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PREFÁCIO

Estas primeiras palavras são, talvez, parte de um primeiro con-


tato entre você e a Casa do Saber. Ou são um passo a mais em
uma aproximação que finalmente aconteceu. De uma forma
ou de outra, saiba que estamos felizes e agradecemos por ter
você por perto. Saiba que será um prazer acompanhar você ao
longo de suas jornadas de conhecimento e conte conosco para
celebrar as vitórias e ajudar em qualquer desafio. Para falar mais
objetivamente sobre este e-book, ele é um compilado dos ma-
teriais complementares de cursos realizados com a professora
Maytê Carvalho (“A Arte de Comunicar: Persuasão, Negociação
e Oratória”, 2021), Pedro de Santi (“Vida Conectada: O Que Está
Em Jogo e Como Somos Afetados”, 2020) e o professor Clóvis
de Barros Filho (“Por Uma Vida Bem Vivida”, 2020; e “Manual
Filosófico Para Viver Melhor”, 2021). Você fará uma imersão,
portanto, em um panorama amplo de filosofia, psicanálise e co-
municação. Apesar de eles não substituírem o acompanhamen-
to das aulas, você encontrará alguns recursos e provocações
que certamente vão evidenciar a pista básica de que você está
no caminho certo: o surgimento de ainda mais perguntas e a
sensação de que ainda há muito mais para conhecer.

A dúvida é um primeiro motor poderoso para o conhecimento


e, por mais que nem sempre seja capaz de nos levar na direção
que queremos, ainda é o método mais eficaz para essa finali-
dade. Certezas raramente nos movimentam e com frequência
podem nos fazer reféns de maneiras limitantes de existir. Ao
ler esta linha você pode se perguntar (ou já ter se perguntado)
“tudo bem, mas como estas diferentes ideias podem me aju-
dar com uma dor de agora?” Esta é uma pergunta totalmente
legítima e que, creio eu, todos que se propuseram a enfrentar a
área de “humanidades” já se fizeram. O pensador anglo-ganês
Kwame Anthony Appiah usa uma metáfora que ilustra bem uma
resposta. Imagine-se perdido em uma grande cidade, cada vez
mais fundo no labirinto de ruas, e você quer saber onde está.
Para isso, sobe em um observatório e olha a cidade de cima. De
repente, o mapa começa a fazer sentido: ali onde você deveria
ter virado à direita e virou à esquerda, lá a loja com o gato na
janela, apenas poucas quadras do jardim que você só encon-
trou depois. Ao voltar para o labirinto, você anda com muito
mais confiança. Por mais que você não tenha sido visitado por
questões mais “existenciais”, não pense que este tipo de saber
não é para você: muitos dos desafios que nos confrontam no
dia a dia são superados mais facilmente se antes visitamos as
ideias mais fundamentais. Estes aprendizados ampliam nossa
capacidade de pensar sobre a vida que levamos e o que impor-
ta nela.

Desejamos boas leituras, bons estudos e deixamos um con-


selho: persista. A proposta da Casa do Saber é, desde sua
fundação, reunir aprendizado e prazer. Faz parte de uma reflex-
ão madura, no entanto, entender que o conhecimento exige
de nós uma série de investimentos – tempo, atenção, ener-
gia, entrega e desprendimento. É possível até mesmo que o
processo cause desconfortos, mas a recompensa por isso é
insubstituível. Este compromisso deve ser reafirmado constan-
temente, mas é um preço baixo a se pagar por um contato com
ideias, conceitos e propostas que são capazes de levar você
para mais perto de si e do mundo. Esperamos que este conta-
to seja repleto de novas descobertas e estimule você a seguir
adiante em um caminho que leva a diferentes perspectivas e
que permitirá você a construir a sua própria, de forma muito
mais fundamentada e autêntica.

GUILHERME PERES
Head de curadoria
VIDA CONECTADA:
COMO VIVER MELHOR
NO MUNDO ON–LINE

com Pedro De Santi


Aula 1
Quais os impactos da hiperconectividade e das relações interligadas
na transformação da complexidade humana? O que a psicanálise tem
a dizer a respeito? Compreender tais ambivalências, numa tentativa
de perceber as dimensões conflitivas dessas transformações é o fio
condutor desse diálogo.

Este evento que estamos vivenciando, propiciado pela internet, só pode ser
comparado, em sua medida, com a invenção da escrita ou do livro, com uma
diferença muito grande entre si: a velocidade que estas invenções tecno
informacionais chegam à sociedade. Estamos vivenciando tal processo em
seu desenvolvimento pleno.

Levando em consideração que a tecnologia nasce e se estabelece para


nos poupar de certas funções laborais, é importante destacar que ela levanta
inúmeras dúvidas, uma vez que sua essência é tornar-se obsoleta. Aqui
encontramos seu elemento nevrálgico: a contradição e a ambivalência.

Em “Fedro”, Platão nos conta a história de um Faraó que ao se deparar


com a invenção da escrita demonstra certa resistência, pois crê que tal
tecnologia seria a causa do “esquecimento das mentes que a utilizarão”.
Esse exemplo demonstra como muitas vezes a transformação do real é
recebida criticamente, representando um temor diante do novo e da
transformação da natureza. O ser humano só existe graças à mutação
da natureza, do avanço tecnológico, do fogo, do arado, dos meios de r
esistência. Uma reflexão importante que podemos constatar é que se
estivéssemos enfrentando a pandemia de COVID-19 neste ano, sem o
nível de integração tecnológica e o impacto das redes na vida cotidiana,
o distanciamento físico que vivenciamos hoje seria também um isolamento
social, na medida em que os meios de relacionamento e interação foram
transformados. No entanto, a internet, ao mesmo tempo que fornece
acesso à informação e ao conhecimento de forma ampla, também evidencia
os processos desiguais de privação.

A realidade virtual não é real, não é efetiva e tangível, mas sim uma forma
de apego ao fictício. Porém, a mente também é uma categoria, um espaço
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virtual sem localização específica no corpo, que sabemos que existe através

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de um processo amplo e integrado. A internet de certa forma nos leva a um
lugar, à uma experiência que em sua forma é parecida com a nossa mente.
Nossa mente é um espaço virtual que faz a intermediação com o mundo.
Freud trabalha com o conceito de uma realidade psíquica, ao tratar dos
pacientes tidos como histéricos e que sofriam de reminiscência de memórias
dolorosas, memórias traumáticas e reprimidas que acabavam refletindo
em sintomas físicos. Utilizando da técnica da associação livre de forma
a construir e reconstruir o que fora perdido e poder conviver com esta
memória, concluiu que o sintoma seria uma forma de expressão daquelas
representações que se encontravam no inconsciente.

Uma lembrança é produzida no momento do lembrar, o contexto presente


evoca uma representação formada cada vez que se lembra, tornando a sua
realidade de forma a sustentar o desejo, uma autoconfiança, independente da
sua correspondência. “A realidade tal qual percebia e lida por mim não é nem
um delírio, muito menos o mundo objetivo. A realidade interna não passa de
uma ponte entre o mundo interno (subjetivo e complexo) e o mundo externo
(igualmente complexo).

Donald Woods Winnicott, importante psicanalista inglês, trabalha com


o conceito de um “espaço da ilusão”, um espaço do mundo virtual e
fantástico que serve não para nos alienar da realidade, mas para nos
levar ao encontro desta nova realidade.

Johan Huizinga, em sua obra “Homo Ludens”, analisa a característica do


ser humano em buscar o prazer, o jogo e criar os “espaços de fantasia”,
com a capacidade de criar uma realidade para si e também para o outro.
Criamos um espaço de jogo porque nele há regras, distante do caos da
realidade. Estar na Internet não é entrar num mundo que nos aliena do
mundo real, mas sim entrar em um campo com potencial simbólico, com
sinais, com agrupamentos sociais, com mobilizações, com atividades,
com conteúdos diversos.

As comparações proporcionadas pela TV e pela Internet, nos levam a


questionar a alienação, de modo que a Escola de Frankfurt analisa a
cultura de massa como alienante, entendendo uma relação imbricada
com as mídias (TV, rádio, jornal). O ambiente da Internet, em contraposição,
é um ambiente ativo, onde se cria, se destrói, onde se está integrado
ativamente com diversas pessoas.
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A internet, pode então ser compreendida como um espaço lúdico de
acesso à informação, ao resto do mundo e aos outros, um espaço de
transicionalidade e fantasia. Nunca tanta gente teve acesso a tanta
informação ao mesmo tempo, porém é importante salientar a diferença
de informação, de conhecimento e, por fim, de sabedoria. Excesso
de acesso pode revelar sintomas curiosos. Ter acesso é valioso, mas seu
excesso pode ser prejudicial e atingir níveis patológicos de dependência.

Neste mundo contemporâneo podemos observar uma espécie de cultura


do narcisismo, uma espécie de inflexão no mundo, que se apresenta como
alta modernidade. Christopher Lasch, em “Cultura do Narcisismo”, propõe
uma análise da cultura estadunidense e da sociedade do consumo. Nessa
sociedade, de certa forma marcada por um sentimento de potência do
mundo pós-Segunda Guerra, surge um sentimento coletivo de impotência
frente ao mundo da década de 70. Por entendê-lo cada vez menos, os
sentimentos que visavam mudá-lo aos poucos foram sendo interiorizados
dando espaço para uma mudança do eu, individualizada. Isto configura
a cultura do narcisismo, uma cultura de defesa diante de um mundo
traumático e excessivo, formada para cuidar daquilo que achamos
possível alcançar, fruto de um desamparo.

Os condomínios são um excelente exemplo da desistência de um mudo


que não se pode compreender. O afastamento do espaço urbano, em busca
de um um ambiente controlado, afastado da cidade e construído dentro de
uma bolha, ilustra tal narcisismo. No limite, cada construção urbana visa ser
um condomínio por conta da violência, do perigo, mas também por conta
do sentimento de afastamento e de incompreensão do mundo.

Nossa energia oscila para fora (objeto da ação) e para dentro (da memória
e da introspecção), de forma a recolher e gastar energia. Somos chamados
para fora o tempo inteiro, o que nos rouba o tempo de repouso, caracterizando
um conflito contemporâneo: não há mais um momento para recolher energia
e produzir memórias, consolidar os conhecimentos, por isso muitas vezes
temos dificuldade em diferenciar uma notícia real de uma notícia falsa, pois
além de estarmos lotados de informações e conteúdos, não temos tempo
de assimilar todas as informações e concretizá-las em uma memórias
consolidadas.

O tempo do mundo moderno é o futuro, o projeto, a retenção, a renúncia em


processo. Já no mundo contemporâneo vivemos o fim das utopias, em um
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tempo em que o futuro parece ter acabado. Hoje sonhamos com distopias,
o tempo de hoje se chama “cada instante”, e deve ser repleto de gozo.
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Aula 2
O objetivo deste encontro é avançar mais no conceito das relações
sobre a cultura do narcisismo, seus efeitos, ante uma hiperconectividade.
Quais os potenciais riscos que podemos enfrentar neste caminho
que vem se firmando? Até chegarmos nos novos sofrimentos
humanos, nas novas doenças da alma, que são características
deste ambiente contemporâneo.

A nossa rotina em comum, muitas vezes é agitada e carece de tempo,


a experiência de estar na rede também é dispendiosa, muitas vezes
alterando a própria experiência com o tempo. A intensidade constante
é característica do mundo contemporâneo e esta excessividade transforma
um processo mental adaptativo num processo patológico.

O melhor processo adaptativo que podemos utilizar para situações de


intensidade excessiva chama-se sobressalto ou susto. Ao enfrentarmos
uma situação intensa o corpo e a mente preparam uma resposta, em um
estado adaptativo, que após este estímulo volta a desacelerar. Porém,
no ambiente contemporâneo acrescentamos a esta situação uma categoria
nova, as “crises crônicas”.

O que deveria ser feito para se desligar desta rotina cada vez mais estressante
e massante seria uma desaceleração gradativa, de forma a acalmar este estado
de cansaço, mas o stress nos impede, pois o sobressalto deixa o corpo em
estado de prontidão. O estresse deixa este corpo exausto e em consequência
destas ações podemos observar a insônia, estado que não permite o adormecer
e o descanso.

Uma outra característica muito comum, fruto do medo da vida contemporânea,


é a dependência. De modo geral, o vício de substâncias lícitas ou ilícitas, que
ativam um mecanismo rápido de recompensa, (cada vez mais banalizado)
requer sempre uma maior exposição e consumo para se alcançar a satisfação.

A cultura é um fator fundamental a ser analisado, uma vez que cada local possui
uma dinâmica específica que requer a adoção de certas medidas de reação
para cada tipo de anseio. Os conflitos internos, os questionamentos pessoais,
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a sensação de não se reconhecer em sua própria vida, porque sentimos

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de certa forma, são reações ao ambiente. Por onde passamos há excesso
de demandas, criadoras de experiências mais reativas do que ativas.

Quando paramos de correr, ganhamos pela primeira (vez em muito tempo)


a condição de reflexão. Ganhar um tempo de vazio, um espaço para o
recolhimento, equivale a abrir um espaço para que a reflexão aconteça.
Ao se querer mais dessa desconexão, no entanto, o afastamento para a
mbientes controlados e isolados podem gerar estigma, depressão ou
outros sintomas onde o sofrimento e a felicidade estão ligados às
dinâmicas culturais.

As dinâmicas de dependência ou adição, podem ser interpretadas no sentido


romano, onde quando uma pessoa contraia uma dívida frente outra pessoa
e não conseguia quitá-la, ela era adicta ao outro, somado a outra pessoa
como escrava.

Joyce McDougall, analisa uma “neo-necessidade”, onde aquilo que se tem


dependência passa a ser básico para a sua natureza de forma que é uma
necessidade primária. Quando realizamos um ato que necessitamos,
dependemos da sensação de prazer (geradora de alívio), porque a privação
causa dor e sofrimento pela abstinência. Um desejo frustrado é sim ruim,
mas a dependência evidencia um lugar de dor. E esta dependência não
pode ser deslocada, só se realizando com o objeto de dependência.

No filme Trainspotting (1996), podemos observar como a dependência tem


o poder de condicionar um ser a ser apenas a resposta da sua dependência,
denotando alguém que não consegue, acima de tudo, uma auto sustentação.
O processo de desenvolvimento vai em direção automática à uma autonomia,
porém, uma pessoa dependente não atinge sua autonomia, permanecendo
numa posição infantilizada, transferindo apenas esta dependência para outras
coisas, ou pessoas, ou substâncias. Como saber se temos relações afetivas
por desejo ou por dependência?

Para Winnicott, a saúde mental é ter capacidade de estar só, senão somos
capazes de ficarmos sós, acabamos dependendo de nos conectar com
alguém com uma enorme presença o tempo todo.

Adela Stoppel, teórica da psicanálise com crianças, analisa a relação de


dependência das crianças com a internet, numa crítica à letargia do uso
de celulares e tablets para acalmar os filhos. Tal uso, que exclui as conexões
necessárias entre as crianças da brincadeira, entorpece suas interações
através da tela, impossibilitando o aprendizado oriundo da espera e do
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vazio. Como resultado, não se aprende a ter paciência, mantendo um


fluxo incessante de conectividade.
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O Narcisismo e o Complexo de Édipo, principais conceitos trabalhados
por Freud, e posteriormente por Lacan, nos mostram que ao nos constituirmos
passamos por processos formadores básicos. Esses processos, de fusão
e separação, nos ajudam a entender o desenvolvimento infantil. Esta fase
tem início no corte do cordão umbilical, onde a criança, em desamparo
e dependência, necessita de alguém que ocupe a função de “maternidade”,
que acolhe, recebe e garante a sobrevivência neste período de completa
dependência. Esse primeiro momento se intitula narcisismo, uma vez que
há uma fusão completa mãe-criança. A criança é totalmente voltada para
o “outro” e acredita que o outro está totalmente voltado para si, formando
um todo que nada falta, uma cela narcísica que passa para a criança a
sensação de onipotência, podendo ser observado em um desespero
carente por reconhecimento.
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Aula 3
O Narcisismo, termo apropriado à maneira de Freud, trabalhado mais
especificamente na obra “Introdução ao Narcisismo”, muitas vezes
relacionado ao termo autoestima, é um investir em si mesmo, mas
é também um limite entre seres, onde acaba um indivíduo e começa
outro. Quanto mais intolerante somos com o que é diferente de nós,
mais narcísicos somos, quanto mais tolerantes menos narcísicos somos.
Porém, todos precisamos ter, em certa medida, uma dose de narcisismo
para conseguirmos vislumbrar nosso próprio “eu”. A criança, por volta do
primeiro ano de idade, começa a criar uma representação de si. Segundo
Freud, é o momento em que ela se separa do outro, e ao surgir um “eu”,
automaticamente se apresenta um “não-eu”.

O narcisismo secundário seria o retorno da libido desde o objeto, um


olhar do outro sobre aquela criança, que é a função materna, seja da
pessoa ou das pessoas que ocupam esta função.

Jacques Lacan, autor francês importante de uma segunda geração


da psicanálise, na tentativa de estudar a paranoia, utiliza-se deste
conceito dando visibilidade a alguns pontos interessantes da teoria
em seu modo de ver. Esta fase de desenvolvimento, para Lacan, é
intitulada de estágio do espelho. Uma criança colocada em frente
ao espelho aos seis meses de idade ainda não seria capaz de se
reconhecer, pois não saberia interpretar a própria imagem. No entanto,
por volta dos 18 meses de vida, ela seria capaz de se reconhecer
e de reconhecer o outro. Desse modo, a interação com o mundo
exterior nos ajuda, portanto, a reconhecer nossa própria imagem.

O susto em frente ao espelho, das câmeras, é dado por atualizar uma


definição que temos de nós mesmos, tendo em vista que o homem
cria uma representação si. Tal representação muitas vezes não se encaixa
no instante e por isso causa certa estranheza. A partir da primeira
representação gera-se portanto uma auto imagem.

As duas principais decorrências que podemos observar é a do “eu”


que vem de fora. Já a segunda surge a partir das representações que
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temos de nós. Na primeira ocorrência o acesso ao real se dá por meio

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de uma intermediação, por meio do espelhamento dos outros. Aqui nos
constituímos através do olhar do outro. O “eu” está no ponto cego de
si mesmo.

A frustração tem origem justamente no contraste entre o “eu ideal” e


o “eu real”, por não conseguirmos realizar o que desejaríamos fazer.

O primeiro pensamento de quem vai ter um filho é o de conseguir preencher


este hiato, projetando expectativas pessoais, sonhos e uma esperança
de que esta criança corresponda a essa expectativa, a esta significação.
A grande questão que este movimento e as eventuais reflexões que esta
criança pode chegar, direcionam uma indagação que as perseguirá até
o final da vida: “O que preciso ser para o outro gostar de mim?”. O narcisismo
é um desespero em tentar corresponder o desejo do outro. “Eu desejo ser
desejado”, é uma grande oferta de comportamentos e ações; o que explica
as posturas vistas nas redes sociais.

A ilusão de uma unidade, de uma cela narcísica, cessa justamente em


outro momento importante, que é o complexo de Édipo, onde este núcleo
é quebrado e a criança passa a encarar o mundo.

Édipo fundamentalmente quer dizer que uma criança em desamparo, ao


nascer, precisa ser amparada por um outro humano. O cuidado pode ser
tido como uma função materna e o papel da exposição (ao mundo, à lei,
ao outro) uma função paterna. A composição destes papéis implica em
uma quebra progressiva da cela narcísica, quando se percebe que a figura
materna não vive em função dela. Neste segundo momento, a criança
percebe uma separação de que este outro que ela depende tanto também
deseja outras coisas que não ela e esta outra figura, objeto do desejo
e do tempo materno, gera uma triangulação, que aparece idealizada
na figura paterna. A criança percebe esta outra função do desejo materno,
seja o trabalho, seja o companheiro, apresentando a frustração e
compreensão de uma nova cela narcísica, entre a função materna
e a função paterna.

Na última fase temos um corte simbólico, a ruptura total da célula narcísica,


intitulada de “castração”, ao perceber que não há para onde voltar. Portanto,
estamos livres no mundo para construir um universos novo de desejos.

Quem passa pelas três fases de Édipo é chamado neurótico, um sujeito


que sabe se sentir incompleto, sabe que é imperfeito, mas sonha com
o futuro, criando desejos para substituir aquele objeto que falta. Nasce
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então a vida como ela é, para uma abertura para a vida da negociação,
da espera, dos símbolos.
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Ao tratarmos de uma sociedade narcísica, podemos observar um sintoma
da falha da função paterna, algo sobre a autoridade. Com a internet é importante
saber filtrar quais os tipos de conteúdo que a criança tem acesso, sem privar
do acesso propriamente dito. Estes desejos e a cultura narcísica geram uma
busca por uma dependência, o anseio de algo que o contemple, uma vez
que não se conseguiu uma liberdade e autonomia próprias, ou um lugar de
ação no mundo.
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Aula 4
O objetivo desta aula é o reconhecimento e a possibilidade de
mudança que podemos enfrentar a partir das relações hiperconectadas.
Entender algumas dinâmicas do indivíduo na sociedade na perspectiva
da  ambivalência nos permite perceber o que se ganha e o que se perde,
bem como o papel de uma experiência coletiva de conectividade.

Um ponto marcante nesta relação com as mídias é a falta de privacidade,


na medida que transformamos o que nos é mais íntimo em algo exposto
e aberto em uma mídia social. O lugar ocupado anteriormente pela confissão
é substituído por cada publicação realizada, e embora haja uma característica
puramente transitória e efêmera, há um elemento que as tornam eternas.
Cada publicação, cada informação que produzimos na Internet vira dado
quantificado e transformado para uso de marketing, alimentando bancos
de dados.

A internet nunca foi livre, sempre esteve vinculada aos interesses e arti
culações comerciais e a captura de informações que alimentam ferramentas
de controle social. Quem possui condições financeiras para comprar estes
dados têm absoluta vantagem sobre quem não têm acesso. A conectividade
passa aumentar as desigualdades (sociais e financeiras) e a iminência da
defasagem de certas funções laborais.

A pandemia nos explica que muitos recursos pensados para atender situações
emergenciais podem funcionar bem, como por exemplo o trabalho remoto.
Algumas conformações pré-estabelecidas foram completamente modificadas,
por exemplo, é possível que tenhamos um sistema híbrido de ensino, ou
o trabalho em alguns setores específicos jamais será o mesmo.

Toda esta tensão gerada pelas transformações tecnológicas acompanha


o paradoxo entre o desenvolvimento e o medo de tornar-se obsoleto.
A paranoia, um dos três grandes grupos de psicose na psicopatologia
psicanalítica, é a ideia de um excesso de presença. Com a cultura do
desamparo e do excesso, a ruptura com a terceira fase de Édipo não
ocorre, gerando sinais de uma “paranoia social”.
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Melanie Klein entende que para uma criança pequena não há vazio, nem

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silêncio. Sua experiência é sempre com o outro, ela não se sente plenamente
vazia, ora pode ser a presença de uma “mãe boa”, ou de uma “mãe ruim”, uma
posição entendida como esquizo-paranóide, uma fragmentação persecutória.
A paranoia é uma grande teoria da conspiração que a verdade é contingente.

Elias Canetti em seu livro “Massa e Poder”, onde relaciona o poder à paranoia,
entende que aquele que ocupa o poder sente que sua posição é cobiçada e
decide aniquilar os inimigos.

Piera Aulagnier em “A violência da interpretação”, propõe que a dinâmica da


função paterna se transforma em “um perseguidor”. Esta função aparece com
a finalidade de frustrar, de impedir. Quando a criança entende que esta função,
causadora de frustração, é fruto das regras (seja por causa de uma lei ou pela
crença no certo), a criança permite essa função paterna operar. Nesta reflexão,
a criança perceberia um gozo sádico de frustrá-la, a bel-prazer, despojando-a
da função paterna e se transformando no ser que quer perseguir.

A melhor política do século XXI que podemos observar é a organização social


pelas redes, o poder de mobilização e união de grupos, totalmente diferente
de um ambiente político cada vez mais polarizado, como visto no Brasil com
o estreitamento das potências políticas.

Manuel Castells em “Redes de Indignação e Esperança” narra como no século


XXI podemos observar um ambiente de manifestação social que não nasce em
um líder, mas sim na horizontalidade que ultrapassa hierarquias. São diversas
vozes a bradar sem bandeiras.

Gustavo Lebon, em “A multidão” propõe entender como se forma uma multidão,


os comportamentos de massa: a massa violenta e a massa revolucionária. Freud
entende a psicologia das massas como unidades, operando pelas lógicas de
pertencimento. Para Antonio Negri, sobretudo em “Multidão” não podemos tratar
esta massa como uma massa infantilizada, ingênua, desprovida de atuação e
informação. Pelo contrário, tal modo de mobilização atualmente revela inúmeros
indivíduos ao lado um do outro, protestando por direitos e melhores condições
de vida.

Todos estes movimentos apontam para um mundo líquido e hiper individualizado,


curiosamente, em contraposição ao fato de que nas redes podemos compartilhar
ideias, nos mobilizar, transformá-la em um instrumento de poder civil. Ao passo
em que nos tornamos mais individualistas, nunca pudemos tanto interagir de
forma a criar novas conformações, novas redes de ligação, novos conflitos
e novas possibilidades de sociabilidade.
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Constituir um psiquismo que anteriormente não se tinha liberdade de ter,


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criar um self e uma autonomia para voltarmos a sonhar e a desejar, são
caminhos possíveis para não implodirmos com esta hiperconectividade,
para que ela faça cada vez mais parte de nossa vida, na iminência da inovação
e não da destruição.
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A ARTE DE COMUNICAR:
PERSUASÃO,NEGOCIAÇÃO
E ORATÓRIA

com Maytê Carvalho


AVISO

Este material é exclusivo para os inscritos no curso “A Arte de Comunicar:


Persuasão, Negociação e Oratória”, com Maytê Carvalho, realizado
pela Casa do Saber em março e abril de 2021. É proibida a reprodução
ou divulgação deste material, parcial ou em sua totalidade, sem
autorização. Os direitos autorais são exclusivos da Casa do Saber.

QUEM PRODUZIU O MATERIAL

CONTEÚDO

ISADORA JARDIM SALAZAR


Curadora

APROVAÇÃO

MAYTÊ CARVALHO
Professora

DESIGN

DEBORAH KUTNIKAS
Designer

FALE COM A GENTE

suporte@casadosaber.com.br
Casa do Saber

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APRESENTAÇÃO
Entender a arte de comunicar talvez seja uma das grandes questões
no desenvolvimento das sociedades. A persuasão, em suas diferentes
formas, tornou-se fundamental no desdobramento das relações, sejam
elas oriundas da esfera pública ou privada. Neste material complementar,
a Casa do Saber reuniu os principais conceitos e teorias dos cursos
“Persuasão e Influência: O Poder da Fala” e “A Arte de Comunicar:
Persuasão, Negociação e Oratória”. Para além dos principais conceitos,
tabelas, referências bibliográficas e complementares para seu aprendizado,
este material foi pensado, também, a partir das questões mais relevantes
trazidas por alunas e alunos durante as aulas.

Agradeço pela participação de todas e todos nesta jornada e desejo


que a busca pelo conhecimento de vocês seja infinita.

Isadora Jardim Salazar


@jardimsalazar
Casa do Saber

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01

UM POUCO
DE FILOSOFIA
Aristóteles e as raízes
da comunicação Ocidental

FICHA TÉCNICA

Origem, nascimento e morte: Estagira, 384 a.C. — Atenas, 322 a.C..

Área do conhecimento: Filosofia Clássica, Epistemologia – ramo da filosofia


dedicado a pensar as origens, processos e limites dos diferentes saberes

Principais Obras: Metafísica, Ética a Nicômaco, Política, Retórica

Discípulo da Academia de Platão durante 19 anos, Aristóteles foi um


dos maiores filósofos clássicos ocidentais. O desenvolvimento da
tradição filosófica clássica tem em Platão e em Aristóteles suas duas
vertentes principais, seus dois grandes eixos e, sobretudo na Idade
Média, o platonismo e o aristotelismo inspiraram inúmeras elaborações
de teorias filosóficas e teológicas.

Em 343 a.C., Aristóteles passa a ser tutor do mais importante conquistador


da antiguidade: Alexandre, O Grande. O pensador foi conselheiro do
líder de um dos principais reinos da antiguidade, o Reino da Macedônia.
Em 335 a.C., Aristóteles deixa Alexandre e volta para Atenas, onde funda
o Liceu.

Segundo a filósofa brasileira Marilena Chauí, se devemos a Sócrates


o início da filosofia moral, devemos a Aristóteles a distinção entre saber
teorético - ou teórico - e o saber prático. O saber teorético é o conhecimento
dos seres e fatos por si só existentes, independentes da intervenção
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humana e oriundo da natureza. O saber prático é o conhecimento do


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que apenas existe como consequência das ações humanas e, portanto,
depende de nós.

Sócrates

Para além das inúmeras elaborações sobre as diferentes áreas do


saber, Aristóteles dedicou boa parte de seus estudos à compreensão
da comunicação, suas vertentes e regras. Autor da grande e clássica
obra “Retórica”, um dos principais filósofos da história do Ocidente
desenvolveu teorias sobre a arte do bem falar. A retórica de Aristóteles
é, então, desenvolvida a partir de três pilares: Ethos, Pathos e Logos:

ETHOS
Diz respeito ao caráter de quem fala. É a credibilidade e um dos
principais aspectos que fazem com que uma pessoa acredite em
quem enuncia o discurso - uma união de histórico pessoal
e reputação.

PATHOS
Diz respeito às emoções, ou melhor, às paixões. Um discurso
que baseia-se no pathos apela para a empatia e as vulnerabilidades
daqueles que recebem o discurso - faz com que as pessoas
se emocionem.

LOGOS
Diz respeito à razão, ou seja, às provas lógicas e racionais que
o enunciador emprega ao seu discurso. Se pathos apela para
emoções, logos apela para pesquisas, dados, gráficos e números
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que comprovem sua tese.


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A tabela a seguir foi retirada da obra “Persuasão: Como usar a retórica
e a comunicação na sua vida pessoal e profissional’’. Acompanhe algumas
estratégias de oratória a partir do uso do Ethos, do Pathos e do Logos:

ETHOS PATHOS LOGOS


Antídoto Pessoal Histórias Argumentos

Por que eu? Emoções Benefícios

Depoimento Apelo emocional Fatos


(Raiva, Amor, Frustração)
Testemunha Storytelling Imagens

Histórico Empatia Dados

História de sucesso Vulnerabilidade Estatísticas

Credibilidade Pesquisas Científicas

Valores Atributos do Produto

Ideologia Estudo de Caso

APRENDA MAIS COM A CASA DO SABER:

TODA HISTÓRIA SOBRE A BRIGA


ENTRE PLATÃO E ARISTÓTELES
Paulo Niccoli Ramirez

ASSISTIR
Casa do Saber

6
02

ABORDAGENS PERSUASIVAS
DE CONHECIMENTO
Provocação, Intimidação,
Sedução e Tentação

Existem quatro tipos de narrativas que são essenciais para observarmos


como falamos com os outros e como falam conosco. Não é somente
no mundo do trabalho que exercemos a retórica: estamos utilizando-a
constantemente em nossa esfera pessoal. Esses quatro estilos de
narrativa, a Provocação, a Intimidação, a Sedução e a Tentação servem
como “estímulos” para que o outro realize a atividade que você gostaria
que fosse realizada. Entenda um pouco mais com exemplos:

PROVOCAÇÃO
Faz-se uma imagem negativa da competência do outro.
Exemplo: Eu duvido que você consiga realizar essa atividade

INTIMIDAÇÃO
A fala contém um valor negativo que representa uma ameaça
ao outro: Se você não realizar essa atividade, não ganhará
sua recompensa.

SEDUÇÃO
É criada uma imagem positiva do outro com uma fala sedutora.
Exemplo: Você é tão capaz, com certeza conseguirá realizar
essa atividade.

TENTAÇÃO
É oferecido ao outro um valor positivo para a ação.
Exemplo: Se você realizar sua atividade, receberá
Casa do Saber

sua recompensa.

7
03

MAIS ALGUMAS TÉCNICAS


DO DISCURSO
Espelhamento, Triangulação
e Escassez e Urgência

É preciso entender as nuances por trás dos discursos que recebemos


e que enunciamos. O Isopraxismo, a Triangulação e a Escassez
e Urgência são técnicas para que a comunicação seja ainda mais
elaborada e conduzida a partir dos objetivos do emissor da fala.

ISOPRAXISMO / ESPELHAMENTO
Essa técnica consiste no ato de copiar o outro para criar uma
situação mais confortável, gerar confiança por meio da mimesis
– que em grego significa algo como “copiar o outro” - ao criar
semelhança com a maneira com que o receptor do seu discurso
fala ou se comporta.

TRIANGULAÇÃO
Um triângulo possui três pontas, certo? Esta técnica usa o triângulo
como a figura que liga você, a pessoa com quem você fala e um
terceiro sujeito, que não está na conversa. Com essa técnica você
despertará o desejo do outro ao demonstrar que você – ou o seu
produto – é desejado por outras pessoas.

ESCASSEZ E URGÊNCIA
Tática que preocupa-se em causar ao receptor uma noção de
urgência, um gatilho de escassez que faz com que a pessoa
afetada pelo discurso sinta a necessidade de adquirir o que
você oferece. Um exemplo clássico é a propaganda de televisão
que diz “É SÓ AMANHÃ!”
Casa do Saber

8
04

FALÁCIAS
Identifique as falácias
mais comuns nos discursos
cotidianosa

AD HOMINEM ABUSIVA
É uma falácia que consiste no ataque pessoal ao receptor da fala. Esta
comunicação tenta acessar diretamente o caráter da primeira pessoa
que iniciou um a crítica, por exemplo:

A: “Faça mais exercícios, vai melhorar sua qualidade de vida”


B: “Mas você faz exercícios todos os dias e fuma”.

Neste diálogo, B, ao invés de rebater a primeira afirmação com alguma


fala lógica, dados ou informação que enriqueça o debate iniciado,
preferiu atacar um hábito particular de A.

AD HOMINEM CIRCUNSTANCIAL
Esta falácia questiona a imparcialidade da pessoa que propõe o questionamento.
Por exemplo:

A: “Faça mais exercícios, vai melhorar sua qualidade de vida”


B: “Você só diz isso pois é dono de uma academia!”

AD HOMINEM TU QUOQUE
Esta falácia também é conhecida como a “falácia da hipocrisia”.Observe
que B, ao questionar A, aponta que o discurso inicial parte de uma atitude
hipócrita.

A: “Faça mais exercícios, vai melhorar sua qualidade de vida”.


Casa do Saber

B: “Mas você também ficou anos sem se preocupar com sua


qualidade de vida”
9
AD BACULUM
Também chamada de “argumento do porrete”, essa falácia acontece
numa fala intimidadora que age através do medo para manipular o ouvinte.
Essa falácia é muito utilizada por pessoas influentes, ou seja, que possuem
um ETHOS notório.

AD POPULUM
Esta falácia consiste em afirmar que determinada proposição é verdadeira
e válida pelo simples argumento de que uma maioria numérica de pessoas
concorda com ela. Por exemplo “9 a cada 10 maquiadoras recomendam
este batom, adquira já”.

AD VERECUNDIAM
O apelo à autoridade é o método desta falácia. De maneira lógica,
o emissor da fala valida sua afirmação ao buscar a palavra
ou reputação de alguma autoridade no assunto específico.

AD MISERICORDIAM
Esta falácia evoca o PATHOS do receptor da fala. O emissor afirma
que será muito mais feliz ou realizado caso
Casa do Saber

10
05

A HABILIDADE
ESSENCIAL
O profissional do futuro
é um bom comunicador

Hard skills e soft skills são palavras em inglês que fazem parte do
vocabulário dos negócios há algum tempo. Entretanto, essas
habilidades não são somente importantes para o mercado norte
–americano – são notáveis capacidades que devem ser reconhecidas
e aprimoradas.

HARD SKILLS
Em tradução literal, habilidades/competências “duras” – são
habilidades que podem ser aprendidas e facilmente quantificadas,
são tangíveis. Você aprende hard skills na sala de aula, com livros
e apostilas, ou até mesmo no trabalho. São consideradas hard skills:
Graduações e especializações, como cursos técnicos e cursos
em universidades.

SOFT SKILLS
Em tradução literal, habilidades/competências “suaves” – são
competências subjetivas. Também são conhecidas como people
skills – habilidades com pessoas - ou interpersonal skills – habilidades
interpessoais. As soft skills são características da personalidade que
possuem influência sobre os relacionamentos no ambiente de trabalho
e, por consequência, sobre a produtividade da equipe. São consideradas
soft skills: critical thinking (pensamento crítico), decision making
(tomada de decisão), empathy (empatia), ethics (ética), flexibility
(flexibilidade, alternativa: resilience - resiliência), leadership (liderança)
Casa do Saber

11
06

A IMPORTÂNCIA
DO STORYTELLING
Crie narrativas
bem estruturadas

Saber como contar histórias é uma ferramenta de poder, uma forma


de entrar na cabeça de outra pessoa e plantar sementes, de convencer
inconscientemente. Assim, a utilização de metáforas e de analogias
é importante e podem dar a uma verdade pessoal a aparência de
uma verdade universal. Na vida contemporânea, em meio ao caos
das muitas informações que recebemos o tempo todo, a história
é formadora de sentido: não é à toa que há tantas parábolas e
pequenas histórias em textos bíblicos. Neste sentido, o poder de
sedução de uma história é menos temporário que o de outras
técnicas, pois permite que as pessoas olhem para determinadas
situações através de outros pontos de vista.

As nossas más decisões não são ruins em função dos fatos, mas
pela ausência de uma história que dê sentido a eles: as pessoas
não são racionais e ninguém sabe exatamente o que quer. Assim,
usar o ímpeto de desejos universais é uma boa estratégia, porque
em um mundo artificial todos são um pouco carentes de atenção.
Contar uma história é com certeza uma das formas de suprir a
carência dos sujeitos.

Há, basicamente, seis tipos de histórias que podem ser contadas:


aquela que explica quem o falante é (que deve ser contada dependendo
da imagem que se quer passar de si. Histórias de autorreveleção,
com exposição de falhas, por exemplo, costumam abrir caminho
para a empatia), a que explica por que ele está naquele lugar,
história de visão (que não se trata apenas de um mero relato,
Casa do Saber

12
mas que leva os ouvintes a sentirem emoções diversas), histórias
de ensinamentos, histórias de valores (que se usa de muitos exemplos
e que, se contada da maneira correta, pode gerar engajamentos)
e a história que visa a mostrar que o falante pensa de forma
semelhante a seus ouvintes (que serve para construir aliados,
criar conexões). Ao contar uma história, no entanto, deve-se tomar
cuidado com a vaidade (usar mais “nós” e menos “eu”, conectando
os ouvintes), com excessiva autoridade, com a insinceridade e com
a ostentação.

Na sociedade em que vivemos, constantemente permeada por


transformações, vemos um “myth gap”, que pode ser preenchido
pela religião, pela ciência ou pelo entretenimento: esta inadequação
é muito utilizada por publicitários. Os mitos são, hoje, relacionados
a mentiras, mas, na verdade, codificam valores, pois apresentam
uma explicação a fatos que a racionalidade não alcança. Há algo
de ritualístico no mito, que precisa possuir uma referência universal
(usando-se do mais básico e fundamental conceito, um mito consegue
alcançar mais gente).

Dessa forma, não seria por acaso que grandes líderes e grandes
empresas de sucesso possuem não somente narrativas de storytelling
bem estruturadas, mas também amplamente conhecidas. Storytelling
significa, em tradução literal para o português: “narração de uma
história”; na tradução prática, podemos dizer que é o que incentiva
a criação de uma narrativa bem pensada nos discursos, sobretudo
os persuasivos.

Marcas devem estar atentas não só ao conteúdo que criam, mas


à narrativa por trás dele e, também ao ETHOS que constroem no
decorrer do tempo. Ele pode estar presente desde a elaboração
inicial de uma campanha de marketing até o atendimento dos clientes
– um storytelling é uma ferramenta que também está presente em
e-mails, textos informativos e na fala dos CEOs das empresas.

APRENDA MAIS COM A CASA DO SABER:

STORYTELLING: A IMPORTÂNCIA
DE UMA HISTÓRIA BEM CONTADA
Augusto Uchôa
Casa do Saber

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13
07

COMUNICAÇÃO
NÃO VIOLENTA
Opte pela assertividade inteligente,
não pela agressividade

A comunicação não-violenta (CNV) foi desenvolvida pelo psicólogo


estadunidense Marshall Rosenberg (1934-2015) e é uma prática de
entendimento mútuo que melhora a qualidade das nossas relações,
seja no trabalho ou nas esferas da vida pessoal. Essa técnica é baseada
na comunicação pessoal empática e parte de quatro etapas para
ser realizada: Observação, sentimentos, necessidades, e pedidos.
Ou seja, a CNV parte da troca do julgamento pela observação, da
capacidade de empatia e autoempatia, da diferenciação de sentimentos
e não-sentimentos e da arte de fazer pedidos para propiciar às pessoas
melhores condições de conexão e diálogo.

APRENDA MAIS COM A CASA DO SABER:

Neurociência e comunicação não-violenta


Diálogo com Flavia Feitosa
e Claudia Feitosa-Santana

ASSISTIR
Casa do Saber

14
08

SEMIÓTICA
Entenda o estudo dos signos

A semiótica ou semiologia (do grego semeîon, “signo”, “sinal”) tem


como objetivo explicar a criação e o funcionamento dos vários sistemas
de signos, sinais e símbolos utilizados por todo e qualquer grupo
de indivíduos para a expressão e a comunicação de ideias, sentimentos,
emoções, desejos e necessidades. Mas a semiótica vai além desse
primeiro objetivo: com efeito, o exercício semiótico nos possibilita
levantar o véu das aparências que nos envolvem, demonstrando
como nada é “inocente”.

Tudo é resultado de uma construção de signos e a semiótica, por


sua vez, os habilita assim a questionar as várias formas de poder
e manipulação das ações dos sujeitos - seja através da fala, da arte,
da escrita -, contribuindo para desenvolver nossa liberdade de
consciência e uma análise minuciosa das comunicações que nos
cercam e nos atingem.
Casa do Saber

15
Na área da semiótica, Algirdas Greimas foi um dos mais notáveis
pensadores. Entre suas descobertas mais relevantes está o chamado
“Quadrado de Greimas”, um diagrama usado na análise estrutural
de relações entre signos.

Algirdas Julien Greimas nasceu em Tula na até então Rússia, em


9 de março de 1917 e faleceu em Paris, em 27 de fevereiro de 1992.
Sua abordagens fazem parte do leque de teorias notórias dentro
da semiótica e seus trabalhos realizados no século XX demonstram
a atualidade de sua análise - além de ter sido o autor utilizado em
nosso curso.

APRENDA MAIS SOBRE SÍMBOLOS


E LINGUAGEM COM A CASA DO SABER

A REALIDADE TRANSFORMADA
EM SÍMBOLOS
Luís Mauro Sá

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Casa do Saber

16
09

ÉTICA PROTESTANTE E O
ESPÍRITO DO CAPITALISMO
Como a cultura de um povo pode
influenciar na sua negociação.

Max Weber (1864 - 1920) ao publicar em 1905 a obra “A Ética


Protestante e o Espírito do Capitalismo” recorreu à sociologia
da religião para explicar o sistema capitalista moderno ocidental.

Weber atribui ao Protestantismo - religião cristã que surge para


questionar princípios da Igreja Católica - uma grande influência
na formação do capitalismo moderno. Segundo o autor, as religiões
de origem protestante negam o ócio valorizado pelo então influente
catolicismo e estipulam um novo estilo de vida voltado inteiramente
ao trabalho e à racionalidade.

Segundo o catolicismo, o ser humano é falho e está certamente


apto a pecar. Para obter a salvação, necessita arrepender-se de
seus filhos pecados por meio da confissão perante o meu padre.
A predestinação católica para uma vida santa está voltada para o
isolamento do mundo, em que monges e padre se distanciam da
sociedade para não serem tentados por ela. Weber sinaliza que,
segundo a ética protestante, a vida de santidade deve ser buscada
constantemente e em meio à sociedade e ao cotidiano. Através
de seu trabalho, o indivíduo se dedica inteiramente a Deus e abdica
os prazeres mundanos. Desta forma a conduta racional e de planejamento
constante do cotidiano do sujeito protestante passa a ser um estilo
de vida que sustenta e solidifica a ética do trabalho e do lucro tão
benéfica ao capitalismo.

O dever profissional do protestante é dedicar seu trabalho a Deus.


Casa do Saber

A riqueza e o acúmulo recebem uma visão positiva dentro da esfera

17
religiosa. O Homem, através de seu mérito pessoal, busca o
“reino dos céus” à medida que nega as tentações e se dedica
somente ao trabalho. Surge então a ascese intramundana a partir
da ideologia protestante ocidental. moderna

Essa introdução teórica se faz necessária pois o comportamento,


ou melhor, a ética de vida e de trabalho dos países em que a religião
protestante é predominante torna-se particular em relação não só
a outros países do mundo, mas sobretudo aos de ética católica
– Estados Unidos, Noruega, Islândia são, por exemplo, países de
ética protestante. Mesmo os que se consideram não religiosos
dentro de determinado país acabam por serem incluídos nas dinâmicas
culturais oriundas de diversos universos, sobretudo do universo
religioso. Atente-se aos costumes, religiosidades e hábitos de
outras culturas antes de iniciar uma negociação internacional.
Repare minuciosamente como aquele país lida com o trabalho,
com a intimidade das relações e quais podem ser os possíveis
códigos para uma boa negociação. Pesquisa sobre o governo,
sistemas econômicos e funcionamento das instituições. Por aqui,
uma breve explicação conceitual sobre os países protestantes,
mas existem inúmeras a serem feitas.

APRENDA MAIS COM A CASA DO SABER:

MAX WEBER E O ESPÍRITO


DO CAPITALISMO
Paulo Niccoli Ramirez

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Casa do Saber

18
10

COMO ESCREVER
E-MAILS PERSUASIVOS
A comunicação escrita
também deve ser eficiente

Em um mundo hiperconectado, sobretudo em tempos de pandemia,


as relações de trabalho passaram a depender - ainda mais - dos
relacionamentos estabelecidos e cultivados on-line. Para além das
“tabelas em anexo”, atualmente nossos e-mails são peça chave para
tomada de decisões em grupo, elaboração de produtos e dinâmicas
de trabalho. Ainda na internet, a implementação de plataformas
digitais que compõem o uso dos correios eletrônicos, demandam
expertise e tato no manejo cotidiano.

É preciso importar-se com a comunicação em todas as esferas da


nossa vida pessoal e profissional. Assim como preparamos nossa
voz, nossa respiração e identidade visual para apresentações e
negociações pessoalmente, escrever bem - e de maneira persuasiva
– também é uma demanda do profissional do presente e, sobretudo,
do profissional do futuro. Na tabela a seguir você poderá acompanhar
e aplicar a sua rotina de trabalho algumas técnicas para a boa escrita
de um e-mail persuasivo. Mais do que isso, os exemplos a seguir
podem sofrer alterações estratégicas e, também, podem servir como
técnica para abordagens realizadas em outras plataformas digitais.
Casa do Saber

19
SEU NOME

NOME RECEPTOR

Desperte a curiosidade ou coloque o nome da


pessoa (endosso) que conhece o contato que
TÍTULO
você quer abordar (triangulação). Uso de Ad
Verecundiam + Ethos são infalíveis.
Vá direto ao ponto. Valorize o tempo do seu interlocutor
INTRODUÇÃO que recebe muitos e-mails todos os dias. Filtre ao máximo
tudo o que pode fazer, não enfeite demais e seja sucinto.
Agregue valor. Faça uma venda consultiva: seu prospect
precisa perceber que o seu contato é importante e que
o principal objetivo dessa conexão é oferecer um benefício
concreto para um possível problema - dê uma dica “grátis”
“RECHEIO”
para gerar reciprocidade. Por exemplo, se você vende
soluções para blogueiros, compartilhe uma dica que
vai ajudá-lo a gerar mais engajamento - logo você
estabelece autoridade e mostra que tem muito a agregar.
Ofereça um benefício claro. Lembre-se: é um e-mail
de apresentação comercial, ou seja, a venda será
fechada depois. Para que a conversa possa seguir
em outro contexto ou meio de comunicação, é
FINALIZAÇÃO importante que a pessoa percebe o que pode
ganhar com você. Portanto, mostre como você
pode ajudar na solução “Tenho outras dicas
interessantes que podem aumentar ainda mais
xxx do seu blog” por ex.
Call to action eficiente. Se você não disser o que
quer, como o seu interlocutor poderá responder?
FIM Vamos fazer uma call para eu te apresentar nosso
projeto amanhã 14h ou quinta às 18h, qual dia e
horário funcionam melhor para você?
Casa do Saber

20
INDICAÇÃO DE LEITURA
DA CASA DO SABER:

COMO ESCREVER
E-MAILS CLAROS,
CONCISOS E ADEQUADOS

Vivian Rio Stella

2019

ANTES DE IR, UMA ÚLTIMA PALAVRINHA...

Foi uma honra compartilhar o conteúdo teórico conceitual


sobre Comunicação e também minhas experiências empíricas
com vocês durante essa jornada! Espero que todo esse saber
seja aplicado com consciência, ética e responsabilidade, seja
no ambiente corporativo ou nas relações interpessoais de vocês

Maytê Carvalho
Casa do Saber

21
LIVROS, FILMES E DOCUMENTÁRIOS:

LIVROS

Persuasão — Como Usar a Retórica e a Comunicação


Persuasiva na Sua Vida Pessoal e Profissional, Maytê Carvalho

Retórica, Aristóteles

A Sociedade da Sedução: Democracia e Narcisismo


na Hipermodernidade Liberal, Gilles Lipovetsky

A arte da sedução, Robert Greene

As Armas da Persuasão: Como Influenciar


e Não se Deixar Influenciar, Robert Cialdini

O Que é Poder, Byung Chul Han

Never Split The Difference, Chris Voss

A Inteligência do Carisma, Heni Ozi Cukier

O Mal- Estar na Civilização Sigmund Freud

Como Vencer Um Debate Sem Precisar


Ter Razão, Arthur Schopenhauer

O Corpo em Terapia: a abordagem


bioenergética, Alexander Lowen

Psicologia de Massas e o Fascismo,


Wilhelm Reich

The Future of Power: Its Changing Nature


and Use in the Twenty-first Century, Joseph Nye

Speech Craft, Joshua Gunn

Semiótica: Objetos e práticas, Nilton Hernandes Ivã Carlos Lopes

Comunicação não-violenta: Técnicas para aprimorar relacionamentos


Casa do Saber

pessoais e profissionais, Marshall Rosenberg

22
FILMES

Silicon Cowboys

Steve Jobs: The Billion Dollar Hippie

O Discurso do Rei

Sociedade dos Poetas Mortos

Prenda-me se for capaz

VIPs

Parasita

The Inventor: Out For Blood In Silicon Valley

OUTROS

Harvard Law School, Deal Negotiation


and Dealmaking: What to Do On Your Own — LER

TED Talks: Life Hacks — Documentário (Netflix)

APROFUNDE SEUS CONHECIMENTOS TAMBÉM


PELO CANAL DA CASA DO SABER NO YOUTUBE

Como se comunicar bem?


Diogo Arrais

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Se comunicar com naturalidade


é sair da caixa
Augusto Uchoa
Casa do Saber

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23
Você é (ou seria)
um bom líder?
Diogo Arrais

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Toda história sobre a briga


entre Platão e Aristóteles
Paulo Niccoli Ramirez

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Max weber e o espírito


do capitalismo
Paulo Niccoli Ramirez

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O poder da fala
Maytê Carvalho

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Discursos na cultura
do cancelamento
Maytê Carvalho

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Por que às vezes fugimos


dos debates?
Maytê Carvalho

ASSISTIR
Casa do Saber

24
Como a gente organiza os nossos
pensamentos através das palavras
Vivian Rio Stella

ASSISTIR

Qual imagem você passa?


Comunicação verbal e não-verbal
Vivian Rio Stella

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Linguagem, poder
e sociedade
Vivian Rio Stella

ASSISTIR

Neurociência e comunicação não-violenta


Diálogo com Flavia Feitosa
e Claudia Feitosa-Santana

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Comunicação e Discursos em Tempos de Pandemia


com Maytê de Carvalho
e Mario Vitor Santos

ASSISTIR
Casa do Saber

25
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria Semiótica do Texto. 5ª.ed. São Paulo:
Ática, 2011.

BRANDÃO, H. H. N. Introdução à Análise do Discurso. 7. ed. Campinas, SP:


Editora da Unicamp, 1991.

CHARAUDEAU, P. Discurso das Mídias. Trad. Angela S. M. Corrêa. São Paulo:


Contexto, 2006).

FIORIN, J. L. Linguagem e Ideologia. 8. ed. São Paulo: Ática, 2007.

ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 6. ed.


Campinas, SP: Pontes, 2005.

REGO, Francisco Gaudêncio Torquato do. Comunicação empresarial /


comunicação institucional: conceitos, estratégias, sistemas, estrutura,
planejamento e técnicas / Francisco Gaudêncio Torquato do Rego. – São
Paulo: Summus, 1986.

ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não-violenta. Técnicas para aprimorar


relacionamentos pessoais e profissionais. 3. ed. São Paulo: Ágora, 2006

SILVA, Maria Júlia Paes da. Comunicação tem remédio: a comunicação nas
relações interpessoais em saúde / Maria Júlia Paes da Silva. – São Paulo:
Edições Loyola, 2006.

SCHUCH, Patrice. Tecnologias da não-violência e modernização da justiça no


Brasil. O caso da justiça restaurativa. Civitas-Revista de Ciências Sociais, v. 8,
n. 3, 2008.
Casa do Saber

26
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GUIA FILOSÓFICO DAS (NOVAS)


QUESTÕES DA HUMANIDADE
2021

com Clóvis de Barros Filho

Um conteúdo original
da Casa do Saber
AVISO
Este material foi elaborado pela curadoria da Casa do Saber exclusiva-
mente para o curso Guia Filosófico das (Novas) Questões da Humani-
dade, com o professor Clóvis de Barros Filho, em setembro e outubro
de 2021. A leitura deste material não substitui as aulas e sua reprodução
e/ou compartilhamento de forma parcial ou total não é permitida sem a
autorização expressa de seus criadores.

QUEM PRODUZIU O MATERIAL

CONTEÚDO
Guilherme Peres
Curador da Casa do Saber
Amanda Péchy
Curadora Assistente da Casa do Saber

DESIGN
Ana Luiza dos Santos
Designer

FALE COM A GENTE


suporte@casadosaber.com.br

São Paulo, 2021


ÍNDICE:
4 APRESENTAÇÃO

6 AULA 1 -
PARA O FUTURO E AS INCERTEZAS,
A CORAGEM E A RESPONSABILIDADE

21 AULA 2 -
PARA O TRABALHO E A REALIZAÇÃO PESSOAL,
A SIMPLICIDADE E A HUMILDADE

34 AULA 3 -
PARA A SOLIDÃO E O INDIVIDUALISMO,
A GENEROSIDADE E A GRATIDÃO

44 AULA 4 -
PARA A DESIGUALDADE E A DISCRIMINAÇÃO,
O RESPEITO

54 AULA 5 -
PARA O ÓDIO E A INTOLERÂNCIA,
A TOLERÂNCIA E A COMPAIXÃO

65 AULA 6 -
PARA OPINIÕES E A BUSCA DA VERDADE,
A PRUDÊNCIA E A BOA FÉ

78 AULA 7 -
PARA A VIDA COM OS OUTROS,
GENTILEZA E COMPAIXÃO

89 AULA 8 -
LIDAR (MELHOR) COM A MORTE E O LUTO - 
A CONSCIÊNCIA
Casa do Saber

99 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

3
APRESENTAÇÃO

Este curso ao qual você tem acesso é uma criação inédita da Casa do Saber,
que desde 2004 tem o privilégio da companhia do professor Clóvis de Bar-
ros Filho. Ao longo dos anos, nós e todo o público fomos presenteados com
algumas das reflexões mais provocadoras e acessíveis a respeito de nossa
condição, nosso lugar no mundo e, sobretudo, nossas responsabilidades
para conosco e com os outros. Explicadores como ele são capazes de mov-
imentar nossos corações e razão. De nos colocar diante de um espelho em
que nos vemos tal como somos, mas com energia o suficiente para nos aju-
dar a descobrir quem podemos (e queremos) ser.

Um de seus cursos mais famosos – As Grandes Questões da Humanidade,


que virou um livro publicado em 2013 –, trazia de forma clara nossa relação
com as ideias de liberdade, beleza, bem e mal, Deus, justiça, entre outras.
Na esteira deste momento inédito vivido por todos no último ano, outras
questões emergiram e se tornaram urgentes. Não que as demais tenham
perdido relevância, pelo contrário, mas é urgente que tenhamos em mente
alguns desafios que já se anunciaram e o que podemos fazer para lidar mel-
hor com cada um deles. Ao mesmo tempo, muitas questões podem não
parecer novas, mas trazem novidades em como se apresentam e nos afetam
neste contexto para o qual as respostas tradicionais parecem, às vezes, insu-
ficientes.

Nas páginas a seguir você encontrará algumas leituras complementares às


aulas do curso Guia Filosófico das Novas Questões da Humanidade. A cada
encontro o professor Clóvis de Barros Filho apresenta uma questão e quais
virtudes podem ser desenvolvidas para enfrentá-las. Para além desse de-
senvolvimento individual, uma pretensão desse conjunto de encontros é
também estimular a reflexão e o desenvolvimento dessas virtudes com uma
orientação para o coletivo. As duas dimensões estão presentes e são, como
sempre, dependentes uma da outra.

Desejamos a todos e todas uma boa jornada de aprendizado. É um prazer ter


vocês com a Casa do Saber em mais um capítulo da nossa missão de trans-
mitir conhecimento de forma prazerosa. Para isso, ninguém melhor do que
Clóvis de Barros Filho. Aproveite!
Casa do Saber

Equipe da Casa do Saber

4
AULA 1
PARA O FUTURO E AS
INCERTEZAS, A CORAGEM
E A RESPONSABILIDADE
Casa do Saber

5
Desde que as ideias sobre nossa relação com o cosmos foram organizadas
em um sistema chamado “filosofia”, boa parte do pensamento humano foi
dedicada a entender o sentido da existência. Não apenas nossas possíveis
origens, mas nosso lugar no desenrolar da vida e, sobretudo, nossos des-
tinos – a curto e a longo prazo. A questão do futuro foi sempre crucial. Na
Grécia Antiga, berço da filosofia ocidental tal qual a entendemos, conhecer
os desígnios do destino traçado pelas Moiras poderia ser uma maldição – tal
qual na vida de Cassandra, que previu a destruição de Tróia e até hoje segue
como referência àquelas pessoas cujas previsões são desacreditadas –, ou
uma missão – como em Sócrates, que considerou sua missão colocar à prova
a declaração do oráculo do Templo de Apolo em Delfos, de que ele seria o
homem mais sábio da Grécia.

Templo de Apolo em Delfos - Grécia


Casa do Saber

6
Ainda assim, pensar o futuro se tornou uma preocupação que foi além da
religião ou das representações dos mitos. No teatro, Sófocles (497/496 a.C.
- 406/405 a.C.) usou o enredo de um homem que quis fugir de seu destino
e correu de encontro a ele para construir uma das tragédias mais famosas
da humanidade. Em Édipo Rei (427 a.C.), Laio, rei de Tebas, ouve a profecia
de que morreria pelas mãos do próprio filho recém-nascido. Ele ordena que
Jocasta, sua esposa, mate a criança, mas ela a entrega a um servo que a
abandona. A criança é resgatada, nomeada Édipo e levada a Corinto, onde é
adotada pelo rei. Ao consultar o oráculo sobre sua origem, ouve que ele es-
tava destinado a desposar sua mãe e assassinar seu pai. Sem saber que não
é filho dos reis de Corinto, foge da cidade em direção a Tebas. No caminho,
discute com um velho e o mata, sem saber que aquele era Laio, seu ver-
dadeiro pai. Ao chegar em Tebas, se depara com a esfinge, que aterroriza
a cidade devorando seus habitantes e viajantes enquanto não solucionar-
em seu enigma – que Édipo rapidamente resolve. A esfinge se joga de um
penhasco e Édipo é recompensado com o trono da cidade e a mão da rainha
viúva – Jocasta, sua mãe. É Tirésias, outro profeta, quem revela a Édipo o que
ele cometeu e, ao final (spoilers), Édipo fura os próprios olhos e parte para o
exílio, atormentado, em uma das histórias mais famosas da história.

Cerâmica grega de cerca de 470 a.C.


retratando Édipo e a esfinge (Museu do Vaticano)
Casa do Saber

7
Alguns dos chamados pré-socráticos, como Demócrito, Heráclito e Par-
mênides, por exemplo, propuseram ideias que, de uma forma ou de outra,
pautaram algumas das principais visões a respeito do que seria o devir hu-
mano. Seria tudo um aglomerado de átomos desordenados colidindo caoti-
camente, como propôs Demócrito? Um fluxo de transformações constantes
e intermináveis, de acordo com Heráclito? Ou o que existe é apenas o ser e
o não-ser, portanto não havemos de nos preocupar com o que (ainda) não
é? Fiquemos apenas com Heráclito e Parmênides, cujas fontes e relatos são
mais confiáveis. Veja abaixo, de forma mais direta, exemplos mais claros de
suas ideias.

Heráclito mesmo, não obstante sua crença na mudança, admitiu


que algo não tinha fim. A concepção de eternidade (em oposição
à duração infinita) que encontramos em Parmênides não existe em
Heráclito, mas em sua filosofia o fogo central jamais se extingue: o
mundo “sempre foi, é e sempre será um Fogo sempiterno”. Fogo, no
entanto, é algo que está em constante mutação, e sua permanência
é antes a permanência de um processo, e não de uma substância
(RUSSELL, 2015, p. 74).

Não podes saber o que não é – é impossível – nem proferi-lo, pois


é um só o que pode ser pensado e o que pode existir. Como, no
entanto, pode aquilo que é vir a ser? Ou como poderia ganhar ex-
istência? Se passou a ser, não é; tampouco é se vier a ser no futuro.
O devir, assim, se extingue, e não se deve falar em desaparecer.
Aquilo que pode ser pensado e aquilo porque o pensamento existe
são o mesmo; pois não é possível encontrar pensamento sem algo
que exista e a respeito do qual ele se exprime. (Parmênides, Sobre a
Natureza, fragmento 8, apud LEÃO, 1991, p. 48)

Foi Platão (428/427 a.C. - 348/347 a.C.) quem, em A República (cerca de 375
a.C.), idealizou a primeira das utopias da filosofia – a cidade ideal, Kallipolis,
governada por uma aristocracia de sábios, reis filósofos, imaginada na busca
de um conceito maior sobre a justiça, que passa também sobre o destino da
alma. Entre os campos da ética e da metafísica, o futuro foi sendo pensado,
basicamente, a partir destas matrizes. Estoicos como Epiteto, Marco Aurélio
e Sêneca aconselhavam que não dedicássemos energia ao que não estava
sob nosso controle (ainda que recomendassem o exercício de lembrar da
Casa do Saber

finitude). Com o domínio religioso sobre o pensamento, a angústia ou as pre-


ocupações com o futuro seriam fruto da falta de fé em um plano que descon-
hecemos e que não nos pertence.

8
HERÁCLITO PLATÃO

PARMÊNIDES
Casa do Saber

9
PARA SABER MAIS:

A REPÚBLICA DE PLATÃO
Maurício Marsola

clique para assistir

Avancemos até o começo do século 19 na Dinamarca. Educado como


pastor protestante, Søren Kierkegaard (1813-1855) é considerado o primeiro
dos existencialistas. O sentido da existência esteve no centro de sua vasta
produção, apesar de seu curto tempo de vida. Profundamente influenciado
por Hegel (1770-1831), foi também um dos responsáveis por refutar algumas
de suas ideias que vinham se tornando dominantes no pensamento europeu.
Uma de suas proposições mais famosas é de que “o real é racional”. De for-
ma muito sucinta, Kierkegaard interpretou que a mais subjetiva das categorias
– o “eu” – não pode ser circunscrito e definido de forma tão objetiva. A real-
idade vivida e formadora dessa subjetividade é vivida a partir de valores que
servem de lentes às próprias realidades objetivas – os fatos. Em suma, va-
lores aos quais somos fiéis influenciam nossa visão da realidade, fazendo da
minha realidade algo subjetivo a partir de fatos objetivos. O mundo e nossa
percepção se influenciam e se transformam e fazem de cada pessoa aquilo
que elas são.

Essa experiência radical da liberdade é o que causa em nós uma sensa-


ção de angústia. Pense por um instante na consequência dessa conclusão
para alguém profundamente cristão como Kierkegaard. Origina-se aqui um
paradoxo: a liberdade, condição fundamental da existência, quando perce-
bida dentro das infinitas possibilidades que nos proporciona, provoca uma
angústia que nos faz rejeitá-la. Em suas próprias palavras, a angústia difere do
medo por não ter um objeto específico, mas por ser a “realidade da liberdade
como possibilidade antes da possibilidade” (Kierkegaard, 2017, p. 49). Assim
Casa do Saber

ele descreve esta condição a partir da história de Adão ao consumir o fruto


proibido em O Conceito de Angústia:

10
Quando, pois, se admite que a proibição desperta o desejo, ob-
tém-se ao invés da ignorância um saber, pois neste caso Adão deve
ter tido um saber acerca da liberdade, uma vez que o prazer consis-
tia em usá-la. Esta explicação é, portanto, a posteriori. A proibição o
angustia porque desperta nele a possibilidade da liberdade. O que
tinha passado desapercebido pela inocência como o nada da an-
gústia, agora se introduziu nele mesmo, e aqui de novo é um nada:
a angustiante possibilidade de ser-capaz-de. Ela não tem nenhuma
ideia do que é que ela seria capaz de fazer, pois de outro modo se
pressupõe, certamente – como em geral sucede – o que só vem
depois, a distinção entre bem e mal. Existe apenas a possibilidade de
ser-capaz-de, enquanto uma forma superior da ignorância e enquan-
to uma expressão superior da angústia, porque esta capacidade,
num sentido superior, é e não é, porque num sentido superior ela a
ama e foge dela. (KIERKEGAARD, S. 2017, p. 52)

Søren Aabye Kierkegaard foi um filósofo, teólogo, poeta e crítico social di-
namarquês, amplamente considerado o primeiro filósofo existencialista.)
Casa do Saber

11
A angústia abre as portas para o vir-a-ser, já que não há um ser fixo, de-
terminado ao qual nos agarrarmos (apesar de a angústia nos fazer desejar
agarrar algo fixo e que nos dê referências). Devemos, para Kierkegaard, nos
lançar neste absurdo, o que ele chamou de “salto de fé”: somos uma sínte-
se entre o finito e o infinito, ou seja, estamos inseridos no tempo, em carne
e osso, mas destinados à indeterminação. Aqui é importante entendermos
o conceito de repetição. Diferente da rememoração, que teria o sentido do
passado, a repetição tem o sentido do futuro – em dinamarquês, o termo é
Gjentagelse, com o sentido de “retomar”, “reapropriar”. É na repetição, por-
tanto, que reside a própria ideia de esperança. A cada momento de retomada
desse devir de nós mesmos, temos a possibilidade de nos tornarmos quem
somos.

Voltei a ser eu mesmo; eis que tenho a repetição; entendo tudo e a


existência surge-me agora mais bela do que alguma vez (...) Sou de
novo eu mesmo. Este ‘eu mesmo’, que na estrada ninguém apanharia
do chão, é outra vez meu. A cisão que havia rio meu ser está anula-
da; eis-me novamente unificado. (KIERKEGAARD, S. 2009, p. 131)

Essa existência imediata no mundo que detém o privilégio de questionar


é o que Martin Heidegger (1889-1976) veio a chamar de Dasein, traduzido em
português como ser-aí. O ser-aí é também um ser-no-mundo à medida que
habita e existe no mundo, sem estar apenas lançado sobre ele no tempo e no
espaço. Nós, seres pensantes, não apenas existimos no mundo, mas “te-
mos” o mundo, classificando-o como uma extensão de nós mesmos a par-
tir de nossas interações com nossas realidades imediatas. A compreensão
desta condição nos lança em infinitas possibilidades, nas quais podemos (ou
não) assumir nossa existência de forma plena. No entanto, desviamos desse
compromisso, acabamos por encobri-lo, e é essa fuga de nós mesmos que
acaba determinando o ser-no-mundo de cada ser-aí.

Para Heidegger, o traço totalizante e universal do humano é a angústia.


Mais do que um fenômeno psicológico, ela representa a totalidade da exis-
tência como ser-no-mundo. Ela é diferente do medo, por exemplo, uma vez
que o medo é decorrente de um objeto (temos medo de algo). A angústia,
por sua vez, é esse incômodo sem objeto definido que nos empurra em di-
reção a outras fontes de significado como sustentação de nossa existência,
Casa do Saber

como anuncia no texto Que é a Metafísica?, publicado em 1929:

12
Na angústia - dizemos nós - ‘a gente se sente estranho’. O que sus-
cita tal estranheza e quem é por ela afetado? Não podemos dizer
diante de que a gente se sente estranho. A gente se sente total-
mente assim. Todas as coisas e nós mesmo afundamo-nos numa
indiferença. Isto, entretanto, não no sentido de um simples desapa-
recer, mas em se afastando elas se voltam para nós. Este afastar-se
do ente1 em sua totalidade, que nos assedia na angústia, nos oprime.
Não resta nenhum apoio. Só resta e nos sobrevém - na fuga do ente
– este ‘nenhum’. A angústia manifesta o nada. ‘Estamos suspen-
sos’ na angústia. Melhor dito: a angústia nos suspende porque ela
põe em fuga o ente em sua totalidade. Nisto consiste o fato de nós
próprios - os homens que somos – refugiarmo-nos no seio dos en-
tes. É por isso que, em última análise, não sou ‘eu’ ou não és ‘tu’ que
te sentes estranho, mas a gente se sente assim. Somente continua
presente o puro ser-aí no estremecimento deste estar suspenso
onde nada há em que apoiar-se. (HEIDEGGER, 1999, p. 56-57)

PARA SABER MAIS:

KIERKEGAARD:
ANGÚSTIA E ESPERANÇA
Oswaldo Giacoia Júnior

clique para assistir

A angústia tem o nada como causa e efeito, daí sua frase conhecida de
que “o nada nadifica”. No entanto, essa é a condição que coloca a existên-
cia humana diante dela mesma. A angústia nos alerta para a nossa existência
finita, colocando a inautenticidade e também a autenticidade como possibili-
dades de nosso ser e nos convoca a sair da inautenticidade em que vivemos
Casa do Saber

para assumirmos, então, nossa autenticidade. Esse é o momento de virada


da existência e quando se mostra o ser-para-a-morte. Não se trata de pensar
nela constantemente ou algo mais vulgar, mas de entendê-la como um pro-

13
cesso da própria existência como um todo e, de forma muito particular, algo
único de cada pessoa. É nela que cada um encontra sua verdade no tempo e
por meio da consciência dela que temos a oportunidade de assumir a vida.

Martin Heidegger foi um filósofo, escritor e professor alemão. Foi um pensador seminal
na tradição continental e hermenêutica filosófica, e é amplamente reconhecido como
um dos filósofos mais originais e importantes do século XX

Futuro e incerteza se mostram para nós para além da questão da morte,


mas da própria indeterminação. Não sabemos o que irá acontecer amanhã
e, quanto mais complexo e caótico se torna o contexto em que vivemos,
mais essa insegurança aumenta. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Ipsos
Casa do Saber

em 2018, feita em 24 países com mais de 17 mil pessoas, mostrou que parte
significativa da população brasileira (e mundial) é pessimista em relação ao
futuro.

14
Neste ponto, vale lembrar da figura de Hans Jonas (1903-1993), aluno
de Heidegger no final dos anos 1920. Jonas foi um dos maiores pensadores
a tratar de forma sistemática a questão do desenvolvimento de uma ética
que levasse em consideração o avanço tecnológico desenfreado vivido pelo
mundo após a Segunda Guerra Mundial. Judeu, fugiu da Alemanha nazista
para a Palestina, para depois se juntar ao exército britânico, vendo de perto
os efeitos da guerra.

Algumas de suas propostas em obras como O Princípio Vida (1966) e


O Princípio Responsabilidade (1979) dizem respeito à condução do humano
para o desenvolvimento de uma ética que fosse além do princípio moral - não
apenas fazer o certo porque “é certo”, mas porque fazer o bem é próprio de
uma verdadeira natureza humana. Não se trata, portanto, de um “valor”, mas
de um “dever”. Desta forma, nossas ações não seriam orientadas por uma lei
moral, mas pelo bem do mundo que se sobrepõe à nossa vontade.

PARA SABER MAIS:

A ÉTICA DA RESPONSABILIDADE
Oswaldo Giacoia Júnior

clique para assistir

Para Jonas, razão e emoção devem ser complementares no que co-


nhecemos por ética. A dimensão objetiva, racional, deve ter uma motivação
subjetiva que sustente a noção de dever. Aquilo que nossa razão nos mostra
como relevante de existir e que necessita de nosso cuidado é o que deve
orientar nossas ações, envolvendo aí o aspecto emocional e psicológico. O
resultado dessa síntese é a noção de responsabilidade. Este trecho a seguir,
Casa do Saber

nas palavras do próprio Jonas, explica essa ideia:

15
O mistério e o paradoxo da moral é que o eu deve esquecer de si
mesmo em proveito da causa, de modo a permitir que um eu supe-
rior apareça (na verdade, um bem-em-si). Deve-lhe ser permitido
dizer: “Eu quero poder encarar-me de frente” (ou submeter-me ao
julgamento de Deus), mas isso só me será possível caso o que im-
porte aí seja a “causa” e não eu mesmo: nunca posso ser a causa, e
o objeto do ato será apenas a oportunidade para tal. O homem bom
não é aquele que se tornou um homem bom, mas aquele que fez o
bem em virtude do bem. O bem é a “causa” no mundo, na verdade,
a causa do mundo. A moralidade jamais pode se considerar como
um fim (...) Não é o próprio dever que é o objeto; não é a lei moral
que motiva a ação moral, mas o apelo do bem em si no mundo, que
confronta minha vontade e exige obediência - de acordo com a lei
moral. Ouvir aquele apelo é exatamente o que a lei moral ordena: isso
é tão-somente a obediência genérica ao apelo de todos os bens
dependentes da ação e o seu direito respectivo à minha ação. Ele
torna meu dever aquilo que a intelecção me mostrou que é digno
de existir por si mesmo e necessita da minha intervenção. Para que
algo me atinja e me afete de maneira a influenciar minha vontade é
preciso que eu seja capaz de ser influenciado por esse algo. Nosso
lado emocional tem de entrar em jogo. E é da própria essência da
nossa natureza moral que a nossa intelecção nos transmita um apelo
que encontre uma resposta em nosso sentimento. É o sentimento de
responsabilidade. (JONAS, 2006, p. 156-157)

Apenas o respeito não é suficiente, uma vez que é orientado apenas


pela razão. O que importa são as coisas em si mesmas e não nossa vonta-
de. O que nos liga às coisas é o sentimento de responsabilidade. Para além
dessa relação primeira, a responsabilidade também diz respeito ao dever do
poder. Aqueles que têm mais poder sobre aquilo que necessita de cuidados
se ligam entre si a partir dessa noção de responsabilidade - é esse relaciona-
mento que orienta esta nova ética proposta por Jonas. O exercício do poder,
portanto, sem a observância do dever, ou mesmo a negligência e a omissão,
têm o nome de irresponsabilidade. Essa relação se estende, sobretudo, para
as criações humanas (que nos humanizam, como a arte, por exemplo) e as
gerações futuras.

Temos uma obrigação fundamental e uma ligação de responsabilidade


Casa do Saber

com aqueles que ainda não nasceram. O que ele sustenta é que neste exer-
cício cada um garante a manutenção da humanidade em todos os seus senti-
dos, numa necessidade paradoxal de desprendimento do eu, mas que ainda

16
assim o sustenta. Desprendimento este que envolve não esperar das gera-
ções vindouras uma recompensa por nossas ações morais – nosso dever é
garantir que tenham o direito e a possibilidade de existir, ainda que para negar
aquilo feito em nome delas. Ainda nas palavras de Jonas:

Ou seja, exatamente aqueles efeitos pelos quais o responsável já não


poderá responder: a causalidade autônoma da existência protegida
é o derradeiro objeto do seu cuidado. Em relação a esse horizonte
transcendente, a responsabilidade, mesmo em sua totalidade, não
pode ambicionar um papel determinante; pode ambicionar possibil-
itá-lo (ou seja, prepará-lo e manter aberta a oportunidade). O caráter
vindouro daquilo que deve ser objeto de cuidado constitui o aspecto
de futuro mais próprio da responsabilidade. Sua realização suprema,
que ela deve ousar, é a sua renúncia diante do direito daquele que
ainda não existe e cujo futuro ele trata de garantir. À luz dessa am-
plidão transcendente, torna-se evidente que a responsabilidade não
é nada mais do que o complemento moral para a constituição on-
tológica do nosso Ser temporal. (JONAS, 2006, p. 186-187)

Hans Jonas foi um filósofo alemão de origem judia. É conhecido principalmente devido à
sua influente obra O Princípio Responsabilidade.
Casa do Saber

17
A preocupação com o futuro e a incerteza provocam em nós uma angús-
tia que pode nos paralisar, ou nos convidar assumirmos nossa autenticidade,
nosso si-mesmo. A angústia nos prepara para esse momento de síntese entre
corpo e alma, sujeito e natureza, finito e eternidade. Esse tornar-se sujeito
nos lança ao futuro numa chave de esperança e de dever em relação a algo
que transcende o indivíduo. É a angústia a responsável, paradoxalmente, por
nos afligir e nos dar a chave para superá-la. Antes é preciso, porém, dar o
“salto no abismo”. Abrir mão de si para ser capaz de (re)encontrar a si mes-
mo e, nessa retomada, recomeçar. Esse tipo de pensamento reverbera ainda
em diferentes vertentes e origens do pensamento, dentro ou fora do que se
convencionou chamar de “tradição”, e se tornou uma das principais preocu-
pações de parte significativa da intelectualidade. Talvez não do restante do
mundo. O brasileiro Ailton Krenak anuncia em Ideias para Adiar o Fim do Mun-
do sua versão de uma reflexão a respeito de nossa ligação com o mundo e o
que ainda há de vir:

Quando, por vezes, me falam em imaginar outro mundo possível, é


no sentido de reordenamento das relações e dos espaços, de no-
vos entendimentos sobre como podemos nos relacionar com aquilo
que se admite ser a natureza, como se a gente não fosse natureza.
Na verdade, estão invocando novas formas de os velhos manjados
humanos coexistirem com aquela metáfora da natureza que eles
mesmos criaram para consumo próprio. Todos os outros humanos
que não somos nós estão fora, a gente pode comê-los, socá-los,
fraturá-los, despachá-los para outro espaço. O estado de mundo que
vivemos hoje é exatamente o mesmo que os nossos antepassados
recentes encomendaram para nós. Na verdade, a gente vive recl-
amando, mas essa coisa foi encomendada, chegou embrulhada e
com o aviso: “Depois de abrir, não tem troca”. Há duzentos, trezen-
tos anos ansiaram por esse mundo. Um monte de gente decepcio-
nada, pensando: “Mas é esse mundo que deixaram para a gente?”.
Qual é o mundo que vocês estão agora empacotando para deixar às
gerações futuras? (...) Devíamos admitir a natureza como uma imen-
sa multidão de formas, incluindo cada pedaço de nós. E nós criamos
essa abstração de unidade, o homem como medida das coisas, e
saímos por aí atropelando tudo, num convencimento geral até que
Casa do Saber

18
PARA SABER MAIS:

VOZES DA FLORESTA
Ailton Krenak

clique para assistir

Convidamos você a refletir sobre essas ideias em nosso tempo e nas suas
vivências particulares. Que tipo de consciência, ética e futuro temos organ-
izado? É justo tratarmos destes temas na primeira pessoa do plural? Ou ainda
estamos patinando no singular?
Casa do Saber

19
AULA 2
PARA O TRABALHO E A
REALIZAÇÃO PESSOAL,
A SIMPLICIDADE E
A HUMILDADE
Casa do Saber

20
“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos,
encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.” Assim
começa a narrativa de A Metamorfose, de Franz Kafka, publicado pela primei-
ra vez em 1915. Depois de brevemente se perguntar o que havia acontecido
com si mesmo, o protagonista se dedica a uma preocupação absurda: a ne-
cessidade de se levantar para não perder o trem que o levaria ao trabalho.
Em seu livro Kafka: Pró e Contra, o pensador alemão Günther Anders resume
bem essa atmosfera com uma frase antológica: “O espantoso, em Kafka, é
que o espantoso não espanta ninguém”. Não é apenas Gregor Samsa que
tem essa preocupação banal diante do absurdo – seu chefe também vem
visitá-lo para entender por que ele se ausentou do trabalho, dizendo esperar
que não seja nada grave, não sem antes ressaltar que é preciso “colocar nos-
sas obrigações profissionais bem à frente de qualquer ligeira indisposição”.

Mais de um século depois, no meio de uma das maiores crises sanitárias


do mundo, foi comum acompanhar discussões sobre o retorno às atividades
presenciais. Na última década o avanço tecnológico permitiu que a ideia de
trabalho mudasse drasticamente. No entanto, nossa relação com o trabalho
teve alguma mudança significativa?

No final do século 19, no auge das transformações sociais e econômi-


cas provocadas pela expansão do modelo capitalista, Émile Durkheim (1858-
1917) publicou sua tese de doutorado, intitulada Da Divisão do Trabalho So-
cial (1893). Ao longo da obra, sustenta a ideia de que, em sociedades ditas
desenvolvidas, o trabalho é fundamental para que exista a coesão social.
Nossas atividades, num momento de maior divisão e especialização, seriam
uma das coisas que geraria identificação e comunhão de valores – até mes-
mo definindo quais seriam os valores de uma sociedade. Logo nas primeiras
páginas do livro, Durkheim enuncia o seguinte:

Semelhante fato [divisão do trabalho] não pode, evidentemente,


produzir-se sem afetar profundamente nossa constituição moral,
pois o desenvolvimento do homem se fará em dois sentidos de todo
diferentes, conforme nos entreguemos a esse movimento ou resis-
tamos a ele. Mas, então, coloca-se uma questão premente: dessas
duas direções, qual devemos desejar? Será nosso dever procurar
tornar-nos um ser acabado e completo, um todo autossuficiente, ou,
Casa do Saber

ao contrário, não ser mais que a parte de um todo, o órgão de um


organismo? Numa palavra, a divisão do trabalho, ao mesmo tempo
que lei da natureza, também é uma regra moral de conduta humana?

21
E, se tem esse caráter, por quais motivos e em que medida? Não é
necessário demonstrar a gravidade desse problema prático, porque,
qualquer que seja nosso juízo sobre a divisão do trabalho, todo o
mundo sente bem que ela é e se torna cada vez mais uma das bases
fundamentais da ordem social (DURKHEIM, 1999, p. 4)

David Émile Durkheim foi um sociólogo, antropólogo, cientista político, psicólogo social e
filósofo francês. Formalmente, tornou a sociologia uma ciência e, com Karl Marx e Max We-
ber, é citado como o principal arquiteto da ciência social moderna e pai da sociologia.

Essa coesão social é expressa como solidariedade, a sensação de pertenci-


mento dos cidadãos de uma sociedade. Durkheim classificou a solidariedade
como mecânica (a união por meio de uma “consciência coletiva” baseada
em um sistema de valores e crenças compartilhado) ou orgânica (vínculos
formados a partir da divisão da sociedade em funções específicas e segun-
do a natureza da atividade que o indivíduo exerce). De um lado, um todo que
tende a homogeneizar a consciência individual e coletiva, fundamentadas
em tradições, crenças e hábitos comuns; de outro, a consciência individual
emerge como algo a perceber a individualidade e a interdependência dos
Casa do Saber

indivíduos. Durkheim as trata como típicas de, no primeiro caso, sociedades


ditas “primitivas” e, no segundo, as “desenvolvidas” (leia-se “capitalistas”).

22
Desta forma, na visão de Durkheim, o trabalho seria essa forma de união
social e de reconhecimento do indivíduo como parte de um todo numa lógi-
ca em que os valores e hábitos vão se desfazendo devido a esse processo
de singularização e alienação do indivíduo. É por meio do trabalho que cada
um se reconhece como pertencente à sociedade da qual participa. Aqui nas
palavras dele:

Eis o que constitui o valor moral da divisão do trabalho. É que, por


ela, o indivíduo retoma consciência de seu estado de dependência
para com a sociedade; é dela que vêm as forças que o retêm e o
contêm. Numa palavra, já que a divisão do trabalho se torna a fonte
eminente da solidariedade social, ela se torna, ao mesmo tempo, a
base da ordem moral. (DURKHEIM, 1999, p. 423)

As transformações do modo de organização social e econômico decorrentes


do desenvolvimento capitalista foram grandes motivadoras de ideias que
ainda hoje ecoam nos debates e na vida cotidiana, que se transforma, sem
necessariamente se atualizar. Do outro lado do Canal da Mancha, na Inglat-
erra, o alemão Karl Marx também se atentava as novas dinâmicas de relação
promovidas por essas transformações. Calorosamente debatida, muito citada
e lida, talvez, na proporção inversa, a obra de Marx é, ainda hoje, fundamental
para se compreender o mundo em que vivemos.

PARA SABER MAIS:

POR QUE LER MARX?


Clóvis de Barros Filho

clique para assistir


Casa do Saber

23
Antes de suas obras mais conhecidas, publicou Manuscritos Econômico-Fi-
losóficos (1844), na qual se dedicou, entre outras coisas, a tratar das conex-
ões “entre a propriedade privada, a ganância, a separação de trabalho, capital
e propriedade da terra, de troca e concorrência, de valor e desvalorização do
homem, de monopólio e concorrência etc., de todo este estranhamento com
o sistema do dinheiro” (Marx, 2010, p. 80). À medida que produz e quan-
to mais cria, mais valoriza o mundo das coisas e desvaloriza o mundo dos
homens. Nesta lógica do capital, o trabalho (re)produz a si mesmo, transfor-
mando tudo (inclusive o trabalho e o trabalhador) em mercadoria, tanto quan-
to aquilo que é produzido. A relação de valor se inverte, e aquele que produz
não tem condições de possuir ou se apropriar de suas criações. A isso, Marx
deu o nome de estranhamento, ou alienação.

Friedrich Engels, parceiro intelectual de Marx, em sua Dialética da Natureza


(1883), chegou a afirmar que o trabalho é “a condição fundamental de toda
a vida humana” e que “pode-se: o trabalho, por si mesmo, criou o homem”
(ENGELS, 1979, p. 215). Uma vez criado, a divisão fundamentalmente se dá
em duas classes: a burguesia, dona dos meios de produção (fábricas, empre-
sas, máquinas etc.), e o proletariado, os trabalhadores (que têm para vender
apenas sua força de trabalho). Quando mais especializado o trabalho, mais
alienado o trabalhador fica em relação àquilo que produz e de sua própria
condição de trabalhador. A produção é vendida a um valor muito superior ao
seu custo de produção, sendo o excedente reapropriado pela burguesia, que
segue explorando a força de trabalho. A isso, Marx tratou como a mais-valia.
WWW

Marx (dir.) e Engels começaram a trabalhar juntos na década de


1840, famosamente publicando em 1848 o Manifesto Comunista.)
Casa do Saber

24
Essa relação íntima e desigual pode gerar efeitos perversos de desu-
manização, especialmente em tempos nos quais o tempo de lazer, ou seja,
distante do trabalho, é pautado majoritariamente em relações de consumo.
O mesmo ocorre com a divisão do trabalho quando interpretada por Marx: a
eventual naturalização das relações capitalistas de produção, orientada pelo
percurso que vai da divisão do trabalho às dinâmicas de troca, passando pela
propriedade privada, seria naturalizar essa objetificação do humano. Em ou-
tras palavras, a exploração do trabalho e as consequências da alienação e da
objetificação nos desumanizariam, dando às coisas a primazia sobre nós, ge-
rando um ciclo que reproduziria a si mesmo, perpetuando essas relWações.

A propriedade privada nos fez tão cretinos e unilaterais que um ob-


jeto somente é o nosso [objeto] se o temos, portanto, quando existe
para nós como capital ou é por nós imediatamente possuído, comi-
do, bebido, trazido em nosso corpo, habitado por nós etc., enfim,
usado. Embora a propriedade privada apreenda todas estas efeti-
vações imediatas da própria posse novamente apenas como meios
de vida, e a vida, à qual servem de meio, é a vida da propriedade
privada: trabalho e capitalização. O lugar de todos os sentidos físicos
e espirituais passou a ser ocupado, portanto, pelo simples estranha-
mento de todos esses sentidos, pelo sentido do ter. A esta absoluta
miséria tinha de ser reduzida a essência humana, para com isso traz-
er para fora de si sua riqueza interior (MARX, 2010, p. 108-109)

Curiosamente estas duas interpretações dão um caráter paradoxal à nos-


sa relação subjetiva com o trabalho: ao mesmo tempo que nos identifica e
nos dá propósito dentro da sociedade, também nos insere em uma lógica em
que nos desapropriamos de nós mesmos e do resto do mundo. Produzimos
coisas (cada vez mais abstratas) e consumimos coisas, numa artificialização
que transborda para as outras relações.

Durkheim e Marx são dois elementos da Trindade da sociologia. O último


ponto é o alemão Max Weber (1864-1920), autor do clássico A Ética Protes-
tante e o Espírito do Capitalismo, publicado em 1905. A tese de Weber ao
sugerir que o capitalismo tenha um espírito (não no sentido metafísico, mas
de um conjunto de valores) surge de uma reflexão histórica a partir da Refor-
ma Protestante e a figura de Calvino. Uma vez que as ideias de predestina-
ção e submissão à Igreja Católica se esvaziaram, a dedicação “religiosa” ao
Casa do Saber

trabalho e às relações de troca se tornaram maneiras seculares da disciplina


e regramento que antes, pela via da fé, ordenavam a vida. Ainda sustentados

25
em conceitos como vocação e pecado, a acumulação se tornou uma carac-
terística dos protestantes, facilitando o desenvolvimento de uma organização
social e econômica pautada pelo lucro e fundamentada no esforço e no mé-
rito. Weber não considerava essa relação exclusiva do mundo ocidental, no
entanto – sua obra mais famosa é parte de um conjunto de estudos sobre as
relações entre religião, sociedade e economia.

PARA SABER MAIS:

MAX WEBBER E O
ESPÍRITO DO CAPITALISMO
Paulo Niccoli Ramirez

clique para assistir

As consequências desta relação material não foram encaradas de forma


leviana por Weber. Ao final do livro, menciona um dos desdobramentos mais
atuais dessa transformação, que culminaram, entre outras coisas, no que ele
chamou de desencantamento do mundo:

O puritano queria ser um profissional — nós devemos sê-lo. Pois a


ascese, ao se transferir das celas dos mosteiros para a vida profis-
sional, passou a dominar a moralidade intramundana e assim con-
tribuiu [com sua parte] para edificar esse poderoso cosmos da
ordem econômica moderna ligado aos pressupostos técnicos e
econômicos da produção pela máquina, que hoje determina com
pressão avassaladora o estilo de vida de todos os indivíduos que
nascem dentro dessa engrenagem — não só dos economicamente
ativos — e talvez continue a determinar até que cesse de queimar a
última porção de combustível fóssil. Na opinião de Baxter, o cuidado
com os bens exteriores devia pesar sobre os ombros de seu santo
Casa do Saber

apenas “qual leve manto de que se pudesse despir a qualquer mo-


mento”. Quis o destino, porém, que o manto virasse uma rija jaula de
ferro. (WEBER, 2004, p. 146-147)

26
Ainda faz sentido pensarmos nossa relação com o trabalho a partir des-
tas abordagens? A forma como nos identificamos com o que fazemos, atre-
lando nossas personalidades àquilo que produzimos e realizamos; as manei-
ras como estamos imersos e envolvidos com as tarefas, desvinculados de um
todo do qual nos reconhecemos como parte; as relações de trabalho mais
frágeis, que se tornam veladas por uma individualização de responsabilida-
des sobre a própria condição – muito disso ainda ocorre e encontra eco em
manifestações observadas por estes pensadores.

PARA SABER MAIS:

TRABALHO E
REALIZAÇÃO PESSOAL
Pedro de Santi

clique para assistir

Na segunda metade do século 20, a sociologia de Pierre Bourdieu


(1930-2002) trouxe algumas propostas que até hoje são referências para
entender como interagimos com o mundo e nos relacionamos e interagimos
uns com os outros. A partir de suas ideias de habitus, campo e capital simbó-
lico, é possível ir além destas interpretações anteriores.

Um campo social é um espaço abstrato composto por agentes sociais


que ocupam posições dentro dele. Essas posições são constituídas de forma
relacional e estruturada – nos posicionamos num campo em relação às figu-
ras dominantes, aos pares ou aos ocupantes de posições inferiores a partir
de eixos em torno dos quais as posições ganham simetria.

Todo campo também tem regras que resultam de uma aceitação tácita,
Casa do Saber

um “acordo implícito” dos agentes sobre as formas de agir dentro dos cam-
pos. Essas regras, específicas de cada campo, são internalizadas por cada
pessoa de tal maneira que moldam nosso comportamento para além do que

27
conseguimos perceber. O habitus “é um conhecimento adquirido e também
um haver, que indica uma disposição incorporada, quase postural” (Bourdieu,
1989, p. 61). As formas como agimos, pensamos ou mesmo aquilo que quere-
mos e desejamos é condicionado a partir de nossa educação, convivências
e o meio em que nos socializamos. Achamos que o que importa são as ações
conscientes, mas é o contrário. A sociedade atua também sobre ações in-
conscientes e nossa trajetória influi em sentimentos e ações conscientes.
Como não conseguimos resgatar todos os acontecimentos que nos molda-
ram, traduzimos nosso comportamento como natural.

Os condicionamentos associados a uma classe particular de


condições de existência produzem habitus, sistemas de disposições
duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a fun-
cionar como estruturas estruturantes, ou seja, como princípios gera-
dores e organizadores de práticas e de representações que podem
ser objetivamente adaptadas ao seu objetivo sem supor a intenção
consciente de fins e o domínio expresso das operações necessárias
para alcança-los, objetivamente “reguladas” e “regulares” sem em
nada ser o produto da obediência a algumas regras e, sendo tudo
isso, coletivamente orquestradas sem ser o produto da ação organ-
izadora de um maestro. (BOURDIEU, 2009, p. 87)

No entanto, uma questão principal é que os campos são espaços de


disputas entre aqueles que participam deles. Disputas por novas posições,
galgadas por meio do acúmulo de capital simbólico. Diferente de outros tipos
de capital (econômico, cultural ou social), ele diz respeito a esse código de
conduta de cada campo que se converte em autoridade e reconhecimen-
to, possibilitando, inclusive, a acumulação dos demais tipos de capital. Esse
capital surge a partir do reconhecimento dos outros agentes que legitimam
a importância de uma pessoa, situação exprimida por Bourdieu na frase “os
circuitos de consagração social serão tanto mais eficazes quanto maior a dis-
tância social do objeto consagrado”.
Casa do Saber

28
Pierre Bourdieu foi um dos maiores pensadores das ciências humanas do século XX,
desenvolvendo trabalhos no campos da antropologia e sociologia e contribuindo para
áreas do conhecimento como educação e cultura.)

Falamos de reconhecimento: todo campo o promove como um troféu e


seu valor só é entendido pelos agentes que jogam o mesmo jogo. A isso
Bourdieu chamou de illusio (derivando o termo da psicanálise e da antrop-
ologia): a obviedade do valor do troféu para os agentes do campo. Um dos
efeitos da socialização do campo é a naturalização do valor do troféu e sua
obviedade faz com que o persigamos como uma decorrência natural de pert-
encimento a um campo específico. Neste sentido, naturalizamos nossa bus-
ca desenfreada por reconhecimento, seja de nossos pares, nossos chefes
(com uma posição superior no campo) ou de outros profissionais de outras
áreas ou empresas, que nos notam a partir de nossa produção.

Essa relação com o trabalho tem nos consumido de forma exagerada, no en-
tanto. Não que seja possível, num passe de mágica, ressignificar e reelaborar
nossas dinâmicas de vida em torno dele, mas a consciência destes proces-
sos pode, sim, nos deixar mais atentos para quando estivermos perdendo o
controle ou nos deixando levar de uma forma que nos prejudique. O Brasil em
especial ainda é um país que carece de atenção em relação à saúde mental
Casa do Saber

e às relações de trabalho, sobretudo no contexto atual em que não há mais a


separação entre o ambiente corporativo e pessoal.

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O filósofo sul-coreano radicado na Alemanha, Byung-chul Han (1959-), reflete
sobre como nos tornamos crentes de que sermos “empreendedores de si”
e autorrealizadores nos livraria de uma exploração em que nossos algozes
somos nós mesmos. Em A Sociedade do Cansaço (2010), Han anuncia como
não vivemos mais numa sociedade de controle e disciplina, que comanda
pelo não, mas em uma sociedade de performance e desempenho, pautada
pelo sim – “sim, eu posso”, “sim, eu devo” – que julga e condena aqueles
que não se adaptam às suas regras. Essa cobrança constante por resultados,
quaisquer que sejam, nos consome sem nos deixar parar. Logo no início da
obra Han anuncia:

“Cada época possui suas enfermidades fundamentais. Desse modo.


temos uma época bacteriológica, que chegou ao seu fim com a de-
scoberta dos antibióticos. Apesar do medo imenso que temos hoje
de uma pandemia gripal, não vivemos numa época viral. Graças à
técnica imunológica, já deixamos para trás essa época. Visto a partir
da perspectiva patológica, o começo do século XXI não é definido
como bacteriológico nem viral, mas neuronal. Doenças neuronais
como a depressão, transtorno de déficit de atenção com síndrome
de hiperatividade (Tdah), Transtorno de personalidade limítrofe (TPL)
ou a Síndrome de Burnout (SB) determinam a paisagem patológica
do começo do século XXI.” (HAN, 2015, p. 7-8)

PARA SABER MAIS:

A SOCIEDADE DO CANSAÇO
Christian Dunker

clique para assistir

Para Han, nem a revolução é possível, já que não há contra quem direcioná-la
Casa do Saber

a não ser nós mesmos. No entanto, uma das saídas que ele propõe é uma
reconexão com a realidade, ressignificando o uso do tempo. Han assumiu
cuidar de um jardim secreto, que o colocava em contato com os aromas,

30
texturas e sensações do mundo real, como relata logo no prólogo do livro
Louvor da Terra:

O trabalho de jardinagem foi para mim uma meditação silenciosa, um


demorarme no silêncio. Era um trabalho que fazia com que o tem-
po parasse e se tornasse fragrante. Quanto mais tempo trabalhava
no jardim, mais respeito sentia pela terra e pela sua inebriante be-
leza. Tenho desde então a convicção profunda de que a terra é uma
criação divina. O jardim transmitiume essa convicção e, mais ainda,
fezme compreender uma coisa que para mim se transformou numa
certeza e assumiu um carácter de evidência. “Evidência” significa
originalmente ver. Vi (HAN, 2020, p. 11)

Quem sabe se retornarmos o olhar para nós e o mundo de outra forma, seja
possível vermos também que há sentido fora desta lógica em que atuamos,
por vezes, contra nós mesmos. Esses exercícios de reconhecimento dos lim-
ites (e do respeito a eles) podem nos direcionar a novas práticas de relação
com o que nos cerca. Vale sempre lembrar de algumas ideias de André
Comte-Sponville (1952-) a respeito de virtudes como a simplicidade e a hu-
mildade, apresentadas em seu Pequeno Tratado das Grandes Virtudes (1995):

A humildade, como virtude, é essa tristeza verdadeira de sermos


apenas nós. E como poderíamos ser outra coisa? A misericórdia
também vale para nós mesmos, temperando a humildade com um
pouco de doçura. Que é necessário contentar-se consigo, é o que
ensina a misericórdia. Mas sentir-se contente consigo mesmo, quem
poderia, sem vaidade? Misericórdia e humildade vão de par e se
completam. Aceitar-se – mas não se iludir (...) A simplicidade é es-
quecimento de si, de seu orgulho e de seu medo: é quietude contra
inquietude, alegria contra preocupação, ligeireza contra seriedade,
espontaneidade contra reflexão, amor contra amor-próprio, verdade
contra pretensão... O eu subsiste nela, é claro, mas como que mais
leve, purificado, libertado (COMTE-SPONVILLE, 2009, p. 156; 170).

Essa percepção das coisas para além de sua utilidade ou benefício, um olhar
atento, pode nos revelar a beleza que esquecemos de encontrar no dia a dia;
a percepção dessa beleza, da singularidade de cada elemento que compõe o
mundo, é uma das coisas que nos alerta para o encanto e o espanto que nos
Casa do Saber

transformam. Quem sabe a simplicidade e a humildade possam nos reeducar


a querer e a nos olharmos – a nós mesmo e aos outros – de forma mais terna.

31
PARA SABER MAIS:

A FELICIDADE É ÚTIL
Clóvis de Barros Filho

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Casa do Saber

32
AULA 3
PARA A SOLIDÃO E O
INDIVIDUALISMO,
A GENEROSIDADE E A
GRATIDÃO
Casa do Saber

33
O filme Dois dias, uma noite (2014), uma produção franco-ítalo-belga
estrelando Marion Cotillard, instantaneamente atraiu atenção, boas críticas e
inúmeras indicações a prêmios do cinema após sua estreia. Parte do sucesso
deve-se à atuação da protagonista, que transmite universos de sentimento
com os menores gestos, recebendo 15 minutos ininterruptos de aplausos
de pé dos espectadores em Cannes. Menos não se esperava de uma pro-
dução dos irmãos Dardenne. Outra possibilidade é que o filme europeu toca
na questão árdua do trabalho e desemprego em pleno 2014, durante uma
das mais profundas crises econômicas da Zona do Euro. Além: a trama se
aprofunda na saúde mental desses trabalhadores, tratando da luta contra a
depressão em meio a aperto monetário. Mas talvez o filme tenha gerado o
impacto que gerou por conta de algo ainda mais singelo – a questão do indi-
vidualismo e do coletivo.

PARA SABER MAIS:

DOIS DIAS, UMA NOITE


Jean-Pierre e Luc Dardonn

clique para assistir

O longa retrata a história de Sandra (Cotillard), funcionária em uma fá-


brica, esposa e mãe de duas crianças pequenas. Depois de afastar-se do
trabalho por alguns meses devido a um quadro de depressão, quando está
prestes a retomar as atividades, ela é informada de que será demitida. Per-
cebendo que era possível manter a produção com menos pessoas, o diretor
da empresa decide oferecer um bônus de 1.000 euros aos 16 trabalhadores
e, em contrapartida, demitir Sandra. A decisão final, contudo, fica a cargo
dos próprios funcionários, mediante votação. A protagonista passa a ter dois
Casa do Saber

dias para convencer seus colegas a votarem em favor da manutenção de seu


emprego, abrindo mão do bônus. Ao menos 9 pessoas precisariam estar dis-
postas a abdicar do pagamento para que ela permanecesse na fábrica, garan-

34
tindo, assim, o sustento de sua família. A trama se desenrola em meio a uma
série de sins, nãos e justificativas para ambos. Percebe-se que Sandra não
tinha muitos amigos no trabalho – quem sabe um dos fatores que contribuiu
para sua depressão? – e que nosso papel junto ao coletivo é mais complexo
do que se imagina.

Sandra está sendo individualista por lutar pela sua posição na fábrica?
Seus colegas que realmente precisam do bônus para não passar necessi-
dade são egoístas? Todo individualismo é ruim? Como navegar o coletivo
mantendo a individualidade? Como lidar melhor com a solidão, principalmen-
te quando ela aparece mesmo em meio à multidão? O isolamento nos torna
mais egoístas? As filosofias de Epicuro e de Baruch Espinosa, assim como a
virtude da generosidade, podem conduzir a possíveis saídas.

Antes de mais nada, é preciso estabelecer que viver é, invariavelmente,


relacionar-se com o mundo. Como afirma o professor Clóvis de Barros Filho:

Quando você encontra alguma coisa e entra em relação com ela, o


seu corpo se transforma, e então você sente. Ora, aquilo que você
sente dependeu de duas coisas: primeiro, de você. Você sente o
que sente porque você é o que é, tem o corpo que tem, as células,
as expectativas, as ideias que tem. A outra coisa que influenciou no
que você sentiu é o mundo que você encontrou. Então, sua sen-
sação é o resultado do encontro. Depende das duas coisas: de você
e do mundo. E o que isso significa? Significa que, se trocarmos o
mundo, você sentirá outra coisa. Isso você já deve ter percebido.
(BARROS FILHO, C., 2017, p. 24.)

Estes encontros com o mundo podem ser observados de diferentes


formas. Para Aristóteles, por exemplo, o homem atinge o estado de felicidade
atuando racionalmente e vivendo em comunidade. Este bem supremo (como
o descreve em Ética a Nicômaco [300 a.C.]) está presente na vida ética do
homem, que necessita da pólis para viver de forma plena e feliz (a vida políti-
ca). Na cosmologia aristotélica, cada coisa tem como essência a sua função
(ergon) e uma coisa é boa quando realiza bem a sua função. A vida bem vi-
vida, segundo o filósofo, ocorre em um cosmos finito, harmonioso, em que
cada ser busca realizar sua função/vocação dentro de uma hierarquia, procu-
rando a felicidade através da vivência com os outros. Ou seja, há uma certa
Casa do Saber

rejeição do individualismo em prol de um todo maior e superior.


Contudo, como escreve Clóvis, a alegação de Aristóteles de que a racio-

35
nalidade é a função humana comum a todos é controversa. “Muitos acham
que os seres humanos são por demais complexos para terem uma única fun-
ção característica, comum a todos. Outros duvidam que essa função seja a
racionalidade” (FILHO, 2017, p. 108). Outros, como o filósofo e sábio Epicuro,
enxergam a relação com o mundo e com os outros de forma diferente.

Nascido em 341 a.C., ele foi o fundador de uma das escolas filosóficas
mais importantes da época, porque as questões da existência trabalhadas
pelos grandes Sócrates, Platão e Aristóteles, que vieram antes dele, perde-
ram um pouco o sentido em um mundo constantemente assolado por guerras
- a instabilidade no Mar Egeu após a morte de Alexandre. O érgon passa a ser
questionado quando o mundo é aleatório, caótico e não se sabe como será o
dia seguinte.

Neste contexto, Epicuro se mudou para Atenas aos 35 anos, onde com-
prou uma casa com um quintal e passou a dar aulas de filosofia. A escola pas-
sa a ser conhecida como O Jardim, e o sábio começou a se autoproclamar
terapeuta do espírito, médico das almas e cirurgião das paixões. Sua máxima
era a busca pela felicidade e pelo prazer, o que erroneamente fez com que
ganhasse fama de hedonista e depravado. Na verdade, para o filósofo, o prin-
cipal prazer da vida é a não perturbação da alma. Ausência de sofrimento. O
controle das emoções e dos encontros com o mundo evitariam extremadas
turbulências. Por isso, ele tinha certa desconfiança da vida política aristoté-
lica, prezando pela primazia das próprias sensações em detrimento de um
pertencimento a uma unidade maior. Ou melhor, Epicuro considerava que a
unidade maior a ser preservada era a própria vida.

PARA SABER MAIS:

UMA REFLEXÃO
SOBRE O PRAZER
Maurício Marsola

clique para assistir


Casa do Saber

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Isso não significa, porém, a ausência de relações com o outro. A amiza-
de era um dos principais valores do epicurismo. Para além do respaldo con-
tra injustiças e agressões que uma rede de conexões gera ao buscar o bem
estar de todos, a philia de Epicuro passa a ser um prazer em si. O sábio prega
a eleição, em torno de afinidades, de um círculo de amigos, pessoas que es-
colhemos estar próximas e que nos deixam felizes, para que a amizade atinja
seu brilho máximo. Uma de suas máximas é que, por mais que muitas vezes
possa se originar de seus benefícios, “toda amizade deve ser buscada por
si mesma (...) Não age como amigo nem quem em toda ocasião procura tirar
proveito, nem quem nunca entra em contato; aquele negocia a retribuição
de seus favores; este se priva de boa expectativa para o futuro” (em Epicu-
ro: Máximas Principais (2010), de João Quartim de Moraes). Dessa forma, o
Jardim propunha uma espécie de conservação da individualidade – a preser-
vação da própria vida – sem a geração de uma comunidade individualista.

O epicurismo herdou de Aristóteles a questão da busca pela felicidade


como sentido da vida, mas ao contrário da perspectiva cósmica, adotou uma
perspectiva material (ou individual), em conversa com o atomismo de Demó-
crito. Considerado o último grande filósofo da natureza, o pré-socrático pre-
sumiu que todas as coisas eram constituídas por uma infinidade de partículas
minúsculas, invisíveis, cada uma delas sendo eterna e imutável – o átomo,
que significa indivisível, porque sustentaria a natureza de forma a não se di-
luir. (Se um corpo morre e se decompõe, seus átomos se espalham e podem
ser reaproveitados para dar origem a outros corpos.) Além disso, Demócrito
não acreditava numa força ou numa inteligência que pudessem intervir nos
processos de transformação do mundo. Não havia intenção por detrás do
movimento dos átomos: todas as causas seriam naturais, inerentes à própria
coisa. E, por fim, o filósofo enterrou o dualismo corpo versus alma, afirmando
que a alma também eram átomos e, portanto, não imortal. Tudo é corpo, sen-
sações e transformações provocadas pelo mundo e no mundo. O prazer de
Epicuro (hedonê) também conversa com as sensações já presentes no ato-
mismo.

Mas então o epicurismo é, em sua essência, individualista, porque prevê


Casa do Saber

37
Afresco na Tumba do Mergulhador, em Pesto, com cena de simpósio, século 5º a.C.

Para começar a responder essas questões, é possível avançar quase dois


séculos e recorrer a Baruch de Espinosa (Amsterdã, 1632 - Haia, 1677).
Após uma formação judaica tradicional no seio de uma família de cristãos
novos portugueses, foi excomungado da comunidade aos 24 anos por con-
ta de suas ideias, principalmente a respeito de Deus – foi um dos primeiros
grandes críticos que apontaram as diversas autorias de textos do Antigo
Testamento. O problema filosófico principal de Espinosa era a ética, já que
acreditava serem ilusórios o livre-arbítrio e valores absolutos. Outras de suas
propostas mais importantes incluem que Deus só existe no mundo filosófico
e que a alma não é imortal, mas uma ideia do corpo, ambas diferentes ex-
pressões da mesma realidade. Seu projeto foi a busca de algo que possibili-
tasse uma alegria contínua originada de um conhecimento verdadeiro (união
da mente com a Natureza, identificada com Deus em sua obra). Neste con-
texto, como viver melhor e encontrar alegria em relação com o mundo?

Espinosa foi o pensador da virtude e da potência,


dos afetos e da alegria, de Deus e da Razão.
Casa do Saber

Levantou-se contra o racionalismo de Descartes,


mandamentos religiosos e o despotismo dos
governos e dentro de cada um de nós

38
Para Espinosa, os seres humanos são seres naturais, em complexa rede
de causalidades materiais. Ou seja, sua concepção não aceita o livre-arbítrio,
porque nunca haveria a possibilidade de agir de forma diferente daquela que
é necessário ser – a existência é apenas como poderia ser. O livre-arbítrio
é só uma ilusão criada porque os humanos não conseguem observar tudo
aquilo que os afeta, um consolo para explicar porque agem da forma que
agem e porque estão no mundo. Só há necessidade, não possibilidade. Só
há o real (também herança forte de Demócrito). A única coisa verdadeiramen-
te pertencente ao humano seria a potência de agir.

Toda ética de Espinosa é uma ética da potência. Os seres existem para


proteger sua natureza e conservá-la em alta. É o que o filósofo se refere
como conatus: a inclinação inata de uma coisa (a mente, a matéria, ou uma
combinação de ambos) para continuar a existir e se aprimorar. Se a vida é
uma série de encontros com o mundo, estes encontros podem ser felizes ou
tristes, potencializadores ou apequenadores, e a ética espinosista indica que,
na plena manifestação do ser (única liberdade possível), a tendência é que
os humanos escolham as relações potencializadoras: as paixões felizes (em
oposição às paixões tristes). Podem ocorrer enganos na avaliação das rela-
ções, sim, mas esta não deixa de ser a tendência. Nosso corpo funciona pe-
las leis da natureza, mas nossa alma não, e para a compreensão das causas
dos afetos e paixões é preciso partir da causa para o efeito, não o contrário.
Quanto mais as paixões são racionalmente compreendidas, maiores serão as
chances de transformá-las em afetos ativos (que nascem da razão). Qualquer
projeto ético que pretenda abolir as paixões é, para Espinosa, uma ignorância
completa.

PARA SABER MAIS:

O QUE É O AFETO? UMA VISÃO


A PARTIR DE SPINOZA
Luís Mauro Sá Martino

clique para assistir


Casa do Saber

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Estaríamos vivendo, então, em meio a uma guerra de desejos? Cada in-
divíduo age e escolhe da forma que é melhor para si, de modo a realizar sua
potência? O conatus só seria pleno em conflito individualista? Espinosa diz
que não. Na verdade, viver em civilização facilita a proteção da natureza (ou
individualidade), de cada ser, já que não estarão constantemente expostos
às violências (ou turbulências) de uma guerra de todos contra todos. A ver-
dadeira luta social é a briga para decidir o valor que as coisas devem ter, em
relação às quais seres em socialização serão educados para sentir a potência
aumentar ou diminuir – mas isso é outra história. O ponto é que o ser sempre
deve agir de forma a aumentar seu conatus, e essa é a única maneira que se
poderia agir. Assim, a liberdade se manifesta para além da autodeterminação
individual e passa a estar dentro da coletividade: na plena manifestação do
ser, tal como ele só poderia ser, em meio a uma vasta rede material e natural
de causalidades.

Mas esta reflexão traz um novo problema. Sendo a vida uma série de encon-
tros do eu com o mundo, duas vidas jamais serão iguais. Ou melhor, jamais
terão qualquer ponto de coincidência. Clóvis escreve:

“É óbvio também que, quando um outro corpo que não o seu encon-
tra a mesma coisa que você encontra, esse outro, por ser diferente
do seu, sente outra coisa. Portanto, um erro a não cometer: imaginar
que os outros sentem o mesmo que você sente quando encontram
o mesmo mundo. Na verdade, sentimos exclusivamente, somos ilhas
afetivas. Ninguém sente o que sentimos porque ninguém tem o cor-
po que temos.” (BARROS FILHO, C., 2017, p. 25.)

Somos ilhas afetivas, o que pode – se não deve – gerar uma sensação de
profunda solidão. Um estudo publicado em janeiro de 2021 na revista científi-
ca The Lancet revelou os resultados de um estudo longitudinal que avaliou
a depressão em adultos de 2004 a 2017, descobrindo que “independente-
mente de outras experiências sociais, maiores níveis de solidão no início do
estudo foram associados a maiores níveis de gravidade dos sintomas de de-
pressão durante 12 anos de acompanhamento entre adultos com 50 anos ou
mais” (tradução livre). O mais preocupante, talvez, seja saber que a solidão
pode ocorrer mesmo quando se está rodeado de pessoas, assim como San-
dra, de Dois Dias, Uma Noite, caiu em depressão mesmo com um marido e
dois filhos que a amavam e conviviam com ela. A solidão é diferente de isola-
Casa do Saber

mento. Não é um estado, mas a essência da condição humana. “(...) quando


alguém faz questão de que você sinta o que ela sente, você vivencia a incon-

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veniência disso na pele porque não sente o que ela sente”, escreve Clóvis.
Ou seja, para uma vida boa, é preciso levar a solidão em consideração. A
felicidade deve estar desconectada da necessidade de que o outro sinta o
mesmo que você sente.

PARA SABER MAIS:

A IMPORTÂNCIA DE ESTAR SÓ
Maria Homem

clique para assistir

Não é tarefa fácil, afinal, pedidos internos e externos por empatia e “colo-
que-se em meu lugar” correm a torto e a direito, especialmente em uma
sociedade que estimula ações individuais e individualistas. É o que diaria-
mente é pedido a amigos, família, parceiros e parceiras. É o que Sandra pede
quando explica que odeia induzir que seus colegas deixem o bônus de lado,
mas que precisa muito do emprego, e o que os colegas que recusam pedem
quando afirmam que o bônus é essencial para a própria sobrevivência. Um
possível caminho para começar a aplacar essa sensação de solidão é o ex-
ercício das virtudes da generosidade e da gratidão.

“A generosidade é a virtude do dom. Não se trata mais de “atribuir


a cada um o que é seu”, como dizia Espinosa a propósito da justiça,
mas o de lhe oferecer o que não é seu, o que é de quem oferece e
que lhe falta. (...)
A generosidade parece dever mais ao coração ou ao temperamento;
a justiça, ao espírito ou à razão. Os direitos humanos, por exemplo,
podem constituir objeto de uma declaração. A generosidade não:
trata-se de agir, e não em função de determinado texto, de determi-
nada lei, mas além de qualquer texto, além de qualquer lei, em todo
Casa do Saber

caso humana, e unicamente de acordo com as exigências do amor,


da moral ou da solidariedade. (...) só é verdadeiramente generosa
desde que vá além do interesse.” (COMTE-SPONVILLE, A., 2016)

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Generosidade é uma virtude que prevê abrir mão de algo importante, não
por lei ou pela razão, mas pela moral e contra os interesses. Prevê também
o exercício (impossível, como determinado anteriormente) da alteridade. Já
a gratidão é o prazer resultante da generosidade. “A gratidão nada tem a dar,
além do prazer de ter recebido”, escreve Comte-Sponville. “Agradecer é dar;
ser grato é dividir. Esse prazer que devo a você não é apenas para mim. Essa
alegria é a nossa. Essa felicidade é a nossa. O egoísta pode regozijar-se em
receber. Mas seu regozijo é seu bem, que ele guarda só para si.” É o ex-
ercício de compartilhar o bem que alguém fez a você com essa mesma pes-
soa. Exercícios porque são constantes processos e esforços. E, talvez, nesta
constância seja possível aplacar minimamente a dor da solidão permanente e
navegar o individualismo para uma vida bem vivida.

PARA SABER MAIS:

A LIBERDADE É INDIVIDUAL
OU COLETIVA?
André Martins

clique para assistir


Casa do Saber

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AULA 4
PARA A DESIGUALDADE E A
DISCRIMINAÇÃO, O RESPEITO
Casa do Saber

43
A desigualdade é um tema multidimensional. Ainda que comumente ela
seja pensada e entendida como uma questão econômica – uma desigualda-
de de renda ou de distribuição de riquezas -, a desigualdade manifesta seus
desdobramentos em diversas frentes da vida pública, como educação, saú-
de, segurança e saneamento, por exemplo. Por isso, o campo de estudos
sobre desigualdades se trata assim, no plural, e é bastante rigoroso quanto à
especificação do objeto de estudos – de que tipo de desigualdade estamos
falando?

Na filosofia, a desigualdade frequentemente se vincula a discussões


sobre a justiça, um tema ainda mais amplo. Cada época teve sua concepção
sobre o que é justiça de acordo com cada contexto. Uma das produções
mais famosas à qual ainda nos referimos quando se trata do tema é o Discur-
so Sobre os Fundamentos e as Origens da Desigualdade Entre os Homens,
escritor por Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) em 1754, como resposta a
um concurso da Academia de Belas Artes de Dijon. Rousseau ficou em se-
gundo lugar, porém pouco se sabe a respeito do texto vencedor, de autoria
de François Xavier Talbert.

Um ponto importante a se observar é que a pergunta que pautou o con-


curso da Academia se referia a qual seria a origem da desigualdade entre os
homens e se ela seria “autorizada pela lei natural”, supondo que existisse
uma questão de ordem natural a respeito das diferenças entre nós. Como diz
o próprio Rousseau no prefácio de seu discurso, seriam os homens “natu-
ralmente tão iguais entre si quanto o eram os animais de cada espécie”. Para
ele, haveria dois tipos de desigualdade: uma natural, física, estabelecida pela
natureza nas diferenças de idade, saúde, disposições do corpo e do espírito;
o outro tipo seria uma desigualdade moral ou política, fruto de convenções
e consentimento dos homens entre si, manifestas em relações de poder e
riqueza em detrimento da dominação e da pobreza de outros:

Não se pode perguntar qual é a fonte da desigualdade natural,


porque a resposta se encontraria enunciada na simples definição da
palavra. Ainda menos se pode procurar se haveria alguma ligação
essencial entre as duas desigualdades, pois isso equivaleria a per-
guntar, por outras palavras, se aqueles que mandam valem necessar-
iamente mais do que os que obedecem, e se a força do corpo e do
espírito, a sabedoria ou a virtude, se encontram sempre nos mesmos
Casa do Saber

indivíduos em proporção do poder ou da riqueza: questão talvez boa


para ser agitada entre escravos ouvidos por seus senhores, mas que
não convém a homens razoáveis e livres, que buscam a verdade.
(ROUSSEAU, 2008, p. 43).
44
Jean-Jacques Rousseau, foi um importante filósofo e teórico político, considerado um
dos principais filósofos do Iluminismo (embora discordasse da glorificação da ciência

Um dos argumentos principais de Rousseau é a de que a transição des-


se estado de natureza para a sociedade civil – o que ele classifica como o
direito assumindo o lugar da violência e a natureza dando lugar à lei – foi o
elemento responsável pelo surgimento das desigualdades, inexistentes antes
disso. Nosso desvio do mundo natural, propiciado por uma série de variáveis,
direcionou nossa espécie a uma relação de necessidades, quando não de
dependência, de uns em relação aos outros. Não que Rousseau advogasse
um retorno ao estado de natureza, mas evidencia, no entanto, como apesar
de nossa razão, a transformação de um mundo natural em sociedade civil se
pautou a partir dessas dinâmicas de servidão e dominação.

Logo no início da segunda parte de seu discurso, Rousseau traz uma de


suas afirmações mais famosas antes de refletir sobre o processo de transição
entre o estado de natureza e a sociedade civil. Partindo da alegação de que a
Casa do Saber

propriedade privada é uma das origens das desigualdades entre os homens,


Rousseau propõe que essas desigualdades acabam legitimadas pelas insti-
tuições que surgem com o desenvolvimento e o progresso de nossas facul-
dades e as leis – evocando inclusive a alegação de John Locke (1632-1704),

45
O primeiro que, ao cercar um terreno, teve a audácia de dizer isto
é meu e encontrou gente bastante simples para acreditar nele foi o
verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras e
assassinatos, quantas misérias e horrores teria poupado ao gêne-
ro humano aquele que, arrancando as estacas e cobrindo o fosso,
tivesse gritado a seus semelhantes: “Não escutem esse impostor!
Estarão perdidos se esquecerem que os frutos são de todos e a terra
é de ninguém!”. Mas é muito provável que as coisas já houvessem
chegado então ao ponto de não poderem mais durar como eram. A
ideia de propriedade, dependendo de muitas ideias anteriores que
só puderam nascer sucessivamente, não se formou de repente no
espírito humano. Foi preciso fazer muitos progressos, adquirir muita
indústria e muitas luzes, transmiti-las e aumentá-las de geração em
geração, antes de se chegar a esse último termo do estado de na-
tureza. (ROUSSEAU, 2008, p. 80)

O desenvolvimento de ideias e teorias sobre a desigualdade e a justiça


seguiu como uma das principais áreas da filosofia moral e política. Quanto
mais a sociedade civil se desenvolveu e se multiplicou, mais as questões
concernentes à construção de uma vida justa ocuparam as atenções e as
pautas da intelectualidade. As teorias utilitaristas de Jeremy Bentham (1748-
1832) e John Stuart Mill (1806-1873) são geralmente um ponto de parada
obrigatório nesta questão.
Casa do Saber

John Stuart Mill foi um dos mais influentes pensadores do século XIX, responsável por
lançar as bases da revisão do utilitarismo como ideologia suprema.)

46
Bentham traduziu o princípio da utilidade como sendo um reconheci-
mento da sujeição humana aos dois afetos naturais que nos regem: a dor e o
prazer. Na abertura de Introdução aos Princípios da Moral e Legislação, es-
crito em 1789, ele reconhece que qualquer tentativa de negar a dor e o pra-
zer apenas confirmam e demonstram como elas governam todas as nossas
ações. A felicidade deveria, portanto, ser construída sobre as bases da razão
e da lei, ordenamentos que proporcionariam ações adequadas e distantes
das paixões. Desta forma, Bentham elenca algumas definições do utilitarismo,
entre elas:

O termo utilidade designa aquela propriedade existente em qualquer


coisa, propriedade em virtude da qual o objeto tenda a produzir ou
proporcionar benefício, vantagem, prazer, bem ou felicidade (tudo
isto, no caso, presente, se reduz à mesma coisa), ou (o que no-
vamente equivale à mesma coisa) a impedir que aconteça o dano,
a dor, o mal, ou a infelicidade para a parte cujo interesse está em
pauta; se esta parte for a comunidade em geral, tratar-se-á da felici-
dade da comunidade, ao passo que, em se tratando de um indivíduo
particular, estará em jogo a felicidade do mencionado indivíduo.
(BENTHAM, 1979, p.4)

Essa primeira definição traduz o princípio de utilidade como uma disposi-


ção a se aumentar o prazer e diminuir a dor, garantindo o máximo de bem ao
maior número de pessoas. Aos governantes, essa atribuição se traduziria em
Casa do Saber

duas ações: punir e recompensar. Igualmente propõe Mill em O Utilitarismo


(1863):

47
O fim último, em relação ao qual e em função do qual todas as out-
ras coisas são desejáveis (independentemente de estarmos a con-
siderar o nosso próprio bem ou o bem das outras pessoas), é uma
existência tanto quanto possível livre de dor e, também na medida do
possível, rica em deleites no que respeita à quantidade e à qualidade
- e o teste da qualidade, bem como a regra para a confrontar com
a quantidade, é a preferência sentida por aqueles que, em virtude
das suas oportunidades de experiência, às quais têm de se acres-
centar os seus hábitos de consciência e observação de si próprios,
dispõem dos melhores meios de comparação. Sendo isto o fim da
ação humana, é necessariamente, segundo a opinião utilitarista,
também o padrão da moralidade. Este padrão define as regras e os
preceitos da conduta humana. cuja observância pode assegurar aos
seres humanos, no maior grau possível, uma existência como a que
descrevemos - e não só a eles, mas, na medida em que a natureza
das coisas o permite, a todas as criaturas sencientes. (MILL, 2005,
p. 53)

Mill vai além ao tratar da relação entre justiça e utilidade. Para ele, a ideia
de igualdade se relaciona à imparcialidade, que aparentemente inexiste nas
relações de poder ou na distribuição das riquezas. Desejamos a igualdade
desde que ela não interfira em nossas pretensões, quando entendemos que
algumas desigualdades são aceitáveis. As máximas da igualdade e da impar-
cialidade devem ser preceitos da justiça “quando nenhum dever mais forte o
proíbe” – o igual direito de cada pessoa à felicidade implica também a igual-
dade de direitos aos meios para a felicidade, “exceto na medida em que as
inevitáveis condições da vida humana, bem como o interesse geral, impõem
limites a essa máxima”. Para Mill, todos têm direito a um tratamento igual, ex-
ceto quando uma “convenção social reconhecida” exige o inverso – daí sua
asserção de que achamos certas injustiças tirânicas esquecendo que tolera-
mos outras desigualdades igualmente condenáveis.

Visões mais próximas do nosso tempo vão levantar ideias como a de


equidade, a exemplo de John Rawls (1921-2002), que considerou os prin-
cípios da liberdade e igualdade como sendo fundamentais para a ideia de
justiça, propondo que decisões como ações afirmativas seriam socialmente
mais justas. Ao considerar que todas as diferenças têm raízes históricas e
sociais, as diferenças devem operar a favor de todos já que, em condições
Casa do Saber

adequadas, seria possível definir princípios de justiça a partir de condições


de igualdade. Esses desdobramentos e considerações se encontram em ou-
tras teorias, de nomes como Amartya Sen (1933-), Michael Sandel (1953-) ou

48
Boaventura de Sousa Santos (1940-), por exemplo, este último denunciando
como as iniciativas de combate às desigualdades, apesar de se pretenderem
universalistas, surgem para combater as consequências da ordem social insti-
tuída, não suas causas.

No Brasil temos assistido a uma série de iniciativas de combate às desi-


gualdades. Com certas noções clássicas de nossa identidade nacional su-
postamente harmoniosa sendo colocadas em xeque, muitas das situações
que eram consideradas normais vão passando por ressignificações – de ex-
pressões cotidianas ao reconhecimento de minorias em cargos de relevância
e posições culturais, intelectuais e sociais de destaque.

Desde o pacto firmado em 1988 na Constituição Federal, conhecida pelo


nome de “Constituição Cidadã”, foram estabelecidos uma série de princípios.
Como objetivos da República, “a construção de uma sociedade livre, justa e
solidária” e “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualda-
des sociais e regionais” (Art. 3º); como direitos e garantias fundamentais, a
de que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviola-
bilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à proprieda-
de” (Art. 5º), além de serem “direitos sociais a educação, a saúde, a alimen-
tação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência
social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desampara-
dos” (Art. 6º). Estas são apenas algumas das premissas básicas pelas quais
deveríamos pautar nossas vivências por aqui.

No entanto, atingimos o maior nível desigualdade das últimas duas déca-


das, com uma concentração em que quase metade da riqueza do país está
nas mãos de 1% da população. Essa não é uma característica exclusiva do
Brasil, mas uma tendência mundial. A diferença é que ainda nos considera-
mos uma nação harmoniosa, apesar dos conflitos evidentes que coexistem
no país, e iniciativas de ações afirmativas que visam o combate às desigual-
dades estruturais do país são entendidas como projetos que reforçam estas
mesmas desigualdades.
Casa do Saber

49
PARA SABER MAIS:

AULA 3 | OS LEGADOS DA
DESIGUALDADE.
O QUE PODEMOS FAZER?
Thiago Amparo

clique para assistir

Em Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil (2011), Sueli Carneiro


afirma que:

As políticas de ações afirmativas têm sido praticadas para atender a diferentes seg-
mentos da população que por questões históricas, culturais ou de racismo e discriminação
foram prejudicados em sua inserção social e participação igualitária no desenvolvimento
(...) no Brasil as ações afirmativas patinam em um debate escapista, fundado na defesa da
suposta meritocracia, que esconde o desejo de permanência do status quo, o qual, histo-
ricamente, produz privilégios, além de reproduzir e ampliar as desigualdades e retardar o
desenvolvimento. (CARNEIRO, 2011, p. 27-28)

Dessa forma, entende-se que no Brasil e em outros países com caracte-


rísticas históricas semelhantes, a desigualdade é um problema estrutural, tal
qual entendido no trabalho de Silvio Almeida, Racismo Estrutural (2019), ao
tratar do racismo no Brasil – estrutural porque “é um elemento que integra a
organização econômica e política da sociedade”. Esse tipo de estrutura ten-
de a favorecer e perpetuar sua reprodução ao garantir a uma parcela muito
exclusiva da população uma facilidade de acesso a recursos e serviços. Há
uma observação contundente sobre isso em Uma História de Desigualdade:
A concentração de renda entre os ricos no Brasil 1926-2013 (2018), de Pedro
Ferreira de Souza:

Em condições minimamente democráticas, a concentração no topo


Casa do Saber

apresenta forte caráter inercial, pois os mais ricos dispõem de re-


cursos políticos e econômicos que facilitam a sua organização em
grupos capazes de exercer poder de veto ou barganhar em posições

50
vantajosas. Com isso, a redução prolongada da desigualdade via
reformas graduais e duradouras tem grande dificuldade de sair do
papel. Ao mesmo tempo, o próprio jogo democrático e o perigo de
desorganização social tornam altamente improvável a adoção de
medidas mais radicais e imediatas. Dessa forma, as mudanças na
concentração de renda ocorrem sobretudo em momentos de cri-
se e ruptura, que ocasionalmente fornecem a determinados atores
a capacidade temporária de reformar profundamente o arranjo in-
stitucional vigente, alterando a distribuição dos ativos e suas taxas
de retorno (...) Apesar de todas as conquistas desde a Constituição
Federal de 1988, é no mínimo prematuro falar em um novo contrato
social com baixa tolerância à desigualdade (...) muitos privilégios
foram mantidos ou reforçados, e algumas dimensões estruturais tam-
pouco passaram por grandes transformações. No limite, é razoável
postular que a democracia pode servir mais para conter o aumento
da nossa desigualdade do que para reduzi-la. (SOUZA, P.H. G. F.,
2018, p. 377-379)

PARA SABER MAIS:

A REFLEXÃO DO
ESTADO RACISTA

Sílvio Luiz de Almeida

clique para assistir

A desigualdade é, de fato, um tema multidimensional, como mencionado no


início. Seja pela sua ramificação em diferentes frentes da vida pública, seja
pela sensibilidade dessa relação com o outro, diferente, que foi uma das
preocupações principais de pensadores contemporâneos como Jacques
Derrida, Gilles Deleuze, Félix Guattari etc. Quando há a menção à virtude do
Casa do Saber

respeito, não é apenas o respeito entendido como essa postura de esforço


de compreensão às particularidades e subjetividades estranhas a nós, mas
sobretudo aquele que dialoga com as condições e as trajetórias de cada

51
indivíduo ou grupo. Um respeito de reconhecimento, que o filósofo ganense
Kwame Anthony Appiah (1954-) descreveu ao afirmar que “porque uma éti-
ca da autenticidade demanda que expressemos o que centralmente somos,
posteriormente demanda o reconhecimento na vida social como mulheres,
homossexuais, negros, católicos. Porque não há razão aceitável para tratar
mal pessoas desse tipo, e porque a cultura continua a prover imagens degra-
dantes deles apesar disso, ela nos obriga a realizar trabalhos culturais para
resistir a estereótipos, a desafiar as ofensas, a suspender as restrições”.

PARA SABER MAIS:

DESIGUALDADE GLOBAL
TV Folha

clique para assistir


Casa do Saber

52
AULA 5
PARA O ÓDIO E A INTOLERÂNCIA,
A TOLERÂNCIA E A COMPAIXÃO
Casa do Saber

53
No fim de 1894, Alfred Dreyfus, capitão francês de origem judaica, foi
condenado injustamente por espionagem e alta traição. A República Fran-
cesa emitiu uma sentença de prisão perpétua na Ilha do Diabo, acusando-o
de supostamente entregar documentos sigilosos ao Império Alemão – em
um contexto favorável ao antissemitismo e ao ódio aos germânicos, após
a anexação da Alsácia-Lorena em 1871. Conhecido como “Caso Dreyfus”, o
acontecimento eletrizou a sociedade francesa a ponto de dar origem a novas
palavras: dreyfusard, que designa quem defendia sua inocência, e antidreyfu-
sard, para os que o consideravam culpado. Do francês Émile Zola ao brasileiro
Rui Barbosa, o episódio mobilizou personalidades que se posicionaram no
debate com artigos, discursos e abaixo-assinados, entre os quais se destaca
o J’Accuse...! de Zola.

Este caso é frequentemente considerado o símbolo universal da iniqui-


dade em nome da razão de estado, do ódio e da intolerância, especialmente
por ter se passado em território francês (símbolo do Iluminismo, da civiliza-
ção e modernização). O jornalista austro-húngaro Theodor Herzl, por exem-
plo, tendo escolhido a França como lar em detrimento da terra-natal antisse-
mita, escreveu posteriormente em seu livro O Estado Judeu (1986): “(...) Se a
França – bastião da emancipação, do progresso e do socialismo universalista
– pode se deixar levar por um turbilhão de antissemitismo e deixar a multidão
parisiense cantar ‘Morte aos judeus!’, onde ainda podem estar seguros, se
não em seu próprio país? A assimilação não resolverá o problema, porque
o mundo gentio não o permitirá, como o caso Dreyfus demonstrou tão cla-
ramente”. Se o bárbaro é aquele que exclui o outro, enquanto o civilizado é
aquele que aceita o outro na sua diferença e autenticidade, por que nos tor-
namos bárbaros, apesar de civilizados? O ódio é inerente à natureza humana,
sendo a separação do Outro o único caminho possível? Como lidar com o
diferente que nos desagrada e por que esses sentimentos vêm à tona? Como
se tornar quem se é e, ao mesmo tempo, aceitar quem os outros são?

Diz-se que vivemos em meio à uma cultura do ódio, ideia muito associa-
da aos discursos de ódio propagados de forma vertiginosa nas redes sociais.
Em 2019, o jornalista e escritor Ricardo Viveiros publicou no jornal Folha de
São Paulo:

“Fomos divididos em dois grupos: contra e a favor. E se perguntar-


Casa do Saber

mos de que ou quem, os militantes nem saberão dizer. A tecnologia,


criada para aproximar pessoas pelos telefones celulares, é utilizada
para acirrar ânimos, promover discórdia, gerar conflitos. Jogar uns

54
contra outros. Todos os dias recebemos vídeos de pessoas sen-
do ofendidas, agredidas, acuadas por suas posições ideológicas.
Que síndrome é essa que faz humanos perderem a calma, atacarem
semelhantes? São centenas de falsas notícias, imagens montadas,
cenas antigas repaginadas, versões de fatos causando reações
imprevisíveis. Erros do passado lembrados no presente para destruir
o futuro. Violência gera violência, que gera violência... E não acaba
mais. Acaba sim, em tragédia, como registra a história.” (VIVEIROS,
R., 22/9/2019)

PARA SABER MAIS:

MALDADE, CRUELDADE,
PERVERSIDADE
Luíz Hanns

clique para assistir

Contudo, a ideia de cultura do ódio existe há muito mais tempo que a inter-
net. A filósofa e cientista política alemã Hannah Arendt (Linden, 1906 - Nova
York, 1975) é uma das autoras-referência sobre o tema. Sua obra foi marcada
pelo corte das duas Grandes Guerras, assim como do totalitarismo nazista e
do exílio nos Estados Unidos, após perder a cidadania em 1937. Não à toa,
desenvolveu um modo crítico de olhar para a sociedade pensando em liber-
dade, na banalidade do mal e na ideia de vida humana. Ao experienciar o ódio
gestado pelo Partido Nazista, percebeu que viver sob constante ameaça não
é viver, e que não estar submetido a leis (tornar-se apátrida) significa uma
ausência absoluta de direitos e garantia de proteção.

É em uma de suas principais obras, As Origens do Totalitarismo (1951), que


Arendt procura responder: por que o que é diferente tem o potencial de
despertar ódio ou medo nos seres humanos? Ou até: por que odiamos? Ao
Casa do Saber

contrário do senso-comum sobre o ódio ser “cego”, o nazismo possuía uma


curiosa razão. O ódio tinha, e tem, função na sociedade e a intolerância se
relaciona diretamente ao poder.

55
PARA SABER MAIS:

RAÍZES DA INTOLERÂNCIA
Pedro de Santi

clique para assistir

Não é preciso viver em um regime totalitário para odiar ou ser odiado,


mas é um bom exemplo para começar a entender o funcionamento deste
afeto. O totalitarismo se define como um regime de estado no qual todas as
atitudes e pensamentos são geridos, burocratizados e controlados por um
governo que se apresenta como a realização de uma utopia. Existe uma ên-
fase no todo em detrimento do indivíduo, não há ideia de lei, moral, ou bem
público, e o sistema se justifica em nome da ideologia que o sustenta. Nes-
te regime, não há espaço para dissenso. Tudo o que se faz é ideológico, ou
ideologizado. E, sendo a única coerência a manutenção do poder do estado,
ninguém tem certeza de nada – o terror como essência de governo –, geran-
do uma desagregação informacional e política dos cidadãos. A pergunta é:
como garantir o funcionamento deste sistema? O que azeita as engrenagens
são os inimigos (o outro, a ser exterminado). Para infundir o terror, é preciso
de uma ameaça – ainda melhor se for difusa –, transformando o estado em
protetor.
Ou seja, o totalitarismo instrumentaliza um afeto que é inerente ao ser
humano, segundo a psicanálise. O ódio se conecta diretamente aos traços
excessivamente identitários, individualistas e narcísicos da sociedade con-
temporânea. A cultura do ódio aumenta a percepção subjetiva do tamanho
desta hostilidade, fazendo com que o outro torne-se um estranho, que não
deveria ter direito à existência. A destrutividade é estruturante do ser – ou vai
para dentro, ou para fora – e é obtendo uma resistência externa que se des-
cobre o outro. É fundamental que exista esse jogo de força e contenção. O
ódio em si não é problemático, e sim a atuação desse ódio. Colocar o outro
no lugar do mal e, por conseguinte, o eu no lugar do bem é problemático.
Casa do Saber

Mas em um regime onde o outro está incapacitado de conter qualquer tipo


de força, a atuação é livre. Onde não há ideia de moral, já que não há coerên-
cia, é impossível enxergar o bem e o mal que existe tanto dentro de si quanto

56
do outro. É necessário que exista uma educação para a empatia, tanto para
reduzir atuações de ódio em democracias quanto para evitar a deturpação de
regimes.
Isso se relaciona a outro conceito famosamente explorado por Arendt
em Eichmann em Jerusalém (1963), a banalidade do mal. Em 1960, Adolf Ei-
chmann foi capturado na cidade de Buenos Aires pelo Mossad (Instituto para
Inteligência e Operações Especiais de Israel) e levado até Jerusalém, para o
que deveria ser o mais midiático julgamento de um nazista desde o tribunal
de Nuremberg. O militar era responsável gerir a logística das deportações em
massa dos judeus para os guetos e campos de extermínio das zonas ocupa-
das pelos alemães no Leste Europeu durante a Segunda Guerra Mundial. A
filósofa, judia alemã refugiada do regime nazista, cobriu o processo em uma
série de cinco artigos para a revista estadunidense The New Yorker, que mais
tarde tornaram-se o livro. O principal ponto descrito por Arendt é que, durante
o processo, em vez do monstro sanguinário que todos esperavam ver, surge
apenas um funcionário, um burocrata. O exercício da violência homicida foi
igualado ao mero cumprimento da atividade burocrática.

PARA SABER MAIS:

BANALIDADE DO MAL: QUANDO


A RAZÃO CAUSA BARBÁRIE
Paulo Niccoli Ramirez

clique para assistir

A NORMALIZAÇÃO DO ÓDIO
Maria Homem
Casa do Saber

clique para assistir

57
Diferente da banalização – em que o mal deixa de causar choque devi-
do à extrema repetição –, a banalidade ocorre quando o mal deixa de chocar
porque não é mais visto como mal, e sim como uma relação necessária do
eu com o outro. Eichmann nunca questionou a moralidade daquilo que estava
fazendo, em consistência com a perda do padrão moral e ético dentro do to-
talitarismo. É aí que o mal deixa de ser uma tentação, um mal absoluto, e vira
corriqueiro. Não se passa à banalidade de uma hora para a outra: é preciso
passar por estágios de apagamento da identidade, dos direitos, da cidadania
e, por fim, da humanidade do outro. Contudo, aquele simples burocrata ale-
mão mostra que a essência da banalidade pode estar mais próxima do que
pensamos. Por exemplo, no dia a dia é possível associar a figura das pessoas
em situação de rua à banalidade: na invisibilidade social, passar ao lado de
alguém que dorme na rua sem pestanejar tornou-se “natural”. Uma relação

Hannah Arendt (1906-1975), pensadora


alemã de origem judaica e um dos
nomes mais influentes do século 20.

A figura do morador de rua, assim como a do refugiado apátrida, dos


judeus em campos de concentração nazistas e muitas outras menos óbvias
– vítimas de preconceitos e exclusões internalizadas e frequentemente im-
perceptíveis ao sujeito –, são o que o filósofo italiano Giorgio Agamben deno-
minou Homo sacer, figura do direito romano antigo que indicava certas vidas
Casa do Saber

como matáveis. Este conceito representa a vida indigna de ser vivida, o limiar
além do qual a vida cessa de ser politicamente relevante para o Estado e en-
tão pode ser eliminada. Para Agamben:

58
“Toda a sociedade fixa este limite, toda a sociedade – mesmo as
mais modernas – decide quais sejam seus “homo sacer”. É possível,
aliás, que este limite, do qual depende a politização e a exception
da vida natural da ordem jurídico estatal não tenha feito mais do que
alargar-se na história do Ocidente e passe hoje – no novo horizonte
biopolítico dos estados de soberania nacional – necessariamente ao
interior de toda a vida humana e de todo o cidadão. A vida nua [não
política] não está mais confinada a um lugar particular ou em uma cat-
egoria definida, mas habita o corpo biológico de cada ser vivente.”
(AGAMBEN, G., 2010, p. 135)

Então, qual seria o antídoto para o mal, para o ódio? Um antídoto con-
tra a indiferença ao outro, a destruição progressiva da ideia do outro como
pessoa? Para Arendt, em reformulação da teoria aristotélica de que somos
animais políticos, seria a vida na pólis. O exercício da cidadania, o debate,
o conflito que apenas a democracia pode permitir. Em A Condição Humana
(1958), a filósofa define “política” como a vida livre em conjunto com os ou-
tros, afirmando que evitar o caminho da banalidade do mal passa pela possi-
bilidade de escolha, a liberdade de escolher. Porém, ao contrário dos existen-
cialistas, para quem o ser humano não apenas nasce, mas é condenado a ser
livre, Arendt diz que a liberdade é uma conquista, que só pode ser feita em
conjunto.

A filósofa divide a vida em duas partes: a contemplativa, da alma, e ativa,


da prática política. A segunda, então, é dividida em labor e em trabalho. Não
são sinônimos, já que o labor indica todas as atividades no campo da neces-
sidade, ligadas à sobrevivência, enquanto o trabalho envolve as atividades
que extrapolam a necessidade – a obra, a criação. O Homo faber, portanto,
em oposição ao Homo sacer, seria aquele capaz de fazer e transformar o
mundo e a si mesmo, que existe em relação aos outros e vive a vida da ação,
na esfera pública. É neste lugar, com estes elementos, que pode ocorrer a
conquista da liberdade e a vida política.

Contudo, quanto mais se prende ao labor, menor é o interesse na parti-


cipação e satisfação política. Ou seja, para tornar-se Homo faber, é preciso
estar livre da necessidade básica, o que torna a conquista da liberdade, a
ação política e a diminuição do ódio tarefas muito mais complicadas. Onde
reinam sociedades do cansaço (com ênfase no desempenho, e não na obra),
Casa do Saber

costumam nascer polarizações. A ausência de diálogo (di + logos, ou “en-


contro de duas razões”) tende a reduzir engajamento político em discussões

59
importantes que vão além da política tradicional. O resultado é, quase inva-
riavelmente, violento, já que o uso do poder está desvinculado à liberdade e
responsabilidade.

Se a atuação do ódio, sua manifestação, leva à destruição do outro, o


diálogo seria a alternativa construtiva. Arendt bebeu na fonte de Sócrates,
que se esforçou por tornar o pensamento relevante para a instauração e ma-
nutenção do mundo comum como âmbito inter-humano de relacionamento
e convivência, para refletir sobre a importância ética e política da atividade
de pensar, de desenvolver diálogos socráticos. A ausência de pensamento
seria um poderoso fator nos cuidados humanos com o mundo comum. Para
Arendt, a condenação de Sócrates e o julgamento de Eichmann são exem-
plos de que a incapacidade de pensar e julgar pode formar um homem capaz
de levar o mal e a violência a extremos inconcebíveis e ilimitados. A atenção
reflexiva do pensamento, então, poderia contribuir para evitar o mal.

PARA SABER MAIS:

EMPATIA EM TEMPOS
EGOÍSTAS
Luís Mauro Sá Martino

clique para assistir

COMO NÃO SENTIR ÓDIO?


QUANTO PRECISAMOS
MELHORAR?
Monja Coen - Zen Budismo

clique para assistir


Casa do Saber

60
Por isso, a filósofa encara o ato de narrar como um ato político. Compar-
tilhar histórias cria um terreno comum, o espaço entre dois sujeitos, essen-
cial para a vida na pólis. Não significa que a convivência com a pluralidade, a
singularidade de cada um, seja fácil (não é à toa que existe um ditado que diz:
“o acordo é um movimento racional em que todas as partes saem insatisfei-
tas). Contudo, o desenvolvimento de uma comunidade faz com que o sujeito
perceba que sua história é, paradoxalmente, diferente de todas as outras e
igual a todas as outras. As narrativas mostram que, ao fim e ao cabo, no fundo
somos todos “apenas mais um”. Cria uma sensação de vínculo e pertenci-
mento, refutando a atomização do ser humano característica de sociedades
totalitárias, e a partir da compreensão do outro torna-se possível agir politica-
mente com o outro. A empatia, ainda que limitada. Além disso, contar histó-
rias – no sentido de conquista da própria voz e conquista da escuta do outro
– provoca uma libertação do medo, uma oportunidade para exercer a vida po-
lítica. E falar também gera autoconhecimento: organizando ideias, colocando
pensamentos em ordem, inicia-se a percepção de quem se é. Hannah Aren-
dt, então, chega à conclusão de que “toda dor se torna suportável se sobre
ela for possível contar uma história”. O compartilhamento de narrativas, por-
tanto, tem potencial de gerar autoconhecimento e, ao mesmo tempo, acei-
tação do outro como ele é. A convivência, se não gerar empatia verdadeira,
gera ao menos tolerância (a insatisfação civilizada da democracia).

PARA SABER MAIS:

NÃO CONFIE NO OUTRO,


APOSTE NELE
Luiz Hanns

clique para assistir

Para Comte-Sponville, sendo a tolerância uma virtude, ela não poderia


se isolar na intersubjetividade virtuosa: quem só é justo com os justos, gene-
Casa do Saber

roso com os generosos, misericordioso com os misericordiosos não é nem


justo nem generoso nem misericordioso. Tampouco é tolerante aquele que
só o é com os tolerantes. Dito isto:

61
“(...) a tolerância tem a ver com a humildade, ou antes, dela decorre,
como esta da boa-fé: amar a verdade até o fim é também aceitar a
dúvida em que ela resulta, para o homem. (...) ainda que tivéssemos
acesso a uma verdade absoluta, com efeito, isso não poderia obrigar
todo o mundo a respeitar os mesmos valores, nem portanto a viver
da mesma maneira. O conhecimento, que se refere ao ser, nada diz
sobre o dever-ser: o conhecimento não julga, o conhecimento não
comanda! (...)

Pequena virtude, também ela, a tolerância talvez desempenhe, na


vida coletiva, o mesmo papel da polidez na vida interpessoal: é
apenas um começo, mas o é. Sem contar que às vezes é necessário
tolerar o que não se quer nem respeitar nem amar.” (COMTE-SPON-
VILLE, A., 2016)

Por outro lado, Comte-Sponville também enfatiza a ressalva de que uma


tolerância universal seria moralmente condenável, porque poderia esque-
cer as vítimas, aceitar o que poderia ser condenado, deixar fazer o que se
poderia impedir ou combater. Afirmando que “democracia não é fraqueza” e
“tolerância não é passividade”, explica que não é possível aceitar um mal ab-
soluto. Até mesmo Hannah Arendt escreve que as narrativas tem limites, por
não conseguirem comunicar aquilo que simplesmente não pode ser narrado,
ou pela falta de condições para a construção de uma narrativa (a exemplo do
Primo Levi que, depois de muitas publicações sobre o tempo que passou em
Auschwitz, suicidou-se).

“Ao contrário do amor ou da generosidade, que não têm limites intrín-


secos nem outra finitude além da nossa, a tolerância é, pois, essen-
cialmente limitada: uma tolerância infinita seria o fim da tolerância!
(...) O que deve determinar a tolerabilidade de determinado indivíduo,
grupo ou comportamento não é a tolerância de que eles dão mostra
(porque então todos os grupos extremistas de nossa juventude de-
veriam ter sido proibidos, o que só lhes daria razão), mas sua peric-
ulosidade efetiva: uma ação intolerante, um grupo intolerante, etc.,
devem ser proibidos se, e somente se, ameaçarem efetivamente a
liberdade ou, em geral, as condições de possibilidade da tolerância.”
(COMTE-SPONVILLE, A., 2016)
Casa do Saber

É o que Karl Popper chama de “o paradoxo da tolerância”: “Se formos de


uma tolerância absoluta, mesmo para com os intolerantes, e se não defen-
dermos a sociedade tolerante contra seus assaltos, os tolerantes serão ani-

62
quilados, e com eles a tolerância.” Já que a humanidade é, invariavelmente,
conflitual, passional, atormentada, uma sociedade em que uma tolerância uni-
versal fosse possível já não seria humana – já nem necessitaria de tolerância.
Contudo, pelo caminho desta “pequena virtude”, como a caracteriza Com-
te-Sponville, nossa sociedade humana pode chegar a virtudes mais perma-
nentes, como a empatia. E, por mais que estar com o outro possa ser difícil
– especialmente com o diferente –, e isso que torna a ação política possível,
a vida mais rica, a democracia mais forte, o individualismo mais fraco e, no
teste dos limites entre o eu e o outro, a identidade mais inteligível.
Casa do Saber

63
AULA 6
PARA OPINIÕES E A
BUSCA DA VERDADE,
A PRUDÊNCIA E A BOA FÉ
Casa do Saber

64
Na mitologia grega, Apolo tem várias representações: deus divina distân-
cia, que ameaçava ou protegia desde o alto dos céus, patrono da poesia e
inspiração artística, deus da morte súbita, mas também da cura e da medici-
na. Contudo, seu mais conhecido atributo é aquele identificado com o Sol, a
luz: conhecimento. Segundo registros de autores gregos, Apolo surge como
o regulador do céu e preservador da ordem do mundo, mantendo o sol sem-
pre em seu curso, fazendo disso um símbolo do caminho da sabedoria. Com
a pontaria infalível de suas flechas de luz, ilumina o intelecto humano, ressal-
tando sua ligação com o dom da profecia. Além disso, era o patrono do mais
famoso oráculo da Antiguidade, o Oráculo de Delfos – não só anunciador de
verdades, mas também verdadeiro legislador de toda a Grécia.

Diz a lenda que o Templo de Apolo foi construído em Delfos porque lá


seria o centro do mundo. Zeus fez com que duas águias fossem soltas de
lugares opostos da Terra e, onde o voo das duas se cruzou, o todo-poderoso
determinou ser o umbigo do mundo. Anunciou a todos, então, que dali ele
entraria em contato com quem desejasse fazer-lhe consultas ou pedir-lhe
orientações. Só que a região era dominada pela monstruosa Píton, uma ser-
pente gigantesca, e coube a Apolo oferecer-se enfrentá-la (representante
das forças primitivas e irracionais). Após derrotá-la, o deus sepultou seus
restos exatamente embaixo do solo em que se ergueu o templo, para que
recebesse as mensagens de Zeus. Quem fosse visitar o oráculo, deparava-se
com três máximas grafadas nas paredes:

1. NADA EM EXCESSO;
2. COMPROMETER-SE CONDUZ À INFELICIDADE;
3. CONHECE-TE A TI MESMO.

Desde Sófocles (Grécia Antiga, 497/496 a.C. - 406/405 a.C.), um dos


mais importantes dramaturgos gregos, “conhece-te a ti mesmo” tornou-se
a sabedoria máxima da humanidade. Não à toa, foi grafada em seu cerne,
seu centro, o umbigo do mundo. Se tinha um sentido altamente prático no
conhecimento trágico – que explicitava que o ser humano não é um deus,
pois não conhece seu destino e está sujeito à mortalidade –, adquire sentido
subjetivo a partir de Sócrates (Alópece, c. 470 a.C. - Atenas, 399 a.C.). Para o
filósofo, o conhecimento de si relaciona-se diretamente ao conhecimento do
mundo ao redor e da Verdade.
Casa do Saber

Na era das fake news e da pós-verdade, em que os fatos objetivos têm


menos influência que os apelos às emoções e às crenças pessoais, um cen-
tro de profecias com verdades divinas não parece nada mal. Há aqueles que,

65
na ausência do Oráculo de Delfos, apelam para outros templos em busca de
conhecimento, como grupos de WhatsApp, o Feed do Facebook e aquela
pesquisa rápida no Google. Conhecimentos científicos e metafísicos são de-
safiados diariamente por esses oráculos da atualidade. Contudo, na ausência
de Zeus ou qualquer outra figura de autoridade por trás das mensagens por
eles proferidas, talvez seja mais sábio voltar-se para a filosofia para encontrar
o caminho da busca pela verdade.

PARA SABER MAIS:

COMO PENSAR
E DESCONFIAR
Luis Mauro Sá Martino

clique para assistir

Sócrates teve seu próprio encontro com o Oráculo de Delfos. No diálogo Ap-
ologia de Sócrates (399 a.C), de Platão, em que seu mestre se defende em
um julgamento onde é acusado de corromper a juventude e não acreditar nos
deuses (que levou a sua condenação à morte), o filósofo relata que o oráculo
profetizou: “Sócrates é o mais sábio de todos os homens”. Incrédulo, decide
prová-lo incorreto, já que achava que conhecia homens muito mais sábios
do que ele próprio. Para isso, passa a interrogar aqueles que julga os prin-
cipais “experts” em grandes questões como a Justiça, ou a Política, apenas
para descobrir que todos têm a pretensão da sabedoria, mas na verdade não
sabem. Ou seja, ignoram que não sabem. O único aspecto que diferenciava
Sócrates destes supostos conhecedores, aquilo que o tornava o mais sábio
dos homens, era sua consciência da própria ignorância. Daí nasce sua famo-
sa frase: “Só sei que nada sei”.

Para ele, o primeiro passo para conhecer, para buscar verdades, é colocar-se
em posição de douta ignorância, uma atitude permanente de interrogação
Casa do Saber

e investigação. O contrário da ignorância, portanto, não é a sabedoria, mas


sim a estaticidade. Conhecimento não é um objeto a tornar-se posse. Ain-
da: ninguém teria posse da verdade, pois ela tem aspectos demais, está em
constante fluxo e transformação. Uma vida bem vivida, segundo a tradição

66
socrática, seria aquela dedicada à busca pela sabedoria – essência da filoso-
fia, philo (amor) + sophia (sabedoria) –, da excelência, da melhor maneira de
realizar uma finalidade. O movimento de busca pela virtude é o mesmo mov-
imento de tentar praticá-las, e o mesmo do conhecimento e cuidado de si. E
o prazer e bem-viver dependem, antes de tudo, da consciência das próprias
limitações (diante tanto dos deuses quanto dos homens, da natureza, das
questões que escapam os sentidos). Não seria uma autovigilância, mas um
processo eterno, um habitual exercício dos músculos espirituais. (No diálogo
platônico Primeiro Alcibíades [390 a.C.], o jovem aristocrata revela a ambição
descomedida de tornar-se governante de Atenas, Esparta e da Pérsia – ou
seja, essencialmente do mundo ocidental, naquele ponto da história –, ao
que Sócrates diz apenas: “Conhece-te a ti mesmo”).

PARA SABER MAIS:

SEI QUE NADA SEI:


A INVESTIGAÇÃO DE SÓCRATES
Maurício Marsola

clique para assistir

Aí já nasce a diferenciação entre o conhecimento pela aparência (sen-


sações) e o conhecimento pela essência (razão), aprofundada pelo principal
discípulo de Sócrates, Platão (Atenas, 428/427 - Atenas, 348/347 a.C.). Para
lidar com a impossibilidade de definir essa verdade em constante fluxo, so-
bre a qual seria impossível proferir qualquer certeza, ele inaugura o dualismo.
Em uma realidade composta de ser, não ser e devir, qualquer tipo de atributo
dado a um objeto já o destitui da qualidade absoluta de ser. Por isso, a fim de
definir as coisas pelo que são, ao invés daquilo que elas não são, Platão divi-
de a realidade entre o mundo da aparência (do devir) e da essência (do ser,
da ideia, da forma em si, em sua completa estabilidade). Tal como Sócrates
queria, o conhecimento devia se elevar ao inteligível, saindo do sensível.
Casa do Saber

No texto A Alegoria da Caverna, Livro VII de A República (370 a.C.), Pla-


tão descreve a seguinte cena: em uma caverna, pessoas acorrentadas, sem
se poderem mover, são forçadas a olhar somente a parede. Atrás dos prisio-

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neiros há uma fogueira, separada deles por uma parede baixa, por detrás da
qual passam pessoas carregando objetos diversos – “estátuas de homens,
figuras de animais, de pedra, madeira ou qualquer outro material” – mas os
prisioneiros não podem ver o que se passa atrás deles. Veem apenas as
sombras que projetadas na parede, associando a elas também todos os sons
que vêm de fora da caverna. Um deles se liberta e, ao olhar para a luz, doem-
-lhe os olhos. “É preciso que ele se habitue”, escreve Platão, para que possa
enxergar os objetos e seres que antes eram apenas sombras. Depois de um
tempo, percebe “como o herói de Homero, que mais vale ‘viver como escra-
vo de um lavrador’ e suportar qualquer provação do que voltar à visão ilusória
da caverna”, mas decide voltar para convencer seus colegas a seguir pelo
mesmo caminho. Eles, contudo, rejeitam-no, porque não podia mais enxergar
no escuro e parecia desnorteado. “Voltou com a vista perdida”.

“Devemos assimilar o mundo que apreendemos pela vista à estada


na prisão, a luz do fogo que ilumina a caverna à ação do sol. Quanto
à subida e à contemplação do que há no alto, considera que se trata
da ascensão da alma até o lugar inteligível, e não te enganarás sobre
minha esperança, já que desejas conhecê-la. Deus sabe se há algu-
ma possibilidade de que ela seja fundada sobre a verdade. Em todo o
caso eis o que me aparece tal como me aparece; nos últimos limites
do mundo inteligível aparece-me a ideia do Bem, que se percebe
com dificuldade, mas que não se pode ver sem concluir que ela é a
causa de tudo o que há de reto e de belo. No mundo visível, ela gera
a luz e o senhor da luz, no mundo inteligível ela própria é a soberana
que dispensa a verdade e a inteligência. Acrescento que é preciso
vê-la se quer comportar-se com sabedoria, seja na vida privada, seja
na vida pública. (PLATÃO, 2017)

Para Platão, o desejo de deixar o mundo da diferença e alcançar a verda-


de é o que nos move. Segundo sua Teoria da Reminiscência, o ser humano
é formado de uma parte mortal (corpo) e uma parte imortal (alma). Antes do
corpo habitar o mundo sensível, a alma habitava o mundo das ideias, onde
possuía todo o conhecimento possível das essências. No entanto, a alma se
junta ao corpo, se esquece de tudo aquilo que sabia sobre o ser. Assim, o
conhecimento platônico se dá pela reminiscência (lembrança) daquilo que a
alma já viu quando habitava o mundo inteligível. Conhecer é, portanto, nada
mais do que lembrar, trazer de volta à memória aquilo que já vimos em outro
Casa do Saber

mundo. Não significa que o humano deva tornar-se um ser de racionalidade


fria e robótica: o filósofo associava a razão ao desejo (da verdade). Amar, se-
gundo Platão, era amar a verdade do outro. Portanto, há emoção na razão, e a
busca pela verdade – embora tarefa árdua – não é sinônimo de fastio.

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PARA SABER MAIS:

A CAVERNA DE PLATÃO
NA ERA DA SELFIE

Luís Mauro Sá Martino

clique para assistir

Avançando alguns (muitos) séculos, outro filósofo que investigou a fundo a


verdade e a busca por ela foi o prussiano Immanuel Kant (Königsberg, 1724 -
Königsberg, 1804). Conhecido por sua reflexão crítica acerca da filosofia, op-
erou uma síntese entre o racionalismo de René Descartes, Baruch Espinoza
e Gottfried Wilhelm Leibniz (raciocínio dedutivo) e a tradição empírica inglesa
de David Hume e John Locke (raciocínio indutivo). Suas teorias apresentam
influência dos gregos, especialmente da reminiscência e dualismo de Platão
ao elaborar idealismo transcendental – teoria de que todos nós trazemos
formas e conceitos a priori (aqueles que não vêm da experiência) para a ex-
periência concreta do mundo, os quais seriam de outra forma impossíveis de
determinar. Sua obra mais proeminente sobre a busca pelo conhecimento
talvez seja o clássico Crítica da Razão Pura (1781).

Apesar de Kant ser bastante antropocêntrico, colocando o homem como


autor de seu destino (ao contrário da sabedoria trágica), ser que se impõe à
natureza com sua racionalidade, liberdade e autonomia, criando suas próprias
leis universais, o idealismo transcendental também recupera a ideia de que
o conhecimento humano é limitado. Trata-se das condições de possibilidade
do conhecimento: as ideias, segundo o nome da teoria, ou o mundo inteligív-
el, estariam além daquilo que pode ser conhecido. Não é que a razão não
tenha o direito de ir além do que pode, de colocar questões que a ultrapas-
sam. Pelo contrário. Mas a metafísica é um campo de batalha, uma luta sem
vencedores entre filósofos e filosofias, onde todos pretendem ser o mais
verdadeiro.
Casa do Saber

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Immanuel Kant foi um filósofo prussiano que
operou, na epistemologia, uma síntese en-
tre o racionalismo continental, e a tradição
empírica inglesa.)

Por isso, seria preciso criticar a razão, o que o prussiano denomina Tribunal
da Crítica da Razão Pura, onde se estabelecem pretensões legítimas da razão
e são excluídas as ilegítimas, em julgamento de si mesma. Na briga entre
dogmáticos e céticos, quanto mais afirmam-se dogmas, maior é a exposição
às críticas dos céticos – e, para Kant, é essencial que a crítica seja livre.

“Em todos os seus empreendimentos deve a razão submeter-se à crítica


e não pode fazer qualquer ataque à liberdade desta, sem se prejudicar a si
mesma e atrair sobre si uma suspeita desfavorável. Nada há de tão impor-
tante, com respeito à utilidade, nem nada de tão sagrado que possa furtar-se
a esta investigação aprofundada que não faz exceção para ninguém. É mes-
mo sobre esta liberdade que repousa a existência da razão; esta não tem au-
toridade ditatorial alguma, mas a sua decisão outra coisa não é que o acordo
de cidadãos livres, cada um dos quais deve poder exprimir as suas reservas e
mesmo exercer o seu veto sem impedimentos”. (KANT, I., 2015)

Assim, uma doutrina, ou verdade, que não passa pelo crivo crítico é dogmat-
ismo. Para atingir uma razão elevada, é preciso examinar tanto os argumentos
Casa do Saber

dogmáticos quanto os céticos, criando um movimento de reflexão da razão


sobre si mesma. Não à toa, a síntese é o cerne da crítica, segundo Kant,
que também coloca em diálogo os fenômenos e as coisas em si mesmas. O

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Por isso, seria preciso criticar a razão, o que o prussiano denomina Tribu-
nal da Crítica da Razão Pura, onde se estabelecem pretensões legítimas da
razão e são excluídas as ilegítimas, em julgamento de si mesma. Na briga en-
tre dogmáticos e céticos, quanto mais afirmam-se dogmas, maior é a exposi-
ção às críticas dos céticos – e, para Kant, é essencial que a crítica seja livre.

“Em todos os seus empreendimentos deve a razão submeter-se à


crítica e não pode fazer qualquer ataque à liberdade desta, sem se
prejudicar a si mesma e atrair sobre si uma suspeita desfavorável.
Nada há de tão importante, com respeito à utilidade, nem nada de
tão sagrado que possa furtar-se a esta investigação aprofundada que
não faz exceção para ninguém. É mesmo sobre esta liberdade que
repousa a existência da razão; esta não tem autoridade ditatorial algu-
ma, mas a sua decisão outra coisa não é que o acordo de cidadãos
livres, cada um dos quais deve poder exprimir as suas reservas e
mesmo exercer o seu veto sem impedimentos”. (KANT, I., 2015)

Assim, uma doutrina, ou verdade, que não passa pelo crivo crítico é
dogmatismo. Para atingir uma razão elevada, é preciso examinar tanto os ar-
gumentos dogmáticos quanto os céticos, criando um movimento de reflexão
da razão sobre si mesma. Não à toa, a síntese é o cerne da crítica, segundo
Kant, que também coloca em diálogo os fenômenos e as coisas em si mes-
mas. O primeiro, aquilo que aparece no mundo para os humanos. O segundo,
o que é desconhecido, do mundo inteligível. Contudo, o filósofo só afirma
que é impossível conhecer as coisas em si mesmas, não pensar sobre elas.
Ou seja, a imaginação faz a ponte entre o sensível e o inteligível, livre para
pensar, mas limitada pela transcendência das ideias.

Ao fim e ao cabo, para Kant, assim como há a possibilidade do ato mo-


ral, mas não é possível provar que seja moral, também há a possibilidade da
verdade, mas não é possível provar que seja verdade. O que existe é a crítica
como forma de construir uma moralidade universal, do sujeito-dono-de-si (o
famoso imperativo categórico). É o único caminho para a saída do homem da
menoridade, a incapacidade do homem de fazer uso do seu próprio entendi-
mento de forma autônoma, sem a tutela de uma razão alheia. Seu lema “ouse
saber” pretende inspirar a libertação da humanidade da obediência cega e de
preconceitos herdados. E se, por um lado, é preciso ter força para questionar
a doutrina do outro, não se deve esquecer de também criticar a própria razão.
Casa do Saber

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PARA SABER MAIS:

RAZÃO PURA
Daniel Omar Perez

clique para assistir

A filosofia da natureza e da natureza humana de Kant é historicamente uma


das mais determinantes fontes do relativismo cético, ou perspectivismo,
que dominou a vida intelectual do século XX. O termo filosófico se baseia na
relatividade do conhecimento e repudia qualquer verdade ou valor absoluto.
Todo ponto de vista seria válido e necessário, sendo impossível que qualquer
ser humano chegue a uma verdade objetiva e absoluta. Michel Foucault (Poi-
tiers, 1926 - Paris, 1984), um dos principais pensadores para entender o mun-
do contemporâneo, faz parte dessa corrente.

Conhecido por suas teorias acerca do poder, com Vigiar e Punir (1975) como
uma de suas principais obras, o filósofo francês via a verdade como uma
produção histórica. Desta forma, rompe com a perspectiva universalista da
verdade, de que se poderia chegar a uma essência do verdadeiro. Para Fou-
cault, a verdade é indissociável da singularidade do acontecimento. Aquilo
qualificado de verdadeiro não habita num já-aí; antes, é produzido como ac-
ontecimento num espaço e num tempo específicos. Além disso, não poderia
deixar de ser que a produção da verdade é feita no âmbito das relações de
poder. Recuperando Espinosa, que afirma que a verdadeira luta social não
ocorre entre o significado das coisas, não ocorre sequer entre os desejos
individuais de cada pessoa, mas sim para decidir o valor que as coisas de-
vem ter. Poder é ter controle da definição do valor (ou controle da definição
da verdade. Foucault não enuncia que exista uma verdade, apenas discursos
lutando pelo poder.
Casa do Saber

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Michel Foucault, influenciado por Nietzsche, Marx e Freud, revolucionou as estruturas
filosóficas do século XX ao analisá-las por meio de uma nova ótica.

Segundo o filósofo, a sociedade contemporânea tornou-se tão focada


no conhecimento científico, princípios, hipóteses e resultados, com a fina-
lidade de determinar fundamentos lógicos e absolutos e importâncias obje-
tivas, que perdeu o conhecimento de si – tão postulado pelos gregos. Ou
seja, durante a transformação em sujeito epistemológico, o homem moderno
desconectou-se da sabedoria primordial que tem o potencial de colocá-lo
em estado de douta ignorância, essencial para o conhecimento do mundo
e análise da verdade (ou, como diz Foucault, dos discursos de poder). Há
uma recuperação de Friedrich Nietzsche (Röcken, 1844 - Weimar, 1900), para
quem a ciência não é mais uma busca de verdade a todo custo, uma ditadura
da verdade.

“A ciência exercita a capacidade, não o saber. — O valor de praticar


com rigor, por algum tempo, uma ciência rigorosa não está propria-
mente em seus resultados: pois eles sempre serão uma gota ínfima,
ante o mar das coisas dignas de saber. Mas isso produz um aumento
Casa do Saber

de energia, de capacidade dedutiva, de tenacidade; aprende-se a


alcançar um fim de modo pertinente. Neste sentido é valioso, em
vista de tudo o que se fará depois, ter sido homem de ciência.”
(NIETZSCHE, F.; 2005)

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Mas Foucault vai mais longe que seu antecessor. Em A Gaia Ciência
(1882), Nietzsche afirma: “o mundo para nós tornou-se novamente infinito
no sentido de que não podemos negar a possibilidade de se prestar a uma
infinidade de interpretações”, ao que o francês responde: “Se a interpretação
nunca se pode completar, é porque simplesmente não há nada a interpretar...
Pois, no fundo, tudo já é interpretação”.

PARA SABER MAIS:

A VERDADE EXISTE?
Pedro Pimenta e Adilson Oliveira

clique para assistir

Como, então, analisar algo que parece tão insólito? Como começar a
busca pela verdade, que nunca virá em sua forma absoluta? Como conhecer
a si mesmo, sair da menoridade, sem tornar-se cego a interpretações outras?
André Comte-Sponville sugere as virtudes da prudência e da boa-fé.

Atualmente, “prudência” costuma ser definida como o hábito de prever e


evitar inconveniências e perigos. Sinônimo de cautela, precaução. Sensatez,
se formos generosos. Contudo, para os antigos, a prudência é uma das qua-
tro virtudes cardeais. A phronésis, ou prudentia, determina o que é necessá-
rio escolher e o que é necessário evitar. Há riscos e perigos, contudo, que
são necessários enfrentar. Por isso, no sentido antigo, aparece como a vir-
tude do risco e da decisão. “A primeira, longe de abolir a segunda, depende
dela. A prudência não é nem o medo nem a covardia. Sem a coragem, ela se-
ria apenas pusilânime, assim como a coragem, sem ela, seria apenas temeri-
dade ou loucura”, escreve Comte-Sponville em Pequeno Tratado das Grandes
Virtudes (1995). Aristóteles dizia que a phronésis é como que uma sabedoria
prática, sabedoria da ação, para a ação, na ação. Segundo Santo Agosti-
Casa do Saber

nho, “a prudência é um amor que escolhe com sagacidade”. Para Epicuro,


ela escolhe os desejos que convém satisfazer e os meios para satisfazê-los,
cuja importância está no fato de assim prover todas as outras virtudes. Que

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importa o verdadeiro, se não sabemos viver? Ou seja, investigar a verdade
com prudência prevê uma escolha cuidadosa dos caminhos a seguir, fontes a
confiar, posicionamentos a construir. Comte-Sponville relaciona a virtude com
a ética da responsabilidade em Max Weber (Erfurt, 1864 - Munique, 1920),
mais um perspectivista:

“À ética da convicção, preferiremos o que Max Weber chama de éti-


ca da responsabilidade, a qual, sem renunciar aos princípios (como
poderia?) também se preocupa com as consequências previsíveis
da ação. Uma boa intenção pode levar a catástrofes, e a pureza
dos móbeis, ainda que confirmada, nunca bastou para impedir o
pior; portanto seria condenável contentar-se com ela. A ética da
responsabilidade quer que respondamos não apenas por nossas
intenções ou nossos princípios, mas também pelas consequências
de nossos atos, tanto quanto possamos prevê-las. É uma ética da
prudência, e a única ética válida. (...) É a moral aplicada, e o que
seria uma moral que não se aplicasse? As outras virtudes, sem a
prudência, não poderiam mais que revestir o Inferno com suas boas
intenções.” (COMTE-SPONVILLE, A.; 2016)

A essa interpretação da prudência também está ligada a virtude da boa-


-fé. Segundo os existencialistas, a má-fé (do francês mauvaise foi) descreve
o fenômeno em que alguém nega sua liberdade absoluta (o famoso “conde-
nado a ser livre”, de Jean-Paul Sartre [Paris, 1905 - Paris, 1980]), preferindo
comportar-se como um objeto, como coisa. É quase sempre associado ao
conceito nietzscheano de ressentimento, origem da moralidade de escra-
vos (moral cristã), apequenadora da potência. Por oposição, a boa-fé seria o
chamamento de responsabilidade para si, semelhante à ética da responsabili-
dade de Weber.

“Ser de boa-fé não é sempre dizer a verdade, pois podemos nos


enganar, mas é pelo menos dizer a verdade sobre o que cremos,
e essa verdade, ainda que a crença seja falsa, nem por isso seria
menos verdadeira. É o que se chama também de sinceridade (ou
veracidade, ou franqueza), e o contrário da mentira, da hipocrisia,
da duplicidade, em suma, de todas as formas, privadas ou públicas,
da má-fé. (...) A pensá-la em sua maior generalidade, a boa-fé nada
mais é que o amor à verdade. (...) Este prefere saber-se mau a fin-
Casa do Saber

gir-se bom, e olhar de frente o desamor, quando ele se produzir, ou


seu próprio egoísmo, quando ele reinar (quase sempre!), a se per-
suadir falsamente de ser amante ou generoso.” (COMTE-SPONVILLE,
A.; 2016)
75
Ter boa-fé, portanto, é ao mesmo tempo ser fiel (em palavras ou atos) à
própria crença, talvez até mesmo no sentido kantiano. Por outro lado, tam-
bém é assumir responsabilidade. Frente a um engano, ou antiga crença que
já deixou de ser, é bater no peito e dizer: “Errei”.

PARA SABER MAIS:

HÁ COMO TOMAR DECISÕES


SOMENTE COM BASE NA
RAZÃO OU NA EMOÇÃO?
Renato Noguera

clique para assistir


Casa do Saber

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AULA 7
PARA A VIDA COM OS OUTROS,
GENTILEZA E COMPAIXÃO
Casa do Saber

77
Em 2019, havia 11,7 milhões de pessoas vivendo sozinhas no Brasil,
ou 16,2% dos lares, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicí-
lio Contínua (Pnad Contínua). Trata-se do maior número de domicílios com
apenas um morador pelo menos desde 2016, início da série histórica para
esse indicador. Em 2018, 11 milhões de brasileiros viviam sozinhos, o que
correspondia a 15,5% dos domicílios existentes no país. Não é só no Brasil:
globalmente, lares estão diminuindo. Quase dois terços de todas as casas na
União Europeia já eram habitadas por apenas uma pessoa em 2016 por uma
ou duas pessoas, com destaque para a Alemanha, Países Baixos e França
(41,7%, 38,3% e 36,2%, respectivamente). Por que mais e mais pessoas es-
tão morando sozinhas? A capacidade de ter uma vida mais harmoniosa com
os outros está diminuindo? O que está em jogo na vida em sociedade?

Para Aristóteles (Estagira, 384 a.C. - Atenas, 322 a.C.), o homem é, por
natureza, um animal político (zoon politikon). Isso significa que, além de ser
um animal gregário, possui a especificidade da racionalidade (logos) e a fina-
lidade de buscar excelência nesta agregação. O fato do ser humano ser ca-
paz de formular juízos de valor e compartilhá-los com seus pares através da
linguagem é a razão pela qual tende, por natureza, a viver politicamente. Ela é
a sua função (ergon), pois a natureza “não faz nada em vão” e deu apenas ao
homem, de modo pleno, a posse desta faculdade.

“(...) a razão pela qual o homem, mais do que uma abelha ou um


animal gregário, é um animal político em sentido pleno, é óbvia. A
natureza, conforme dizemos, não faz nada em vão, e só o homem,
dentre todos os animais, possui o logos. Assim, enquanto a voz
indica prazer ou sofrimento, e nesse sentido é também atributo de
outros animais (cuja natureza atinge sensações de dor e de prazer
e é capaz de as indicar) a linguagem (logos), por outro lado, serve
para tornar claro o útil e o prejudicial e, por conseguinte, o justo e
o injusto. É que, perante os outros animais, o homem tem suas pe-
culiaridades: só ele percebe o bem e o mal, o justo e o injusto; é a
comunidade dessas percepções que produz a família e a cidade.”
(ARISTÓTELES, 1998, 1253a 8-17)

Ou seja, uma vida política está diretamente relacionada aos valores mo-
rais, percepções exclusivamente humanas. Como afirma o autor, é “a comu-
nidade dessas percepções que produz a família e a cidade: a humanidade se
Casa do Saber

agrega na tentativa de promover um bem comum em suas relações. Esses


bens são diversos, plurais e variam hierarquicamente de acordo com a comu-
nidade. “A comunidade mais elevada de todas e que engloba todas as outras,
visará o maior de todos os bens. Esta comunidade é chamada ‘cidade’ (po-
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lis), aquela que toma a forma de uma comunidade de cidadãos”, escreve em
Política.

Assim, sendo um zoon politikon, o ser humano tende naturalmente a se


agregar em comunidades cada vez mais complexas em um movimento maior
que a mera vida de satisfação das necessidades vitais: é preciso uma boa
vida para que a sua natureza possa se realizar plenamente. Uma vida orienta-
da por virtudes éticas, compartilhada com seus pares. A eudaimonia (estado
de ser habitado por um bom gênio), esse “encaixe com o Universo”, foi tra-
duzida como “felicidade” pela história da filosofia.

A felicidade aristotélica seria um fim em si mesma, um estado de comple-


tude. Não é necessariamente algo predeterminado (não confunda isso com
um “destino” individual), mas um encontro com você mesmo e suas poten-
cialidades. Não dissociada do prazer, mas não apenas prazerosa. O homem
digno entenderia que a eudaimonia se atinge a partir do prazer corpóreo em
conjunção com o prazer mental. E, para o homem grego, apenas na política
estava o caminho para uma vida plena e feliz.

PARA SABER MAIS:

BUSCA PELO BEM


E ÉTICA A NICÔMACO
Eduardo Wolf

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A ESSÊNCIA DA FELICIDADE
Luís Mauro
Casa do Saber

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79
O encaixe do ser humano no universo se dá pela sua função, que é sua
atividade racional. Portanto, um ser humano feliz, no pensamento de Aris-
tóteles, é aquele que faz bom uso da razão e que vive conforme à razão.
Porque só a razão é capaz de educar os apetites que atrapalham a felicidade
humana. Por isso, Aristóteles insiste no seu pensamento ético na educação
das emoções, para que floresça o caráter e se tenha uma vida virtuosa e boa.
Contudo, avançando para o século XVII, a ideia de que as agregações
sociais são naturais passa a ser fortemente contestada. Na teoria política e
filosófica do contratualismo, a tese é que existe uma espécie de pacto ou
contrato social que retira o ser humano de seu estado de natureza e coloca-o
em convivência com outros seres humanos em sociedade.

O “estado de natureza”, para Thomas Hobbes (Wiltshire, 1588 - Hardwick


Hall, 1679), era uma situação em que o homem era sozinho e egoísta, interes-
sado apenas em satisfazer seus próprios desejos e defender seus direitos
naturais (vida e liberdade). Por isso, o filósofo famosamente afirma que “o
homem é lobo do homem” (homini lupus homini), contestando a natureza
humana agregadora em Aristóteles com uma egoísta. Além disso, já que o es-
tado de ameaça é constante, nasce uma guerra geral, a chamada “guerra de
todos contra todos” (bellum omnia omnes).

Contudo, o filósofo mantém que o ser humano é racional. Assim, movido


pelo medo da morte violenta e pela racionalidade, chega à conclusão de que
para defender seu bem maior, que é a vida, é necessário abrir mão da liber-
dade total e fazer um pacto. Pelo “contrato social”, a humanidade sai da vida
solitária do estado de natureza e agrega-se em sociedade. Hobbes ressalta
que a única forma do acordo dar certo, é se houver um poder absoluto e so-
berano que imponha suas regras (afinal, a natureza humana é egoísta). A esta
figura ele dá o nome de Leviatã, monstro bíblico colossal, que deve impor a
obediência pelo medo de forma a defender a vida de todos.

“O fim último, causa final e desígnio dos homens (que amam natural-
mente a liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir aquela
restrição sobre si mesmos sob a qual os vemos viver nos Estados, é o
cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita.
Quer dizer, o desejo de sair daquela mísera condição de guerra que é a
consequência necessária (conforme se mostrou) das paixões naturais
dos homens, quando não há um poder visível capaz de os manter em
Casa do Saber

respeito, forçando-os, por medo do castigo, ao cumprimento de seus


pactos e ao respeito àquelas leis de natureza (...) (como a justiça, a
equidade, a modéstia, a piedade, ou, em resumo, fazer aos outros o
que queremos que nos façam).” (HOBBES, T.; 2017)
80
Na ilustração da capa do livro de Hobbes, há uma divisão entre o poder religioso (cet-
ro episcopal) e poder político (espada), mas Igreja e o Estado se fundem no monarca,
também composto pelo povo.)

O estado estaria acima das leis, sem limites para suas ações, desde que
agisse no cumprimento de sua parte no contrato: garantir a vida, a prosperi-
dade e a paz. Em troca, os homens abdicam de sua liberdade, para obter os
benefícios dos limites das leis. Ou seja, o estado governa pela força e violên-
cia, mas os humanos não precisam mais temer uns aos outros. Hobbes vai
além ao afirmar ainda que “os homens não tiram prazer algum da companhia
uns dos outros [...], quando não existe um poder capaz de manter a todos em
respeito”.

Assim, no pensamento hobbesiano: a) não há uma sociabilidade instin-


tiva, natural do homem; b) sem a intervenção de um poder soberano e cen-
tralizador, o homem estaria em constante estado de conflito; c) na vida em
sociedade, o interesse pessoal não deve prevalecer (o filósofo nega o direi-
to natural à propriedade privada, por exemplo); d) o antagonismo recíproco
entre os seres humanos só pode ser controlado de maneira artificial, por “um
poder comum que os constranja e dirija suas ações para um benefício co-
mum”.
Casa do Saber

Em outro espectro do contratualismo, Jean-Jacques Rousseau (Gene-


bra, 1712 - Ermenonville, 1778) via o chamado “estado de natureza” de forma
diferente. Afirma que o ser humano pré-social possui uma liberdade natural,

81
caracterizada por ações individuais com objetivo de satisfazer suas necessi-
dades, mas rejeita a ideia de “guerra de todos contra todos”. O homem sel-
vagem viveria isolado e, por isso, não haveria tendência ao conflito quando
os indivíduos se encontrassem: em comunhão com a natureza, seus desejos
seriam satisfeitos com pouco esforço. Assim, já que o homem se completa
com a natureza, não é um estado a ser superado. Escreve em Discurso So-
bre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens (1755): “A
maioria de nossos males é obra nossa e (…) os teríamos evitado quase todos
conservando a maneira de viver simples, uniforme e solitária que nos era
prescrita pela natureza”. A desigualdade e o conflito teriam nascido da trans-
formação da natureza pelo homem.

O filósofo prega que a capacidade de transformação da natureza é inata


ao homem. Por ser racional, é capaz de construir-se e ao mundo ao redor a
partir do momento que passa a produzir conhecimento (afastando a ideia de
Deus como fonte de todo o saber). Contudo, ressalta que podem existir ra-
zões boas e más, assim como podem existir paixões boas e más. Para filtrar
a racionalidade, seria preciso submetê-la ao crivo da paixão que, para ele, é
fruto de todas as boas paixões: a piedade. Rousseau dá à razão outra cono-
tação e peso, impondo limites a ela. Uma razão consequente da paixão seria
aquela julgada a priori, pensando no outro. Afinal, uma racionalidade pessoal
pode nascer de infinitas justificativas egoístas. Ou seja, de forma inédita, ele
afirma que a razão não é determinante na ação humana.

“Os devotamentos sociais somente se desenvolvem em nós com as


luzes. A piedade, embora natural no coração do homem, permanece-
ria eternamente inativa sem a imaginação que a põe em ação. Como
nos deixamos vencer pela piedade? Transportando-nos para fora de
nós mesmos, identificando-nos com o seu sofredor. Somente sofre-
mos na medida em que julgamos que ele sofre; não é em nós, é nele
que sofremos. Pensemos quanto conhecimento adquirido supõe tal
manifestação. Como imaginaria eu males dos quais não tenho nenhu-
ma ideia? Como sofreria ao ver sofrer um outro se nem mesmo sei se
ele sofre, se ignoro o que há de comum entre mim e ele? Aquele que
nunca refletiu não pode ser nem clemente, nem justo, nem compas-
sivo; também não pode ser mal e vingativo. Aquele que nada imagi-
na sente apenas a si mesmo, está só em meio ao gênero humano.”
Casa do Saber

(ROUSSEAU, J.; 1995, p. 395-6)

82
Por meio da razão aliada à piedade, seria possível retornar ao estado de
natureza pacífico (uma espécie de República utópica) por meio de um con-
trato social. No pensamento rousseauniano, o elemento artificial estabelecido
não é um estado soberano que governa pelo medo, mas a ideia de cidadania,
uma igualdade artificial. Para Rousseau, o Estado somos nós e a imposição
legítima de comandos só ocorre através da vontade geral, uma “escolha em
tese”, hipotética, proveniente de uma deliberação altruísta do que é melhor
para todos – transcendendo a mera soma das vontades individuais. Por fim,
pela lógica orgânica, este sistema extraordinariamente democrático em que
“é tudo pela sociedade, nada pelo indivíduo” acaba por beneficiar seus
membros individualmente, já que tudo aquilo que favorece a sociedade em
tese também favorece o indivíduo.

PARA SABER MAIS:

O ESTADO SOMOS NÓS


Luís Mauro Sá Martino

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Quem dedicou-se a estudar e compreender a democracia, e as relações que


os seres humanos estabelecem entre si neste sistema, foi o filósofo alemão
Jürgen Habermas (Dusseldorf, 1929). Um dos principais herdeiros da Escola
de Frankfurt – corrente influenciada pelo marxismo, que se dedicava a re-
flexões e críticas sobre a razão, a ciência e o avanço do capitalismo –, seu
pensamento baseia-se na releitura da Dialética do Esclarecimento de seus
antecessores, Theodor Adorno e Max Horkheimer. Para eles, a razão oriunda
do Iluminismo teria se tornado um instrumento de dominação (razão instru-
mental) e o mundo estaria sendo administrado apenas em nome da técnica
– fazendo interlocuções com Rousseau e seu Discurso Sobre as Ciências
Casa do Saber

e as Artes (1750). Para Habermas, a teoria confunde um tipo particular de


racionalização com a razão universal e transcendental. A razão não poderia
ser reduzida à sua perversidade utilitária, pois teria uma função comunicati-

83
va. Mudando paradigmas, seu conceito de racionalidade está ancorado nos
processos de comunicação (a razão do humano conecta-se intrinsecamente
à vida com os outros).

O filósofo afirma que a estrutura da linguagem cotidiana exige racionalidade.


A linguagem já seria em si uma forma de ação, já que falar implica – além de
uma compreensão mútua –, os ideais de exatidão, veracidade e sinceridade.
A interação por meio da linguagem sustenta que os indivíduos partilhem um
mundo objetivo, um mundo social e um mundo subjetivo.

PARA SABER MAIS:

CINCO PENSADORES PARA


ENTENDER O MUNDO CON-
TEMPORÂNEO: HABERMAS
Luís Mauro Sá Martino

clique para assistir

Assim, o diálogo em si é mais importante do que o convencimento do


interlocutor, o que funda uma “ética da discussão”: ao invés de buscar esta-
belecer uma lei universal, o sujeito deve buscar uma discussão sobre ques-
tões morais, criando acordos. Por isso, sua teoria comunicativa vai além do
processo de “interpretação” de um conhecimento cultural pelo mundo. Ação
comunicativa significa, ao mesmo tempo, processos de interação social e so-
cialização, por meio dos quais as pessoas envolvidas confirmam e renovam
suas identidades e seu pertencimento aos grupos sociais.

Para Habermas, a ação comunicativa ocorre quando as ações – ou fa-


las – dos envolvidos transcendem cálculos egocêntricos de sucesso (o agir
estratégico) para atos de alcançar o entendimento. Nesta progressão gradual,
os participantes deixam de orientar-se para o sucesso individual como priori-
Casa do Saber

dade e passam a buscar seus objetivos individuais respeitando uma definição


comum de situação, a harmonia, o consenso. Assim, a negociação da defi-
nição de situação é essencial, assim como as quatro pretensões de validade

84
do ato comunicativo: Inteligibilidade, Verdade, Sinceridade e Correção Nor-
mativa (falas de acordo com o contexto de normas e valores estabelecidos).

“Ao se entenderem frontalmente sobre algo no mundo, falante e


ouvinte movem-se no interior do horizonte de seu mundo da vida
comum; este permanece às costas dos implicados como um pano
de fundo holístico, intuitivamente conhecido, não problemático e in-
dissolúvel. A situação de fala é um recorte, delimitado em função de
um determinado tema, de um mundo da vida que tanto constitui um
contexto para os processos de entendimento como coloca recursos
à sua disposição” (HABERMAS, J.; 2000, p. 416).

Para definir este espaço onde há socialmente reconhecido, mas não-ins-


titucionalizado, onde há a livre circulação de questões, informações, pontos
de vista e argumentos provenientes das vivências diárias dos sujeitos, Haber-
mas cria o conceito de “esfera pública”. Essencialmente, é o espaço onde a
ação comunicativa se forma, cuja função é explicar os processos pelos quais
são formadas a opinião e a vontade coletivas. Para o filósofo, tanto a opinião
pública quanto a vontade geral devem ser formadas discursivamente e, por-
tanto, na interação dialógica com o outro.

Como estabelecer uma comunicação ativa com o outro? O processo –


árduo, difícil – passa por enxergar aos demais minimamente com a piedade
descrita por Rousseau. Mas o filósofo francês Alain, pseudônimo de Émile-
-Auguste Chartier (Mortagne-au-Perche, 1868 - Le Vésinet, 1951), sugere que
é preciso ir além, enxergando aos demais com respeito: como poderia apie-
dar-se do que respeita ou venera? Segundo ele, “a piedade é do corpo, não
do espírito”: o espírito (o espírito respeitoso, o espírito fiel) só pode sentir
compaixão. “Estritamente falando, não é o espírito que tem compaixão ou
respeito, o respeito e a compaixão é que fazem o espírito. Assim, o espírito
nasce no sofrimento: no próprio, e é coragem; no do outro, e é compaixão”,
escreve André Comte-Sponville. Para ele,

“A compaixão é um sentimento. (...) Todavia, os sentimentos não são


um destino, que poderíamos apenas ter de suportar. O amor não se
decide, mas se educa. O mesmo vale para a compaixão: não é um
dever senti-la, mas sim, explica Kant, desenvolver em si a capaci-
Casa do Saber

dade de senti-la. Nisso a compaixão também é uma virtude, isto é, ao


mesmo tempo, um esforço, um poder e uma excelência.
(...) ela é o que permite passar de um ao outro, da ordem afetiva à

85
ordem ética, do que sentimos ao que queremos, do que somos ao
que devemos ser.” (COMTE-SPONVILLE, A., 2016)

PARA SABER MAIS:

COMO APRENDER A
ESCUTAR O OUTRO?
Christian Dunker

clique para assistir

Ele completa que a compaixão é a grande virtude do Oriente budista, em


contraposição à caridade do Ocidente cristão. As duas assemelham-se pela
doçura, uma leva à outra, mas a compaixão seria o primeiro movimento nesta
missão que é enxergar o outro como pessoa, como um outro eu.

Também recuperando o Oriente, Clóvis de Barros Filho explora outra


virtude que, se não aproxima o eu do outro, pode ajudar a navegar relações
e conflitos na sociedade. No livro Shinsetsu: O poder da gentileza (Planeta,
2018), o professor explora o conceito japonês, um verdadeiro mosaico de
significados, para refletir sobre assuntos como gentileza e moral; humildade e
amor; empatia e fraternidade; limites e consideração.

“Shinsetsu”, embora composto de sentidos que se interpenetram, em


delicada justaposição e complementaridade, pode ser caracterizado como
a consideração pelo outro, alguém que integra a mesma humanidade que o
agente, na hora de deliberar sobre o que fazer. Contudo, vai muito além da
mera consideração: relaciona-se à gentileza, alívio, conforto. Se em Haber-
mas razão se dá pelo agir comunicativo, Clóvis explica que shinsetsu é agir
de maneira amável, de forma que o agente se sinta, naquele instante, amado
Casa do Saber

por alguém: “Agir amavelmente é criar condições para o amor. Dar à luz uma
possibilidade amorosa.”

86
“O que é shinsetsu? Na falta de sinônimos, tentemos uma definição.
Trata-se de uma forma particular de pensar para agir em convivência. Segun-
do a qual a existência de qualquer pessoa – em interação real ou potencial
com quem age – é fator relevante na definição dos limites que este agente se
imporá para evitar-lhe dano, tristeza ou incômodo. (...)

Shinsetsu é uma forma particular de viver. Em que a própria felici-


dade não é tudo. Uma forma particular de interagir em que a domi-
nação é secundária. Uma forma particular de agir em que o valor do
resultado pretendido vai além do próprio ganho. Porque recuar ou
intervir é decisivo para alguém mais além do agente. Para o outro. E,
assim, para a humanidade a que pertencemos.” (BARROS FILHO, C.;
2018; p. 13)

PARA SABER MAIS:

COMO CONVIVER COM


PESSOAS QUE NOS FAZEM
MAL?
Monja Coen

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Casa do Saber

87
AULA 8
LIDAR (MELHOR) COM A MORTE
E O LUTO - A CONSCIÊNCIA
Casa do Saber

88
“Cada um de nós tem sua própria morte”, escreveu José Saramago
(1922-2010) em As Intermitências da Morte (2005), “transporta-a consigo
num lugar secreto desde que nasceu, ela pertence-te, tu pertences-lhe.”
A filosofia sempre teve a morte como um tema central, mesmo antes de se
chamar filosofia, quando os mitos e histórias deram aos humanos o estatuto e
a ambição da eternidade. Ainda que cada morte seja única, é uma das coisas
que nos une a todos em seu mistério.

Apesar de incômodo, pensar a morte é, essencialmente, pensar a vida.


É pensar seu saldo – não apenas o que será dali em diante, mas o que resta-
rá por aqui. Epicuro (341 a.C. – 271/270 a.C.) dava à morte uma característica
menos problemática. Propunha que ela não passaria de uma dissolução dos
átomos que nos compõem, sendo o medo da morte algo ligado ao sentir – e
o sentir é algo de que a morte nos priva. Enquanto estamos vivos, a morte
não está; quando a morte chega, quem não está somos nós:

Então, o mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada


para nós, justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que
não está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é
que não estamos. A morte, portanto, não é nada, nem para os vivos,
nem para os mortos, já que para aqueles ela não existe, ao passo que
estes não estão mais aqui. E, no entanto, a maioria das pessoas ora
foge da morte como se fosse o maior dos males, ora a deseja como
descanso dos males da vida. O sábio, porém, nem desdenha viver,
nem teme deixar de viver; viver não é um fardo e não-viver não é um
mal (EPICURO, 1997, p. 27)

A perspectiva epicurista seguiu com Lucrécio (94 a.C. – 50 a.C.), poeta


romano cujo único trabalho conhecido é um poema intitulado Da Natureza
das Coisas. Ali estão expostas ideias como o tetrapharmakon, os quatro re-
médios propostos por Epicuro que provocariam a ataraxia, ou a tranquilidade
da alma decorrente da ausência de inquietações: não temer os deuses, não
temer a morte, ter prazer, entender que o bem não é difícil de se alcançar e,
por último, que o mal não é difícil de suportar. Mais ainda, ao conhecer a na-
tureza das coisas, torna-se infundado o temor, “porque a origem de tudo vem
da eternidade, não de uma só hora: e é na eternidade que os mortais terão de
passar todo o tempo que lhes resta após a morte”.
Casa do Saber

Esta é uma questão que atravessou todo o pensamento helênico. Quan-


do a Grécia assistiu ao fim das cidades-estado quando da dominação da
Macedônia, os referenciais éticos se deslocaram do corpo político para o in-

89
dividual, tornando os sujeitos o centro do pensamento. Logo, a morte passou
a ocupar boa parte das reflexões de pensadores daquele período, como não
apenas Epicuro, mas os estoicos na Grécia e Roma.

Uma das escolas filosóficas que mais pensou a relação entre nossa fini-
tude e as condições de nossa existência foi o estoicismo. Nascida na Grécia,
sob a figura de Zenão de Cítio (333 a.C. – 263 a.C.) por volta de 300 a.C.,
ecoou no tempo até a Roma de Sêneca e Marco Aurélio. O nome deriva do
local onde se reuniam – a Stoa Poikile -, um pórtico fora da ágora de Atenas
em que funcionava um mercado, e onde Zenão e seus discípulos se juntavam
para discutir - já que, diferente de Platão ou Aristóteles, não possuíam um
lugar específico, como a Academia ou o Liceu, para a prática da filosofia. De
todas as propostas, foi por meio da ética que os estoicos, por mais de meio
milênio, fizeram ser ouvidas suas mensagens particularmente iluminadoras do
sentido da vida, e consoladoras, libertadoras de ilusões. Para eles, a finalida-
de da vida é a felicidade – mais do que isso, esse é o fim principal e único de
todas as partes da filosofia (REALE, 2015).

Com efeito (...) os estoicos podiam proteger o homem dos males da


época em que viviam: todos os males derivados da ruína da antiga
polis e todos os perigos, inseguranças e adversidades provenientes
das convulsões políticas e sociais que se seguiram àquela ruína
(...) Esse era um modo muito audacioso de dar nova segurança ao
homem, ensinando-lhes que bens e males derivam sempre e so-
mente do interior do seu eu e nunca do exterior e, portanto, um
modo de convencê-lo de que a felicidade podia ser perfeitamente
alcançada de maneira absolutamente independente dos aconteci-
mentos externos. (REALE, 2015, p. 79)

PARA SABER MAIS:

DAR SENTIDO À VIDA


Luís Mauro Sá Martino
Casa do Saber

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90
Em Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.), a filosofia estoica teve uma de suas maio-
res representações. Em sua carta Sobre a Brevidade da Vida, anuncia que “a
vida toda é aprender a morrer”. Tal qual Sócrates, o exercício da vida deve
considerar, também, uma preparação para o seu fim. Essa perspectiva surge
da compreensão de que a morte é um processo natural da existência. Enten-
der a morte como essa parte constituinte de um processo maior é um dos
pontos levantados por Sêneca que justificam sua afirmação de que a morte
não é algo a se temer.

Velhos decrépitos mendigam em suas orações um acréscimo de uns


poucos anos; procuram parecer menos idosos e lisonjeiam-se com
mentiras e encontram tanto prazer em enganar a si próprios, que é
como se enganassem junto o destino. Mas, quando uma enfermi-
dade qualquer adverte-os de que são mortais, morrem tomados de
pavor, não como se deixassem a vida, mas como se ela lhes fosse
arrancada. Ficam gritando que foram tolos em não viver e que, se
por acaso escaparem da doença, haverão de viver no ócio; então,
tomam consciência de quão inútil foi adquirir o que não desfrutaram,
e de como todos os seus esforços resultaram em vão. Mas para
aquele cuja vida esteve livre de preocupações, por que não haveria
ela de ser longa? Dela nada foi transferido a um outro, nada foi ati-
rado a um e outro lado, nada foi dado à Fortuna, nada desperdiçado
por negligência, nada foi esbanjado com prodigalidade, nada ficou
sem ser empregado: toda ela, por assim dizer, teve proveito. E, deste
modo, por mais curta que seja, ela é mais que suficiente; e portanto,
quando lhe vier o último dia, o sábio não hesitará em caminhar para a
morte com passo firme. (SÊNECA, 2006, p. 49)

O estoicismo mantinha como exercício fundamental o pensar sobre a


morte como maneira de diminuir o temor sobre ela. Este procedimento – me-
mento mori – era uma das condições para alcançar a felicidade (ou ao menos
atenuar as aflições). Como uma filosofia de crise, o estoicismo foi recuperado
nos últimos anos como uma ética valiosa por colocar no eu, não em elemen-
tos exteriores, os referenciais das virtudes e do bem-viver, não sem sugerir
que estamos todos também submetidos a um todo maior. Pensar a morte,
ensaiá-la, seria uma forma de não deixar que o medo dela nos paralisasse ou
dominasse nosso pensamento. Isso permitiria que cada um se apoderasse,
portanto, da vida e do tempo restante de maneira mais consciente.
Casa do Saber

Enfrentar a questão da finitude de frente é também uma premissa do

91
existencialismo. A consciência de que nossa vida termina leva a uma reflexão
mais atenta sobre o significado que ela tem ao longo de sua duração. Uma
vez que não possuímos uma essência prévia que define nossa atuação no
mundo – a famosa alegação de Jean-Paul Sartre (1905-1980) em seu ensaio
O Existencialismo é um Humanismo (1946) de que “a existência precede a
essência” -, a liberdade à qual estamos condenados diz respeito justamente
à construção deste significado. Mais do que isso, o apossar-se dessa liberda-
de e dessa responsabilidade de construirmos a nós mesmos. Claro que essa
ausência de sentido prévio e os desafios de construção deste sentido não
passariam em branco pela história do pensamento.

Uma das classificações desta condição humana foi o absurdo. O franco-


-argelino Albert Camus (1913-1960) abre seu livro O Mito de Sísifo () com a
alegação de que “só existe um problema filosófico realmente sério: o suicí-
dio”. O que Camus propõe é o reconhecimento de que qualquer significado é
construído e atribuído exclusivamente por nós – o mundo e a realidade, por si
só, não têm sentido. Haveria duas escolhas, portanto: viver, mergulhando no
desconhecido, ou não viver. De acordo com Camus, aqueles que assumem o
absurdo são os únicos que podem viver verdadeiramente:

O que resta é um destino de que só a saída é fatal. Fora


dessa única fatalidade da morte, tudo, alegria ou felicidade,
está liberto. Permanece um mundo de que o homem é
o único senhor. O que o prendia era a ilusão de um outro
mundo. A inclinação de seu pensamento não é mais a de
renunciar, mas a de explodir em imagens. Ele se representa
em mitos, não há dúvida, mas mitos sem outra profundi-
dade que a da dor humana e, como esta, inesgotáveis. Não
a fábula divina que diverte e cega, mas o rosto, o gesto e o
drama terrenos em que se resumem uma difícil sabedoria e
uma paixão sem amanhã. (CAMUS, 2020, p. 116-117)

Na filosofia de Sartre, a liberdade é consequência direta da definição da


consciência como intencionalidade – a consciência é sempre consciência
de algo, ela é um movimento “em direção a”, portanto, intenção. Somos to-
talmente livres, capazes de escolher tudo, menos não sermos livres, pois
a liberdade não é mais uma questão ética. Isso faz com que o ser humano
se torne o que for consequência de sua liberdade, e as escolhas não serão
Casa do Saber

definitivas, obrigando-o a continuar escolhendo sem nunca chegar à essên-


cia. Só é possível supor uma liberdade se ela surgir do nada, uma vez que, se
viesse de algo, estaria condicionada e não seria total.

92
Em função disso, nosso processo de subjetivação – o movimento rumo
a se tornar indivíduo, nosso desejo de identidade – se intensifica: o fato da
existência preceder a essência faz com que nossa preocupação com ela
aumente, apesar desse desejo de alcançá-la ser irrealizável. Tudo que nos
tornamos é para que deixemos de ser. Todas as nossas escolhas são apenas
parte de um processo que nossa morte interromperá antes que acabe. Para
que ele acabasse, seria preciso que se realizasse a totalidade humana. É a
falta que nos constitui, e é impossível de ser suprida. Somos o desejo de to-
talidade. Constituímos nossa vida a partir de um projeto de ser e o desejo de
ser. Queremos transcender, mas a transcendência é decepcionante: o desejo
existe apenas para motivar a busca.

PARA SABER MAIS:

O QUE IMPORTARÁ
AO FINAL DA VIDA?
Luís Hanns

clique para assistir

Isso faz surgir o para-si, o que faz as vezes do “eu”. O homem tenta re-
alizar esse si como ser, pois ele mesmo será sempre definido pelo nada que
a consciência é originalmente, jamais um ser-em-si, realidade material pura
e simples com consciência de sua plenitude, como é deus. Nós buscamos
a realidade em-si-para-si: nós desejamos ser deus, juntar a imobilidade da
pedra com a consciência lúcida da totalidade. Buscamos suprir essa falta de
diversas maneiras, inclusive ilusões que nos coloquem aparentemente no
lugar de deus.

Como nosso desejo só se realiza sendo alguma coisa (apesar de sempre


de modo parcial), nós estabilizamos o que somos como se tivéssemos alcan-
çado a totalidade. A isso, Sartre dá o nome de má-fé: um truque para escapar
Casa do Saber

da angústia que nos assola quando verificamos que o que queremos é intrin-
secamente irrealizável. O indivíduo se faz si mesmo de forma tão exagerada
que acredita ser somente aquilo.

93
O antropólogo estadunidense Ernest Becker (1924-1974) é autor do livro
A Negação da Morte (1973), que rendeu ao autor um prêmio Pulitzer póstu-
mo. Neste estudo que reúne psicanálise, filosofia e estudos culturais, Becker
partiu da premissa de que o medo da morte é o maior motivador humano.
Admiramos aqueles que enfrentam a morte e temos nesse heroísmo a nossa
grande ambição enquanto espécie. Para Becker, “o herói era o homem que
podia entrar no mundo espiritual, no mundo dos mortos, e voltar vivo” – o he-
roísmo é um “culto” e nossa possibilidade de sobreviver à morte. No entanto,
vivemos em negação em relação à nossa morte, porque seria insuportável
viver com esse fato estampado o tempo inteiro em nossa consciência.

Não importa se o sistema de heroísmo de uma cultura é francamente


mágico, religioso e primitivo, ou secular, científico e civilizado. É,
mesmo assim, um sistema de heróis mítico, no qual as pessoas se es-
forçam por adquirir um sentimento básico de valor, de serem especiais
no cosmo, de utilidade máxima para a criação, de significado inabaláv-
el. Elas adquirem esse sentimento escavando um lugar na natureza,
construindo uma edificação que reflita o valor do homem: um templo,
uma catedral, um totem, um arranha-céu, uma família que se estenda
por três gerações. A esperança e a fé estão em que as coisas que o
homem cria em sociedade tenham um valor e um significado dura-
douros, que sobrevivam ou se sobreponham à morte e à decadência,
que o homem e seus produtos tenham importância. Quando Norman
O. Brown disse que a sociedade ocidental, mesmo a partir de Newton,
por mais científica ou secular que alegue ser, ainda é tão “religiosa”
quanto qualquer outra, eis 0 que ele queria dizer: a sociedade “civiliza-
da” é uma esperançosa crença e protesto de que a ciência, o dinheiro
e os bens façam com que o homem valha mais do que qualquer outro
animal. Nesse sentido, tudo aquilo que o homem faz é religioso e he-
roico e, no entanto, corre o perigo de ser fictício e falível. A pergunta
que se torna, então, a mais importante das que o homem pode fazer a
si mesmo é simplesmente a seguinte: até que ponto ele está cônscio
daquilo que faz para conseguir o seu sentimento de heroísmo? Sugeri
que, se todos admitissem honestamente sua ânsia por serem heróis,
isso seria uma arrasadora liberação da verdade. Faria com que os
homens exigissem que a cultura lhes desse o que lhes é devido — um
sentimento básico de valor humano como contribuintes sem igual para
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a vida cósmica. De que modo conseguiriam as nossas sociedades


modernas satisfazer uma exigência assim tão honesta, sem serem
abaladas em suas fundações? (BECKER, 1991, p. 19)

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PARA SABER MAIS:

A NEGAÇÃO DA MORTE
Andrei Martins

clique para assistir

Nossa finitude engloba tudo – o tempo, nossas relações, nossa liberda-


de e tudo que se desdobra a partir destes elementos. A provocação de Niet-
zsche ao descrever a ideia do eterno retorno é inquietante justamente porque
coloca tudo isso em perspectiva. Retornando a Heráclito e à ideia do mundo
como um fogo eterno que se consome e renasce ao mesmo tempo, a pro-
posta de uma existência que não realiza um arco entre uma arché (um princí-
pio motivador das coisas) e um telos (uma finalidade, propósito), mas que se
atualiza no momento preciso do instante. Em A Gaia Ciência (1882), Nietzsche
enuncia a proposta:

E se, durante o dia ou à noite, um demônio te seguisse à mais solitária


de tuas solidões e te dissesse: -Esta vida, tal qual a vives atualmente,
é preciso que a revivas ainda uma vez e uma quantidade inumeráv-
el de vezes e nada haverá de novo, pelo contrário! – É preciso que
cada dor e cada alegria, cada pensamento e cada suspiro, todo o
infinitamente grande e infinitamente pequeno de tua vida aconteça-te
novamente, tudo na mesma sequência e mesma ordem – esta aranha
e esta lua entre o arvoredo e também este instante e eu mesmo; a
eterna ampulheta da existência será invertida sem detença e tu com
ela, poeira das poeiras! Não te lançarás à terra ringindo os dentes e
amaldiçoando o demônio que assim tivesse falado? Ou então terás
vivido um instante prodigioso em que lhe responderias: “És um deus
e jamais ouvi coisa mais divina”. (NIETZSCHE, 1976, p. 223)
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Não há registros de que Nietzsche tenha lido Kierkegaard (e certamen-


te Kierkegaard nunca leu Nietzsche), mas há aí uma proximidade inquietante

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com a ideia de repetição de que tratamos no primeiro encontro. Por mais que
essa consciência seja insuportável, ela é necessária para que nos lembre-
mos dessa possibilidade de retomada, de posse de nós mesmos e de nosso
destino. A cada repetição há, paradoxalmente, a possibilidade de nos liber-
tarmos dos grilhões – a repetição que se move para frente, não para o passa-
do. Entre as diversas abordagens que tratamos aqui, muito se assemelha em
relação à ideia de que este sentido para a vida, se não existe, é artificial: de
um lado, a ausência de sentido é um absurdo praticamente inconcebível; de
outro, uma ilusão. De todo modo, é ele o chão sobre qual pisamos os passos
de nossa existência.

Em seu livro Mortais (2014), o médico Atul Gawande (1965-) diz que “a
vida tem significado porque é uma história” que temos capacidade de moldar,
apesar de o tempo ser ininterruptamente mais escasso a cada segundo. A
grande sacada, segundo ele, é perceber que há outras prioridades além do
fato de estar e permanecer vivo – de sobreviver. Por mais insuportável que
seja, essa consciência do fim é necessária e precisa ser encarada de forma
madura. Essa consciência faz emergir a ideia de presença no sentido de estar
presente, notando os instantes, a nós mesmos e as coisas que nos cercam
com uma atenção mais dedicada.

Ana Claudia Arantes, médica que atua na área de cuidados paliativos,


apresenta a partir de sua experiência a ideia de que “talvez o jeito mais fácil
de viver bem seria incorporar nosso dia estas cinco nuances da existência:
demonstrar afeto, permitir-se estar com os amigos, fazer-se feliz, fazer as
próprias escolhas, trabalhar com algo que faça sentido no seu tempo de vida,
e não só no tempo de trabalhar” (ARANTES, 2019, p. 153). Cada um destes
elementos demanda uma série de virtudes que procuramos desenvolver aqui:
o respeito, a tolerância e a compaixão para sermos mais humanos em nossas
interações com o que é diferente de nós; a responsabilidade, a generosida-
de e a gratidão para que essas relações manifestem o bem para além de nós
mesmos; a coragem para tomarmos as rédeas da nossa existência; a simpli-
cidade e a humildade para encararmos que temos nossos limites; a consci-
ência de que somos humanos, com todas as proporções que essa condição
traz consigo.
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96
PARA SABER MAIS:

O QUE LIDAR COM A MORTE


ENSINA SOBRE A VIDA
Ana Cláudia Arantes

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BIBLIOGRAFIA E RECOMENDAÇÕES DE LEITURA

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