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Oi.

Q horas mesmo ficou


nossa sessão? tks.

Anette Blaya Luz

Revista Brasileira de Psicanálise Anette Blaya Luz é membro efetivo


volume 49, n.1, p. 165-175 da Sociedade Psicanalítica de Porto
Alegre (SPPA).
2015

Resumo
A autora apresenta algumas preocupações frente ao impacto
que as novas plataformas de comunicação produzem dentro
das relações analíticas. Questões como responder e-mails,
torpedos ou WhatsApp, ou ainda se o analista deve ter ou
não Facebook, são examinadas. Sem oferecer uma posição
conclusiva a respeito dessas questões, a autora propõe que os
analistas não podem “perder o trem da história”. É preciso
que aprendam a usar essas ferramentas, pois recusar-se a
isso pode ser menos neutro do que usá-las. Também são
abordadas preocupações a respeito da perda do anonimato
na web.
Palavras-chave
anonimato; internet; WhatsApp; Facebook; web; rede;
psicanálise virtual.
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volume 49, n.1
2015

N ascida nos anos 50, não sou uma


expert no uso das novas tecnologias ciber-
cotidiano. Como lidar com isso? Como
administrar essa desconfortável sensação de
néticas, embora não seja totalmente analfa- invasão de privacidade que a mensagem de
beta nessas novas linguagens. Eu as utilizo meu paciente no WhatsApp me obrigou a
bastante bem dentro de certos limites, sentir? Eu poderia não possuir um celular
mesmo que o desenvolvimento assusta- ou não usar o WhatsApp, mas me parece
dor de novos aplicativos, que surgem dia que não podemos nem devemos escapar
após dia, faça me sentir cada vez mais limi- dessa nova dimensão cibernética. Pelo con-
tada. Sou o que muitos consideram uma trário, devemos aprender a usá-la terapeuti-
imigrante da era digital, enquanto filhos e camente, já que é inexorável sua presença
netos de quem tem a mesma idade que eu dentro do setting analítico atual. Mas como
são considerados os nativos dessa mesma usá-la? Lingiardi (2008) faz a importante
era. É evidente que as novas tecnologias pergunta: “Afinal, que tipo de objeto ana-
vieram para ficar e alteraram para sempre lítico é um e-mail?” (p. 112). E eu acres-
nossa cultura e, portanto, a psicanálise cento: e um torpedo? E um WhatsApp? E
destes novos tempos. Dito isso, relato uma um convite para ser amigo no Facebook?
vinheta que aconteceu recentemente em Sem dúvida, é uma nova forma de comuni-
meu consultório. cação, mas com frequência não é possível
Troquei de telefone celular e pedi a um interpretá-la como faríamos com uma asso-
membro da família, nativo da era digital, ciação livre. Um WhatsApp pode ou não
que configurasse o novo aparelho para as ter a característica de uma livre associação.
minhas necessidades, já que não sei fazer Muitas vezes, o analista opta por aguardar
isso com a mesma habilidade e destreza – pelo uso da comunicação dentro da sala de
afinal, como imigrante, ainda tenho difi- análise, mas nem sempre é possível ou ade-
culdades com essa nova linguagem. Em quado. Ou espera o paciente trazer a ques-
poucos minutos, o novo aparelho (da tão. O importante é que possamos refletir
mesma marca que o anterior, para facili- a respeito dessas circunstâncias, pois são
tar minha adaptação) fica pronto para o situações que vieram para ficar.
uso. Em menos de 36 horas, recebo de um Descrevi esse episódio para introduzir
paciente bastante atuador a seguinte men- algumas ideias a respeito do uso, quer quei-
sagem no WhatsApp: “Estás muito bem na ramos ou não, dentro do consultório des-
foto do teu perfil”. Demorei um pouco para sas novas tecnologias de comunicação. A
entender de que se tratava aquela mensa- primeira ideia que me ocorre é salientar
gem. Que foto? Onde? Não tenho Face- que um analista nativo da era cibernética
book nem Instagram; portanto, não deveria vai, provavelmente, ter mais familiaridade
ter nenhum perfil na web. Mas não era na e espontaneidade na utilização dessas
web, e sim no meu nome no WhatsApp.
Mais um aprendizado naquele terreno
virtual e absolutamente presente no nosso
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ferramentas de comunicação. Um analista da Verdade, uma só verdade, e aconteceu


mais antigo, para não dizer mais velho, um no seio de uma sociedade que privilegiava
imigrante, vai provavelmente ter mais ini- os valores universais em detrimento dos indi-
bições, dificuldades e resistências ao apro- viduais. (Carlisky & Eskenazi, 2000, p. 23)
veitamento desses instrumentos no setting
analítico. Esse cenário serviu como caldo de cul-
A psicanálise nasceu mais de um século tura para que o pensamento psicanalítico
antes do WhatsApp, do Facebook, do Insta- florescesse. A razão, a busca da verdade e o
gram, na época em que uma chamada tele- pensar sobre as questões humanas encon-
fônica, mesmo dentro da própria cidade, traram naqueles tempos uma receptividade
era um feito demorado, além de ser um que hoje em dia não existe mais. Nossa
luxo, pois dependia de uma telefonista e sociedade mudou.
o telefone era um objeto caro. Hoje, mais O homem que é fruto da pós-moderni-
de cem anos depois, cada indivíduo car- dade quer soluções rápidas, indolores, des-
rega no bolso seu próprio aparelho celular cartáveis e baratas. Segundo Lipovetsky
e pode se comunicar gratuitamente com (1986) houve uma troca dos ideais revolucio-
qualquer pessoa, em qualquer parte do nários por ideais narcisistas. Podemos frente
planeta, a qualquer hora. Portanto, é fun- a isto imaginar que a constituição da iden-
damental que façamos uma reflexão a res- tidade e da subjetividade do homem atual
peito do indivíduo que analisamos hoje e sofreu algum impacto e processou-se de
do analista que somos atualmente, compa- modo distinto do homem da era moderna.
rando-os com o paciente e com o analista Seria possível então imaginar que os
do passado. Freud publicou seus primei- pacientes daquela época fossem diferentes
ros e importantes textos psicanalíticos no dos pacientes que atendemos hoje em nos-
final do século XIX, entre 1885 e 1899. Esta- sos consultórios? E o contrário: seria cabí-
mos no século XXI. Muitas coisas mudaram vel pensar que podem ser iguais? Isto é, que
desde aqueles tempos. nossos pacientes e os que Freud atendia são
iguais, sofrem dos mesmos padecimen-
Quando a psicanálise surgiu, a cultura vie- tos? Ou que sejam pelo menos um pouco
nense estava apoiada nas ideias do Ilumi- parecidos? Que podemos e devemos tratá-
nismo Alemão, em um mundo onde a Razão -los da mesma forma que os psicanalistas
organizava os saberes e as certezas, deter- do passado? Certamente, sendo todos seres
minando que o pensamento crítico preva- humanos, portanto pertencentes à mesma
lecesse sobre a utopia, sempre regido pelas espécie animal, podemos afirmar que,
ideias modernistas. O Modernismo calcado mesmo sofrendo o impacto das mudanças
no Positivismo foi um movimento de busca culturais, sociais e políticas que acontece-
ram ao longo desta passagem do tempo,
não poderia haver nada novo na essência
do sofrimento humano. Temos inconsciente
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e sofremos com conflitos psíquicos. Somos pós-modernidade e pelas conquistas tecno-


homens e mulheres que, a exemplo de lógicas, os homens e mulheres que deitam
Freud, temos pacientes, todos pertencen- em nossos divãs nos dias de hoje são, em sua
tes à raça humana e, portanto, passíveis de essência, os mesmos homens e mulheres,
desenvolver neuroses e psicoses, assim como meninos e meninas, que deitaram no divã
perturbações de personalidade. Mas pode- da Viena do início do século passado, e que
mos nos perguntar que forma o sofrimento deitariam em um divã que fosse colocado
do viver pode ter assumido em consequên- nos sombrios desvãos do Castelo de Elsinore
cia das vicissitudes que a cultura enfrentou. ou na encruzilhada entre Tebas e Corinto.
O sofrimento humano faz parte do viver de (Cruz, 2009, p. 93)
qualquer indivíduo, seja nos dias de hoje,
seja nos tempos em que Freud viveu. Mas, Precisamos, como analistas, nos adaptar
ao nos questionarmos se este sofrimento a essas novas tecnologias sem, no entanto,
é o mesmo, hoje em dia, quando compa- deixar de ser psicanalistas. Precisamos
rado àquele dos tempos passados, precisa- aprender a utilizá-las dentro do processo
mos também nos indagar sobre as formas analítico, da mesma forma que precisamos
de apresentação e de tratamento dos pade- aprender a identificar quando estão sendo
cimentos que vemos na clínica psicanalí- usadas para atuações como nos invadir e
tica atual. Se entendermos que é o mesmo, transpor as portas da nossa individuali-
podemos concluir que o tratamento deva ser dade, a exemplo da vinheta que descrevi
o mesmo. Do contrário, somos obrigados a anteriormente.
buscar novas alternativas de comunicação A cultura em que Freud e seus pacientes
com esse novo ciber-humano, que precisa, estavam imersos é gritantemente diferente
por exemplo, a cada tantas horas, encon- da cultura em que estamos mergulha-
trar uma fonte energética para recarregar as dos hoje. E a própria psicanálise pode ser
baterias de seu telefone celular, pois se não imputada como responsável por muitas das
o fizer ficará incapacitado para exercer suas mudanças culturais que sofremos ao longo
atividades cotidianas. do século que nos separa da época em que
Minha tese, neste breve texto, é que, Freud viveu e construiu suas teorias. Para
apesar de testemunharmos diferentes tomar um só exemplo de mudança radical
manifestações deste sofrimento, ele é, em que testemunhamos e que nos faz tão distin-
essência, idêntico ao que apresentavam os tos dos pacientes e analistas daquela época,
pacientes do final do século retrasado ou proponho que examinemos brevemente o
início do século passado, quando Freud tema que diz respeito ao tabu da virgindade.
desenvolveu suas importantes observações Até as últimas décadas do milênio pas-
e teorias. sado, ser virgem era considerado uma

Sustentarei que, mesmo considerando


a mudança catastrófica operada pela
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qualidade que as moças deveriam cultivar. questão da virgindade, mas permaneceu,


A castidade era dos primeiros atributos que e permanece ainda hoje, o medo de ser
um homem iria buscar em uma mulher. alvo de falatórios ou gozações. O motivo
Perder a virgindade antes do matrimônio do falatório mudou, mas a necessidade e
era vivido com muita vergonha e dor tanto o prazer do ser humano em falar mal de
pela moça quanto por sua família. A moça outrem se mantêm, assim como o desejo
“deflorada” era alvo de chacotas e de fala- sexual. Antes, uma moça poderia ser alvo
tórios muito cáusticos. As coisas mudaram de chacotas por não ser mais virgem. Hoje,
bastante neste terreno, especialmente por ainda o ser. Os valores culturais sofre-
nas culturas ocidentais. Muito se deve ao ram mudança, mas as pulsões de vida e de
advento da pílula anticoncepcional, que morte seguem as mesmas. A agressividade
passou a frequentar nossos lares a partir dos e a destrutividade humanas estão presentes
anos 60, constituindo-se numa verdadeira tanto em uma quanto em outra cultura. A
revolução nos hábitos sexuais. Ela invadiu necessidade de excluir e segregar um grupo
o mercado transformando o cenário que considerado de menor valor, por não se
ainda não privilegiava as vontades femi- submeter aos padrões morais vigentes, é a
ninas. À mulher era vetado ter desejos de mesma nas duas culturas apresentadas. É
qualquer natureza, particularmente sexual. importante salientar que tanto a agressão
Aqui a teoria freudiana também trouxe sua quanto a libido seguem as mesmas, embora
contribuição ao incluir tanto as mulheres o desejo sexual seja bem menos reprimido
quanto as crianças no rol de seres huma- em nossa cultura (Luz, 2012).
nos que têm direito a sentir desejo e prazer Mas é fato que vivemos em outra dimen-
sexual. Acontecia então a revolução sexual, são cultural. Esta também diz respeito a
em que as cartelas de pílulas contraceptivas todo o avanço tecnológico que nos assaltou
foram levantadas como bandeiras símbolo nas últimas décadas. A exemplo da pílula
da liberdade sexual feminina. anticoncepcional, que facilitou a mudança
Hoje vivemos uma situação quase importante da cultura frente à sexualidade,
contrária à da época do nascimento da as novas plataformas de comunicação per-
psicanálise em relação à virgindade. As mitem que a informação se transmita ins-
adolescentes e mulheres de nossos tempos tantaneamente a qualquer ponto da Terra.
têm vergonha de sua virgindade e inexpe- Isso altera a subjetividade, e essa nova sub-
riência sexual, chegando ao extremo de jetivação transforma pacientes e analistas e,
mentir a respeito, só para não se sentirem portanto, influi no setting analítico.
alvo de chacotas e falatórios, que agora A globalização de novas tecnologias de
se denominam “gozações e bullyings”. informática e de comunicação, a veloci-
Mudou a relação das pessoas com a dade característica do final do século pas-
sado e deste início de século, bem como
o consumo generalizado têm evidentes
implicações na construção da identidade e
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da subjetividade humanas. Nesta sociedade fato altera permanente e inevitavelmente os


de consumo, em que tanto nós, analistas, processos de análises, nossas relações com
como nossos pacientes estamos imersos, os pacientes e principalmente nosso setting
o desenvolvimento tecnológico vem cres- analítico. Nosso cotidiano fora dos consul-
cendo em ritmo alucinado, desde a época tórios também está inexoravelmente modifi-
da Revolução Industrial até nossos dias. É cado e transformado por esse extraordinário
impactante como o homem conquistou avanço tecnológico, que nos inunda, nos
um saber tecnológico – saber esse sem facilita muito a vida e, ao mesmo tempo,
precedentes em sua história. Esse avanço nos ameaça e adultera como seres humanos.
tecnológico se traduz na transformação de Somos humanos e, como tais, temos limites
toda a sociedade e de seus padrões cultu- humanos. A possibilidade tão instantânea
rais, sociais e morais. Frente à velocidade de comunicação e presentificação virtual
das novas tecnologias de comunicação, cria a ilusão de onipresença e imortalidade.
a psicanálise fica parecendo acontecer Mesmo ausentes nos fazemos presentes, seja
em câmera lenta. Precisa se adequar aos em vida ou na morte. Concordo com Sibilia
novos paradigmas socioculturais se não qui- quando ela descreve que o “homem pós-
ser perder o trem da história. Ao mesmo -orgânico tem ideais fáusticos”, isto é, busca
tempo, é fundamental que a psicanálise exaustivamente a superação da condição
ofereça uma possibilidade de reflexão a res- humana, construindo seres híbridos – orgâ-
peito deste desejo de ultrapassar limites de nicos e tecnológicos – que almejam cons-
forma quase alucinada. Paula Sibilia (2003) ciente ou inconscientemente a superação
assim descreve este “pacto” entre o homem da condição natural do humano, deixando
contemporâneo e a tecnociência: de ser finito para ser infinito.
Limites da natureza humana já são hoje
[o] pacto visa à ultrapassagem das limitações em dia ultrapassados, quando se pode, por
da organicidade, apontando para a cons- exemplo, falar a qualquer momento, ao
trução de um ser híbrido “pós-biológico”, vivo e em cores, em tempo real, com qual-
misto de corpo humano e artifício técnico. quer pessoa do planeta. Ou estar ao mesmo
A informática, as telecomunicações e as bio- tempo em dois ou mais lugares distintos,
tecnologias alimentam o sonho neognóstico usando duas plataformas simultanea-
da “pós-evolução”: através delas, o homem mente – o celular e o iPad, por exemplo.
“pós-biológico” almeja se desvincular das Ou amanhecer num continente e jantar
restrições espaciais e temporais ligadas à sua noutro. A instantaneidade e a simultanei-
materialidade orgânica, para atingir a virtua- dade são fenômenos que desrespeitam a
lidade e a imortalidade. (Sibilia, 2003, p. 1) natureza humana e que são conquistadas
através da conectividade virtual.
Dito isso não é difícil perceber como
somos diariamente invadidos em nossos con-
sultórios por essas novas mídias, e como esse
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Esperar – uma qualidade importante, nem o nosso próprio! Esse não é o mesmo
que Freud entendia como uma conquista indivíduo que buscou análise na época
do desenvolvimento emocional – hoje em do surgimento da psicanálise. Tanto nós
dia caiu em desuso. É démodé! Nem mais quanto nossos pacientes estamos imersos
é preciso esperar os tradicionais nove meses nessa nova sociedade tecnológica.
para saber de que sexo é a criança. E a Tomemos um exemplo bastante banal.
ultrassonografia em 3D permite uma inva- Aqueles de nós que têm computador ou
são de privacidade total no espaço sagrado smartphone nos consultórios e os consul-
do útero gravídico. Antes mesmo de nas- tam entre uma sessão e outra não pode-
cer, o feto já posa para fotos e filmagens!!! riam estar prejudicando a relação analítica
E pode também aparecer nas páginas web e perturbando o desenvolvimento do pro-
de Instagram, Twitter ou Facebook. O feto cesso naquele setting, quando informa-
antes de nascer pode inclusive ter um blog ções oriundas de fora invadem nossas
seu (Luz, 2010)!!! mentes tão facilmente e a nosso convite?
A relação com o tempo mudou. A velo- Nós também desejamos estar na privaci-
cidade astronômica com que a informa- dade dos nossos consultórios e, ao mesmo
ção atravessa o planeta é quase chocante tempo, desejamos resolver problemas pes-
para quem tem mais de 40 anos. A rela- soais, familiares, domésticos e institucio-
ção com a geografia também se alterou. nais, ou simplesmente saber as notícias do
As distâncias não são mais “tão distantes”. momento em tempo real.
Atualmente, nossos filhos transitam por Examinando sob este ângulo, fica evi-
todas as latitudes do planeta Terra com dente que o setting analítico também se
uma naturalidade que nos é estranha. Os modificou. Pacientes podem ter acesso ao
jovens circulam entre um continente e que escrevemos, fazemos ou deixamos de
outro como nós fazíamos dentro do nosso fazer através de uma rápida pesquisa na
país ou como Freud fazia quando transi- web. Como ficam os aspectos da neutra-
tava entre Viena e Berlim ou Roma. Nossos lidade e do anonimato frente a isso? Pode
filhos, quando moram fora, falam conosco ou deve um analista ter Facebook ou Ins-
todos os dias através do Skype, FaceTime, tagram, por exemplo? Que grau de pri-
Facebook, Imo, dentre outros. Sentir sau- vacidade pode ser garantido a qualquer
dades ou sentir falta de algo ou alguém é informação postada na rede? Sabemos
fora de moda hoje em dia. Somos semideu- que, apesar de todas as precauções, não
ses: sabemos antes, sabemos mais, sabemos há garantias de sigilo e privacidade quando
rápido. Mas, se perdermos nosso telefone uma informação cai na rede. São questões
celular, não seremos capazes de lembrar pertinentes e muito atuais. Gabbard (2012)
quase nenhum número telefônico, talvez considera a perda do anonimato como
uma das mais significativas e ansiogênicas
mudanças que a hipermodernidade trouxe
para nós, analistas.
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Há inúmeros questionamentos que nos esquisito não portar um telefone celular


fazemos diariamente a respeito da melhor ou não permitir o acesso a ele. Muitos ros-
conduta técnica frente a essa invasão das ters de Sociedades Psicanalíticas contêm
novas plataformas de comunicação. Deve- números telefônicos, incluindo celular,
mos ou não nos comunicar com nossos além de endereços eletrônicos.
pacientes via Facebook, Skype, e-mail, tor- A força com que a realidade ciberné-
pedos ou WhatsApp? São, todas elas, novas tica permeia a relação transferencial é algo
mídias de comunicação, mas será que sua deveras impactante. Pacientes com pouca
utilização tem o mesmo significado? O capacidade psíquica para administrar
uso deste tipo de recurso teria o mesmo angústias primitivas podem usar a conec-
impacto no setting de um tratamento com tividade virtual como forma de refazer o
paciente adulto do que com um paciente vínculo com a pessoa do analista durante
adolescente? Qual a melhor conduta téc- um intervalo de final de semana, por exem-
nica quando um paciente nos encontra plo. Isso pode até ser útil para aquele pro-
em algum ambiente virtual? Ou quando cesso e auxiliar o paciente a estabelecer
esse paciente nos convida para sermos de forma mais definitiva a internalização
“amigos” no Face? Ou, ainda, se tivermos de um objeto bom, cuidador e responsivo,
algum “amigo” em comum? E quando o facilitando assim o estabelecimento da
celular toca dentro da sessão, ou não toca, constância objetal dentro do indivíduo.
mas acende uma luz que chama a atenção Vidille (1999), valendo-se de três situa-
tanto do paciente quanto do analista, e o ções clínicas, descreve o uso que uma
paciente, sem parar de falar o que estava paciente faz, durante o período de férias, da
falando, busca com os olhos o conteúdo mensagem gravada na secretária eletrônica
daquela mensagem? Todas essas mídias de seu consultório: a voz do analista é usada
permitem uma conectividade permanente pela paciente como um objeto transicional
do paciente com o mundo fora da sessão. virtual sensual integrador, que serve para
Permitem também uma conectividade per- aplacar angústias muito primitivas e, dessa
manente desse mesmo paciente com seu forma, facilitar o pensar. Em um segundo
analista, mesmo que este não responda caso, descreve o uso que um paciente faz do
e opte por examinar o assunto na sessão. telefone celular, como um cordão umbili-
Ainda assim, já aconteceu a invasão. E o cal tecnológico sem fio. Num terceiro caso,
mais difícil é que, numa sociedade como a explicita o que chamou de “caixa lúdica
em que vivemos, esse gesto hoje nem é con- moderna”: o uso que ele e seu paciente
siderado invasão pela maioria das pessoas. adolescente fazem do computador dentro
Tornou-se tão banal quanto cumprimentar do setting, como um instrumento facilitador
algum conhecido na rua. E nós, analistas, da comunicação entre ambos.
o que podemos ou devemos fazer? Evitar
o uso dessas mídias pode ser uma solução,
mas pode ser muito menos neutro. É muito
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Levisky e Silva (2010) discutem igual- um significado verdadeiramente humano


mente o uso do computador dentro da àquilo, facilitando a mudança de um uso
sala de análise com crianças e adoles- compulsivo para um uso transformacional
centes e como este pode funcionar como destes objetos. (Lingiardi, 2008, p. 124)
material lúdico ou como um interessante
“instrumento que viabiliza outras formas Por outro lado, pacientes com tendência
de comunicação do material reprimido. mais perversa podem usar mal essas mídias,
Pode funcionar também como um espaço invadindo a privacidade do analista durante
potencial entre a realidade concreta e a um final de semana na busca de controlá-
psíquica” (p. 66). -lo e mantê-lo refém de alguma angústia
Na mesma linha, Lingiardi (2008) dis- vinculada na mensagem. Quem de nós que
cute o ganho, na análise de dois pacientes, trata de pacientes do tipo borderline e usa
que a nova tecnologia trouxe para o setting. telefone celular nunca recebeu um comu-
O primeiro caso, Melania, uma paciente nicado desse tipo de paciente em pleno
borderline, chegou a construir um setting final de semana? São situações que jamais
paralelo, tamanha a quantidade de e-mails aconteceriam há dez ou vinte anos atrás.
que enviou ao seu terapeuta. Foi a maneira O cibertexto entra na vida privada do por-
que a paciente encontrou, e seu analista tador de celular a qualquer hora do dia ou
aceitou, de manter-se “presente na mente da noite. Essa é a regra. Exceção é não ter
do analista”, já que ela não acreditava ser celular, WhatsApp ou Facebook. Mas cabe
possível que o analista a mantivesse pre- ressaltar que não entendo o texto teclado
sente e viva dentro dele durante os inter- como semelhante a uma associação livre.
valos da análise. O outro paciente, Louis, Kowacs (2014), em interessante artigo
usava o espaço cibernético como um refú- publicado na Revista de Psicanálise da
gio psíquico, afirmando que o computa- SPPA, salienta como as velhas resistências
dor seria um melhor psicanalista do que podem se transvestir em trajes hipermoder-
o próprio analista, por ser mais confiável, nos e como isso pode confundir os analis-
previsível e infalível. A função do analista, tas ainda não habituados a eles. Enfatiza
em ambos os casos, seria a de auxiliar esses ainda o fenômeno constituído pelas telea-
pacientes a entender como eles usavam a nálises e a formação de analistas em países
ferramenta cibernética como até recentemente fora do circuito analí-
tico, como China, Rússia, Japão, Panamá
uma alternativa à relação analítica e o ana- e Cazaquistão. São mudanças que podem
lista precisaria ajudá-los a evoluir de relações muito bem ser de utilidade para o desen-
não humanas (internáuticas) para relaciona- volvimento da psicanálise, mas fica patente
mentos inter-humanos, a fim de poder dar o quanto analistas e pacientes do século XXI
precisam absorver esses modernismos tec-
nológicos e refletir teórica e tecnicamente
a respeito deles nos settings analíticos.
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Apesar dos benefícios inquestionáveis humanos, mas estão a caminho de. As fron-
que essa nova tecnologia cibernética nos teiras entre nós e nossas smart máquinas
proporciona, é fundamental que nos lem- estão se dissolvendo. Por isso mesmo, os
bremos de que a psicanálise smartphones, tablets, e-mails e WhatsApp
fazem parte dos consultórios cada vez mais.
busca a verdade sobre o indivíduo. Trata da Kowacs (2014) comenta que cada
retirada das nossas máscaras. Numa era de vez mais o humano perde na fantasia as
comunicação instantânea e de perda da con- características humanas e passa a crer que
templação e reflexão, a psicanálise desempe- é possível ultrapassar os limites do corpo
nha um papel muito importante – oferece original. Assim o “indivíduo transforma-se
a possibilidade de uma sensação mais pro- num ser virtual, sem vísceras, secreções ou
funda de autenticidade baseada no conhe- odores, que com um click faz desaparecer o
cimento dos conflitos inconscientes e num que frustra ou surgir o que gratifica: o leite
diálogo íntimo com uma pessoa treinada virtual jorra no instante em que é desejado”
para compreender como a mente funciona. (p. 634). São fantasias com apelo sedutor
(Gabbard, 2012, on-line) muito poderoso. Por outro lado, os smar-
tphones são cada vez mais tratados como
Portanto, podemos no momento con- humanos: têm capinhas protetoras com
cluir que ainda não estamos adequa- olhos e orelhinhas, são smart e podem
damente preparados para essa nova era pegar vírus ou bugs.
da cultura, a era da realidade ciberné- Para finalizar, gostaria de salientar que,
tica, virtual, ou era do on-line. Sabemos mesmo que ainda não tenhamos compre-
que são tecnologias cujas plataformas de ensões melhores e mais profundas sobre
comunicação apresentam-se repletas de os processos virtuais que invadem nossos
possibilidades que nos seduzem a cada consultórios a cada dia, ainda assim não
novo aplicativo lançado no mercado. Mas podemos nos furtar de aprender a usá-
também sabemos os perigos que essas for- -los, pois é um progresso tecnológico sem
mas tão tecnológicas representam, pois há retorno. A atenção e o exame dos sentimen-
uma evidente perda de contato humano tos contratransferenciais sempre foi uma
profundo, íntimo e verdadeiro. O prejuízo ferramenta útil para cada analista em seu
para as relações humanas me parece bem dia a dia no consultório. Isto é específico
significativo. Há um número bem maior de para cada dupla analista-paciente. A utili-
“amigos”, mas muito menos amizades são zação dessas novas formas de comunicação
construídas. O título de um livro de Sherry poderá ser compreendida da mesma forma:
Turkle (2011), Alone together: why we expect uso específico, com significados específicos
more from technology and less from each para cada nova dupla analítica. Quem sabe
other, caracteriza com clareza essa questão. nossas análises também possam ser mais
Estamos sempre conectados, mas somos efetivas se lograrem unir afetos e smart
solitários. Máquinas ainda não substituem conexões. O tempo dirá.
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Hola. ¿A qué hora habíamos marcado nuestra Hi. What time will really be our appointment?
sesión? TKS. TKS.

La autora presenta algunas preocupaciones Abstract: The author expresses her concerns about
relacionadas al impacto que las nuevas formas the impact of new communication platforms on
de comunicación pueden tener en las relaciones analytic relationships. Issues such as answering
psicoanalíticas. Temas como correos, torpedos e-mails, text messages or WhatsApp, and even
o WhatsApp, así como si debe o no el analista if the analyst should have a Facebook account or
utilizar el Facebook, son examinados. Sin tener not, are debated. Without providing a conclusive
una posición definitiva en esas cuestiones la autora position, the author proposes that analysts can’t
defiende la opinión de que el analista que se omite be “behind the times”. They must learn how to
puede “perder el tren de la historia”. El analista use these tools, because refusing to do so would
necesita aprender a utilizar esas nuevas formas de be less neutral than using the tools. She also
comunicación pues rechazarlas puede ser menos poses concerns about the loss of anonymity due to
neutro que usarlas. La preocupación con la pérdida searching the web.
del anonimato en la web es también examinada. Keywords: anonymity; internet; WhatsApp; Facebook;
Palabras clave: anonimato; internet; WhatsApp; web; virtual psychoanalysis.
Facebook; web; red; psicoanálisis virtual.

Referências
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[Recebido em 23.02.2015, aceito em 09.03.2015] Anette Blaya Luz


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