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Sexta-feira, 30 de Junho de 2023.

Vozes Paulo Cruz

Paulo Cruz

A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Raça, cultura e eugenia: General Mourão e


a estupidez inteligente
Por Paulo Cruz 10/08/2018 15:46 1 COMENTÁRIOS

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1 Inspiradas

Foto: Maicon J. Gomes/Gazeta do Povo| Foto:

“Os brasileiros são entusiastas do belo ideal, amigos da sua liberdade, e mal
sofrem perder as regalias que uma vez adquiriram. Obedientes ao justo,
inimigos do arbitrário, suportam melhor o roubo que o vilipêndio;
ignorantes por falta de instrução, mas cheios de talento por natureza; de
imaginação brilhante, e por isso amigos de novidades que prometem
perfeição e enobrecimento; generosos, mas com bazó a; capazes de grandes
ações, contanto que não exijam atenção maturada, e não requeiram
trabalho assíduo e monotônico; apaixonados do sexo por clima, vida e
educação. Empreendem muito, acabam pouco. Sendo os Atenienses da
América, senão forem comprimidos e tiranizados pelo despotismo”. (José
Bonifácio de Andrada e Silva)

Uma das características mais marcantes da loso a de vida de  Benê,


minha amada mãe, é a máxima que ouço desde criança – uma
verdadeira síntese da vida prudente: “temos de ter o que falar, e nunca
dar o que falar”. Mulher irrepreensível, minha mãe repetia inúmeras
vezes seu axioma, sempre precedido de outra sentença de cunho mais,
digamos, incisivo: “se alguém aparecer aqui na porta para falar de você,
eu te pego”. Isso me fez ser alguém que sempre – pelo menos sempre
que possível – pondera suas ações e a rmações, pois sei, desde
pequeno, que “dar o que falar”, ter o nome envolvido em falatórios ou
escândalos, não é boa coisa.

A semana se iniciou em meio a uma dessas celeumas que, não fosse o


seu protagonista quem é, teria passado despercebida de todos – como
passou tantas vezes. Não só porque tal gura ocupou uma das mais
altas patentes do Exército Brasileiro, mas porque ganhou notoriedade
nacional ao ser escolhida como candidato a vice-presidente do mais
escandaloso – no sentido próprio, grego, do termo, de “armadilha”,
“pedra de tropeço” (petras skándalou) – dos candidatos (pelo menos
para a mídia e para seus adversário): Jair Bolsonaro. O protagonista da
confusão foi o general Antônio Hamilton Mourão, ou General Mourão.

No dia 06/08, Mourão dava uma palestra na Câmara de Indústria e


Comércio de Caxias do Sul (RS) e, num determinado momento, disse:

“Temos uma herança cultural, uma herança que tem muita gente que gosta
do privilégio (…) Essa herança do privilégio é uma herança ibérica. Temos
uma certa herança da indolência, que vem da cultura indígena. Eu sou
indígena. Meu pai é amazonense. E a malandragem (…) é oriunda do
africano”, a rmou. “Então, esse é o nosso cadinho cultural. Infelizmente
gostamos de mártires, líderes populistas e dos macunaímas.”

A partir daí, uma enxurrada de críticas invadiu a mídia tradicional e as


redes sociais, denunciando racismo nas a rmações do general. A
economista Miriam Leitão, em sua coluna n’O Globo, escreveu: “A
declaração do general Hamiltom Mourão sobre as raízes brasileiras é
toda ruim. É uma ofensa ao país como um todo […] Essa maneira como
o general apresenta o país é o que parece: racista”.

Quem me conhece e/ou acompanha o meu trabalho, sabe do esforço que


tenho feito, em meus artigos aqui, na Gazeta, em minhas palestras e em
meu curso online O Brasil é um país racista?, no sentido de equacionar
melhor o uso do conceito de racismo. Para mim, a discussão perdeu o
sentido quando, ao não conseguirmos identi car os racistas de fato –
aqueles que defendem a existência de raças humanas e atribuem
determinadas características intrínsecas a elas –, acabamos por fazer
de todos os brasileiros racistas em potencial; daí a expressão de que o
país é racista. Perde-se a medida das coisas, acusa-se qualquer idiota de
racismo, enquanto os verdadeiros racistas continuam sem a devida
punição. E mais: há uma tendência, que ocorre quase sempre, de
associar a a rmação de uma pessoa à sua opinião consciente. Por
exemplo: as a rmações do general fazem dele um racista? Entre os
mais radicais, principalmente aqueles à esquerda, sim. O jornalista
Reinaldo Azevedo, em sua diatribe legalista, também asseverou:
“General Mourão praticou crime de racismo”. Eu não creio nisso.

Digo do general Mourão o que disse de William Waack, em artigo


publicado nesta mesma Gazeta do Povo: suas palavras desastrosas,
inaceitáveis, não fazem dele, em minha maneira de ver, um racista a
priori; seria preciso que ele se a rmasse como tal quando indagado – ou
você não se lembra, caríssimo leitor, de nenhuma pessoa que dissesse,
abertamente, não gostar de negros (ou índios, ou bolivianos)? Sim, elas
existem no Brasil; são uma minoria cuja certeza de superioridade é
sustentada à luz do dia. A tese do racismo cordial, apesar de endossada
por praticamente toda classe falante, não me convence. A imensa
maioria dos brasileiros abomina o racismo; e se alguém, por um acesso
de raiva ou por pura estupidez, chamar um negro de “macaco” – o que
con gura, pelo artigo 140 do código penal, o crime de injúria racial –
tal ato é passível de retratação. Não se pode rotular alguém de racista
por isso.

No entanto, infelizmente, as a rmações do general Mourão ecoam,


como mostrarei a seguir, muito fortemente, naquele racismo mais
sórdido, eugenista, do século 19, apregoado por intelectuais como
Raimundo Nina Rodrigues e Sílvio Romero.

Quando Mourão atribui a uma cultura determinadas características


morais – sobretudo pejorativas – sem ter em mente que as qualidades
morais são adquiridas pelo convívio, tropeça numa perigosíssima
generalização. Os indígenas brasileiros eram heterogêneos, de etnias
distintas – com culturas e costumes diferentes; o continente africano é
uma imensidão – hoje dividido em 54 países – com os mais variados
povos e suas mais diversas (e até rivais) culturas. Os ibéricos, formados
por dezenas de povos – gregos, romanos, celtas, mouros, suevos,
visigodos, judeus etc. –, como classi ca-los? E mais: dizer que
determinadas características, tão especí cas como “malandragem”,
“indolência” ou a “cultura do privilégio” sejam intrinsecamente
associadas a culturas de tais ou quais povos, e passíveis de serem
transmitidas a outro povo – ainda que oriundo daqueles –, formado em
outro continente, com geogra a e características climáticas diferentes,
é algo que só seria possível geneticamente. Não há saída.

Raimundo Nina Rodrigues escreveu, em Os Africanos no Brasil (edição


online, de domínio público): “Em torno deste fulcro — Mestiçamento
—, gravita o desenvolvimento da nossa capacidade cultural, e no
sangue negro havemos de buscar, como em fonte matriz, com algumas
das nossas virtudes, muitos dos nossos defeitos”. (p. 20). Sílvio Romero
falava da “barbárie do indígena e a inépcia do negro” (citado por Lilia
Moritz Schwarcz em O espetáculo das raças, Cia das letras, p. 115). Arthur
de Gobineau, o diplomata francês amigo de D. Pedro II (que rechaçava
suas ideias, diga-se), ia ainda mais longe: “Nenhum brasileiro é de
sangue puro, mas as combinações dos casamentos entre brancos,
indígenas e negros multiplicaram-se a tal ponto, que as variantes de
carnação apresentam-se inumeráveis e tudo isso produziu, tanto nas
baixas quanto nas altas classes, uma degeneração do mais triste
aspecto” (citado por Georges Raeders, em O conde de Gobineau no Brasil,
CEC, p. 79-80).

Ou seja, os eugenistas do século 19 chegavam à mesma conclusão que


Mourão – em termos culturais, inclusive; porém, atribuíam tal
degeneração do povo brasileiro a causas genéticas. Para Nina Rodrigues
e Sílvio Romero, a mestiçagem, com predominância pelo sangue branco,
provavelmente resolveria o problema. Gobineau era taxativo: o povo
brasileiro não tinha cura.

Mourão ainda tropeçou num completo desconhecimento – que alguns


tentaram empurrar para o economista Roberto Campos, como autor da
citação original – dos estudos antropológicos brasileiros. Gilberto
Freyre, provavelmente o maior interprete do Brasil – relegado ao
completo ostracismo pelos acadêmicos marxistas da Universidade de
SP – por exemplo, inverte quase completamente as caracterizações
apresentadas por Mourão/Campos. Em Casa-Grande & Senzala (Global),
citando o historiador inglês Aubrey F. G. Bell, diz:

“O caráter português – comparação do mesmo Bell – é como um rio que vai


correndo muito calmo e de repente se precipita em quedas de água: daí
passar do ‘fatalismo’ a ‘rompantes de esforço heroico’; da ‘apatia’ a
‘explosões de energia na vida particular e a revoluções na vida pública’; da
‘docilidade’ a ‘ímpetos de arrogância e crueldade’; da ‘indiferença’ a
‘fugitivos entusiasmos’, ‘amor ao progresso’, ‘dinamismo’… É um caráter
todo de arrojos súbitos que entre um ímpeto e outro se compraz em certa
indolência voluptuosa muito oriental, na saudade, no fado, no lausperene.
‘Místicos e poéticos’ – são ainda os portugueses segundo Bell (o inglês que
depois de Beckford melhor tem sentido e compreendido a gente e a vida de
Portugal), ‘com intervalos de intenso utilitarismo […] caindo dos sonhos
vãos numa verdadeira volúpia de proveito imediato; das alturas da alegria
na tristeza, no desespero, no suicídio; da vaidade no pessimismo […]
alternando a indolência com o amor da aventura e do esporte.” (p. 69)

Ou, ainda:

“Antes de Alexandre de Gusmão dar seu grito de alarme contra o regime de


trabalho escravo em Portugal, atribuindo a essa instituição a indolência do
português, sua lentidão e esterilidade, já [Nicolau] Clenardo salientara a
extensão dos efeitos perniciosos do cativeiro sobre o caráter e a economia
lusitana. Com a diferença de Alexandre de Gusmão diagnosticar um império
já começando a desfazer-se de podre; Clenardo receitou-o pelos primeiros
escarros de sangue. ‘Se há povo algum dado à preguiça, sem ser o português,
então não sei eu onde ele exista… Esta gente tudo prefere suportar a
aprender uma pro ssão qualquer.’ Tão grande indolência, à custa da
escravidão: ‘Todo o serviço é feito por negros e mouros cativos. Portugal está
a abarrotar com essa raça de gente. Estou quase a crer, que só em Lisboa, há
mais escravos e escravas que portugueses livres de condição”. (p. 318)

Já Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, apresenta, a respeito


do ibérico, uma mistura de indolência e oportunismo:

“Essa pouca disposição para o trabalho, ao menos para o trabalho sem


compensação próxima, essa indolência, como diz o deão Inge, não sendo
evidentemente um estímulo às ações aventurosas, não deixa de constituir,
com notável frequência, o aspecto negativo do ânimo que gera as grandes
empresas. Como explicar, sem isso, que os povos ibéricos mostrassem tanta
aptidão para a caça aos bens materiais em outros continentes? ‘Um
português’, comentava certo viajante em ns do século 18, ‘pode fretar um
navio para o Brasil com menos di culdade do que lhe é preciso para ir a
cavalo de Lisboa ao Porto.’ E essa ânsia de prosperidade sem custo, de
títulos honorí cos, de posições e riquezas fáceis, tão notoriamente
característica da gente de nossa terra, não é bem uma das manifestações
mais cruas do espírito de aventura?” (p. 46)

A respeito da suposta indolência indígena, é Padre Manuel da Nóbrega,


o grande jesuíta, nas Cartas Jesuíticas (Itatiaia), quem nos orienta:

“Não se guerreiam por avareza, porque não possuem de seu mais do que
lhes dão a pesca, a caça e o fructo que a terra dá a todos, mas somente por
ódio e vingança, sendo tão sujeitos á ira que, si acaso se encontram em o
caminho, logo vão ao pau, á pedra ou á dentada, e assim comem diversos
animaes, como pulgas e outros como este, tudo para vingarem-se do mal
que lhes causam, o que bem deixa ver que não tomaram ainda aquelle
conselho evangélico de pagar o mal com o bem.”. (p. 90-91)

Por m, sobre a malandragem/magia africana – como alguma falta de


inteligência prática nas relações de causa e efeito (pois é disso que se
trata), Freyre nos dá pistas reveladoras em CG&S:

“Porque nada mais anticientí co que falar-se da inferioridade do negro


africano em relação ao ameríndio sem discriminar-se antes que ameríndio;
sem distinguir-se que negro. Se o tapuio; se o banto; se o hotentote. Nada
mais absurdo do que negar-se ao negro sudanês, por exemplo, importado
em número considerável para o Brasil, cultura superior à do indígena mais
adiantado. Escrever que ‘nem pelos artefatos, nem pela cultura dos vegetais,
nem pela domesticação das espécies zoológicas, nem pela constituição da
família ou das tribos, nem pelos conhecimentos astronômicos, nem pela
criação da linguagem e das lendas, eram os pretos superiores aos nossos
silvícolas’, é produzir uma a rmativa que virada pelo avesso é que dá certo.
Por todos esses traços de cultura material e moral revelaram-se os escravos
negros, dos estoques mais adiantados, em condições de concorrer melhor
que os índios à formação econômica e social do Brasil. Às vezes melhor que
os portugueses”. (p. 370)

Ou, ainda:

“Os escravos vindos das áreas de cultura negra mais adiantada foram um
elemento ativo, criador, e quase que se pode acrescentar nobre na
colonização do Brasil; degradados apenas pela sua condição de escravos.
Longe de terem sido apenas animais de tração e operários de enxada, a
serviço da agricultura, desempenharam uma função civilizadora. Foram a
mão direita da formação agrária brasileira, os índios, e sob certo ponto de
vista, os portugueses, a mão esquerda. E não só da formação agrária.
Eschwege salienta que a mineração do ferro no Brasil foi aprendida dos
africanos. E Max Schmidt destaca dois aspectos da colonização africana que
deixam entrever superioridade técnica do negro sobre o indígena e até sobre
o branco: o trabalho de metais e a criação de gado. Poderia acrescentar-se
um terceiro: a culinária, que no Brasil enriqueceu-se e re nou-se com a
contribuição africana”. (p. 390)

Evidente que se tratam das visões destes pensadores, amparadas por


suas referências. No entanto, demonstram que a percepção que
tiveram, como especialistas, é imensamente diferente da que tiveram
Mourão e Campos. E mais: nenhum deles atribui qualquer herança
cultural especí ca de um povo para outro; a cultura brasileira se
produziu no Brasil, com suas qualidades e defeitos. A citação de José
Bonifácio, na epígrafe deste artigo, mostra uma compreensão muito
mais sagaz do caráter dos brasileiros; o patriarca da independência,
sabia e belamente, critica e exalta ao mesmo tempo.

Portanto, podemos dizer que general Mourão estava duplamente


equivocado: tanto pelo fato de suas declarações, mesmo que
inconscientemente, remeterem ao racismo biológico e eugenista do séc.
19, quanto por estarem, de acordo com os maiores especialistas em
cultura brasileira, completamente erradas. E o pior: em vez de se
retratar, recon rmou as a rmações, mesmo se defendendo da
acusação de racismo. Mourão mostrou-se portador daquilo que Roberto
Musil chamou de estupidez inteligente, que é:

“[…] a verdadeira doença da formação – digamos, para evitar qualquer


mal-entendido, que é a ausência de formação, a formação falhada, mal
recebida, desequilíbrio entre a sua substância e a sua força […] Pode atingir
até a mais alta intelectualidade; porque, se a estupidez autêntica é uma
artista pací ca, a estupidez inteligente, que contribui para a mobilidade da
vida do espírito, provoca, sobretudo, a sua instabilidade e esterilidade”. (Da
estupidez, Relógio D’Água, p. 31).

Mourão “deu o que falar”. Merecia as repreensões de Dona Benê. E para


um início de campanha eleitoral, convenhamos, foi mal, Mourão, muito
mal!

Paulo Cruz

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