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como operar sobre ele? Dá-nos a certeza uma indicação diagnóstica,
o que é uma das funções das entrevistas prelimiIlares? Essa relação
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com a certeza é obviamente o que faz com que, até o momento, a 11
análise seja impossível. Mas ao considerar atentamente o caso, pode-
se discemir uma evolução dessa posição, que vai da telepatia como o DESTINO DO SINTOMA
fórmula meditada de sua posição à proposição: "O analista fala de
mim".
Primeiro esboço de transferência, portanto primeira criação
transferencial, mas não ainda proprianlente analítica, pois em sua
relação à certeza, o analista se encarna. Ele é um corpo, um signifi-
cado. Observemos entretanto que ao mesmo tempo que se produz es-
se deslizamento, surge uma pergunta que pode desenhar as bordas
de outra transferência, em direção à análise, Sua pergunta: "Que di-
z.em os pacientes em uma análise?" manifesta com efeito uma pri-
meira forma de dúvida. Será preciso esperar que esta pergunta se de·· No caso de que se vai cuidar, é paradoxal falar de entrevistas preH··
senvolva e tome-se: "Por que uma análise?, porque onde se colo- minares porque estas entrevistas, preliminares à entrada em análise
carão seu sintoma e seu analista.
propriamente dita, já são entretanto tomadas no tratamento, Todos os
Nessas entrevistas preliminares, trata-se portanto de dialetizar psicanalistas virafil nessas entrevistas do início com um paciente um
a certeza, de efetuar uma passagem em que o analista, como produto momento de avaliação; alguns o exigem a partir da noção de analisi-
do trajeto, irá se tomar o objeto que resta como objeto da separação. bilidade numa 6tica predizível, e daí tirafil uma pergunta técnica:
Esse agente da separação, dele fala Freud nestes tennos:, uToda libi- quem é posto no divã? J. Lacan, ao insistir sobre a estrutura do su-
do e toda resistência à libido encontram-se concentràdas na única
jeito e a disjunção neurose/psicose em particular, contribui por ou-
atitude a respeito do médico, e, nessa ocasião, produz-se inevitavel- tro lado para restituir a esse momento toda a sua importância clínica,
mente uma separação entre os sintomas e a libido, aqueles aparecen- isto é, toda a sua incidência sobre a direção do tratamento. Mas, ao
do despojados desta. Em lugar da doença propriamente dita, temos a afirmar ainda, em 1971: não há entrada possível na psicanálise sem
transferência artificialmente provocada, ou, se preferem, a doença da entrevistas preliminares, ele vai mais longe e não remete somente às
transferência: no lugar dos objetos tão variados quanto irreais da li·, considerações técnicas ou a uma invocação elementar à prudência
bido, não temos Senão um só objeto, ainda que igualmente fantas- terapêutica: ele visa a estrutura mesma do dispositivo analítico no
rnático: a pessoa do médico." aparecimento de uma demanda que seja uma demanda de análise.
Se é preciso produzir essa separação pela via significante, o Esta demanda propriamente falando nunca é inaugural, ainda quando
caminho depende da lógica: o ato psicanalítico se efetua pela passa- pretenda sê-Io intitulando-se demanda de se tornar analista; a de-
gem de um conjunto (sintoma-libido) a uma classe onde um x orien- manda daquele que é preciso agora chamar paciente é antes de tudo
te. O x é um produto: o analista que, imaginarizado como externo, demanda de alívio e parte de uma queixa. A queixa o traz ao hori-
introduz o paciente à psicanálise. O x como sintoma novo deverá de- zonte das terapias, seja qual ,for, mas não o conduz à análise: pode-
saparecer, mas na condição de ter ocupado o lugar que lhe cabe. se mesmo ir mais longe e mostrar que entre a demanda de alívio -
Lugar que se funda numa ética, e não num simples contrato comer- por legítima que seja, e, nesse sentido, devendo ser levada em conta
cial de boa consciência. pelo analista - e a demanda de análise, há uma antinomia que se po-
Digamos, para concluir com Lacan, que se um analista advier deria enunciar assim: "Alivie-me, mas sobretudo não toque em nada,
para a Slta. '1'., ele desaparecerá: daquele que tudo sabe, ele se tor- não toque em meu ser de sujeito, isto é, em meu fantasma".
nará resto puro - a. Um de nossos desafios será então o de mostrar que o dispositi-
vo analítico, presente nas entrevistas preliminares, opera uma
FRANCISCO HUGO FREDA
mutação da demanda, a qual não é possível senão a pmtir da coloca-
Tradução do espanhol: Delia Esquibel ção desse operador que é a transferência. Como Jacques-Alain Mil-

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70 clfníca lacaníana
o destino do sintoma 71

ler1 O enunciou, a clínica psicanalítica é uma clínica sob transferên-


cia. Nosso estudo das entrevistas preliminares deveria pois pemútir coisa. Ela se esforçou para pôr um nome no que lhe acontecera, ain-
mostrar em que "no começo da psicanálise é a transferência".2 Nos- da lhe acontecia, e o achou num livro intitulado: Você é espasmojtli-
so segundo desafio consistirá em pôr em evidência a "ordenação co?, cujo conteúdo parecia aliás permitir a cada leitor responder -
subjetiva" de um caso, termo utilizado por Lacan em "Kant avec sim, e foi o que ela fez. Senhora desse saber, procurou a acupuntura
Sade"3 relembrado por Jacques-Alain Miller num seminário consa- para um tratamento ao cabo do qual o especialista lhe disse que o
grado a esse texto.4 Assim designamos o que um psicanalista e.stá resto não era de sua competência.
na obrigação de destacar da abundância do material fornecido na Quando superada, pelo recurso a esse saber de empréstimo, a
experiência analítica. Essa ordenação resulta portanto da hipótese do angústia absoluta que a envolvera, a urgência que a impelia ao meu
inconsciente. Nosso empenho será de traçar as grandes linhas da or- gabinete era portanto a de um sintoma construído por ela, durante
dem do sujeito construído a partir de uma sucessão temporal demar- esses três meses, achando-lhe o nome. Essa primeira construção do
cável nessas entrevistas preliminares, sucessão menos cronológica sintoma fora do dispositivo analítico manifesta de imediato a relação
do que lógica. do sintoma ao significante e toma assim possível, pelo seu engata-
mento na ordem simbólica, a demanda que ela vem formular: de-
manda não de psicanálise, mas de psicoterapia, concebida como as-
sistência, a um só tempo esperada e detestada na medida em que ela
Espasmofilia? aí via a marca de seu desfalecimento. Quanto à psicanálise, pare-
cia-lhe inquietante, e de natureza a transformar, dizia ela, o "seu
ser". A sua demanda de psicoterapia respondi pela proposta de en-
A Senhorita X. me chegou com um sentimento de extrema urgência; trevistas, explicando minha posição de analista. Nesse caso, a ques-
sentimento entretanto discutível, pois ela podia vir ver-me pelo fato tão do diagnóstico, ou, se quiserem, da "avaliação" não era central,
justamente de não estar tão mal quanto tinha sido·Q caso, três meses porque a somatização, assim como a estrutura bem depressa delimi-
antes. Havia se declarado então, numa volta de férias, um episódio tada de seu desejo, não deixavam dúvida sobre o fato de se tratar de
dramático que a deixara arrasada, e cuja causa ela tentara primeiro histeria. Surgiu então com maior evidência, nessas condições, a fun-
descobrir numa tomada de haxixe, num encontro social aliás inco- ção das entrevistas preliminares adiantadas por Lacan.
mum; com alguns amigos, ao findar a reunião, ela fumara e de re- Durante um mês e meio, à razão de duas sessões por semana, a
pente se sentira assaltada por um estado inominável, por ela descrito espasmofilia ocupou o proscênio. A paciente testou esse sintoma
como tetanização de todo o corpo, seguida de um tombo, e já no construído em outro lugar, procurando saber se ele se mantinha no
chão, de um grito: "Vou morrer, vocês não vêem que estou mor- seio do novo dispositivo no qual ela se aventurava. Mas essa cons-
rendo?" Esta primeira crise se tinha repetido depois várias vezes, e tituição significante do sintoma que a havia conduzido à psicanálise
desde então ela vivia na perpétua angústia de vê-Ia surgir de novo, e era também o que dela a afastava. O saber já ali condensado com
pois na necessidade, a todo instante, de' prevenir uma queda even- efeito lhe permitia referir-se a uma doença, enti,dade medicamente
tual. Foi procurar num serviço médico especializado na droga uma constjtuída, cuja causa podia ser orgânica ou genética; doença banal,
resposta que não obteve, pois o médico lhe garantiu que ela "não ti- em suma, hereditária além do mais, que excluía o sujeito em sua di-
nha nem um grão de droga no organismo", e, sem dúvida, era outra visão. Contra isso, podia ser a psicanálise outra coisa senão impo-
tente? A pergunta feita ao analista era então: "Que pode o senhor
fazer por mim, pois sofro de uma doença que tem um nome e um lu-
gar no livro?" O sujeito do inconsciente logo aparecido nesse mal-
1 Jornadas de Outono da Escola da Causa Freudiana, 1983. estar absoluto, que a subjugava já há três meses, achava jeito de de-
2 J. Lacan, "Proposition sur te psychanalyste de l'École", Sdlicet n~ I, Seuil, Paris, 1968,
saparecer nwn apagamento que parecia permitir aí o discurso da
~.18.
Id., "Kantavec Sade", Écrits, Seuil. ciência. Parecido nesse ponto em sua estrutura à denegação, esse
4Seminário de DEA, Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII, sintoma trazia à luz o inconsciente ao mesmo tempo que o fazia es-
1982-1983. vaecer. As sessões pareciam boletins de meteorologia: "Hoje, vai
bem. Ontem estava mal..." O trabalho consistiu, nessa primeira se-
o destino do sintoma 73
72 cl(nica lacaniana

mana de entrevistas, em prosseguir a elaboração do sintoma dessa também é espasmofflica". Ela lembrou-se então dos acessos de cóle-
vez no quadro da situação analítica, isto é, sob transferência: a per- ra da mãe, aos berros, como momentos insuportáveis: "Os vizinhos
gunta da paciente se organizou como demanda de produção de sa- a chamavam 'mulher da matraca' porque ela tinha o costume de nos
ber: "O que provoca minhas crises de espasmofilia?", pergunta à perseguir, tamanco na mão. Às vezes, eu chegava à janela, abria-a, e
qual ela foi levada a responder ela pr6pria: "Nada. Elas são impre- ameaçava jogar-me no vazio, se ela não parasse". O segundo foi
visíveis" . obtido pela descoberta que ela fazia de espasmofílicos em torno de··
Esta resposta não podia surgir e ser aceita senão na medida em Ia, entre suas amigas. Uma dela,>, particularmente, esvaziava seus
que, contrariamente ao livro que dizia tudo sobre a espasmofilia, o armários quando das crises. Então quando me admirei de que ela ti··
analista não ostentava um saber preexistente ao pr6prio sintoma. Re- vesse identificado seu pr6prio sintoma, quando nada de comparável
cusando responder, ele permitia o aparecimento de um nOvo saber, se passava em suas crises, ela achou de responder que se essa amiga
contanto que, agora, a paciente seja dele separada. As entrevistas fo- voltava sua ira contra os móveis era para escapar à compulsão que
ram então centradas sobre o que era, no discurso da Srta. X., no seio lhe vinha nesses momentos, de se atirar pela janela. Um encontro
da articulação significante, a espasmofilia: o sintoma era efetiva- com um amante perdido muitos anos antes ofereceu a terceira ocor-
mente então o único indicador desse saber em jogo. rência do que se constituiu como uma série: ele acabara de perder a
mulher. Esta, pensando abrir a porta do banheiro, tinha aberto a
porta que dava direto sobre uma escada muito íngreme, e precipita-
ra-se no vazio, numa queda mortal: a paciente teve de súbito a idéia
Cair de que ele bem podia ter dado um empurrão.
Ao cabo desse mês e meio de entrevistas, ela pattÍu em férias.
O surgimento do significante da transferência, de que emito aqui a
A primeira associação se fez do espasmo aos choros, caracterizando hip6tese que se trata de "cair", teve como efeito que, quando da
a relação amorosa maior de sua vida - que durara cinco anos e ter- primeira sessão após sua volta, ela me anunciou que afinal aprendera
minara um ano antes de manifestar-se sua primeira crise. Desse ami- a esquiar, coisa que há muitos anos tentava em vão: "isto s6 foi pos-
go, ela dissera para si mesma, no seu primeiro encontro: "Será este, sível porque aceitei cair", diz ela. Entrar nessa suposição de saber
e nenhum outro". A relação deles tinha contribuído para sua trans- tinha o mérito de aceitar cair sob o golpe dessa divisão que ela con-
formação, ela tão fmie, com quem os outros vinham se abrir e tinha sagrava. Acrescentou então que não era espasmofílica. De fato, as
por função "colar os pedaços", numa mulher que chorava à-toa, crises de íetania tinham desaparecido, pelo seu lado espetacular.
cujo mal-estar, longe de abrandar pelo milagre do amor, se tinha
amplificado ao ponto dela sentir-se mal, deprimida e dependente,
desde que tinha conseguido fazer desse s~r único o seu companhei-
ro. Ela contou como conseguira, depois de longo período de "cama- o gozo da mãe
radagem", tomar-se sua amante: amante de quem ele tinha vergo-
nha, no início dessa relação dos dois, de ser visto, entrando em casa
dela de noite, e recusando toda manifestação pública de intimidade Abre-se agora uma segunda fase dessas entrevistas preliminares, du-
entre eles. rante a qual a Srta. X. cuidou de procurar outro nome para o sintoma
Se a espasmofilia remetia à ruptura com esse homem como do qual sofria: foi "a angústia de ser roída pelo ex-amigo" ou a "de
possível ponto de origem, ela própria já estava chorando no inicio estar presa numa espera de sua volta que a levava à aniquilação".
da relação amorosa. No amor, uma mudança de posição tinha se in- Este segundo período começou com a elaboração da posição onde a
trometido, que a ruptura somente havia patenteado. havia colocado sua relação Com o amigo; posição de falta em ser.
Três elementos da cadeia associativa fizeram aparecer em que Até então, o pai tinha aparecido no seu dizer como marco absoluto:
o sintoma tinha sido uma resposta a essa mudança de posição. O ela era o orgulho dele, .seguira os estudos segundo o desejo dele e
primeiro se apresentou como uma recordação de infância relativa à com a sua ajuda vigilante, e como ele, tinha paixão pela música. Ela
mãe, evocada a partir de uma hereditariedade provável: "Minha mãe combinara os dois numa vocação precoce e de certeza absoluta, tor-
74 clfnica lacaniana
o destino do sintoma 75

nando-se professora de violoncelo: "Meu instrumento é a minha


coluna vertebral", dissera ela quando da primeira entrevista. Esse ve, tinha sido bem compreendida pelas crianças - que a isso se ti-
encontro com um homem, entretanto, a tinha feito cair. Desde então, nham habituado - como "Vocês podem morrer, contanto que eu me
ela se sentia desfalecer. salve", que confirmava a afirmação materna de não ter querido ne-
Ele, qualificado por ela de "objeto precioso", perfeitamente nhum dos filhos. A descoberta de sua posição particular na fratria
belo, auto-satisfeito em suas atividades, para nada precisava dela: em relação à mãe foi uma surpresa para ela. Percebeu isso depois de
ela evocava a falta de seu desejo por ela, o que a deixava única de- um telefonema no qual a mãe lhe disse que estava passando mal,
sejante. Ela tinha o sentimento que ele não a via, no sentido próprio desde o último fim de semana, quando ela tinha ido vê-Ios. À sua
do termo: "Ele me esbarrava sempre, como se não me visse, ele pas- tentativa de banalizar o caso, dizendo à mãe: "Você tem vivido para
sava por cima de mim". Sua relação com ele era feita de espera e de os filhos; quando partimos, você sente-se vazia", veio a réplica:
lamentação: nisso ela reproduzia a pantomima materna feita para o "Não, s6 você; só quando você vai é que eu fico assim. Você é tudo
pai: "Não quero ficar como minha mãe, sempre quis ser diferente para miln". Foi para ela um ponto insuportável.
dela, incapaz de reagir". Já nos primeiros meses de.sua ligação, ela Ela associa as poucas lembranças seguintes: quando uma de
tinha "caído" grávida, e o aborto ao qual ela se decidira a tinha suas tias paternas morreu em acidente de automóvel, ela foi a pri-
também reconduzido a uma identificação com a mãe, sempre ocupa- meira a sabê-lo pela mãe, em segredo por alguns dias. Também, um
da com o desejo de abortar. Também, um torpor a tinha invadido, ano mais tarde, foi a única a ser perguntada pela mãe se desejava ver
que a levava para esse lado. A mãe veio então ao primeiro plano das o avô no leito de morte. A única enf'1I1l,para quem a mãe, quando o
entrevistas. Realmente, a paciente já tinha falado de sua depressão pai tinha sido operado de quisto canceroso na perna, tinha evocado a
constante já há dez anos; mas esta depressão pareceu então conecta- coragem que ela, filha, precisaria ter para substituir o pai, caso ele
da mais precisamente à sua saída de casa, para o co~eço dos estu- morresse: segredo absoluto, pois, quinze anos depois, o pai ainda
dos. Ela precisou então os sintomas maternos: a mãe não podia mais ignorava a natureza cancerosa daquele quisto. Essas confidências
dirigir o carro, e a cada partida em férias era o inferno. Por outro la- faziam dela a parceira da mãe, mais do que o pai de quem a própria
do, sempre soube que a mãe morria de medo a ponto de nunca se mãe havia dito: "Se você pensa que sinto prazer quando seu pai tre-
deitar sem olhar embaixo da cama e fechar à chave a porta do quar- pa em mim"; parceira de um gozo de morte ao qual a serpente tenta-
to, quer o pai estivesse lá ou não. va impor um limite, fazendo as vezes, como Lacan mostra, como
Nesse mesmo tempo, ela ficou com medo de dirigir o automó- significante para todo serviço, do falo em falência - dar um nome ao
vel, e num desvio de uma associação surgiu inocentemente um sin- inominável desse gozo materno, detrás da porta - significante que
toma muito antigo, não percebido como tal, e não sendo objeto de lembra, pelo seu poder de deslizar sob todas as portas, alguma coisa
queixa alguma: uma severa fobia de cobras que lhe fazia achar insu- de "lamela" de que fala Lacan na "Position de l'inconscient": Para
portáveis até as representações do animal., Ela indicou que não era aí meter os dedos, o mais valente teria base para pensar com cuida-
nem a picada nem o veneno que faziam da serpente um objeto f6bi- do, temor que entre os dedos ela .se escorregue para ir se alo-
co, mas porque era de uma forma pr6pria a se introduzir em toda jar aonde?"5 Nada pode deter este "ser mortífero", órgão do incor-
parte, isto é, passar debaixo das portas. Justamente ela tinha encon- p6reo no ser sexuado, nada senão esse "cristal significante da fo-
trado recentemente uma cobra-de-vidro sobre o patamar da entrada bia" que o espeta. O "Sê tudo para mim" dirigido a seu amigo, es-
da casa, ficando depois obrigada a múltiplas precauções, inquieta colhido por sua beleza, último baluarte diante do horror da castra-
com o interstício existente entre a porta e a soleira. Na infância, ção, que entretanto ele faz ver, numa de suas características maiores:
lembra-se a paciente, não tinha medo de nada. Sabendo disso, a mãe "Ele tem olhar morto" , faz surgir em eco o "Você é tudo para mim"
a aproveitava, pedindo-lhe sempre que a acompanhasse ao celeiro que a mãe lhe dirige - a ela só - que devia ter compreendido há
para estender a roupa, pois era incapaz de ir lá sozinha. muito tempo que "não precisava lhe pedir nada" para ser amada por
Na seqüência das sessões, o papel de apoio que ela exercia pa- ela.
ra a mãe ainda mais se afirmou: "Sem dúvida, eu também tinha me-
do naquele celeiro, e em outros lugares, mas tinha ainda mais medo
do medo de minha mãe". A porta do quarto, fechada sempre à cha-
5 Jacques Lacan, Écrits, p. 846.
76 clfnica lacaniana o destino do sintoma 71

Ela teve então um pesadelo: "Na adega, minha mãe matava a de desaparecer, no fracasso do fantasma em manter o gozo nos li-
golpes de matraca as cobrinhas que eu lhe apontava": fez-se uma mites do desejo.
trajetória, do celeiro à adega, da mãe apavorada, que ela deve salvar
arriscando a própria vida, à mãe apavorante, da qual ela não se livra Tempo 2. Construção, fora do dispositivo analítico, de um
senão fazendo-se agente de um desejo cujo objeto é a morte do pró- primeiro sintoma, a espasmofilia, organizado a partir do discurso da
prio sujeito. A pergunta da paciente: como não ficar presa a serviço ciência, isto é, na sutura do sujeito do inconsciente. Esse ptimeiro
do gozo da mãe? Se desdobra a partir dessa posição: aí pode se es- sintoma tem estrutura de resposta à irrupção de wn real traumático e
clarecer o que marcara e marcava ainda a relação com seu arrugo: ao aparecimento do sujeito do inconsciente no modo de sua evanes··
a importância da outra mulher. Ela sempre quis a mais absoluta cência.
franqueza de sua parte, e exigia para sua infidelidade mulheres que Esses tempos 1 e 2 são as condições, não a causa, de demanda
v.alessem a pena, isto é, mulheres que ela pudesse venerar; após a de psicoterapia ..
separação, algumas aventuras homossexuais tinham intensificado sua
angústia. Sua fascinação diante do par ideal que seria constituído Tempo 3. O sintoma se contrói sob transferência. No disposi-
por seu amigo e uma mulher a mergulhava num estado de decadên- tivo do discurso analítico, que, em vez de sutm:ar o sujeito, mantém
cia, de perda dela mesma que, enquanto organizava seu desejo, a aberta a hiância do inconsciente, o sintoma pode manifestar sua di-
devolvia a um além do falo onde reinava a pulsão como pulsão de visão ao próprio sujeito. É então que aparece, através das associa-
morte.
ções sobre a espasmofilia e a tetania, o significante da transferência.
Este sonho foi a primeira interpretação do tratamento, e mar- O sintoma passa da forma de resposta que ele tinha fora do disposi··
cou o fim das entrevistas preliminares. Atingindo esse ponto, a Srta. tivo analítico no tempo 2 à fOnD.ade pergunta. Ele presentifica a do
x. anunciou que chegara o momento de se colocar no djvã. Assim sujeito, e pode então conduzir à análise na medida em que seu so-
ela fez, na sessão seguinte. Se foi o término das entrevistas, não foi frimento assume significação, por referência ao saber de um Outro,
o início da análise, que já começara. Nas "desventuras do desejo que a confere para ele. Um primeiro trajeto se efetua, da demanda de
nos limites do gozo", tinha-se entregado um "saber de um lugar que ajuda e de alívio à demanda de saber. A colocação da transferência
difere de toda tomada do sujeito". torna analisável o sintoma. Ele converte-se par!! a Srta. X. num
enigma, numa mensagem cujo sentido, se bem que escondido dela,
começa a existir, decifrável pelo Outro. Tal como esse escravo do
qual fala Lacan, que carregava na testa a ordem de sua condenação
Angústia e depressão sem sabê-Ia, a paciente pouco a pouco adivinha que algo está escri··
to, que funciona como apelo ao saber. É o surgimento do incons-
ciente freudiano.
É portanto possível construir.a sucessão temporal que dá conta desse
surgimento do sujeito, no mesmo tempo da produção desse "saber, Tempo 4. Ela mesma o ignorava, mas a Srta. X. entrou no dis-
suposto presente, dos significantes no inconsciente". 6 positivo analítico - sem por isso estar em análise -; ela passou de
uma transferência dema.ndante a uma transferência produtora de sa-
Tempo 1. Na primeira crise de tetania, aparecem a queda e a ber, com este 'Não sou espasmofílica". Out.ros elementos, antes ex-
angústia da queda. Formulamos a hipótese de ser o tempo do trauma, cluídos, são reconduzidos e ordenados na cadeia associativa; assim a
irrupção de um real, que faz literalmente perder o pé a Srta. X., já fobia das serpentes, desapercebida como sintoma até então, ou ainda
abalada em sua relação amorosa. Essa experiência, de gozo, tem es- a ausência de qualquer doença ou cansaço que caracterizavam, no
trutura comparável à da passagem ao ato: o sujeito está aí ameaçado dizer da própria Srta. X., a relação que ela mantinha com seu corpo
desde a primeira infância até sua ligação amorosa. Ela não podia
nem "cair doente", nem "cair de cansada", nem mesmo ter medo. A
angústia e a depressão são .os novos nomes de seu sintoma, sob
6 Id .• "Proposition sur la psychanalyse de l'École", op. cit., p. 20.
transferência. Desse ponto de vista, a colocação desta tem no come-
o destino do sintoma 79
78 clfnica lacaniana

objeto como numa passagem ao ato: momento de separação, em que,


ço um efeito de sedação, depois paradoxalmente, de agravamento dos numa queda, o sujeito se faz ele mesmo todo inteiro objeto do gozo
sintomas. As entrevistas preliminares efetivamente permitiram o de- do Outro, este Outro animado de um desejo de morte. O episódio da
saparecimento da espasmofilia e a atenuação das crises de tetania, grande crise de tetania, no tempo 1, sem dúvida ganhou seu impacto
que tinham trazido a Srta. X. à psicoterapia, mas terminam ao apare- angustiante por ter funcionado como travessia selvagem do fantas-
cerem manifestações múltiplas que até então estavam fora de signifi- ma. A parte final dessas entrevistas evoca, no carinho das confidên-
cação e agora adquiriam uma, transferencial. cias maternas, o além do princípio de prazer, o gozo em função do
Este "não sou espasmofílica", enunciado ap6s um "aceitei qual o fantasma foi elaborado, num descaso materno do qual a Srta.
cair", torna verdadeiramente possível a passagem à análise, isto é, o X. não pode ser senão o resto, ou, como é interpretado no seu so-
n6 da vertente significante da transferência, permitindo o trabalho a nho, o agente. Da posição fática onde ela estava, o mau encontro
partir de sua própria divisão significada ao sujeito com a transferên- amoroso a desalojou para trazê-Ia de volta a esse abandono originá-
cia sobre a vertente do amor que se dirige ao saber. A presença do rio. De largar (abandonar) a cair se amarra, com a suspensão da res-
analista é então efetivamente levada em conta e autoriza o "cair" se posta do fantasma, a questão do sintoma, como tentativa de sair do
transfonnar em "querer ficar no divã". Encetar uma análise é por impasse no qual se encontra engajado o seu desejo.
certo entrar no mundo regrado da associação livre como sujeito da
alienação. Nisso, as entrevistas preliminares não estão em ruptura MARIE-HÉLENE BROUSSE
com a pr6pria análise: as associações significantes produzem um
deslocamento do saber, e metem o sujeito no trabalho. Mas estão em
ruptura no concernente a esse ponto que permite o ordenamento
subjetivo a partir da cadeia significante:ponto de separação, destaca-
do pelo amor de transferência, que faz emergir o objeto em lugar do
analista; aceitar cair é aceitar ser desapossada, como conseqüência
de falar, do objeto que o analista por sua presença pode encarnar.
Repete-se no dispositivo analítico essa tuche que acontecera com a
Srta. X. no amor: encontro da barra sobre ela e também da cessão do
objeto do qual ela está separada, que ulteriormente, no decurso da
análise, ela irá resumir pelo seu traço fundamental "a fixidez de seu
ser-lá" .
Esse início de tratamento leva também, seguindo o trabalho de
Jacques-Alain Miller,7 a refletir na ligação entre sintoma e fantasma.
Faremos a seguinte hip6tese: no início das entrevistas, o significante
da transferência fica preso em três vinhetas que remetem ao desdo-
bramento, na vida eno dizer da Srta. X.,das figuras de seu fantasma,
como estrutura que dá ao sujeito o modo de constituição de seu ob-
jeto ou de seus objetos. Como tal, ele organiza seu desejo, isto é,
permite e limita esse desejo. Do seu fantasma, ela é perfeitamente
cortada, o que Freud já indica em "Uma criança é batida". Nossa hi-
pótese se ap6ia na estrutura mesma destas três vinhetas: o quadro da
janela ou da porta é aí prevalente; a barra sobre o sujeito (golpe de
matraca ou impulso matador) aí aparece correlata ao surgimento do

7 Jacques-Alain Miller, "Du syroptõme au fantasme, et retour", curso do ano 1982-1983,


l)"n~rrnm"nto de Psicanálise da Universidade de Paris VIII.

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