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História da Ciência
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1/4/2013
Admiração e desprezo, encantamento e repulsa. Os mesmos sentimentos dos portugueses que primeiro se
depararam com um grupo tupinambá na costa de Porto Seguro, há mais de 500 anos, perduram ainda hoje. Do
mais odiento dos fazendeiros ao mais diligente dos antropólogos, compartilhamos doses variadas dessa ambígua
impressão sobre os índios brasileiros.
Pode-se argumentar que o encantamento e o respeito vêm se impondo nas últimas décadas. Provas disso seriam a
Constituição de 1988, a extensão de terras demarcadas, o crescimento demográfico indígena, a participação do
índio no panorama político-cultural brasileiro. Finalmente aprendemos a respeitar o índio? Tal certeza se esvai
quando, na menor confusão que surge na mídia – disputa de terras, atitudes beligerantes contra invasores,
assassinatos de índios e por índios – levantam-se as suspeitas antigas: os índios, afinal, são gente inconfiável,
incontrolável... “incivilizável”!
Foi pelo espanto que começou a ser elaborada a visão sobre os índios. Cartas de Américo Vespúcio se difundiram
pela Europa desde sua publicação, em 1512. Lá estava o encantamento e a repulsa pelo índio, sua nudez
confiante, seu destemor, seu “comunismo primitivo”, mas também sua crueldade, sua inconfiabilidade e o mais
abominável de todos os seus costumes: o canibalismo.
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Em Paris, na década de 1560, alguns tupinambás foram trazidos da Baía da Guanabara para conhecer os
franceses. Na ocasião, através de um intérprete, Michel de Montaigne indagou sobre seus costumes, sua visão de
mundo e até suas opiniões sobre a França. No brilhante artigo “Dos canibais”, ele demonstra ter compreendido
bem o significado do canibalismo tupinambá, que horrorizava os europeus: os inimigos aprisionados são
honrados como grandes guerreiros ao serem mortos e devorados, transmitindo sua coragem aos vencedores.
Sorrateiramente, Montaigne compara a prática com as guerras civis que estavam ocorrendo entre huguenotes e
católicos franceses, e seus horrendos métodos para obter informações, castigar ou simplesmente torturar os
inimigos mútuos – todos franceses. Corpos despedaçados, chumbo derretido derramado nos ouvidos, queima nas
fogueiras. Quem é o selvagem nessa comparação? Montaigne sugere que a repulsa e as críticas a costumes
diferentes brotam da visão interna de cada cultura, que pensa que os seus são os hábitos mais naturais e corretos
– o que mais tarde a antropologia iria nomear de etnocentrismo. E foi assim que Montaigne semeou no
pensamento ocidental a noção de relativismo cultural. Mais uma vez, a partir dos tupinambás.
Na Inglaterra, um século depois, Thomas Hobbes escreveria o Leviatã (1651) – o grande tratado que inaugura no
pensamento político ocidental a visão de que o Homem é um ser intrinsecamente egoísta e mau, ainda mais na
condição de selvagem, de ser da Natureza. Ilustríssimo conselheiro do rei Carlos II, Hobbes argumenta que só a
dureza do poder soberano e a submissão dos homens a esse poder é que poderiam controlar os maus instintos.
A visão hobbesiana sobre o Homem teve influência bem mais profunda e abrangente do que as obras de Morus e
Montaigne. Estas, porém, iriam inspirar a filosofia do genebrino Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e a teoria
do bom selvagem. Em Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, ele afirma
que a utopia teria existido, sim, como um estado da humanidade: uma sociedade igualitária, na qual o bem
comum prevalece sobre o individualismo. Mas esse estado teria sido suplantado desde o surgimento do egoísmo
e da propriedade privada. Àquela altura, só com leis e um contrato social é que os homens teriam jeito. Restavam
no mundo apenas ilhas de igualitarismo social, ainda no passado do bom selvagem. Como os tupinambás.
No Brasil do século XIX, o índio emerge como herói trágico no romance O Guarani, de José de Alencar, e como
herói das raízes nacionais no poema épico “Os timbiras”, de Gonçalves Dias, ambos publicados em 1857. Dom
Pedro II usava sua estola real feita com penas de papo de tucano, à moda indígena, mesmo quando seu principal
historiador, Francisco Adolpho de Varnhagen (1816-1878), apregoava que a civilização só poderia chegar aos
rincões do país pela destruição do índio “incivilizável”.
A teoria do bom selvagem prevalece no espírito nacional. O índio é inocente, puro, vive em harmonia com a
natureza, é contra estradas que rasgam a Amazônia, contra desmatamentos criminosos e hidrelétricas que
destroem rios e espécies animais e vegetais. Certo? Nem tanto. Os índios são seres históricos. Vivem na natureza,
mas a modificam, criando novos meios ambientes. Agregam excedentes econômicos, criam sociedades
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complexas. Antes da chegada de Cabral, o Brasil abrigou, em bacias amazônicas, sociedades indígenas
estratificadas, com sistemas religiosos complexos e cerâmica artisticamente elaborada.
Seres históricos fazem coisas históricas. Daí o espanto veemente sobre aspectos considerados negativos na
atualidade indígena. Por que o índio vende madeira escondido das autoridades? Por que aqueles que têm tão
poucas terras, sobretudo nos estados do Sul e no Mato Grosso do Sul, as arrendam para os brancos? Por que se
tornam dependentes de programas de alimentação, quando têm tantas terras para plantar? Por que não se
integram logo ao país e se sujeitam aos mesmos direitos dos demais brasileiros e sem mais privilégios? O mau
selvagem é preguiçoso e incapaz, e sua cultura tem pouco a oferecer à humanidade.
Melhor conhecimento da nossa história: eis o que precisamos para incorporar o índio como parte da cultura
brasileira, aceitando suas especificidades. Lutar por uma visão respeitosa, amorosa e solidária para com os índios
é essencial para a sua pertinência no mundo contemporâneo, mas também para a transformação do Brasil numa
nação digna e aberta aos seus primeiros filhos.
Mércio Pereira Gomes é antropólogo, professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro e ex-presidente da
Funai.
CUNHA, Manuela Carneiro da(Org.) História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
GOMES, Mércio Pereira. Os índios e o Brasil. São Paulo: Ed. Contexto, 2012.
RIBEIRO, Darcy. Diários Índios. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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