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HISTÓRIA – LICENCIATURA
FICHAMENTO
DAMASCENO, Wagner Miquéias. Racismo, escravidão e capitalismo no Brasil:
Uma abordagem marxista. Bauru-SP: Mireveja, 2022.
p. 47 • “O racismo no Brasil é resultado de um longo período de escravidão e de
intricadas ideias, ora de fundo religioso, ora de fundo pseudocientífico, ora
fundadas numa perspectiva culturalista.
Mas a grande referência era, sem dúvida, Gilberto Freire, lido como a
reflexão mais "acabada" da vitória do povo brasileiro sobre a chamada
"questão racial". Vários artigos recorrem a ele, citando-o ou não, quando
narram a história do Brasil: os portugueses não eram "brancos", mas já
mestiços, o que não os impediu de obra colonizadora grandiosa; os índios e
os jesuítas permitiam a "descoberta" de uma "rebeldia natural" contra a
submissão e de um sentimento moral que impregnava a sociedade colonial e
deixava suas marcas profundas; os negros não eram tão "servis" quanto se
imaginava, e os estudos mais recentes sobre a abolição o demonstravam
(1996, p. 195).”
• “Considero bastante oportuna, para entender quem foi Gilberto Freyre, a
apresentação de um trecho autobiográfico, disponibilizado por Elide Rugai
Bastos, em que o autor pernambucano relembra suas origens:
Sucedeu-me ter tido uma meninice de neto de gente, além de patriarcal, rural,
com sobreviventes, na convivência doméstica ou familial, de escravos ou de
servos nascidos nos dias de escravidão o último deles, o velho Manuel
Santana que meus filhos cresceram considerando-o avo. E, na própria
meninice, cresci ouvindo histórias da negrinha Izabel e aprendendo
palavrões com o malungo Severino e ouvindo da negra velha Felicidade,
outrora escrava de minha avó materna e por nós, meninos, como por minha
mãe, chamada Dadade, suas experiências dos dias antigos. Embora todos
esses afronegros, católicos devotos, de ouvirem missa ajoelhados e de se
confessa- rem, soubessem restos de falas africanas e, quando a sós com os
ioiozinhos, gostavam de lhes falar de lemanjás e Exus. Afronegros
assimilados às crenças católicas, tanto quanto de Carlos Magno, de princesas
louras e de mouras encantadas. Sincretismo que foi trazido das casas-grandes
para os sobrados e paras as mansões urbanas, quando ainda patriarcais (2006,
p. 20).”
• “As semelhanças no conteúdo das memórias de Freyre e Nabuco são muitas.
De tal sorte que parece que Freyre prossegue de onde Nabuco termina: a
escravidão espalhou pelo país uma grande suavidade; havia uma
generosidade inconsciente da parte do escravo e um egoísmo inconsciente
do senhor de escravos e do latifúndio. Ora, como haveria espaço para ódio
racial e luta de classes nesse idílio?! Como haveriam os negros de se rebelar,
se eram bondosos e inconscientemente generosos?!”
• “Para Gilberto Freyre, houve, no Brasil, uma "fusão harmoniosa de tradições
diversas, ou antes, antagónicas, de cultura", fazendo de nosso regime "um
dos mais democráticos, flexíveis e plásticos" (2005, p. 115). Para sustentar
essa visão, ele recorreu a algumas manobras analíticas. Talvez, a principal
delas tenha sido fazer da escravidão doméstica o grande modelo da relação
escravista que perdurou por quatro séculos. Não restam dúvidas de que as
negras e negros escravizados desempenharam todo tipo de trabalho
doméstico no Brasil e que, como nos informa Flavia Fernandes de Souza,
em virtude da aversão ao trabalho manual típica das sociedades
escravagistas, "em especial as escravas, los negros escravizados] tornaram-
se figuras corri queiras e indispensáveis ao exercício das funções
domésticas" (2014, p. 285).”
p. 104-111 • “A escravidão, por felicidade nossa, não azedou nunca a alma do escravo
contra o senhor - falando coletiva- mente - nem criou entre as duas raças o
ódio recíproco que existe naturalmente entre opressores e oprimidos [...]a
cor no Brasil não é, como nos Estados Unidos, um preconceito social contra
cuja obstinação pouco pode, o talento e o mérito de quem incorre nele
(NABUCO, 2000, p. 10-11, grifo meu).”
• “Considerada de modo geral, a formação brasileira tem sido, na verdade,
como já salientamos às primeiras páginas deste ensaio, um processo de
equilíbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A
cultura europeia e a indígena. A europeia e a africana. A africana e a
indígena. A economia agrária e a pastoril. A agrária e a mineira. O católico
e o herege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de engenho. O
paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate. O grande proprietário e
o pária. O bacharel e o analfabeto. Mas predominando sobre todos os
antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo (2005,
p. 116).”
• “Passados 130 anos da abolição da escravidão, os registros da violência
sexual praticada contra as mulheres negras ainda podem ser observados. É o
que mostra o resultado preliminar do projeto DNA do Brasil, da
Universidade de São Paulo (USP): analisando o sequenciamento genético de
1.247 brasileiros, os pesquisadores constataram que a maior parte do DNA
herdado das mães (mitocondrial) veio de mulheres africanas (36%) e
indígenas (34%). Juntas, somam 70%. Já 75% da herança genética masculina
veio de homens europeus.”
• “Em diversas passagens, Freyre diminui o papel da raça na trajetória dos
indivíduos, alegando que o mais importante seria sua situação social:
"decisiva nos parece antes sua situação sociocultural - principalmente
econômica - de classe que, por muito tempo, no Brasil, foi a de escravo
oposta à do senhor ao mesmo tempo que simbiótica à do mesmo senhor
dentro da constelação familial ou patriarcal [...]" (2003, p. 493). Ou quando
diz que "não se pode afirmar da nossa formação que tenha sido
substancialmente aristocrática no sentido de uma raça, de uma classe ou de
uma região única" (2003, p. 501).”
p. 112-119 • “Logo, o cientista social pernambucano deu seu quinhão, também, para a
criação de uma forte ideia presente no imaginário coletivo brasileiro, e que
daria esteio a um elemento medular da democracia burguesa: a meritocracia.
Pois, segundo ele, havia no Brasil a miscigenação, a dispersão da herança, a
fácil e frequente mudança de profissão e de residência, o fácil e frequente
acesso a cargos e posições políticas e sociais de mestiços e de naturais, o
cristianismo lírico à portuguesa, a tolerância moral, a hospitalidade a
estrangeiros, a intercomunicação entre diferentes zonas do país (FREYRE,
2005, p. 117).”
• “Em Democracia racial: uma hipótese, Levy Cruz tenta inventariar os termos
"democracia racial", "democracia étnica" e "democracia social" no conjunto
da obra de Gilberto Freyre, com o declarado intuito de rebater as críticas que
apontam o antropólogo pernambucano como o principal formulador do mito
da democracia racial. No empenho de rebater as críticas à obra freyreana, o
historiador termina por desqualificar as denúncias de racismo no Brasil
apelando para "lugares comuns" deste tipo: "Toda a argumentação dos
críticos da democracia racial é como se somente os negros estivessem
localizados nos estratos mais baixos da escala social. Existem brancos
pobres" (2002, p. 10).”
• “Portanto, a quem interessa dizer que a escravidão é "um episódio
encerrado", sem reflexos materiais para os negros hoje? A quem interessa
afirmar que no Brasil - contra todas as evidências materiais - há uma relação
harmoniosa entre as raças? A quem interessa dizer que os brancos europeus
nunca tiveram preconceito racial e que, por consequência, nunca houve
racismo no Brasil? Para nós, a democracia racial tal como foi formulada por
Freyre não é um ideal a ser alcançado, mas uma ilusão sobre a nossa
formação social. Por isso, o movimento negro a alcunhou de mito da
democracia racial. Se a democracia é uma poderosa ideologia que tenta
ocultar os antagonismos de classes, no Brasil, a democracia racial visa
ocultar os antagonismos entre as raças. Assim, tornou-se a principal
ideologia racista no país.”
• “Ainda sobre esse episódio, pode-se dizer que a reação do âncora
corresponde ao que Florestan Fernandes (2007) chamou de "preconceito de
não ter preconceito": uma "moral reativa" do branco que, flagrado em atitude
racista, em vez de procurar entender o racismo manifestado em suas atitudes,
ataca as críticas dos negros, assumindo muitas vezes uma postura de máxima
indignação com o racismo.”
p. 120-127 • “Bem ao gosto da ideologia da democracia racial, Kamel afirma, em seu
livro, que há indivíduos racistas no país - "onde há homens reunidos há
também todos os sentimentos, os piores inclusive"-, mas que a sociedade
brasileira não é racista. E tenta comprovar seu argumento repisando a cartilha
freyreana: "após a Abolição, nunca houve barreiras institucionais a negros
ou a qualquer etnia" (2006, p. 20). Adiante, Kamel enfatiza: "nosso
arcabouço jurídico institucional é todo ele 'a-racial'. Toda forma de
discriminação racial é combatida em lei" (2006, p. 66).”
• “Afinal, assim como a democracia (burguesa) desvanece os antagonismos de
classe - fazendo parecer que o motorista de aplicativo Jeferson Pereira da
Silva está em pé de igualdade com o banqueiro Joseph Safra-, a democracia
racial faz parecer que negros e brancos gozam, na prática, das mesmas
liberdades democráticas, direitos e oportunidades na sociedade brasileira.”
• “Nessa discussão, como vemos, revelam-se alguns dos principais
mecanismos da ideologia da democracia racial, incluindo aqueles apontados
por Florestan Fernandes (2008a) e Thales de Azevedo (1975): a ideia de
ausência de preconceito (seja do agente do racismo, seja da sociedade
brasileira como um todo); a ideia de que há "democracia" no espaço em
questão (trabalham nesse clube tanto brancos como negros; moram
igualmente na favela brancos e negros etc. - ocultando-se sempre as
especificidades dos negros); a preponderância do social sobre o racial (a
origem humilde impediria uma pessoa de ter preconceito racial); e a noção
de que, no máximo, se trata sempre de um mal-entendido, sem implicações
para ações discriminatórias ou violentas.”
• “E uma interessante pista para entender sua longevidade é dada por Simone
Meucci: para ela, a ideia de igualdade racial passou a ser um atributo da
sociedade, fazendo com que a ideologia da democracia racial pudesse existir
até mesmo com a suspensão do regime democrático burguês, como ficou
comprovado com a instauração do Estado Novo" e da ditadura cívico-militar
de 1964-1985. Não por acaso, no ano de 1979, em razão do Dia 72.”
p. 128-135 • “Porém, cumpre dizer que a hegemonia de uma ideologia não implica no
desaparecimento completo de outras ideologias representativas das classes
socialmente dominantes. A ideologia da democracia racial é hoje a ideologia
dominante utilizada pela burguesia para explicar e ocultar os antagonismos
e desigualdades étnico-raciais no país. Contudo, ela não se desfez por
completo de ideologias abertamente segregacionistas, como o ideal de
branqueamento.”
• “Sentindo-se bastante confortável na ocasião, Bolsonaro verbalizou sua
crença na inferioridade de negros quilombolas ao mencionar uma unidade de
medida de peso bovino, reduzindo-os à condição de animais. Além disso,
atribuiu-lhes uma infundada incapacidade de se reproduzir. Ora, do ponto de
vista biológico, se a reprodução é atividade fundamental para as espécies, do
ponto de vista sociológico e histórico a redução do negro às funções
sexuais/reprodutivas é um expediente tipicamente racista.”
• “Como esse, há infindáveis casos que mostram que a ideologia da
democracia racial não eliminou plenamente a ideia de branqueamento. Ao
contrário, há um trabalho conjunto: permaneceu no Brasil um ideal de
embranquecimento numa sociedade que afirma ser racialmente democrática.
Além do mais, como bem destaca o historiador Hertz Dias, essa ideologia
"funciona como fator de desmobilização política do negro que não se percebe
enquanto tal, dificultando sua autodefesa coletiva da agressão racista" (2017,
p. 110). Ou, ainda, em outra oportuna expressão de Munanga, o que vemos
é uma "inércia do mito da democracia racial" (2017, p. 38).”
• “Quando se fala da beleza feminina, diz-se "uma mulher linda" ao se referir
a uma branca, mas, quando se trata de uma mulher negra, diz-se uma "negra
linda". Vice- -versa, o mesmo se dá a respeito da beleza masculina: "fulano
é um homem lindo", quando é branco, e "fulano é um negro lindo", quando
se trata de um negro, como a insinuar que a beleza negra é uma exceção que
precisa ser adjetivada, enquanto a branca é uma regra geral que dispensa esse
uso (MUNANGA, 2017, p. 39-40).”
p. 136-143 • “Assim, sob o nobre argumento de conferir protagonismo aos sujeitos
negros, historiadores, antropólogos e sociólogos concentram suas análises
no século XIX - marcado pela desintegração da escravidão - e
supervalorizam, por exemplo, casos de negros e negras que conseguiram
comprar sua própria alforria ou a de seus filhos e casos de assimilação e
recriação de práticas culturais senhoriais ou de negociações e arranjos
cotidianos entre escravos e senhores.”
• “Aqueles que repugnam a ideia de ações diretas da massa de trabalhadores
negros e pobres e/ou os que defendem a acomodação dos negros no
capitalismo - seja por meio do chamado empoderamento negro, seja pelas
estratégias tradicionais do reformismo de ocupação das instituições
burguesas - encontram, nessas interpretações "que igualam o fundamental ao
secundário", um ponto de apoio.”
• “A quilombagem era, ainda, um movimento abrangente, capaz de incluir
diferentes setores sociais explorados e oprimidos" além de negros fugitivos,
como indígenas acossados, curibocas, pessoas perseguidas pela polícia em
geral, bandoleiros, devedores do fisco, fugitivos do serviço militar, mulheres
sem profissão, brancos pobres e prostitutas (MOURA, 1992).”
• “Seguindo essa linha de raciocínio, creio que também valha a pena recuperar
o emblemático ano de 1789, em Ilhéus, Bahia, quando negras e negros
escravizados se rebelaram, mataram o mestre de açúcar, tomaram as
ferramentas e pararam o trabalho por quase dois anos. Após longos e
sangrentos combates, esses mesmos negros rebelados redigiram uma espécie
de tratado de paz e exigências para que pudessem retornar ao trabalho nas
fazendas. Segundo relato extraído de Reis e Silva (1989), o senhor de
engenho Manuel da Silva Ferreira armou uma cilada para os rebelados,
simulando acordo com o tratado, prendendo seus líderes e pondo fim ao
movimento de ocupação.”
p. 144 • “Apesar de experiências como essa, na segunda metade do século XIX,
marcado pela decadência da escravidão e pela ruína das economias
assentadas na cana-de-açúcar, os políticos abolicionistas terminaram pondo-
se à frente dos negros na luta contra a escravidão, dando os contornos de suas
ações. Por se apoia- rem na insatisfação dos negros e negras e terem
conduzido, de conjunto, a luta contra a escravidão nos marcos da ordem, é
que recai sobre os abolicionistas - e, claro, a própria classe dominante -a
responsabilidade por uma Abolição negligente e precária.”