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ISSN 2764-5649

SUMÁRIO

EDITORIAL
Revista Menó 2

PEABIRU 3000

A conquista do Brasil 3
Marlon Andaluz

A Torre 8
Marcelo Valle

3000 rumos no tempo 9


Ademas Pereira

OBSERVATÓRIO COTIDIANO

A faxineira do hospital 14
Roberto Brito da Silva

Que Agonia 18
Felipe Moura

No olhar de uma criança 19


Carlos Douglas Martins

NÓ EM PINGO D´ÁGUA

Os “MEI”s caminhos que estão se abrindo 25


Vivi Linares

O NEGÓCIO É SER RURAL

Escolas agrícolas no interior do Rio de Janeiro: tradição ameaçada 29


Eliana Leite

BORA APRE(E)NDER?

O fim da educação 33
Robson Campanerut

PARTIU RESENHA

Entrevista - Livraria Aláfia 36


Carlos Douglas Martins

Resenha - Romance histórico 42


Carlos Douglas Martins

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Com satisfação apresentamos a 1ª Edição da Revista MeNÓ!

A MeNÓ vem dizer ao público sobre o seu meio. Sobre o mundo a que ela pertence.
Um mundo com muitos rumos, caminhos e travessias. MeNÓ é o cotidiano em migalhas. É
um novo rumo. Como projeto de comunicação, fruto desta constatação e ação de um desejo
em buscar um novo caminho. Nossa intenção é mostrar as vias necessárias para a reflexão em
nossos tempos, lançada junto com a terceira década do terceiro milênio. Em um momento de
profunda crise. Crise civilizacional. Crise dos fundamentos da sociedade. Crise cotidiana,
revivida e multiplicada durante os dias.

A Pandemia de Covid-19 que já impacta o mundo a mais de ano teve efeito direto
sobre a nossa forma de organização social. Sobre aquilo que nossos valores sustentam, sobre
os nossos princípios. Esta crise, e sua consequência catastrófica para o Brasil foi um
somatório de outras tantas crises que o mundo vem conhecendo nos últimos anos. Com a
ascensão da extrema direita no poder apoiada sobre a retórica neoliberal, e o vale-tudo
político, a população brasileira viu-se sufocada em seus direitos, e com a chegada do vírus,
sufocamos pela vida.

Nos lançamos na difícil tarefa de somar ao campo progressista. Apresentamos os


textos desse cotidiano, vivido em seus discursos e visões de mundo que surgem através dele.
Assumimos aqui uma tarefa crítica de pensar sobre o mundo contemporâneo. A terceira
década do terceiro milênio. Temos em nosso horizonte uma proposta de ruptura e outra de
reconstrução.

A MêNÓ se pretende um cruzamento de linhas, de vivências, de linguagens, de


mundos, de pessoas e de quebradas. Em outras palavras, visa ser um ponto de encontro, um
lugar comum, uma praça virtual. Seu objetivo é contribuir com as gerações somando ao
diálogos que buscam dar bons rumos ao Brasil. É com esta vocação editorial crítica,
democrática, popular, progressista que a Revista MêNÓ! começa a ganhar corpo.

Nesta edição apresentamos 11 textos. Um leitor imaginativo verá neles uma fácil
interação apesar de cada um ser uma conta com seu colorido particular. Todos eles falam
diretamente a nós, pisam em nosso chão, mostram os seus sentidos. Apontam o seus
caminhos.

2
peabIru
3000
PEABIRU 3000

Aqui passado e presentes irão se encontrar, em uma multiplicidade de formatos


textuais, da cantiga de rua ao discurso político, passando pelas artes, o cinema, e as vidas
anônimas dos brasileiros. Estórias e trajetórias serão contadas no encontro proposto por essa
grande encruzilhada: Peabiru 3000. Acessaremos através de diálogos e entrevistas as estórias dos
brasis e dos brasileiros adentrando em múltiplas visões do público sobre os tempos no início da
terceira década do terceiro milênio. A coluna Peabiru 3000 caminha acompanhando os tempos do
futuro-passado neste presente de crise. x

Pintura de Oscar Pereira da Silva

A CONQUISTA DO BRASIL

Sou o Marlon, vim do Rio Vou contar uma estória de dar até calafrio!
Ela é nossa memória,
da nossa terra o brio…
Ouve, guarda e devora.

Está história é de um trem chamado “descobrimento”:


é quando os europeus chegaram de fortes ventos e pisaram na América
em ano mil-e-quinhentos.

Buscavam seus mil alentos em terras desconhecidas, buscavam alguns temperos


e outras coisas parecidas
para longe assim vender muitas coisas diferidas.

Nessa busca infinita


por temperos e dinheiros
eles conheciam povos, mapeando mares inteiros!Mais e mais e mais trocavam,
navegavam seus janeiros…

3
Porém, essa terra aqui, de
América chamada
não tinha um nome ainda,
só depois foi batizada…Mesma
coisa o Brasil:
não era Brasil nem nada…

“Nem nada” é exagero,


pois onde hoje é Brasil
era terra habitada
por mil gentes... povos mil

Alguns povos se amigaram com


os montões aqui chegados
porém a tragédia veio: milhões
morreram gripados!Ô, tristeza
acontecida…Poeiras desses
passados…

Os povos que aqui viviam,


milênios no chão daqui, tinham
nomes: eram muitos!
Como os Tupi-Guarani,
que eram povos tão guerreiros,
tinham xamãs - karaí…

Sempre os Tupi-Guarani se
espalharam nessas terras
buscando a Terra Sem Mal com
suas lanças de guerra. Hoje já
são muitos povos, povos de
inúmeras serras…

Um certo André Vallias


pensando o Brasil dormente
reuniu muitos nomes deles pra
Arte VisualByPivete
gente guardar na mente e pra
lembrar que esses povos são
outros nomes da gente.

“Yanomami, Asurini
Cinta Larga, Kayapó
Waimiri, Atroari,

4
Tariana, Pataxó
Siriano, Pipipã
Rikbatsá, Karopotó”...

Os brancos, os europeus, no
outro lado da história viam
coisas muito novas que não
tinham na memória! Se
espantavam com os Tupi:
“Até gente eles devoram?!”

Chamavam estes de “índios”


por serem bem diferentes, como
outros conhecidos
que os brancos tinham em
mente, porém era nome errado,
um nome que em muito mente!

Pois essa palavra “índio”


vinha de um outro recanto e
botava num só saco
muitos povos, seres tantos…
Erro de ignorância
que provocou muito pranto…

É que os brancos queriam


que todos fossem cristãos, só
que os povos eram brabos:
nem todos eram irmãos.
Os brancos e suas cruzes
receberam muitos nãos…

Os que sim davam a eles


perdiam logo a cultura:

o que os avós ensinavam os


brancos davam rasura, e a
lembrança que era fresca
virara esquecência dura.

No que os povos daqui,


entre a cruz e a espada

5
ou matavam ou morriam,
ou fugiam à disparada,
pois o que os brancos davam
era pouco ou era nada.

É que os tais loucos brancos,


“portugueses” nominados,
tinham sua própria história,
suas guerras, seus tratados.
E por nada os “índios” eram
inimigos declarados…

Baita desencontro doido…


Mas, e o “descobrimento”?
Será que os povos daqui não
tinham seu pensamento?
Eles de si mesmos já
não tinham conhecimento?

Aí que mora um causo, quase-


quase um segredo: aqueles
povos nem não foram
descobertos: engano-lêdo!
Foram sim foi conquistados
de modo até bem azedo!

Essas terras, até então só os


nomes Tupi tinham, tinham
nomes de outros povos
também, que aqui viviam,
mas perderam esses nomes
pelos que os brancos traziam!

E assim passaram anos de


entradas e bandeiras:
a terra era imensa
faltavam a elas beiras!
Sertão foi o nome dado às
terras interioreiras!

Termino esta grande saga


sem início e sem fim

6
que o brasileiro conhece
muito pouco, mas enfim:
nunca é tarde pra pensar em
coisa importante assim.

Só resta além de tudo,


dar valor ao nosso povo:
ele é também mil povos,
muito velho e muito novo -
Galo velho já crescido,
pintinho dentro do ovo.

Terminado em 31/05/2016 - Revisado e alterado em março de 2021 especialmente para


esta publicação

Métrica de cordel usada: sextilha, também conhecida como obra de seis pés. É a estrofe
de seis versos, com rimas em formato
ABABAB ou ABCBDB ou ABBCCB, etc.

7
A Torre

Pra quem não sabe, Barbacena é minha terra natal, lugar em que vivi até completar 12
anos. Lugar que vive em mim, inventado e reinventado entre loucos e rosas. Ali, as rosas
voavam e os loucos criavam raízes. Explico: as rosas eram para exportação e os loucos eram
importados, vindos de todo canto, vindos dos Gerais,geralmente pra sempre. A princípio
vinham de trem, trem de doido. O Hospital é enorme, sempre foi, existia há tempos antes do
meu existir, praticamente uma pequena cidade cravada na cidade, ocupando duas áreas
relativamente distantes uma da outra. O manicômio era tão grande que até hoje ocupa parte
de meu imaginário. Aos domingos a caminho da casa de minha vó, em São João Del Rey,
costumávamos passar na frente do velho hospital que a gente simplesmente chamava de
“colônia”. Me lembro daqueles homens sem nome, de cabeça raspada a caminhar com suas
roupas rotas na beira da estrada. Era comum. Não me lembro se eram homens de fato ou se
eram mulheres. Me lembro das cabeças raspadas, da beira da estrada, dos uniformes rotos.
Me lembro dos rostos rotos na estrada uniforme. Sempre à beira, os loucos. Eram loucos?
Não me lembro…

De um ponto da estrada dava pra ver a torre distante.

Frio. Frio de maio, frio de julho, uniformes rotos. Na minha cabeça de criança aqueles
homens viviam escondidos na torre em frente ao Parque de Exposição. Manicômio, enorme
manicômio que vive na cabeça da gente. Torre pequena, quanta gente cabia ali?

Foto: Marcelo Valle

8
3000 - Rumos do tempo

Que rumo nós tomamos? É esta a pergunta que me faço. Vejo em nosso presente,
enquanto escrevo, no final do terceiro mês deste ano de 2021, que pouco sabemos do que será
e para onde nos levará esta terceira década do terceiro milênio. Não há vidência nisso! Ao
contrário. Pouco sabemos, pois o próprio desejo e a expectativa de um futuro melhor se
apaga. Vemos seu despontar com amargura. Um mal estar generalizado, seguido da sensação
de vertigem como se centenas de milhares de corpos pairassem no ar. E parece que a história
nos observa. Simplesmente está aí, agora, como tudo que acontece. As pessoas sentem a
história e ela é percebida em um constante estado de tensão e medo distribuído, ansiedades e
depressões acumuladas nas gentes. Acúmulos de uma tragédia assistida, que já podem ser
vistas em retrospecto. No trágico da transição das décadas, estremecemos em um transe
temerário que nos impossibilitou de dar um simples passo à frente sem sentir-se rumo ao
vazio. Um rumo “perdido” de quem caminha para frente no escuro sem ver o chão.
Pasárgada se foi.

- “Tem que arrumar uma saída pra esse inferno que a gente vive e ainda tem que sair
vivo, esse é o problema. “ - minha mãe

- “Isso é um hospício” - o vizinho

Não há uma só solução aparente no futuro por ele mesmo, e a expectativa não deve
estar muito presente entre a maioria de nós. Talvez, e esta é a minha esperança, perceberemos
a partir de agora o passado com um outro olhar. Regredindo a um momento, em que, lá no
passado, o futuro fosse uma coisa totalmente diferente da que vivemos hoje. Mas qual o
sentido disso? Onde estávamos há 10 anos atrás? Quais eram nossas alegrias? Falando daqui,
na superfície deste país brasileiro, das coisas brasileiras, com gente brasileira, onde estou, sou
e me movo, caminho e vejo as coisas acontecendo, me pergunto: em que direção estávamos
antes? Quantos caminhos se cruzaram. Não sei, parecia bem melhor. Com uns 15 anos bem
vividos conseguia imaginar um futuro qualquer animado e esperançoso. Assistia à primeira
Copa do Mundo no continente africano como todos. De alguma forma, o que se dava para
entender é que as coisas até ali se transformaram com rapidez, e pareciam prosperar. Na
política, a governança popular de Lula lhe garantiu ao final do mandato de presidente com
80% de aprovação. A continuidade da bonança era esperada também no mandato de Dilma,

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que se encerraria em festa, com a chegada da Copa do Mundo ao Brasil em 2014. Mas o que
aconteceu foi bem diferente.

Uma imagem manchada foi projetada no cenário público. As ruas, vistas ao avesso,
reviram a cena histórica e naquele tempo já se colocava todo o legado do petismo sob júri da
opinião popular e da mídia. A má administração econômica não repetiu os feitos de
crescimento real dos anos anteriores. E os efeitos da crise de 2008 tornaram-se nítidos. Este
foi um fator de incômodo para diferentes setores da sociedade, mas foi principalmente nos
setores da classe média emergente que ela se destacaria entre a população e a opinião pública.
Parte dessa opinião se mostrou muito preocupada não só em criticar a política econômica mas
sobretudo em questionar a legitimidade das pautas sociais do governo. As cotas raciais, as
políticas, fortalecimento dos direitos trabalhistas, expansão do bolsa família, as obras do
PAC, o ensino de história da África nas escolas. A expansão das vagas nas escolas e
universidades públicas. Todos esses projetos de governo eram vistos como práticas de
aparelhamento do Estado por valores contrários aos da sociedade brasileira “conservadora-
liberal-cristã”.

Daí até a intervenção do conservadorismo em defesa da família tradicional brasileira e


dos bons costumes foi um pulo. Este movimento libertou os monstros que a muito tempo se
encontravam enterrados. Verde-amarelistas, nacionalistas de última hora, ganharam nova
roupagem com velhos jargões e marchas coreografadas da “boa sociedade”, onde estavam
robôs, zumbis e homens de bens. Tiozões que já não se envergonhavam de suas ideias,
motivados por um sentimento de revolta e justiça social que entupiam os noticiários. O ódio
se propagava. De um lado, poucos querendo muito. Do outro, milhares querendo mais ainda.

O desejo, moveu os padrões de consumo ao colapso. A moda dos smartphones, dos


carros financiados, das viagens de avião, do parcelamento no cartão de crédito foi o acesso a
um produto de status para uma boa parcela da população brasileira que começava a se ver
como mais distinta. Dignos da prosperidade, a nova classe média cerrava o palco político
como um novo ator. Ativo principalmente nas redes sociais e ressoando os discursos do
neoliberalismo em defesa do capitalismo e de uma sociedade de livre mercado. Este desejo
movimentou a reação violenta de milhares que, acostumados aos programas policiais
apontaram para as raízes do crime comum, cotidiano, com o olhar punitivista. Eram os que
diziam “Direitos humanos para humanos direitos!” e coisas do tipo. “Tropa de Elite” deu um
novo sentido à espetacularização das incursões da polícia carioca nas favelas. Crescia a crise

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e um desejo de expurgo dividiu a sociedade brasileira em duas facções. Uma oposição que até
agora se mostrou inconciliável. Entre coxinhas e mortadelas o Brasil ficou para trás.
Brasileiros afastados escolheram estar e afastados ficaram.

Nada disso teve origem em grande acordo nacional algum. Mas fez parte.
Alimentando o resultado real de um desacordo já generalizado em que acusações de ambos
os lados se perdiam na busca inútil de vitória. Para que? A essas tantas com um
Impeachment, não sabia mais para onde ir. E a conversa já tinha um tom pesado. Acusações
de ambos os lados. Chumbo trocado em diferentes cenários. Nas ruas a mudança dos ventos
já se sentia ao arrepio. E ficou escancarado no dia 14 de março de 2018 com o assasinato
político da vereadora Marielle Franco. Mulher negra, mãe, lésbica, periférica. Crime que
tinha tudo para ser esquecido. Como milhares deste tipo são esquecidos. Seus algozes
planejavam o silêncio. Um silêncio que na verdade é vivido cotidianamente num país como o
Brasil. O país foi se acostumando a assistir mais e mais mortes como essa, e foi se
consumindo no ódio. Um ódio oportuno que surgia num fundo de sala. Um ódio que
justificava os absurdos.

Ninguém mais se escutava. E aqueles gritos ficaram mais nítidos. Ressoavam um


coro, clamoroso por uma salvação fácil, por um Messias. Escolheram logo quem. Logo
aquele que exaltou tantas vezes a tortura. Que mentiu tantas vezes. Que começou pela
mentira e seguiu com a violência, desejando o poder. Na origem do seu nome político corria
solta a ficha do ganancioso. Aproveitou-se fácil da situação. Com a crise e o ódio, seus
absurdos foram propagados como alternativas sãs. Como uma alternativa, “uma escolha
difícil” “Contra tudo isso que tá ai! Ta, ok?”. Com a condenação do PT, e o sentenciamento
de Lula na operação Lava Jato o caminho ficou aberto para a sua chegada. Bradavam a ele,
agora “o incorruptível”. O mito das mulas. Absurdo ganhava corpo com a disparada da sua
candidatura como presidente. Movida a kit-gay e grupos de whatsapp. Além de uma facada
que tomou sem sangrar.

Daí em diante seu discurso era uma ode às memórias do tirano populista. E suas
aspirações as mais espúrias. Tomada a posse, logo tratou de fazer seu governo às avessas.
Causar intencionalmente atritos entre instituições e interesses. A ameaçar a imprensa.
Certamente se sentia no poder. E ao seu redor formava um corpo ministerial herdeiro da
mística da “Revolução de 64” conhecida por nós como Ditadura Civil-Militar (1964-1985).
Poderia ter sido esse o signo do seu mandato. Um mero regresso conservador que se fundou

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de um golpe e se inspirou em outro golpe para governar. A fórmula era a mesma. A defesa da
liberdade contra o fantasma do socialismo. O crescimento econômico a qualquer custo. Ao
custo real de uma sequência de reformas. Ao custo das aposentadorias e das carteiras de
trabalho de milhares de brasileiro. Seu projeto? Poder, poder e mais poder. Custe o que
custar. Com Deus ou Brasil ou sem eles se precisar.

26 de fevereiro de 2020.

Primeiro caso de Covid-19 registrado no Brasil. A pandemia de Covid-19 atinge o


Brasil. O governo, suas medidas, flagrante descaso. E a cada dia o número de novos casos ia
aumentando. E os somando ao início tínhamos a esperança de algum controle. E a perder de
vista foram se multiplicando cada vez mais. Vossa excelência, o presidente, acostumado com
o seu cercadinho no planalto seguia com o menosprezo habitual. Verdadeiramente
preocupado apenas em salvar seus filhos envolvidos em esquemas de corrupção das
denúncias que já batiam à sua porta com as crises sucessivas que produziu. Esgarçando mais
e mais o tecido das instituições para manter a força do seu discurso. Força da agitação
política, do ódio, do uns contra os outros.

Rumo de um pesadelo perverso.

Quando paramos de somar os casos diários, passamos então a somar corpos. 100, 200,
300, 400, 800 por dia. Somamos, e seguimos somando. E ele, já podre por dentro, seguia o
plano do ódio, da negação. “Idai?” Quantas vezes fosse necessário, ele diria. Sem auxílio
estimulou a população a não se proteger do vírus, a não usar máscaras, a usar medicamentos
inadequados ao tratamento. Estimulou a volta ao trabalho, a normalidade impossível.
Impossível pois os hospitais estavam abarrotados de gente sufocando nas UTIs. E nós já
acostumados com corpos na TV e com o seu ódio silenciamos. Habituados com quem
sequestrava nosso futuro. Querendo conquistá-lo pela força. Aspirante a ditador em transe.
Seus olhos vidrados como os de Diaz antes do fim.

Gritava

“pela harmonia universal dos infernos, chegaremos a uma civilização!”.

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Este transe da terra brasileira se acelera mais e mais. 2020 foi um ano que ficou.
Quase que não aconteceu. Foi esquecido ou se entendeu a 2021. Ainda não sabemos. O rumo
que tomamos, foi esse. O calendário anda pra frente. Passamos, acreditamos passar por ele.
Começou a terceira década do terceiro milênio. Para onde vamos, que rumo nós tomamos?
Esquecemos nossas utopias? Como esta geração viverá seu futuro? São questões que me
atormentam.

Peabiru 3000 é uma metáfora sobre este não-lugar no tempo. É um arrepio com a
nossa própria sombra, ao custo das nossas vidas. Peabiru não é a resposta, mas uma busca por
esses caminhos. Transpassagens, atlânticas, amazônicas, tropicais para longe desses dias em
que muitos se vão e ele não.

……………………...3.950 3.780 318.000

Arte por VisualByPivete


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observatórIo
cotIdIano
OBSERVATÓRIO COTIDIANO

O espaço Observatório Cotidiano tem a vocação de tornar públicas as múltiplas visões


daquilo que é, em parte, inominável e intangível: o cotidiano. O tema vem a calhar pelo fato
de ser ao mesmo tempo uma abstração espaço-temporal e uma arte ainda não compreendida.
O cotidiano é, sem medo de academicismos, um enorme “balaio de gatos” onde cabe de tudo
um pouco e muito mais. O Observatório Cotidiano será um espaço onde crônicas, ensaios e
poemas versarão sobre esse grande tema guarda-chuva. Espero que se deleitem com
descrições do cotidiano com um olhar sensível e perspicaz.

A faxineira do hospital

A faxineira do hospital, trajada com seu uniforme de trabalho (luvas de plástico


amarelas, touca, balde, vassoura e pano de chão) não parecia ela mesma. Seu eu mais
essencial não estava em jogo durante o seu trabalho. Logo que chegara seu horário de
almoço, por volta das onze e vinte de uma manhã quente de outubro, ela colocou o seu batom
mais reluzente, soltou os cabelos, olhou por cima dos olhos das outras pessoas que estavam à
sua frente e como num toque mágico ganhou sentido em si mesma.
Ao sair do hospital, não estava supervisionada pela tutela de nenhum médico ou por
nenhuma autoridade hospitalar. Sentou-se no botequim da esquina e pediu o melhor e mais
cheio prato de comida. Sua feição mudou radicalmente. Falava abertamente com os garçons
sobre o que havia feito no último final de semana e, sem compromisso nenhum, convidou um
deles para uma cerveja gelada após o expediente, com a pretensão de distensionar a fatídica
rotina de limpeza, arrumação e cheiro mórbido.
Na rua, a faxineira tornou-se uma pessoa comum, sem face, sem expressão aparente
ou afetada, sem uma identidade notória. A rua pública, ou melhor, os bares frequentados
pelos trabalhadores no meio do expediente de sua rotina fatigada de trabalho, tem essa
capacidade de tornar qualquer coisa invisível. Na rua, sua imunidade anônima,
contraditoriamente, fazia dela um ser. Comeu o mais rápido possível para poder passear um
pouco.
Andava na rua e conversava com as pessoas ao seu redor, soltamente. Sua voz que, no
trabalho era presa dentro de sua garganta, soava abertamente e se misturava facilmente aos
ruídos citadinos. Parecia quase gritar. Andava despojadamente, seus movimentos rudes,

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porém soltos, refletiam uma ânsia por liberdade. Talvez eu soubesse o porquê: acreditem,
hospital cheira a gente morta, cheiro moribundo de desinfetante e cloro, detergente e sabão
em pó.
Depois de seu desfile público, a faxineira, após seu rápido intervalo de almoço, voltou
fagueiramente para o trabalho. Para qualquer pessoa que já trabalhou sob pressão, descreveria
essa cena como um desfile lúgubre: passos curtos e arrastados no chão, ombros envergados
para frente, olhos sonolentos, aparência fúnebre. Mas antes de entrar, a faxineiro deu sua
última performance pública: tirou mansamente um maço de cigarros vermelho, lentamente,
para matar o tempo e a si, tirou um único cigarro, branco, filtro escuro, sacou o isqueiro, deu
dois toques vigorosos na manivela do acendedor, uma chama leve e rápida se acendeu, pôs
seu cigarro na boca e baforou linda e brevemente aquele cigarro; fizera como um ato de
morte romântica, pois eram seus últimos instantes de prazer e dor. Depois disso, ela subiu as
escadas brancas do hospital, passou bravia do lado de uma médica branca e jovem, gritou
algumas palavras inaudíveis com os guardas e voltou ao batente.
A faxineira, que passara o dia todo naquela ânsia doida de limpar daqui, varrer dali,
limpar vômito de paciente sem paciência, sentindo esses cheiros horríveis, ao deparar-se com
o cheiro de monóxido de carbono e gasolina emitido pelos veículos, devia ter se sentido
liberta. As cidades maiores são lugares de enorme contradição entre a individualidade do ser
e seu “anonimato”. Você é visto por todos, mas nunca reparado. Ao passar por uma das ruas
no exterior próximo de uma grande avenida, a enfermeira parecia desfilar com sua mente
liberta, como se ela estivesse imaginando estar em outro lugar. Esses são os gozos da
liberdade do indivíduo moderno.
Nos corredores observava atentamente a conversa dos pacientes. Descrevia
pacientemente cada problema de cada um deles como se, por sua larga experiência médica,
de tanto ouvir os diagnósticos, enfim, por sua prática indireta como médica anônima fosse ela
mesma “um entre eles”. Em suma, as faxineiras fazem uma espécie de curso de
medicina/enfermagem quase que por tabela. Mas são caridosas e empáticas com os
sofrimentos dos pacientes, coisa difícil de se diagnosticar “entre eles”. A empatia é uma
caridade dentre os pobres, pois o sofrimento alheio lhes cabe sempre como sendo o seu
próprio sofrimento.
Aqui cabe uma breve diferença entre esses personagens que habitam o hospital. Num
hospital os médicos são o centro das atenções, muito mais do que os pacientes. Todos de
branco e todos brancos (sim, eu disse todos) passeiam nos corredores conversando sempre

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“entre eles”, quase nunca com “os outros”. São em maioria homens de meia idade, todos
proprietários. Cada um com suas pastas de couro, disfarçadas com uma simplicidade do
tempo, mas custam um carro popular. Aqui caberia uma descrição da “performance médica”
por área e especialidade, mas são muitas e não tive tempo hábil para vivenciar tamanha
experiência.
Numa escala menor estão os estagiários, ou como se autointitula, “residentes”, que
não são os estagiários propriamente. Os “residentes” são aqueles que já estão avançados no
curso de medicina e que ainda não possuem uma experiência empírica na prática da
medicina. O máximo que ainda sabem fazer é aplicar injeções e dar pitaco na saúde alheia.
Os residentes são aqueles pupilos dos médicos, são seus orientandos. Aqui conseguimos
perceber bem a distinção entre médico e paciente, onde os residentes ficam entre eles, pois
são quase os dois ao mesmo tempo.
Resumidamente, os médicos são a grande autoridade, sabem sempre diagnosticar
quase todos os problemas; talvez por isso, os médicos são pessoas mais velhas e em sua
maioria tem cabelos brancos. O residente é uma figura estranha. Não sei descrevê-lo bem
justamente por uma posição de prestígio desprestigiado. Não é médico e nem paciente, tem
uma autoridade frágil e ao mesmo tempo não a tem. Para mim são pessoas estranhas.
Entre esses personagens, estão as enfermeiras. Todas mulheres e nesta “casta” percebe-se
uma “coloração mais vívida” entre elas. Elas, em sua maioria, são o braço forte, a moagem da
engrenagem, mas não são aquelas que fazem o trabalho sujo. A sujeira ao qual as enfermeiras
são designadas é uma sujeira digna: pus, sangue, gangrena. Essa é a sujeira das enfermeiras.
O paciente é literalmente um objeto de manejo. Obedecem a toda e qualquer ordem vinda dos
médicos. Se mandam respirar, respiram, se mandam tossir, tossem. O paciente é só o
paciente. O residente é uma figura estranha. Não sei descrevê-lo bem justamente por uma
posição de prestígio desprestigiado. Não é médico e nem paciente, tem uma autoridade frágil
e ao mesmo tempo não a tem. Para mim são pessoas estranhas. Entre esses personagens, estão
as enfermeiras. Todas mulheres e nesta “casta” percebe-se uma “coloração mais vívida” entre
elas. Elas, em sua maioria, são o braço forte, a moagem da engrenagem, mas não são aquelas
que fazem o trabalho sujo.
Por último, no final da fila, estão as faxineiras. Esse sim, são o verdadeiro “trabalho sujo”.
Elas limpam tudo: as fezes das diarréias, o pus no banheiro, os vômitos no chão, recolhem o
lixo fétido. Isso é trabalho sujo. Elas não possuem nenhuma autoridade para limpar o pus dos
pacientes, desde que esteja no chão, no vaso sanitário ou escorrendo pela parede. Em um

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sociologiques, as faxineiras são a estrutura que sustenta todo o hospital. Sem elas nada
funcionaria.
E durante minha curta estadia no hospital, pude perceber que são as pessoas mais sensíveis e
carinhosas. São as únicas que dão aquela boa e estrondosa gargalhada com um pigarro de
fumante. São elas que cantam o samba enredo de suas escolas de samba prediletas enquanto
limpam toda a sujeira da enfermaria. Às vezes, quando o plantão ficava insuportável, à beira
do caos, elas eram as únicas que nos cumprimentavam, davam um sorriso, pegavam uma
garrafa de água nova e gelada para os pacientes. Às vezes precisamos repetir algumas frases
de efeito para que as pessoas retenham seu significado: a empatia é a caridade do pobre.
Certa vez uma faxineira soube de uma mulher que foi diagnosticada com câncer de mama.
Eu, deitado numa maca em frente a porta de entrada da enfermaria, pude observar uma das
cenas mais emocionantes da minha vida. A mulher estava aos prantos. Parecia que ia tombar
a qualquer momento devido ao choque da notícia. Estava evidentemente abalada. As
enfermeiras, acostumadas a tais diagnósticos, postulavam uma certa reação fria, quase blasé,
diante do choque da mulher. Mas a faxineira não. Quando a mulher diagnosticada enfim
sentou-se em um dos bancos, ela prontamente foi ao bebedouro e pegou um copo d’água,
sentou-se do lado dela, tirou sua touca de trabalho (um cabelo longo, preto forte e brilhoso;
uma beleza rude!) e começou a acariciá-la com leves toques nas costas.
Todos olharam aquela cena atônitos. Assim perduraram uns quinze minutos. E ela ficou ali
do lado da mulher, afanando a paciente. A mulher acalmou-se, levantou-se da cadeira ainda
com os olhos inchados e com uma feição triste e cabisbaixa, mas quase sendo empurrada por
uma mão invisível, pegou sua papelada de exames (um bolo cheio e grande de folhas A4 e foi
embora. A faxineira levantou-se da cadeira que, creio eu, nunca tinha sentado, colocou sua
touca, pegou o balde de água suja, o pano de chão e disse: “Bom, tenho que limpar o
banheiro do segundo andar...”.

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Que agonia

Esperar o que

Não vem

Porque não

Depende de você

A ação que o outro

Detém

Até quando se humilhar

Na espera

Até quando

A espera é humilhação

Até quando

O amor não será

O combustível

Maior do nosso

Motor

Agradeço a deus

Que não é senhor

Porque não é o

Oposto do escravo

E sim da vida, do amor

Da liberdade e da alegria

Se eu tô aqui também

Pra sofrer e aprender

Dá uma acelerada

Nessa lição

Só o amor vacina a ação! f.moura 2020

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No olhar de uma criança

Acordei tarde. O calor me fez revirar horas na cama sem conseguir aprofundar o sono,
mas a prostração não me deixava acordar. O limbo. Fiquei nesse estado intermediário por um
tempo que não consigo definir. Quando acordei doeu, no sentido literal. Os músculos estavam
fatigados e o pescoço parecia ter torcido. Também sentia uma dor aguda no fundo da cabeça.

Ainda com os olhos embaçados, peguei meus óculos e levantei com o propósito de
lavar o rosto. Minha filha pequena estava postada em frente ao computador engajada num
desses jogos multiplayer da internet.

- Que horas você acordou? – perguntei preocupado, ainda zonzo.

- Já acordei faz um tempão – respondeu sem nem olhar para mim.

- O que é isso aí? – perguntei esfregando os olhos para limpar a remela e aproximando o rosto
da tela para ver o que estava acontecendo.

– Você não pode ligar e entrar nesses jogos sozinha, minha filha. Tudo bem? Da próxima vez
acorda o papai. Está bom?

Ela não falou nada, balançou levemente a cabeça e simplesmente continuou ali jogando.
Fiquei um pouco constrangido, depois, irritado. Coloquei os óculos e avaliei que o jogo não
constituía uma preocupação imediata. Era aquele jogo com o gráfico todo pixelizado em que
o jogador constrói e interage num mundo virtual pela montagem de blocos, criação de itens e
ambientes. Fiquei na dúvida se deveria repreendê-la sobre a pergunta que fiz.

- Papai! Olha a casa que eu construí!! – falou com aquela empolgação ingênua das crianças
perante qualquer realização.

- Que linda minha filha, muito linda. – falei caminhando para a porta – Vou lavar o rosto e já
volta, tá bom?

- Tá bom!

Tudo é lindo aos olhos dos pais. Os pais são o mundo dos filhos na infância. A rejeição é
decisiva para tornar a criança um adulto inseguro. A aprovação deve ser vista como
incentivo, afinal, estamos lidando com crianças, seres descobrindo seus gostos e talentos.

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Lavei o rosto e escovei meus dentes. Não ia tomar banho agora. Voltei ao quarto.

- Quer seu café da manhã? – apenas o som da música ambiente do jogo ressoava como
resposta - Hei! Está me ouvindo? – falei com a voz mais um pouco volumosa, mas sem
chegar a gritar.

- Não quero – respondeu baixinho, com os olhos vidrados na tela.

- Minha filha, você está há muito tempo nesse computador – tentei uma voz terna.

- Não estou, papai. Acabei de entrar – virou olhando para mim de maneira suplicante – Não
tem nada para fazer – concluiu, com uma constatação irrefutável.

Emudeci. Não tinha como inventar atividades mirabolantes o tempo todo. Era
necessário cumprir os compromissos da casa e fazer meu home office. Porém, permitir que
ela ficasse tanto tempo no computador não era recomendável. Na verdade, não sabia bem o
que fazer. Virei as costas e fui preparar o café da manhã. Preparei o meu e o dela. Passei um
café. Aquele cheiro de café fresco no ambiente espantou parte da minha dor de cabeça. Fui
até o quarto e levei o café da manhã dela primeiro.

- Toma, sua refeição...

- Obrigado, pai – pegou e comeu, como se não tivesse recusado antes – Estava com muita
fome.

- Come! Manda ver! - olhei para ela e soltei um pequeno sorriso no canto do rosto.

Liguei a televisão, a primeira coisa que fazia todos os dias da quarentena. Passava o
jornal: pandemia se espalhando rapidamente pelo país, provável subnotificação, os governos
estavam testando pouco, o governo federal atuava contra as medidas sanitárias, o número de
mortos só crescia... Olhei para o lado e minha filha tinha virado a cadeira e olhava para a
televisão roendo as unhas.

- Desliga um pouco o PC e vem comer do lado do papai.

- Não! não gosto de jornal – falou voltando-se para o computador.

- Tudo bem…

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Não era fácil processar tudo aquilo. Parecia que tudo estava desmoronando lá fora. O
número de casos só aumentava e nos hospitais se escolhia quem vivia e quem morria.

- Cadê a mamãe?

- Está trabalhando – engoli seco, engasguei com o café. Tossi, tossi.

- Daqui a pouco ela volta – falei com uma voz rouca, cheia de pigarro.

Ela trabalhava em dois empregos: num hospital de passagem e num asilo para idosos.
Ela é assistente social, não estava trabalhando na linha de frente do combate ao vírus, mas
tinha que se expor na rua. Qualquer trabalhador da saúde corria sério risco. Perdi a fome.
Olhei para minha filha. Ela já tinha esquecido. Estava ali, brincando, alheia a todas as
consequências. Vivendo o agora.

Continuei assistindo o telejornal. O programa apresentava uma realidade tão dura que
me fez um homem cansado sem ter feito qualquer esforço. Levantei, levei os talheres para a
pia. Com a TV ligada, sentei no computador para fazer as atividades diárias. Abre um
programa outro, um link, outro, login, senha, escreve, copia e cola, marca a caixa, aperta o
botão. Numa dança incessante, frenética, mas completamente estática.

A coluna doía, doía muito. Levantei, me espreguicei. Que horas eram? Voltei para olhar a
hora... era hora do almoço, mas havia uma montanha de louça para enfrentar antes. Louça
lavada, almoço feito, levei nossos pratos com o almoço para o quarto.

- Toma, seu almoço.

- Não quero alface – falou com uma voz muito baixa, quase inaudível.

- Mas tem que comer tudo! Vamos lá, pra ficar forte e saudável!

- Papai, pra ficar forte contra o vírus?

- É claro!

Começou a comer folhas de alface. Fiquei impressionado como a pandemia marcaria


a vida dela, uma criança, submetida ao medo da infecção, sob quarentena, com a mãe que
trabalha em hospital e os avós idosos. Era uma consequência óbvia, mas não se para pra
pensar sobre isso. Meu coração se encheu de tristeza. O noticiário continuava o mantra diário

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com número de mortos, hospitalizados, curados, pesquisas sobre o vírus, de onde vem o vírus
e a OMS. Desliguei a TV. Novamente não consegui comer.

- Papai, comi tudo! Vou ficar forte contra o vírus – olhou para mim esperando um elogio.

- Parabéns! Muito bem, vou te dar uma deliciosa sobremesa.

- Que sobremesa?? – respondeu, incrédula.

- Vou ver o que tem lá, está bom?

Ela balançou a cabeça em positivo, confiante de que eu resolveria a questão.


Enquanto isso, a dor de cabeça explodia em ondas nas laterais do crânio. Respirei fundo,
peguei uma garrafa d’água e bebi até a metade. Procurei uma dipirona e tomei com mais a
outra metade da metade da garrafa de dois litros de água. Fechei os olhos por um curto
período de tempo.

- Papai, você está bem? – ainda estava com os olhos fechados quando ela perguntou.

- Estou bem sim... – respondi percebendo que ela havia vindo atrás de mim na cozinha.

- Não parece... que remédio é esse? – falou olhando para a caixa do medicamento – Você está
com o vírus?

- Não filha, só estou com um pouco de dor de cabeça – falei, vacilante – E o que você quer
aqui?

- A minha sobremesa.

- Ah, sim! Claro! Vamos ver essa sobremesa. Agora volta lá pro quarto que o papai vai mexer
no fogo, está bem?

- Tá bem!

Fiz um brigadeiro com chocolate em pó, leite condensado, uma panela e fogo.
Coloquei o doce num prato e levei o prato para o freezer. Peguei a colher de pau que mexe o
doce e levei para ela no quarto.

- Toma, vai lambendo a colher enquanto o brigadeiro esfria na geladeira.

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- Eba! – virou-se para pegar a colher. Ela desligou o computador e sentou ao meu lado na
cabeceira da cama. Eu folheava um livro que estava lendo no momento, num rito de pré-
leitura muito particular.

- Papai, por que você lê?

- Porque eu preciso ler, é meu trabalho.

- Só por isso?

- Não, eu também gosto de ler. Gosto das histórias... Você não gosta de histórias?

- Gosto.

- O que mais você gosta?

- De brigadeiro – riu marota, com a boca toda lambuzada de chocolate.

- Que levada!! Peraí que eu vou pegar mais para você!

Deu um grito, levantou e saiu correndo pelo corredor em direção a cozinha. Fui atrás dela.

- Será que já está bom? – perguntei retoricamente.

- Sim! Sim!

- Ok, já está frio, mas cuidado com o meio – falei enquanto entregava para ela o prato.

- Posso comer tudo??

- Não né, mas vou deixar você levar o pote todo.

- Ehhhhh! Obrigada papai – virou-se toda faceira com o seu prémio, um “pote de mel”.

Nesse momento, percebi que tinha descoberto algo que julgava saber. Uma coisa que
é tão fácil de entender, mas tão difícil de perceber. A felicidade não constitui um estado no
qual atingimos e, finalmente, estamos felizes. Não existe um estado de felicidade. A
felicidade está nos pequenos e raros momentos. E, mesmo que a doença tenha colocado a
humanidade frente-a-frente com a morte, o fim não é uma novidade. Todos morreremos,
sabemos de nosso destino trágico e manifesto.

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Talvez, além de ceifar a vida de tantos, o que de pior fez a doença foi embotar nossa
visão desses eventos de felicidade que brilham e se apagam em nossas vidas. A felicidade
sempre estará ali, nem mesmo todas as mazelas sanitárias, políticas, sociais poderiam tirá-la
de lá. E, naquele momento, ela se apresentava para mim, no olhar de uma criança... Meu
coração se encheu de esperança e meus olhos de lágrimas, então, a abracei rapidamente para
que não percebesse meu choro.

Horas depois recebemos a mamãe e, no momento daquele abraço triplo, apertado,


caloroso, sincero, tive a certeza de que éramos as pessoas mais felizes do mundo.

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nó em
pIngo
d' água
NÓ EM PINGO D´ÁGUA

Uma coluna sobre pequenos empreendedores informais e formais, informações sobre a vida
prática dos negócios em periferias, novidades, desafios e reflexões sobre essa onda de
empreendedorismo e uberização.
Será que é salvação ou prisão? Não pretendo esgotar o assunto, e sim, entre umas goladas e
outras trazer elementos que falam sobre as facetas atuais do trabalho e empreendedorismo
brasileiro, e a sociedade MEI que está se formando. Também terão algumas goladas sobre
inovação e o que as mulheres- maravilhas anda fazendo.Então pega seu cafezinho, separa uns
minutinhos e dá uma MêNózada aí!

Os “MEIS” caminhos que estão se abrindo…

Ser ou não ser empreendedor. Todo mundo que trabalha por conta própria é
empreendedor? Todos podem ser empreendedores? Empreendedorismo é causa ou solução da
desigualdade? Respostas que precisamos ter para enfrentar novos problemas contemporâneos.

Uma das palavras mais faladas nos últimos cinco anos é em-pre-en-de-do-ris-mo.
Palavrão que às vezes até enrola na hora de falar.

Se falar a palavra já é complicado, imagina explicar seus significados.

Alguns acham que pode ser a capacidade de ter ideias inovadoras ou arriscadas,
outros pensam que pode ser um jeito de ser ousado e visionário. Na verdade, pode ser tanta
coisa...inclusive nada!

Se fala tanto nisso que somos levados a achar que todo mundo que se vira por conta
própria é empreendedor, quando na prática às vezes é mais uma necessidade daqueles que
não conseguem encontrar emprego, do que uma escolha.

Pensando no público que eu tenho contato, comerciantes e prestadores de serviços em


favelas cariocas. Há muito tempo eles são obrigados a trabalhar por conta própria, fazer seus
“corres”, “seus bicos”, porque precisam gerar renda e não conseguem acessar o mercado de
trabalho formal com facilidade. Por ter baixa escolaridade, pouca qualificação profissional
comprovada, e em alguns casos pelo preconceito de morar em favelas.

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Fui assistente na pesquisa da Dra. Anna Katharina Lenz (FGV), feita no Conjunto de
Favelas da Maré, em 2016. Onde entrevistamos 1400 empreendedores e um dos principais
motivos para abrir um negócio foi ter uma fonte de renda, depois buscar independência.

Poucos sabem, mas o Brasil aparece em terceiro lugar, depois da Tailândia e Uganda,
como um dos mais empreendedores. Vale destacar que o empreendedorismo varia de país
para país, nesse caso estamos olhando para os países subdesenvolvidos, a partir de uma ótica
do empreendedorismo popular, que tem como ordem a necessidade. Inclusive é um dos
caminhos de soluções para gerar renda, emprego e movimentar a economia local.

Vale lembrar que 2020 foi a grande faísca para acelerar algumas mudanças e trazer de
vez a cultura digital para todos. E com isso intensificou mais ainda essa cultura de “ser
empreendedor”.

Sei que só de pensar em 2020 já gera alguma sensação, boa ou ruim. Foi um ano que
exigiu demais da gente. Um ano inesperado e um marco para uma nova fase humana.
Querendo ou não já não somos mais os mesmos. Foi um ano que entendemos que as séries de
ficção da Netflix podem sair diretamente da tela e virar realidade, e que esse negócio de
apocalipse, inteligência artificial não está num futuro tão distante. Tivemos e estamos tendo
muitas lições. A natureza agradeceu a diminuição de impactos. O brasileiro até mais, o
carioca teve que ficar mais frio e parar com esse negócio de dar dois beijinhos. E agora é
menos toque mais touch, máscara na cara e álcool no bolso. Não tem pra onde fugir e essa era
pós-pandemia e mais digital veio pra ficar e alterar nossas interações.

Pena que não é assim para todos, em pesquisa sobre novos hábitos culturais na
Pandemia feita pelo Itaú Cultural, 57% dos brasileiros passaram a usar mais internet, e 7%
não tem acesso a internet, principalmente na região Norte do país.

Esse levantamento mostrou também que as pessoas passaram a ver shows, peças de
teatro, visitas a museus no ambiente virtual, além de acessar mais cursos livres, jogos
eletrônicos e ouvir podcasts. É tanta oferta de conteúdo que a gente volta na outra vida com
vídeos pendentes para assistir.

É interessante ver o poder digital, inclusive na maneira como o consumo de cultura


foi afetado para manter o isolamento social. Mas vamos combinar que nada substitui a
experiência presencial. Ao vivo e a cores. Inclusive dizem que só sobrevivemos como espécie

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porque vivemos em grupo, somos hiper-sociáveis e cooperativos. Então não podemos perder
isso porque se não estamos ameaçados.

Ah! mas algo de positivo temos que admitir que foi parar o piloto automático. Parar
aquela rotina frenética de cidade grande, trânsito, comer rápido, dormir mal, ficar estressado,
acordar no dia seguinte e fazer a mesma coisa. Eu confesso que não acho mais normal ficar
uma hora e meia dentro de um ônibus para chegar no local de trabalho estressada e não ter
tempo para o meu bem estar.

Imagino e respeito que cada um tem uma realidade e trajetória nessa Pandemia, mas
seja qual for a sua, provavelmente alguma coisa mudou. Espero e torço muito que tenha sido
para melhor. Sei que foi e está sendo um C-A-O-S! Como diz aquela sábia figurinha do
WhatsApp: “Loucura misturada com Doidera”. Mas temos que admitir que agora já falamos
de vacina, antes não sabíamos nem qual nome dar ao vírus. Então agora podemos seguir um
1% otimistas com esse avanço.

Nesse novo momento com novos hábitos e costumes, algo que sempre tá junto são as
formas de gerar renda. Há mais de sete anos pesquiso a área de empreendedorismo e
trabalhadores autônomos. Estou muito interessada em entender os novos jogos nesse campo
de trabalhos modernos. Por isso estou aqui e dei esse pontapé inicial sobre o tópico.

Quero lembrar que antes da Pandemia já estávamos com um pandemônio liderando


novas políticas no país. Da noite para o dia aprovando a reforma trabalhista com o fim do
Ministério do Trabalho, jornada de trabalho podendo ser negociada até 12 horas, férias
fracionadas em três partes, extinção do contrato de trabalho que impede receber seguro-
desemprego, entre outras perdas para o trabalhador.

Até suspeito que nós, aqui no Brasil, desde 2016 já estávamos nos preparando para o
C-A-O-S. Nessa atualização da lei trabalhista um dos argumentos principais era gerar mais
empregos. O prometido não se cumpriu, teve mais desemprego e ainda empurrou mais ainda
as pessoas para a informalidade ou para a abertura desenfreada de CNPJs (identidade de
empresa), via o Programa MicroEmpreendedor Individual (MEI). Para se ter uma ideia, hoje
temos 14 milhões de desempregados, que independente da pandemia já estavam desocupados
porque o país estava e está passando por uma recessão econômica.

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Somado a isso com o mundo digital novas profissões surgiram. Gerando um processo
de substituição brutal para aqueles que não conseguirem acompanhar esse movimento. Um
estudo que projeta o ano de 2030, feito com mais de 3.000 líderes de negócios, sobre os
impactos dessa era, estimou que 85% dos trabalhos que existirão daqui a 8 anos serão novos.
Isto quer dizer que terão novas profissões e poucos profissionais para os futuros empregos.

Sim! Parece desesperador quando olhamos para um país que investe mal em ensino e
educação digital. Já sabemos que o Brasil não é para qualquer um, então precisamos ficar
mais atentos para dar os nossos “nós em pingo d'água", se não a gente fica pra trás.

De fato, quem não quer independência? Ter tempo para aproveitar o lado bom da
vida? Por isso essa cultura empreendedora tem um lado atraente. As pessoas se empolgam e
isso é saudável porque assim estimula a criatividade, inovação, e a busca de soluções para
velhos problemas. Sem contar que dá a chance para cada um escolher aquilo que gosta e
acredita. Porém, como tudo na vida tem seu preço, ou você paga com dinheiro ou tempo. No
caso do empreendedorismo não vai ser diferente. Por isso, todo cuidado é pouco para não
entrar na lógica de ser escravo de si mesmo. Assunto para as próximas edições para falar do
efeito uberização, que tem a ver com essa onda de trabalhadores de aplicativos e a sociedade
MEI que está se formando.

Então te vejo na próxima edição, obrigada pelo seu tempo e mande algum sinal sobre
o que achou dessa leitura. Um abraço virtual e tamo juntos!

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o negócIo
é ser rural
O NEGÓCIO É SER RURAL
Inspirada na temática do livro Small is Beautiful (O Negócio é Ser Pequeno), a coluna “O
negócio é ser rural” valoriza o invisível mundo rural, jogando luz sobre a enorme viabilidade
do país em sua essência tropical, a partir de temas como educação agrícola, agroecologia,
reforma agrária, comércio justo, povos tradicionais, pesca artesanal e economia solidária,
sempre tendo como elemento ligante a proteção social, cultural e do meio ambiente. Fatos e
experiências interessantes colaboram para criar uma massa crítica e fomentar mudanças
positivas. Um espaço de construção, luta e transformação!

Educação agrícola no estado do Rio de Janeiro: tradição ameaçada

O estado do Rio de Janeiro vem perdendo ao longo das últimas décadas suas escolas
técnicas rurais. Na década de 1980, havia quatorze colégios agrícolas pertencentes à rede
pública estadual. Atualmente estes não passam de seis.

Várias são as razões para o contínuo desaparecimento das escolas agrícolas: declínio
da produção agropecuária, a grande atratividade exercida pela cadeia da indústria do petróleo
sobre jovens estudantes, política educacional deficitária e a baixa diversificação econômica
dos municípios.

Maria Aparecida de Oliveira Freitas, ex-professora do Colégio Rego Barros, de


Conceição de Macabu, fechado em 2012, fala de modo contundente:

“Os jovens mais pobres, filhos de sitiantes, pequenos pecuaristas, agricultores, aclimatados
em ambientes rurais, ficam deslocados. Vivi isso e foi o que mais me incomodou. Sabia que
mais uma vez, aquelas crianças e jovens estavam sendo sacrificados, deixando suas raízes e
a presença dos pais, pois teriam de procurar uma escola central. Hoje funciona uma creche
lá. Cheia de crianças. Fico feliz por estarem aproveitando o espaço. Nada contra!
Mas...poderia ter os dois. Os jovens da cidade que poderiam estar frequentando a escola,
ficam na rua, ociosos, portanto, em risco social, de marginalização, porque agora já não há
mais escola, está fechada!”

imagem 1

Foto do Colégio Rego Barros. Créditos de Maria Aparecida

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O Colégio Rego Barros foi municipalizado e transformado em creche, apesar de
ocupar uma ampla fazenda em ambiente tipicamente rural, com coqueiral e reserva florestal.
Seu caso é bastante emblemático. O argumento para seu fechamento foi a baixa procura pelo
curso Técnico de Agropecuária, preterido em relação aos cursos relacionados à indústria do
petróleo oferecidos em Macaé, município vizinho.

Esta rede antiga de escolas agrícolas fez parte do Programa Corredor Agrícola e foi
idealizada pelo professor Arnaldo Niskier, quando este foi Secretário de Educação e Cultura,
em 1983. A ideia era interligar as bacias leiteiras de Itaperuna com o cinturão verde em Nova
Friburgo, passando por Teresópolis, Valença, Campos e mais oito municípios com aptidão
agropecuária. Este programa visava o combate à exclusão social e alavancou novos projetos
nas áreas rurais. Esta política foi de grande importância para o desenvolvimento do ensino
agrícola no estado.

Na década de 80, no cenário neoliberal de redução do custeio da educação pelo


estado, as escolas entraram em decadência. As escolas que ainda resistem ao
desmantelamento se localizam em Magé, Friburgo, Itaperuna, Teresópolis e Valença, sendo
todas administradas pela Secretaria Estadual de Educação. Em Campos existe a Antônio
Sarlo, que este ano (2021) faz 65 anos, está ligada à história da cana de açúcar na região e
está em processo de incorporação à Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy
Ribeiro (UENF). Algumas destas escolas rurais foram transformadas em Institutos Federais
(IFES), como foi o caso da Escola Agrícola de Cambuci e o Colégio Agrícola Nilo Peçanha,
em Pinheiral.

A educação agrícola é o ensino e aprendizagem voltado para a formação profissional


na agricultura e é muito estratégica para a permanência da juventude no campo. Sabe-se que
esta permanência depende dos laços sociais e outras referências. De um modo geral, o êxodo
rural resulta da busca por melhores oportunidades de educação formal e de trabalho, e pela
menor atratividade do meio rural em termos de cultura, lazer e esporte.

O ensino agrícola é também o espaço formal para a difusão da agroecologia, hoje


entendida como ciência, prática e movimento social. A agroecologia hoje é estratégica para a
humanidade: ao proteger a agrobiodiversidade e saberes locais, e riquezas genéticas
plenamente adaptadas, ampara a soberania e a segurança alimentar, visando também a
inclusão social e a saúde humana.

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Contudo, o ensino da agroecologia é ainda muito incipiente. Em todo o estado
existem apenas dois cursos técnicos em agroecologia. E dos onze cursos técnicos em
agropecuária que ainda restam, apenas cinco possuem a disciplina agroecologia no seu
currículo. Inclui-se aí a escola agrícola municipal Nilo Batista, em Cabo Frio, que atende a
uma comunidade quilombola.

Para a professora Cláudia Fortes, da Secretaria Estadual de Educação, há um


“engessamento” do currículo, sendo preciso haver a intenção de cada professor e gestor para
promover a agroecologia nos cursos, não se tratando ainda de uma política de educação.

O Centro Familiar de Formação por Alternância (CEFFA) Colégio Agrícola Rei


Alberto I, em Nova Friburgo, trabalha com o método da Pedagogia da Alternância com filhos
de agricultores familiares, alternando estudo e vivência na escola e na comunidade. Esta
instituição felizmente se encontra fortalecida.

Recentemente, dois colégios agrícolas enfrentaram uma crise, a tradicional Escola


Antônio Sarlo, de Campos, e o Colégio Agrícola José Soares Junior, de Itaboraí, sendo que
este último foi criado a trinta anos e foi paralisado em 2016, apesar dos vários pedidos de
sobrevida em audiências públicas da Comissão de Educação da Assembléia Legislativa do
Rio de Janeiro.

A Escola Antônio Sarlo está sendo revitalizada após um período de grande


dificuldade orçamentária, e seu quase fechamento. A comunidade escolar se mobilizou e hoje
há um processo de incorporação à UENF, uma parceira histórica, e vários projetos agrícolas
estão sendo conduzidos. A escola está localizada entre duas comunidades, em plena área de
conflito social, o que torna a sua existência de grande importância social.

O colégio de Itaboraí tem também uma história de luta, e o idealismo dos servidores
ajudou a escola a se manter de pé até 2016. O município de Itaboraí já foi o maior produtor
de laranja do Brasil e hoje a cultura está sendo revitalizada, o que poderá favorecer a
reabertura da instituição de ensino, já havendo mobilização neste sentido. Itaboraí investiu
bastante no setor de petróleo e gás e com o fechamento do Complexo Petroquímico do Rio de
Janeiro (Comperj), atravessou crise econômica e social, evidenciando a grande
vulnerabilidade dos municípios que apostam em uma única atividade.

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A educação agrícola vai muito além de capacitar mão de obra para a agropecuária. Ela
permite o crescimento pessoal de jovens e adultos e possibilita a erradicação da pobreza,
exclusão social e êxodo rural. É espaço para a abordagem agroecológica e socioambiental,
além de apoiar a diversificação econômica dos municípios e a produção local.

O estado do Rio de Janeiro poderia ter maior pujança agrícola, mas por razões
estruturais e históricas não consegue ser autossuficiente em alimentos, ao contrário, sua
produção agropecuária apresenta tendência acentuada de declínio nas últimas décadas.
Entretanto, o estado foi muito importante na construção do movimento orgânico nacional, e a
reorganização do campo em face de novas possibilidades poderá diminuir sua dependência do
petróleo. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) estima que
metade dos noventa e dois municípios fluminenses são rurais, em face dos seus índices
demográficos.

É urgente lutar para que as escolas agrícolas no estado do Rio de Janeiro não fechem
ou sejam abandonadas!

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bora
empre(e)nder?
BORA APRE(E)NDER?

O que é ensinar? O que é aprender? O que faz de nós seres educativos? A seção coloca na
mesa o debate da importância de se aprender a aprender para depois aprender a educar. A
educação é a coisa mais linda mas também uma das coisas mais difíceis de se fazer. Educar
não é apenas na sala de aula, mas também em espaços de rua, de vida. Dizia o velho Freire:
ninguém sabe de nada, ninguém sabe de tudo. Todos nós aprendemos, todos nós ensinamos

O fim da educação?

Fala MeNÓzada, cheguei com pé na porta. O título já mostra que, como me falaram
uma vez nestas lives da vida (redundâncias tecnológicas), eu seria como o Coach do Caos…
Ironia, a mais fina flor da crítica, é fundamental para minha postura. Com um
sorrisinho de canto de boca, inicio o meu debate sobre educação questionando seu fim. Oras,
eu sou o colunista de educação, e já implodirei a minha própria coluna? Sim, meus caros, no
momento em que escrevo, todo processo no qual estamos acostumados, desde a socialização,
o processo de interação, apreensão da realidade e aquilo que chamamos de realidade, não será
nada mais como antes.
Não fui eu quem quis criar essa zorra toda, tampouco foi “do nada”. Mas, um fato
histórico para que o velho edifício da educação formal implodisse de vez, foi a “pauta
mundial, o megaevento” : a pandemia global da COVID-19.
É óbvio que nada estava bom, mas com as medidas de isolamento social, vimos que o
modelo tradicional, cartesiano1, alinhadinho, todo quadradinho, não faz mais jus às atuais
condições terrestres. O pensamento derivado de seu modelo analisa a nós, os seres humanos,
como vasilhas vazias prontas para despejarmos todo tipo de conhecimento, este qual irá nos
condicionar a tomar atitudes dentro daquilo que nos foi ensinado.
Pois é, meu nobre, este tipo de modelo ainda é dominante em nossa sociedade. E tem
gente que ainda acredita que funciona. Mas, a pandemia… Voltamos ao debate.
A pandemia institucionalizou, em uma escala global, a mediação tecnológica como
mecanismo de manutenção do ensino e da aprendizagem. Se antes o ato de ensinar era
basicamente transmitir todo tipo de conhecimento para outra pessoa, este tipo de construção
já não nos é suficiente. E se aprender basicamente significa o ato de adquirir conhecimento e

1 Cartesiano deriva de René Descartes, filósofo iluminista que construiu boa parte do arcabouço da
forma de construção do conhecimento moderno. Sua frase mais conhecida é: Penso, logo existo.

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mudar nosso tipo de comportamento ou atitude perante uma situação (antes aprender a dirigir,
por exemplo, nós apenas sabemos gritar, e depois, aprendemos a gritar com o sujeito que nos
está a frente, atrapalhando nosso caminho), percebemos que existem diversos outros tipos de
aprendizagem. Mas que há, de certa forma, um limite nas formas atuais de aprender.
Ou seja, a pandemia foi a cereja do bolo para mostrar a crise da educação que
vivemos. No Brasil, além desta crise existencial, todos os problemas de estrutura da
educação, desde os níveis familiares, vicinais, comunitários e os institucionais - tendo a
escola como referência principal - tiveram rupturas definitivas.
Eu, como educador há mais de dez anos, e aprendiz desde quando me conheço como
gente, já percebia as fragilidades existentes desde sempre. Mas, como pensador, refletir sobre
o modo de educação atual é fundamental para a gente repensar e refletir2 sobre que futuro
queremos para nós e para nossos descendentes.
E aí entra a tecnologia… Muitos pensam que ela é a solução de todos os problemas da
educação. Mas é apenas uma ilusão achar que a tecnologia é um mero instrumento de
aperfeiçoamento das nossas capacidades. Ela também é uma serpente chocada de um ovo
mais perverso. A tecnologia também é um meio político de controle, manipulando nossos
pensamentos e condicionando nossos modos de pensar, a partir de esquemas computacionais
construídos e desenhados para determinado tipo de estímulo e resposta. Ou seja, nós
entramos em “tubos” bem desenhados e muito atraentes, mas nem sabemos para onde ele vai
realmente nos levar e tampouco quem construiu já previu todos os caminhos possíveis.
Vivemos afogados em um maremoto de informações, a dizer, uma infodemia.
Ao invés de libertar, a educação numa perspectiva tecnocrata3, otimista demais, relega
o problema atual das fake news, da desinformação e do negacionismo como meros ônus a
“libertação tecnológica”, e que nós, seres civilizados, conseguiremos superar isso usando as
ferramentas digitais com organização política, diálogo e esclarecimento.
Mas, como disse no começo, não creio que apenas com o uso “bem intencionado”
conseguiremos nos desvencilhar destes “grilhões que nos forjava/ da perfídia astuto ardil…”4.
Muitos pensadores contemporâneos nos sinalizam que devemos ir, além da mera denúncia,
mas da apropriação e da construção de alternativas. Isto de fato é aprender no atual contexto

2 Refletir, aqui, uso no modo de “Diante do espelho” também, naquilo que a Sociologia chama de
reflexividade: momento de analisar o contexto em que vivemos, mas, também, o que nós somos e no
que estamos nos tornando ao viver aquele contexto analisado.
3 Tecnocracia é um sistema de organização política e social fundado na supremacia dos técnicos, da

tecnologia e dos sistemas derivados dela.


4 Trecho do nosso Hino da Independência. Quem conseguir de primeira entender os sentido deste

verso, eu te dou um doce. Somos escravos da própria linguagem oficial.

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que vivemos. É saber usar, a poiesis5, a arte de saber-fazer e (des ou re)construir caminhos
verdadeiramente libertadores para nós e para a Educação como um todo.
A partir desta reflexão que tentarei trilhar esta coluna. A educação que conhecemos,
de fato está em extrema unção. Basta desligar os aparelhos - literalmente - e enterrá-los. Mas
a educação é uma condição singular de nós, seres humanos. Somente somos o que realmente
somos devido sermos educados para ser. Então, nesta perspectiva multidimensional da
Educação é que iniciamos nosso novo caminho. Como Hermes, para a Filosofia Grega; ou
então como Exu, para a Cosmologia Afro Brasileira, mostrarei caminhos, encruzilhadas,
desvios e possibilidades. A escolha de seguirmos por tais caminhos que, com certeza traz
medo, insegurança e outros sentimentos de dúvida, pois tudo é novidade, é nossa. De livre
escolha.
Vamos cumprimentar o Mr. Mayhem6 e tomar um café com ele.

Antessala do Hades, março de 2021.

5 Poíesis (do Grego Antigo: ποίησις), em português poíese, relacionado à técnica "poiética" (poética),
indica a ideia de criar ou fazer. Poiesis tem um componente forte que é a criatividade e
ressignificação humana. O brasileiro é tão bom em poíese que temos um termo próprio para isso: a
gambiarra. Nas próximas edições poderemos aprofundar o significado e os usos da gambiarra.
6 Mayhem é um termo que significa caos, confusão, desordem. Na série “Sons of Anarchy”, os

detratores da gangue de motociclistas eram, num eufemismo bem sarcástico, levados a conhecer o
Mr. Mayhem.

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#partIu
resenha
PARTIU RESENHA
Sejam bem-vindos a coluna Partiu Resenha. Um espaço para narrar o cotidiano, descrever
experiências literárias, culturais e artísticas, expressar percursos afetivos e experimentações.
Aqui traremos resumos e resenhas de livros. Relatos de experiências artísticas, culturais e
tecnológicas. Releases de lugares, produtos e serviços. O lugar para quem quer saber o que
está rolando, com um foco especial na cultura, arte e tecnologia, reunindo conteúdo, reflexão
e utilidade. Esperamos que vocês gostem da mixagem!

Livraria Aláfia

Figura 1 - Logotipo da Livraria Aláfia

Instagram: @livrariaalafia
Facebook: https://pt-br.facebook.com/livrariaalafia/
Site: https://www.livrariaalafia.com.br/
Blog: https://livrariaalafia.blogspot.com/
Telefone/Whatsapp: (21) 98602-5064
E-mail: livrariaalafia@gmail.com

A Livraria Aláfia é um desses empreendimentos que nos dão esperança com relação
às possibilidades de distribuição econômica no país, além de constituir um exemplo de

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responsabilidade com relação aos produtos e aos clientes. Definitivamente, não é um mero
lugar onde se vendem livros, mas compõe um movimento de resistência na divulgação de
temáticas tão importantes para o povo brasileiro como africanidades, religiões afro-brasileiras
e negritude. Mesmo que você não queira comprar livros agora, vale a pena seguir as redes
sociais da Livraria Aláfia e visitar o blog, pois trazem discussões, resenhas, contribuições,
frases e reflexões, assim como lives com autores, editores e artistas. E, além disso, a livraria
têm títulos que não se encontram mais em lugar algum! Também praticam preços acessíveis,
parcelamentos e oferecem facilidades de frete aos clientes. Pelo esforço, dedicação e
empenho, as proprietárias (duas mulheres negras capazes e qualificadas) conseguiram reunir
um acervo fantástico que todo estudioso, religioso ou curioso deveria conhecer.

RM: Como surgiu a ideia de abrir a Livraria Aláfia? Quais dificuldades vocês enfrentaram
para realizar esse projeto?

LA: A Livraria Aláfia Arte Literatura surgiu do desejo de trabalharmos com o mercado
editorial, mas, especificamente, voltado para as práticas religiosas de matrizes africanas, que
não se limitam apenas à Umbanda ou o Candomblé. Por nos aprofundarmos no tema,
percebemos a importância de estendermos nosso nicho inicial para os títulos sobre história da
África, e autores negros que tratam sobre o universo da cultura negra e africana na Diáspora.

Enfrentamos dificuldades enquanto nome no mercado livreiro, pois nossa Livraria


partiu do zero e vai aos poucos alcançando algum destaque para os religiosos e simpatizantes
das religiões tradicionais. Então, para quem não conhece e não tem prática na área editorial, a
confiança e os contatos com editoras e distribuidores acontecem aos poucos.

Para nos mantermos enquanto empreendimento enfrentamos a desleal concorrência


com a Amazon, mas principalmente a falta de informação do funcionamento desse
conglomerado frente a empresas como a nossa e o impacto que todo o mercado editorial sofre
com ele. Desde o encolhimento dos títulos disponíveis em português, como também as
oportunidades de emprego e expansão das pequenas editoras.

Há uma desinformação, entre os próprios autores, de que as livrarias lucram cerca de


50% sobre o preço de todos os títulos disponíveis. Porém, a maioria das livrarias trabalha
com percentual bem menor, que varia segundo o acordo firmado entre editoras, distribuidoras
e autores independentes, que pode chegar até 20%. Sem falar dos próprios custos de

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manutenção da livraria física ou virtual, como é nosso caso. Por isso, em nosso país considero
nossa iniciativa um movimento de resistência, pelo e para o povo do Axé.

RM: Quem são as pessoas que estão por trás da Livraria?

LA: Atualmente, a equipe é formada por duas pessoas, ambas, mulheres negras. A
proprietária é Ana Cristina Dutra, responsável pelo atendimento direto nas mídias sociais,
exceto no Instagram. E Bárbara Canedo, gerente comercial, encarregada do contato com os
parceiros e releases do Instagram. Embora aconteça essa separação, tudo é discutido e
resolvido entre nós.

RM: Qual a importância de uma livraria especializada em africanidades, religiões afro-


brasileira e negritude? Como vocês conciliam a questão comercial com o ativismo social?

LA: A base de nossa proposta está firmada em dois alicerces primordiais: a vontade de
espalhar o conhecimento sobre as religiões tradicionais e contribuir para a diminuição do
preconceito e do racismo religioso. Não podemos esquecer que estas mesmas religiões são
demonizadas há muito tempo, algumas de suas entidades e deuses são associadas a Demônios
cristãos. A começar pelo catolicismo dos colonizadores, até, nos dias de hoje, essas religiões
tornarem-se alvos dos movimentos neopentecostais, baseados em crenças enraizadas no
racismo estrutural da nossa sociedade. Já sofremos uma dessas investidas, enquanto empresa,
prontamente denunciada.

Nosso ativismo social vai desde resistirmos enquanto empreendimento voltado para o
povo do Axé, em suas multifacetadas expressões, até sermos reconhecidas pelo público em
geral como especialistas dessa literatura. Tal como um quilombo urbano, divulgamos e
incentivamos autores – e artistas – que tratem sobre tais assuntos no nível da ficção ou não.

RM: Qual mensagem vocês deixariam para os leitores da Revista Menó?

LA: Primeiro agradecer a todos que contribuíram e contribuem para que sejamos um espaço
de divulgação das obras de autores relacionados à cultura negra do nosso país e da África na
Diáspora. E por último, mas, não menos importante, reafirmar a importância de todos os
leitores apoiarem iniciativas como as nossas, de forma orgânica, divulgando nosso trabalho,
ou comprando nossos produtos. Assim, você garante a manutenção de empreendimentos
pequenos e familiares, ajudando na melhor distribuição de renda.

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RESENHA

Um romance histórico sobre Frida Kahlo inédito no Brasil

Figura 1- Fotografia de Carlos Douglas Martins Pinheiro Filho do livro Frida Kahlo e as cores da vida,
Carline Bernard.

Ficha técnica: Frida Kahlo e as cores da vida é um romance histórico baseado na história de
vida da pintora mexicana. Escrito pela escritora alemã Tânia Schlie, que assina sob o
pseudônimo de Caroline Bernard, o livro foi lançado no Brasil em dezembro de 2020 pela
TAG - Experiências Literárias e Tordesilhas Livros. A tradução do livro é de Claudia
Abeling, o prefácio de Katia Canton e o projeto gráfico de Amanda Cestaro.

Uma pequena biografia de Frida

O romance Frida Kahlo e as cores da vida é baseado na vida da personagem real e


costura uma percepção cheia admiração pela mulher mexicana, ativista feminista e pintora
consagrada, Frida Kahlo. A autora Tânia Schlie, em entrevista para Fernanda Grabauska,
quando indagada sobre o porquê de escrever um livro sobre Frida, respondeu que "a questão

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talvez devesse ser: por que não escrever um livro sobre Frida?". De fato, a pintora tornou-se
um ícone popular desde que ressurgiu na década de 1980 e, desde então, a imagem de seu
rosto está estampada em camisas, copos, bolsas, mochilas, cartazes e uma sorte diversa de
produtos comercializados. Pode ser que você tenha um desses em sua casa! Mas nem todas as
pessoas que compram esses objetos conhecem mais profundamente a história de vida da
artista.

Nascida em Coyoacán, no México, em 1907, e falecida na mesma casa em que


nasceu, a Casa Azul, em 1954. Frida teve uma trajetória intensa, vívida e marcante, apesar de
um tempo de vida aparentemente curto, ademais foi agraciada com a possibilidade, como
argumenta Tânia Schlie, de nascer e morrer na mesma casa, pois no México as pessoas
consideram essa circunstância uma bênção. Porém, Frida foi profundamente marcada pela dor
e doença: logo aos seis anos Frida foi diagnosticada com poliomielite, o que fez com que sua
perna direita fosse menor e mais frágil que a esquerda, acarretando problemas durante toda a
sua vida. Começou a pintar após um trágico acidente em que foi gravemente ferida,
incentivada por seu pai, o fotógrafo Guilhermo Kahlo, momento da história da personagem
real que compõe o início do livro, onde começa a estória da Frida de Caroline Bernard.

Em 1928, ingressou no Partido Comunista Mexicano e conheceu o reconhecido


muralista Diego Rivera, quem se apaixonou e se casou no ano seguinte. Rotulada como
surrealista pelo pintor francês André Breton, Frida consagrou-se internacionalmente expondo
suas obras em Nova York e Paris. Porém, foi na intensidade da luz do México que estavam o
coração e as cores da artista, e onde foi a sua primeira grande exposição, em 1953, apenas um
ano antes de sua morte. O legado de Frida para a humanidade é imortal, pela sua arte, mas,
principalmente, pelo que representava como ser humano, mulher, latino-americana e ativista.
Inspirou milhares de pessoas a enfrentarem suas dores, a cultivarem a autoestima e a lutarem
pelos seus direitos. Tornou-se ícone da luta feminista e da emancipação dos oprimidos.

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As duas Fridas

Figura 2 – Frida Kahlo, Las Dos Fridas, 1939. Pintura, óleo sobre tela.
Segundo relata Tânia Schlie, fazem parte do repertório de experiências que
possibilitaram a escrita do romance a leitura da biografia Frida - A Biografia, escrita por
Hayden Herrera; o estudo detalhado dos quadros da artista; a visitação a uma exposição dos
pertences pessoais dela, em Londres; e a visitação da Casa Azul, no México, onde Tânia
Schlie diz ter "tido a tremenda sorte de passar uma hora sozinha por lá", o que teria permitido
ela "imaginar cenas muito íntimas". Não à toa a importância desse fato, pois é a imaginação
sobre o universo íntimo da personagem real o principal objeto da literatura da escritora
alemã.

Apesar da manifesta busca pela verossimilhança com a história de vida da


personagem real e o perceptível esmero detalhista na descrição da atmosfera que permeia o
seu contexto histórico específico, a escritora não se propõe a uma obra biográfica. Aqui
estamos falando de um romance histórico. Quem está buscando uma biografia pode se
decepcionar, então, é melhor abrir a sua mente, ou buscar uma biografia sobre Frida Kahlo.

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No romance, Tânia Schlie privilegia recortes de momentos que considera significativos da
vida da artista com o propósito de dar vida a sua personagem, a sua “Frida”, uma mulher
mexicana destemida, talentosa, cheia de vida, confiante de si e romântica. Sim, romântica, a
Frida de Schlie é profundamente marcada pela emoção, principalmente pelo romantismo,
amor e paixão.

Logo no prólogo, a Frida de Schlie se apresenta como uma personagem dividida entre
duas facetas, presa nesse dualismo entre a mulher moderna, “que quer viver do jeito que lhe
convém”, e a “mulher que carrega a carga da tradição e da história”. Pois aí temos uma das
características principais desse romance histórico: a escritora baseia sua imaginação sobre a
personagem da vida real a partir de seus quadros, neste caso, sua intuição mais geral sobre o
paradigma existencial de Frida Kahlo emerge da pintura “As Duas Fridas”.

Em diversos momentos do livro as pinturas da artista surgem como elementos


referenciais da escritora para intuir os sentimentos, pensamentos e interioridade de Frida.
Assim, o livro acaba por oferecer ao leitor um rico percurso interpretativo da obra da pintora
e as suas histórias, fazendo ressaltar os possíveis elementos do mundo real que lhe renderam
a inspiração manifesta para seus quadros. Pois é dessa maneira que brota a mexicanidade da
Frida de Schlie, não a partir de uma nacionalidade abstrata, mas pela importância dessa
temática em sua realização, assim como a relação direta da experiência nacional com a
vivência biografada da Frida real.

Uma crítica possível

A edição gráfica do livro é impecável, apesar da revisão ter deixado passar


pequeníssimos erros na redação e algumas incoerências que sugerem problemas na tradução
em um ou dois trechos. O romance é muito bem executado tecnicamente e a escritora
consegue capturar a atenção do leitor, mantendo a tensão do início ao fim da narrativa.
Porém, a Frida de Schlie provavelmente decepcionará alguns leitores, principalmente aqueles
conhecedores mais profundos de sua biografia, ou mesmo aqueles mais engajados em lutas
sociais.

A questão a ser colocada é que a escritora privilegia quase integralmente em sua


narrativa a relação romântica entre Frida Kahlo e Diego Rivera. Aliás, o livro poderia muito
bem ter o nome de Diego no título e não seria um exagero, ou algo que expressasse mais

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claramente a relação romântica entre os dois. As cores da vida da personagem de Schlie têm
uma significativa porção de sua paleta em Diego Rivera e os dramas relativos à relação entre
os personagens, muitas vezes retratada como conturbada e conflituosa, mas outras como
amorosa e harmônica. Uma das sensações que tive, ao término da leitura, é que a relação
entre os dois era um “mal necessário” para o bem de uma personagem fragilizada pela doença
e solidão. Muitas vezes, o caráter corajoso e talentoso de Frida só aparece de forma mais
genuína ao lado de Diego, e, sem ele, a vida aparentemente perde o sentido, perde o brilho.

Outra questão é que as relações homoafetivas de Frida Kahlo, apesar de serem


trazidas para o romance, são apresentadas como aventuras, experiências de menor
importância, secundárias, sem grandes impactos emocionais ou no curso da história. Algumas
vezes, esses relacionamentos são apresentados como consequência direta da relação com
Diego, seja no intuito de agradá-lo ou despertar-lhe ciúmes. A sororidade entre as mulheres
até é tematizada no romance, mas de maneira secundária, do contrário, a autora privilegia,
muitas vezes, uma disputa entre as mulheres do romance pela atenção de Diego Rivera. A
realidade é que a Frida de Schlie é uma personagem dependente de Diego para viver, seja em
termos físicos, psicológicos e afetivos, e isso fica bastante nítido ao final do romance.

Neste sentido, é interessante notar que a vida política da personagem real é


secundarizada em relação a sua vida pessoal e afetiva. Muitas vezes fica a sensação de que
seu envolvimento com os movimentos socialistas e populares são uma mera busca por
socialização, ou mesmo o produto da influência de Diego e de seu meio social. O
envolvimento com os movimentos de esquerda aparece na personagem apenas como flashes,
eventos que armam cenário para acontecimentos mais significativos de cunho íntimo e
pessoal.

Porém, justiça seja feita, a dimensão política da Frida real é retratada no livro e não é
simplesmente castrada da personagem ficcional. Da mesma maneira, apesar de apresentar
como um pano de fundo, o livro aborda a relação de amizade entre Frida, Lucianne Bloch,
Anita Brenner e Tina Modotti. Obviamente, o romance não poderá agradar a todos e todas,
mas, apesar de suas limitações, constitui uma belíssima contribuição para compreensão de
uma personagem real tão complexa e multifacetada como Frida Kahlo.

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