten- tação deste corpo na intenção da construção de um novo. A lente utiliza-
tando demonstrar os múltiplos usos que se podem fazer do corpo. Paradigma da pela cineasta prioriza pedaços (membros) de corpos de atletas em sua
de controles, desta feita, nada sutis. musculatura esculpida. Mais ainda, com sua câmera, Leni traria um caráter
Em um interessantíssimo trabalho, intitulado “A deusa imperfeita: a estéti- “transgressor” a essas imagens, pois a olho nu tal não seria ressaltado. Seria
ca como política”, Joel Birman analisar a proposta nazista de arianização da raça a antinatureza aliada à tecnologia, a serviço da ideologia da estética nazista.
em suas relações com o corpo, tomando como fio condutor os documentários O perfeccionismo exaltado a serviço de uma reconstrução racial, em que
A deusa imperfeita e Arquitetura da destruição, de Leni Riefenstahl (Birman, a mistura étnica “contaminaria” a perfeição desses deuses, o que viria servir
1998). Segundo o autor, a ideologia nazista traz o corpo como instrumento e de justificativa para o extermínio das populações “inadequadas”:
artifício para a construção de um mundo novo. A “pedagogia do corpo” tem
como objetivo a reconstrução racial, na qual está presente o mito de um corpo O corpo como matéria-prima para a construção do belo estaria, pois, no
capaz de performances mirabolantes e atributos como a invencibilidade. fundamento do projeto nazista. A arianização do mundo, centrada na
A raça perfeita, o mito de completude, a fabricação de deuses, sem fendas, superioridade racial alemã, pretendia manipular os processos naturais e
mutilações ou descontinuidades, ou seja, seres para além da castração, ser- constituiria uma modalidade artificial de seleção da espécie. O ideário do
viram de pano de fundo para a ideologia nazista. Essa ideologia preconizou eugenismo, com a eliminação e o impedimento para procriar dos mutila-
a disciplina corpórea como resultado da autonomia do corpo em relação ao dos, dos cronicamente doentes e dos loucos, seria consubstancial com a
espírito – a disciplina leva à docilidade do sujeito, o que aponta para um pa- eliminação crematória dos judeus. A raça seria aperfeiçoada pela mistura
radoxo: dóceis guerreiros. macabra de eliminação dos imperfeitos, extermínio e tecnologia biológica
A cultura germânica procurou uma nova “aura”, diferente da antiga, cal- de ponta (: 111).
cada na tradição. Com isso, buscou criar uma nova concepção de obra de arte.
Essa visão de aura ancorada na tradição teve suas bases na cultura francesa, O projeto totalitário nazista teria assim como objetivo deixar o mundo
que, por sua vez, originou-se do modelo clássico grego. Tal modelo caracte- reduzido às cinzas, a fim de erigir uma nova civilização, na qual a arianização
rizava-se pelo privilégio da razão, em oposição à aparência/estética, o que dos corpos estaria no cerne de uma nova ideologia. A “biologia se faz aqui
indicava uma concepção platoniana de interpretação do mundo. estética” (: 111).
O paradoxo presente na cultura alemã estaria no desejo de romper uma tra- Mas retornemos às nossas questões anteriores. Na vasta bibliografia exis-
dição franco-europeia, uma vez que se sentia excluída, ou não adequadamente tente sobre o tema nas ciências sociais, figuram autores como Featherstone,
representada, nessa tradição. A criação de uma nova raça significaria não apenas Hepworth e Turner (1991); Shilling (1993), Turner (1996), Ferguson (1997)
a inclusão, mas um modelo inaugural de uma nova tradição, buscando-se a ori- e Maguire e Mansfield (1998). Com efeito, analisando esse campo temático,
gem desta forma de compreensão na Grécia pré-socrática. Um estilo antiplatô- identificamos três correntes de pensamento. A primeira se compõe de auto-
nico caracterizado pela repulsa à razão e o apelo ao projeto estético. Tal tradição res que defendem a ideia do corpo como algo “vivido” e “ativo”, vertente que
de pensamento traria oposições entre as categorias de belo e sublime, razão e tem Merleau-Ponty como referencial teórico; a segunda analisa o corpo ins-
mito, humano e divino, completude e incompletude, finito e infinito. crito historicamente e nela a obra foucaultiana é paradigmática; por fim, uma
A exaltação da estética é o novo discurso político da eugenia. Na nova terceira corrente considera as duas primeiras teorias complementares, ao invés
visão de mundo implantada com a propaganda nazista, instalou-se um “ima- de antagônicas. Caso de autores como Ferguson (1997) e Crossley (1996).

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Os autores citados, assim como Merleau-Ponty e Foucault, possuem uma discursos instituídos estendem-se por diversos campos como os das institui-
visão histórico-social do corpo. Dessa forma, suas teorias podem ser usadas ções hospitalar, educacional, familiar etc. Destaca ainda como, por meio de
para compreender as relações de agenciamento e poder envolvidas nas dis- determinadas relações de poder, ideais e valores presentificam-se nos campos
cussões sobre os tipos de dominação do corpo e consciência corporal (body institucional e social. Em A arqueologia do saber, Foucault enuncia claramen-
awareness). te: “Há saberes que são independentes das ciências (que não são nem seu
As diferenças entre os dois autores consistem no fato de que, para Mer- esboço histórico, nem o avesso vivido), mas não há saber sem uma prática
leau-Ponty, os comportamentos corporais são compreendidos como funções discursiva definida, e toda prática discursiva pode definir-se pelo saber que
existenciais, modos de ser no mundo, ao passo que, para Foucault, são en- ela forma” (Foucault, 1969 | 2005: 205).
tendidos em termos de suas funções históricas e políticas. Nas palavras de A explicitação da questão do poder se dará, fundamentalmente, quando
Crossley: “Ambos, por exemplo, aceitaram a afirmação de que sentimentos e o autor estuda a história da penalidade, identificando aí uma forma de poder
condutas passionais são tão inventados como palavras” (Crossley, 1996). Mas que incide sobre os corpos dos indivíduos enclausurados, sob a utilização de
enquanto Merleau-Ponty faria uma análise dos sentimentos como formas uma técnica própria de controle. Será este tipo específico de poder que deno-
situadas de conduta que constituem um modo de ser da pessoa com outras minará de disciplina, de poder disciplinar. “É importante notar que a disci-
ou com alguns objetos, Foucault se preocuparia com uma análise histórica plina nem é um aparelho, nem uma instituição; ela funciona como uma rede
(genealógica) desses sentimentos, buscando seu papel na vida política con- que os atravessa sem se limitar a suas fronteiras; é uma técnica, um disposi-
temporânea (: 103) tivo, um mecanismo, um instrumento de poder” (Machado, 1982 | 2007: 194).
Para Merleau-Ponty, a ênfase está no caráter ativo do corpo no mundo Nesses termos, um dos pontos fundamentais é que o poder disciplinar é
e, consequentemente, na vida social. Esse autor nos oferece uma noção dife- produtor de individualidade, isto é, que o indivíduo é uma produção desse po-
rente de percepção, rejeitando a separação entre corpo e mente, uma vez que, der-saber. Este é o caso, por exemplo, de o hospício ser o dispositivo que trans-
para ele, a percepção é uma “configuração significativa de sensações” (Mer- forma o louco em doente mental. Neste sentido, o poder disciplinar não destrói
leau-Ponty, 1945). Ou seja, o corpo no mundo é, simultaneamente, mediado o indivíduo, ele o fabrica. Assim, das técnicas disciplinares, que são técnicas
pela presença física e pelo significado perceptivo. Nossa percepção é baseada de individualização, nasce um tipo específico de saber: as ciências humanas,
em nossos hábitos. Agimos no mundo através do corpo, ele é nossa forma cujas práticas constituem este objeto que é o indivíduo e cuja lógica instituída
de ser e estar, nossa forma de experienciá-lo. Fazendo uma apropriação das seria a adaptação e a normatização dos corpos.
ideias desse autor, uma mulher que acha seus seios pequenos e, por isso, de- Este é o aspecto de produção/fabricação do sujeito que nos interessa parti-
cide colocar uma prótese de silicone passaria, simultaneamente, a estar e a cularmente. Por isso, chamamos atenção especialmente para o texto intitula-
interagir no mundo de forma diferente da vivenciada até então. do Nascimento da clínica, em que Foucault aponta as diferenças entre o corpo
Já Foucault ressalta que o corpo social é um efeito não do consenso, mas da medicina clássica – O que você tem? – e o corpo da medicina científica –
da materialidade do poder operando nos próprios corpos dos indivíduos. Onde dói? (Foucault, 1963). Como aponta Nunes, “a medicina era, nessa pers-
Portanto, não nos parece arriscado afirmar que o discurso da medicina fun- pectiva, um instrumento privilegiado de regulação física e moral do corpo”
ciona como um regime disciplinar, no qual há uma circulação de saber/po- (Nunes, 1999: 91).
der inacessível ao indivíduo comum. Da mesma forma, as noções de saúde,
doença, bem como os padrões estéticos ditados, podem ser entendidos como
uma forma de regulação social – vigiando e punindo, através de seus discur- Inconclusões
sos, os sujeitos que não estão adequados às normas. Mais ainda, nas palavras
de Foucault, as técnicas e/ou as práticas produzem sujeitos. É preciso cuidado! Se os discursos sobre o corpo não são jamais neutros, é
Das contribuições de Foucault o que nos servirá como referência é o fato preciso também evitar a postura unívoca de vê-lo apenas como disciplinado,
de articular o estudo dos saberes (arqueologia) em um nível extradiscursivo obedecendo cegamente às regras do look, num sacrifício ascético em prol da
mais global. A partir desta articulação, o autor procura demonstrar como os manutenção da juventude e da bela forma.

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Uma vez que o corpo nunca é totalmente apreendido pelos dispositivos couto, Edvaldo Souza
(2000) O homem-satélite: estética e mutações do corpo na sociedade tecnológica. Ijuí: Editora Unijuí.
culturais, possibilitando sua submissão completa às expectativas sociais, a
“feiura” e o “estranho” muitas vezes poderão ser tomados como uma mensa- crossley, Nick
gem cuja força reside, justamente, na sua surpreendente apresentação. Neste (1996) “Body-Subject/Body-Power: Agency, Inscription and Control in Foucault and Merleau-
sentido, as práticas corporais podem ser compreendidas em um cenário de Ponty”, Body and Society, vol. 2, n. 2, London/Thousand Oaks/New Dehli, p. 85–98.

indiferenciação, na estetização da vida cotidiana, de sujeição ao discurso do daniels, Monica Correia


outro, mas também como uma contestação, como problematização do esta- (1999) “Traços físicos, imagens sociais: representações da feiura”, Dissertação de Mestrado,
tuto do corpo na contemporaneidade. Seja como for, o corpo está em cena, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas.
sem que haja qualquer possibilidade de predizer o futuro e seus limites. featherstone, Mike
(1991) Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo: Studio Nobel, 1995.

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Escutando a família: uma abordagem psicanalítica. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, p. 93–8. ana maria rudge
Professora do Programa de Pós-graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade
da Universidade Veiga de Almeida, Rio de Janeiro. Professora Associada apo-
sentada da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (puc-rio).
Bolsista de Produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cien-
tífico e Tecnológico (cnpq). Pesquisadora da Associação Universitária de Pes-
quisa em Psicopatologia Fundamental. Membro Psicanalista da Sociedade de
Psicanálise Iracy Doyle.

betty b. fuks
Psicanalista. Doutora em Comunicação e Cultura (1998) pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Professora do Programa de Pós-graduação em
Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida, Rio de
Janeiro. Bolsista de Produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (cnpq). Pesquisadora da Associação Universitá-
ria de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Editora da revista online
Trivium: estudos interdisciplinares.

christian ingo lenz dunker


Psicanalista. Professor Titular em Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo (usp). Analista Membro da Escola

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dos Fóruns do Campo Lacaniano. Duas vezes agraciado com o Prêmio Jabuti, josé maurício loures
articulista da Boitempo e da uol-Tilt, youtuber, coordena o Laboratório de Psicanalista. Membro do Fórum Rio da Escola de Psicanálise dos Fóruns do
Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da usp. Autor de mais de cem artigos Campo Lacaniano – Brasil. Doutor pela Universidade Veiga de Almeida, Rio
científicos e de dez livros, entre os quais O palhaço e o psicanalista (São Paulo: de Janeiro, onde é docente do Programa de Pós-graduação stricto sensu em
Planeta, 2018), Transformações da intimidade (São Paulo: Ubu, 2017), Mal- Psicanálise, Saúde e Sociedade e cocoordenador do curso Pós-graduação
-estar, sofrimento e sintoma (São Paulo: Boitempo, 2015) e Estrutura e consti- lato sensu em Teoria Psicanalítica e Prática Clínico-Institucional. Docente
tuição da clínica psicanalítica (São Paulo: Annablume, 2012). do Curso de Especialização em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (puc-rio).

gloria sadala
Psicanalista. Membro da Internacional dos Fóruns – Escola de Psicanálise leonardo câmara
dos Fóruns do Campo Lacaniano (if-epfcl) e do Fórum Rio da epfcl-Brasil. Psicanalista. Professor adjunto-a do Departamento de Psicologia da Univer-
Membro do colegiado de Formação Clínicas do Campo Lacaniano – Rio sidade Federal de São Carlos (dpsi/ufscar). Doutor pelo Programa de Pós-
de Janeiro (fccl-rj). Doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. -graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Coordenadora do Doutorado em Psicanálise, Saúde e Sociedade, docente do Membro do Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi (gbpsf).
Programa de Pós-graduação stricto sensu em Psicanálise, Saúde e Sociedade
e cocoordenadora do curso de Pós-graduação lato sensu em Teoria Psicanalí-
tica e Prática Clínico-Institucional da Universidade Veiga de Almeida, Rio de luiz fernando dias duarte
Janeiro. Docente do Curso de Especialização em Psicologia Clínica da Ponti- Professor titular do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social,
fícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (puc-rio). Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisador sênior
do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (cnpq).
Foi Diretor do Museu Nacional, Rio de Janeiro. Praticando o que chama de
joana novaes uma “Antropologia da Pessoa”, trabalhou frequentemente com temáticas lin-
Pós-doutora em Psicologia Social (2008) e em Psicologia Médica (2012) pela deiras à psicanálise e aos demais saberes psi.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Coordenadora do Núcleo de
Doenças da Beleza do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção
Social (lipis) da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (puc-rio). marco julián martínez-moreno
Pesquisadora correspondente do Centre de Recherches Psychanalyse et Antropólogo da Universidade Nacional da Colômbia. Doutor em Antropo-
Médicine – Université Denis-Didetot Paris vii (crpm – Pandora). logia Social pela Universidade de Brasília. Bolsista de Pós-doutorado Nota 10
da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio
de Janeiro (Faperj) no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social,
joão felipe g. m. s. domiciano Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi professor no
Psicanalista. Doutorando em Psicologia Clínica no Instituto de Psicologia da Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais.
Universidade de São Paulo (ip-usp), com estágio de pesquisa na Université Seu trabalho e publicações exploram relações de violência familiar, masculi-
Paris vii. Coordenador da Rede Clínica do Laboratório Jacques Lacan e pes- nidades, a judicialização e a psicologização da vida cotidiana, e os processos
quisador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da Universi- de intervenção de dimensões da vida tidos como culturais em setores po-
dade de São Paulo (latesfip-usp). pulares do Rio de Janeiro e de Bogotá. Desde 2003, é membro do Núcleo de
Pesquisa Conflicto Social y Violencia da Universidade Nacional da Colômbia.

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nelson da silva junior regina herzog
Psicanalista, Doutor em Psicopatologia Fundamental pela Universidade Psicanalista. Professora associada do Programa de Pós-graduação em Teo-
Paris vii. Professor Titular do Departamento de Psicologia Social e do Traba­ ria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio
lho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Membro do de Janeiro. Bolsista de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de
Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e da Associação Desenvolvimento Científico e Tecnológico (cnpq). Coordenadora do Núcleo
Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Um dos coordena- de Estudos em Psicanálise e Clínica da Contemporaneidade (nepecc) e do
dores do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da Universidade Curso de Especialização Psicanálise e Contemporaneidade: Trauma e Urgên-
de São Paulo (latesfip-usp). Autor, entre outros, dos livros Le fictionnel en cias Subjetivas na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (puc-rio).
psychanalyse: une étude à partir de l’œuvre de Fernando Pessoa (Lille: Presses
Universitaires du Septemprion, 2000), Linguagens e pensamento: a lógica na
razão e desrazão (São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007) e Fernando Pessoa e ricardo goldenberg
Freud: diálogos inquietantes (São Paulo: Blucher, 2019). Psicanalista. Licenciado em Psicologia pela Universidad de Buenos Aires,
mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo e Doutor em Comunica-
ção e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (puc-sp).
olivier douville Autor de, entre outros, Ensaio sobre a moral de Freud (Salvador: Ágalma, 1994),
Psicólogo clínico e psicanalista. Maître de conférence em Psicologia na Uni- No círculo cínico ou, Caro Lacan, por que negar a psicanálise aos canalhas? (Rio
versidade Paris – Nanterre. Dirige a revista Psychologie Clinique. Lecionou de Janeiro: Relume-Dumará, 2002), Do amor louco e outros amores (São Paulo:
na Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Universidade de Filosofia em Instituto Langage, 2013) e Desler Lacan (São Paulo: Instituto Langage, 2018).
Chengdu, na Université Sinica em Taipé, na Universidade dos Andes em Bo-
gotá e na Universidade André Bello em Santiago do Chile. Autor de vários
livros, entre os quais Les figures de l’Autre: pour une anthropologie clinique
(Paris: Dunod, 2014), De l’adolescence errante (Nantes: Pleins Feux, 2007 –
Prix Œdipe 2008) e Chronologie de la psychanalyse du temps de Freud (Paris:
Dunod, 2009).

paulo sérgio de souza jr.


Psicanalista, linguista e tradutor. Doutor em Linguística pelo Instituto de Es-
tudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (iel-Unicamp),
atuou como professor-associado junto ao Departamento de Língua Romena
e Linguística Geral da Universidade A. Ioan Cuza, em Iaşi (2009), como tra-
dutor-residente do Instituto Cultural Romeno, em Bucareste (2013), e como
professor convidado junto à pós-graduação do Departamento de Linguística
Aplicada do iel-Unicamp (2015). Coorganizou e traduziu, entre outros, o vo-
lume Otto Gross: por uma psicanálise revolucionária (São Paulo: Annablume,
2017). É um dos editores de Lacuna: uma revista de psicanálise e da plataforma
J. Lacan – Escritos Avulsos.

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Esta obra foi impressa na cidade do Rio de Janeiro pela Alvolaser Serviços de Impressão.

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