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UFMS – CPTL

HISTÓRIA – LICENCIATURA

Docente: Prof. Dr. Vitor Wagner Neto de Oliveira


Discente: Matheus Medeiros Piquera

FICHAMENTO
DAMASCENO, Wagner Miquéias. Racismo, escravidão e capitalismo no Brasil:
Uma abordagem marxista. Bauru-SP: Mireveja, 2022.
p. 47 • “O racismo no Brasil é resultado de um longo período de escravidão e de
intricadas ideias, ora de fundo religioso, ora de fundo pseudocientífico, ora
fundadas numa perspectiva culturalista.

De forma sintética, as ideologias dominantes que justificaram a escravidão


negra no Brasil, por cerca de dois séculos, tinham fundo religioso.”
p. 48-55 • “Orientadas por conceitos tais como "civilização", "pro- gresso",
"primitivo", "evolução" e, sobretudo, "raça", essas teorias monopolizaram -
por um intervalo de cerca de sessenta anos - as explicações das classes
dominantes sobre a desigualdade entre os grupamentos humanos no país.”
• “Durante a longa contenda ibérica entre muçulmanos e cristãos, seguida da
expansão ultramarina, o termo "raça adquiriu um sentido étnico-
originalmente aplicado aos descendentes de judeus e de muçulmanos,
referindo-se à impureza do sangue, e foi depois usado para nativos africanos
e americanos. Portanto, no contexto ibérico, o conteúdo semântico do termo
desenvolveu-se através de um sistema hierárquico de classificação étnica.
No século XVIII, o termo "raça" era usado na Europa para referir o gênero
feminino e, de um modo geral, para indicar variedades de seres humanos. No
seio das teorias das raças, o termo adquiriu um papel ambíguo na catalogação
de subespécies, pra- ticamente transformadas em espécies pelo racialismo
científico de meados do século XIX. Em finais do século XIX, inicio do XX,
o triunfo do nacionalismo por todo o mundo ocidental fez com que o termo
"raça" fosse equiparado a nação (BETHENCOURT, 2017, p. 29).”
• “A hierarquia entre as raças ganhava, desse modo, o peso da determinação
da natureza, como os minerais e vegetais". Em solo brasileiro, alguns dos
maiores expoentes desse pensamento racista foram o médico fluminense
João Batista de Lacerda, o jurista sergipano Silvio Romero, o médico Nina
Rodrigues e o cientista social Oliveira Vianna. Abordarei, a seguir, as
principais elaborações desses intelectuais sobre a questão racial e a
mestiçagem.”
• “Em seu livro As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, Nina
Rodrigues buscou fundamentar a aplicação do direito penal nas diferenças
entre as raças presentes no país e suas características supostamente inatas:

Se, de facto, a evolução mental na especie humana é uma verdade, á medida


que descermos a escala evolutiva, a mais e mais nos deveremos aproximar
das acções automaticas e reflexas iniciaes. Deste geito, nas raças inferiores,
a impulsividade primitiva, fonte e origem de actos violentos e antisociaes,
por muito predominarão sobre as acções reflectidas e adaptadas, que só se
tornaram possíveis, nas raças cultas e nos povos civilisados, com o
apparecimento de motivos psychicos de uma ordem moral mais elevada
(1894, p. 88).”
p. 56-63 • “Nessa perspectiva, o dilema racial só poderia ser resolvido através da
miscigenação em larga escala, auxiliada pelo fomento à imigração de
europeus brancos. E era assim pois as ideologias dominantes apregoavam
que, no intercurso sexual entre raças "superiores" e "inferiores", prevaleceria
a raça "superior". Isto é, a branca. Segundo Skidimore, "A tese comentada
se baseava no pressuposto da superioridade branca - às vezes minimizada
por ficar em aberto a questão do quão 'inata' seria essa inferioridade e pelo
emprego de eufemismos como raças 'mais adiantadas' e 'menos adiantadas"
(2012, p.111).”
• “Estas duas raças inferiores só se fazem agentes de civilização, isto é,
somente concorrem com elementos eugenicos para a formação das classes
superiores, quando perdem a sua pureza e se cruzam com o branco: si, em
funcção da nossa civilização o eugenismo do indio é nullo, si é limitadissimo
o do negro, já o dos dous typos cruzados, o mulato e o mameluco, é mais
desenvolvido e sensível. Da plebe mestiça, em toda a nossa historia, ao sul e
ao norte, têm sahido, com effeito, poderosas individualidades, de capacidade
ascensional incoercivel, com uma acção decisiva no nosso movi- mento
civilizador (IBGE, 1922, p. 406).”
• “Em grande parte, as estatísticas da população brasileira mostravam - em
virtude, não apenas, da imigração de trabalhadores brancos europeus - uma
superioridade numérica de brancos. Elas eram amparadas pelas ideologias
que turvavam os olhos dos próprios negros e negras para a sua cor e sua raça
e pela ideologia que permeia os estudos estatísticos" conduzidos pelo Estado.
Esse cenário foi alterado apenas 2010, quando, pela primeira vez, o censo
realizado pel 9/51 to Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) registrou
um percentual de 51% de pretos e pardos.”
• “O eixo da denúncia de Nabuco contra a escravidão, sobre- tudo em A
escravidão, era a alegação de que ela não era natural porque fazia "sair o
direito da lei, e não da natureza humana" (1988, p. 31), destruindo o direito
absoluto e natural à propriedade privada. Sua preocupação com a escravidão
negra exprimia-se em dois vértices: ela se tornara um obstáculo ao
desenvolvimento do capitalismo; e sua permanência poderia avivar, em solo
brasileiro, o sonho da causa comunista.”
p. 64-71 • “Para avalizar seu argumento, Nabuco utilizava os conceitos de natureza e
trabalho: "a propriedade não tem outro fundamento senão a nossa natureza,
o destino racional das coisas, as exigências de nossa faculdade, e só pode ser
adquirida pela ocupação e pelo trabalho" (1988, p. 33). A escravidão, para
ele, violava a liberdade, a igualdade e a propriedade, por isso consistia num
obstáculo à nova relação social constituinte do capitalismo, o trabalho
assalariado. Assim, criticava a validade da escravidão ao afirmar que todo
indivíduo era naturalmente proprietário de si e que violar esse direito era um
crime contra todos os direitos absolutos.”
• “A abolição da escravidão, para Nabuco, era condição para reverter o atraso
do país e contaria, então, com "a anistia, o esquecimento da escravidão; a
reconciliação de todas as classes; a moralização de todos os interesses; a
garantia da liberdade nos contratos; a ordem nascendo da cooperação
voluntária de todos os membros da sociedade brasileira" (2000, p. 102).”
• “Embora sua luta abolicionista tenha sido marcada por um pragmatismo
estratégico - isto é, visando ao desenvolvimento político e econômico do país
integrado ao capitalismo mundial - Joaquim Nabuco amalgamou diversas
vezes a escravidão (uma relação social e econômica) à negritude (como fator
biológico). Frequentemente, referia-se à sociedade brasileira utilizando
esquemas organicistas e aos negros empregando metáforas relacionadas a
doenças, como nesta colocação: "a africaniza- ção do Brasil pela escravidão
é uma nódoa que a mãe pátria imprimiu na sua própria face" (2000, p. 60).
Em consequência, Nabuco dizia: "muitas das influências da escravidão
podem ser atribuídas à raça negra, ao seu desenvolvimento mental atra- sado,
aos seus instintos bárbaros ainda, às suas superstições grosseiras" (2000, p.
61).”
• “Enquanto orientava sua luta pelo fim da escravidão por vias legais, Joaquim
Nabuco atuava em níveis internacionais a partir de sua ligação com a
Sociedade Antiescravista Britânica e Estrangeira. Em um dos mais
importantes estudos contemporâneos sobre ele, o historiador Antonio
Penalves Rocha analisou as reais relações do abolicionista pernambucano
com a BFASS, demonstrando que o papel cumprido pela ação de Nabuco
não foi tão relevante para a abolição da escravidão quanto se tornou comum
acreditar. Sua coligação pragmática com aquela organização serviu de ponto
de apoio para sua visibilidade política no Brasil e no exterior. Entretanto,
devido a essas mesmas relações, ele foi alvo de uma sistemática campanha
promovida por seus opositores, que o detratavam como antipatriótico e, por
isso, tratou de minimizá-las o quanto pôde.”
p. 72-79 • “E, embora tenha se coligado à Sociedade Antiescravista Britânica e
Estrangeira por 22 anos, como presidente da Sociedade Brasileira Contra a
Escravidão, Nabuco nunca fez do abolicionismo uma causa verdadeiramente
internacional. Afinal, embora o Brasil tenha sido o último país das Américas
a abolir a escravidão, ainda havia inúmeros países onde a escravidão negra
existia, notadamente na África, como Madagascar e Zanzibar.”
• “Por fim, explico por que discordo de Penalves Rocha quando ele afirma que
foi Carolina Nabuco quem deu os retoques finais na construção da memória
social de Joaquim Nabuco. Além do grande empenho do próprio Nabuco
nessa empreitada, registrada na autobiografia Minha formação (1998), outra
figura, de influência muito maior que a de Carolina, tratou de arrematar a
imagem do pernambucano como o líder do abolicionismo no Brasil e grande
homem da nação Gilberto Freyre.”
• “Em 1950, Freyre reuniu e selecionou os discursos proferi- dos por Nabuco
na Câmara dos Deputados para publicação em volume único, com prefácio
de sua autoria em nome da Mesa da Câmara, e também sugeriu e
acompanhou a criação do Prêmio Joaquim Nabuco, oferecido pelo
Congresso Nacional.”
• “Como observa Clóvis Moura, o abolicionismo só surgiu como um
movimento, nos anos de 1880, quando o escravismo já estava em crise
estrutural", como resultado da combinação do fim do tráfico negreiro, da
consequente diminuição da população negra escravizada, da decadência da
exportação do açúcar no mercado mundial e das fugas e rebeliões negras, o
que "exigia a manutenção de um aparelho repressivo e de captura
permanente (que) também onerava o custo da produção" (1992, p. 55).”
p. 80-87 • “Luiz Gama era o que se chamava de rábula do direito. A contragosto da
elite, frequentou aulas da Academia de Direito de São Paulo, hoje Faculdade
de Direito da Universidade de São Paulo (USP), mas sem jamais conseguir
sagrar-se bacharel. Através de sua atuação jurídica, Luiz Gama ajudou a
libertar mais de quinhentos negros escravizados, um "fato sem prece- dentes
na história mundial da advocacia", segundo o jurista Fábio Conder
Comparato (2011). Sobre sua atuação jurídica nas ações cíveis em defesa dos
negros escravizados, assim fala Azevedo: "nesta área, diante de uma
legislação que sustentava a escravidão, buscou sempre basear a sua defesa
do 'direito' do escravo à liberdade" (1999, p. 206).”
• “Nessa apaixonada peça de defesa, Francisco Barbosa taxa de caluniosas e
levianas as acusações e críticas à queima dos papéis, que, segundo ele, "de
resto jamais existiram" (1988, p. 11). Mas, um pouco adiante, reconhece que
"Rui Barbosa tomou uma atitude radical e temerária: eliminar os
comprovantes fis- cais que existiam no Ministério da Fazenda que poderiam
ser utilizados para o insidioso pleito da indenização" (1988, p. 18). E expõe
um argumento renitente: por ser a máquina pública, segundo ele, ineficiente,
emperrada e preguiçosa, "não houve perda substancial dos papéis da
escravidão" (1988, p. 18-19).”
• “Por outro lado, Lacombe trata como politicamente acertada a atitude de Rui
Barbosa, pois este, segundo ele, teria pensado exclusivamente no erário da
nação, impedindo a indenização dos antigos senhores de escravos. Por fim,
o historiador tenta minimizar a responsabilidade de Rui Barbosa, já que a
Circular n° 29, que determinava a queima dos arquivos da escravidão, foi
expedida pelo Ministério da Fazenda em 13 de maio de 1891, e "Rui Barbosa
não era mais o ministro da Fazenda, já que o gabinete de 15 de novembro
demitiu-se com a aprovação da Constituição a 17 de janeiro de 1891" (1988,
p. 34). Vou esclarecer isso logo mais.”
• “Os três historiadores viram, nesse indeferimento de Rui Barbosa, apenas o
que lhes era conveniente: uma prova de que ele se recusava a indenizar os
antigos proprietários. Contudo, não reconheceram que, nesse mesmo
documento, Rui Barbosa também afastava qualquer possibilidade de o
Estado indenizar os negros e negras por quatro séculos de escravidão, pois
não queria onerar o Tesouro Nacional!”
p. 88-95 • “Ora, não restam dúvidas de que é impossível retirar a responsabilidade de
Rui Barbosa por esse que pode ser considerado o primeiro grande obstáculo
interposto pelo Estado brasileiro aos negros e negras em sua luta por
Reparações por quatro séculos de escravidão. Mas, antes de terminar esta
seção, vamos ouvir uma queixa de Américo Lacombe que me parece justa:
a de que Rui Barbosa é apontado como "o único responsável pelo desvario
em muitos trabalhos e artigos" (1988, p. 34). Eis aí algo em que Lacombe
tem razão. Não deixemos a culpa desse crime histórico contra os negros e
negras recair apenas sobre os ombros de Rui Barbosa, acrescentemos aí a
anuência de Joaquim Nabuco, a participação de Tristão de Alencar Araripe,
o apoio da Confederação Abolicionista, de seu presidente João Fernandes
Clapp e dos membros do Congresso Nacional que, entusiasticamente,
saudaram a medida de Rui Barbosa. E, por fim, a responsabilidade do então
presidente da República, Marechal Deodoro da Fonseca, e de toda a classe
dominante brasileira.”
• “Esse período foi denominado República Velha e viria a ser rompido com o
movimento de 1930, que daria início à chamada Era Vargas. Não por acaso,
Murilo de Carvalho afirma que "o ano de 1930 foi um divisor de águas na
história do país. A partir dessa data, houve uma aceleração das mudanças
sociais e políticas, a história começou a andar mais rápido" (2012, p. 87).”
• “É natural para um liberal falar de "democracia" em geral. Um marxista
nunca se esquecerá de colocar a questão: "para que classe?". Toda gente
sabe, por exemplo e o "historiador" Kautsky também o sabe, que as
insurreições ou mesmo as fortes agitações dos escravos na Antiguidade
revelavam imediatamente a essência do Estado antigo como ditadura dos
escravistas. Essa dita- dura suprimia a democracia entre os escravistas, para
eles? Toda gente sabe que não (LÉNINE, 1986, p. 15).”
• “Encerrada essa experiência, em 1939, com a incorporação de vários quadros
docentes e técnicos à então Universidade do Brasil, e com seu retorno para
Pernambuco, segundo Meucci, Freyre ficou "à margem do processo de
definição da ossatura e das estratégias do Estado brasileiro" (2006, p. 172).
No entanto, como a própria socióloga observa, Freyre não foi banido da cena
intelectual pelo regime varguista, como ocorreu com Anísio Teixeira e
outros intelectuais de vulto.”
p. 96-103 • “Havia, portanto, a ideia de um tipo de democracia peculiar, quase original,
posto que surgia de características-suposta- mente-brasileiras. Gomes
reconhece que, mesmo que Freire não exercesse papel na condução da revista
ou em outro órgão do DIP, suas ideias foram abraçadas pelo regime:

Mas a grande referência era, sem dúvida, Gilberto Freire, lido como a
reflexão mais "acabada" da vitória do povo brasileiro sobre a chamada
"questão racial". Vários artigos recorrem a ele, citando-o ou não, quando
narram a história do Brasil: os portugueses não eram "brancos", mas já
mestiços, o que não os impediu de obra colonizadora grandiosa; os índios e
os jesuítas permitiam a "descoberta" de uma "rebeldia natural" contra a
submissão e de um sentimento moral que impregnava a sociedade colonial e
deixava suas marcas profundas; os negros não eram tão "servis" quanto se
imaginava, e os estudos mais recentes sobre a abolição o demonstravam
(1996, p. 195).”
• “Considero bastante oportuna, para entender quem foi Gilberto Freyre, a
apresentação de um trecho autobiográfico, disponibilizado por Elide Rugai
Bastos, em que o autor pernambucano relembra suas origens:

Sucedeu-me ter tido uma meninice de neto de gente, além de patriarcal, rural,
com sobreviventes, na convivência doméstica ou familial, de escravos ou de
servos nascidos nos dias de escravidão o último deles, o velho Manuel
Santana que meus filhos cresceram considerando-o avo. E, na própria
meninice, cresci ouvindo histórias da negrinha Izabel e aprendendo
palavrões com o malungo Severino e ouvindo da negra velha Felicidade,
outrora escrava de minha avó materna e por nós, meninos, como por minha
mãe, chamada Dadade, suas experiências dos dias antigos. Embora todos
esses afronegros, católicos devotos, de ouvirem missa ajoelhados e de se
confessa- rem, soubessem restos de falas africanas e, quando a sós com os
ioiozinhos, gostavam de lhes falar de lemanjás e Exus. Afronegros
assimilados às crenças católicas, tanto quanto de Carlos Magno, de princesas
louras e de mouras encantadas. Sincretismo que foi trazido das casas-grandes
para os sobrados e paras as mansões urbanas, quando ainda patriarcais (2006,
p. 20).”
• “As semelhanças no conteúdo das memórias de Freyre e Nabuco são muitas.
De tal sorte que parece que Freyre prossegue de onde Nabuco termina: a
escravidão espalhou pelo país uma grande suavidade; havia uma
generosidade inconsciente da parte do escravo e um egoísmo inconsciente
do senhor de escravos e do latifúndio. Ora, como haveria espaço para ódio
racial e luta de classes nesse idílio?! Como haveriam os negros de se rebelar,
se eram bondosos e inconscientemente generosos?!”
• “Para Gilberto Freyre, houve, no Brasil, uma "fusão harmoniosa de tradições
diversas, ou antes, antagónicas, de cultura", fazendo de nosso regime "um
dos mais democráticos, flexíveis e plásticos" (2005, p. 115). Para sustentar
essa visão, ele recorreu a algumas manobras analíticas. Talvez, a principal
delas tenha sido fazer da escravidão doméstica o grande modelo da relação
escravista que perdurou por quatro séculos. Não restam dúvidas de que as
negras e negros escravizados desempenharam todo tipo de trabalho
doméstico no Brasil e que, como nos informa Flavia Fernandes de Souza,
em virtude da aversão ao trabalho manual típica das sociedades
escravagistas, "em especial as escravas, los negros escravizados] tornaram-
se figuras corri queiras e indispensáveis ao exercício das funções
domésticas" (2014, p. 285).”
p. 104-111 • “A escravidão, por felicidade nossa, não azedou nunca a alma do escravo
contra o senhor - falando coletiva- mente - nem criou entre as duas raças o
ódio recíproco que existe naturalmente entre opressores e oprimidos [...]a
cor no Brasil não é, como nos Estados Unidos, um preconceito social contra
cuja obstinação pouco pode, o talento e o mérito de quem incorre nele
(NABUCO, 2000, p. 10-11, grifo meu).”
• “Considerada de modo geral, a formação brasileira tem sido, na verdade,
como já salientamos às primeiras páginas deste ensaio, um processo de
equilíbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A
cultura europeia e a indígena. A europeia e a africana. A africana e a
indígena. A economia agrária e a pastoril. A agrária e a mineira. O católico
e o herege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de engenho. O
paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate. O grande proprietário e
o pária. O bacharel e o analfabeto. Mas predominando sobre todos os
antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo (2005,
p. 116).”
• “Passados 130 anos da abolição da escravidão, os registros da violência
sexual praticada contra as mulheres negras ainda podem ser observados. É o
que mostra o resultado preliminar do projeto DNA do Brasil, da
Universidade de São Paulo (USP): analisando o sequenciamento genético de
1.247 brasileiros, os pesquisadores constataram que a maior parte do DNA
herdado das mães (mitocondrial) veio de mulheres africanas (36%) e
indígenas (34%). Juntas, somam 70%. Já 75% da herança genética masculina
veio de homens europeus.”
• “Em diversas passagens, Freyre diminui o papel da raça na trajetória dos
indivíduos, alegando que o mais importante seria sua situação social:
"decisiva nos parece antes sua situação sociocultural - principalmente
econômica - de classe que, por muito tempo, no Brasil, foi a de escravo
oposta à do senhor ao mesmo tempo que simbiótica à do mesmo senhor
dentro da constelação familial ou patriarcal [...]" (2003, p. 493). Ou quando
diz que "não se pode afirmar da nossa formação que tenha sido
substancialmente aristocrática no sentido de uma raça, de uma classe ou de
uma região única" (2003, p. 501).”
p. 112-119 • “Logo, o cientista social pernambucano deu seu quinhão, também, para a
criação de uma forte ideia presente no imaginário coletivo brasileiro, e que
daria esteio a um elemento medular da democracia burguesa: a meritocracia.
Pois, segundo ele, havia no Brasil a miscigenação, a dispersão da herança, a
fácil e frequente mudança de profissão e de residência, o fácil e frequente
acesso a cargos e posições políticas e sociais de mestiços e de naturais, o
cristianismo lírico à portuguesa, a tolerância moral, a hospitalidade a
estrangeiros, a intercomunicação entre diferentes zonas do país (FREYRE,
2005, p. 117).”
• “Em Democracia racial: uma hipótese, Levy Cruz tenta inventariar os termos
"democracia racial", "democracia étnica" e "democracia social" no conjunto
da obra de Gilberto Freyre, com o declarado intuito de rebater as críticas que
apontam o antropólogo pernambucano como o principal formulador do mito
da democracia racial. No empenho de rebater as críticas à obra freyreana, o
historiador termina por desqualificar as denúncias de racismo no Brasil
apelando para "lugares comuns" deste tipo: "Toda a argumentação dos
críticos da democracia racial é como se somente os negros estivessem
localizados nos estratos mais baixos da escala social. Existem brancos
pobres" (2002, p. 10).”
• “Portanto, a quem interessa dizer que a escravidão é "um episódio
encerrado", sem reflexos materiais para os negros hoje? A quem interessa
afirmar que no Brasil - contra todas as evidências materiais - há uma relação
harmoniosa entre as raças? A quem interessa dizer que os brancos europeus
nunca tiveram preconceito racial e que, por consequência, nunca houve
racismo no Brasil? Para nós, a democracia racial tal como foi formulada por
Freyre não é um ideal a ser alcançado, mas uma ilusão sobre a nossa
formação social. Por isso, o movimento negro a alcunhou de mito da
democracia racial. Se a democracia é uma poderosa ideologia que tenta
ocultar os antagonismos de classes, no Brasil, a democracia racial visa
ocultar os antagonismos entre as raças. Assim, tornou-se a principal
ideologia racista no país.”
• “Ainda sobre esse episódio, pode-se dizer que a reação do âncora
corresponde ao que Florestan Fernandes (2007) chamou de "preconceito de
não ter preconceito": uma "moral reativa" do branco que, flagrado em atitude
racista, em vez de procurar entender o racismo manifestado em suas atitudes,
ataca as críticas dos negros, assumindo muitas vezes uma postura de máxima
indignação com o racismo.”
p. 120-127 • “Bem ao gosto da ideologia da democracia racial, Kamel afirma, em seu
livro, que há indivíduos racistas no país - "onde há homens reunidos há
também todos os sentimentos, os piores inclusive"-, mas que a sociedade
brasileira não é racista. E tenta comprovar seu argumento repisando a cartilha
freyreana: "após a Abolição, nunca houve barreiras institucionais a negros
ou a qualquer etnia" (2006, p. 20). Adiante, Kamel enfatiza: "nosso
arcabouço jurídico institucional é todo ele 'a-racial'. Toda forma de
discriminação racial é combatida em lei" (2006, p. 66).”
• “Afinal, assim como a democracia (burguesa) desvanece os antagonismos de
classe - fazendo parecer que o motorista de aplicativo Jeferson Pereira da
Silva está em pé de igualdade com o banqueiro Joseph Safra-, a democracia
racial faz parecer que negros e brancos gozam, na prática, das mesmas
liberdades democráticas, direitos e oportunidades na sociedade brasileira.”
• “Nessa discussão, como vemos, revelam-se alguns dos principais
mecanismos da ideologia da democracia racial, incluindo aqueles apontados
por Florestan Fernandes (2008a) e Thales de Azevedo (1975): a ideia de
ausência de preconceito (seja do agente do racismo, seja da sociedade
brasileira como um todo); a ideia de que há "democracia" no espaço em
questão (trabalham nesse clube tanto brancos como negros; moram
igualmente na favela brancos e negros etc. - ocultando-se sempre as
especificidades dos negros); a preponderância do social sobre o racial (a
origem humilde impediria uma pessoa de ter preconceito racial); e a noção
de que, no máximo, se trata sempre de um mal-entendido, sem implicações
para ações discriminatórias ou violentas.”
• “E uma interessante pista para entender sua longevidade é dada por Simone
Meucci: para ela, a ideia de igualdade racial passou a ser um atributo da
sociedade, fazendo com que a ideologia da democracia racial pudesse existir
até mesmo com a suspensão do regime democrático burguês, como ficou
comprovado com a instauração do Estado Novo" e da ditadura cívico-militar
de 1964-1985. Não por acaso, no ano de 1979, em razão do Dia 72.”
p. 128-135 • “Porém, cumpre dizer que a hegemonia de uma ideologia não implica no
desaparecimento completo de outras ideologias representativas das classes
socialmente dominantes. A ideologia da democracia racial é hoje a ideologia
dominante utilizada pela burguesia para explicar e ocultar os antagonismos
e desigualdades étnico-raciais no país. Contudo, ela não se desfez por
completo de ideologias abertamente segregacionistas, como o ideal de
branqueamento.”
• “Sentindo-se bastante confortável na ocasião, Bolsonaro verbalizou sua
crença na inferioridade de negros quilombolas ao mencionar uma unidade de
medida de peso bovino, reduzindo-os à condição de animais. Além disso,
atribuiu-lhes uma infundada incapacidade de se reproduzir. Ora, do ponto de
vista biológico, se a reprodução é atividade fundamental para as espécies, do
ponto de vista sociológico e histórico a redução do negro às funções
sexuais/reprodutivas é um expediente tipicamente racista.”
• “Como esse, há infindáveis casos que mostram que a ideologia da
democracia racial não eliminou plenamente a ideia de branqueamento. Ao
contrário, há um trabalho conjunto: permaneceu no Brasil um ideal de
embranquecimento numa sociedade que afirma ser racialmente democrática.
Além do mais, como bem destaca o historiador Hertz Dias, essa ideologia
"funciona como fator de desmobilização política do negro que não se percebe
enquanto tal, dificultando sua autodefesa coletiva da agressão racista" (2017,
p. 110). Ou, ainda, em outra oportuna expressão de Munanga, o que vemos
é uma "inércia do mito da democracia racial" (2017, p. 38).”
• “Quando se fala da beleza feminina, diz-se "uma mulher linda" ao se referir
a uma branca, mas, quando se trata de uma mulher negra, diz-se uma "negra
linda". Vice- -versa, o mesmo se dá a respeito da beleza masculina: "fulano
é um homem lindo", quando é branco, e "fulano é um negro lindo", quando
se trata de um negro, como a insinuar que a beleza negra é uma exceção que
precisa ser adjetivada, enquanto a branca é uma regra geral que dispensa esse
uso (MUNANGA, 2017, p. 39-40).”
p. 136-143 • “Assim, sob o nobre argumento de conferir protagonismo aos sujeitos
negros, historiadores, antropólogos e sociólogos concentram suas análises
no século XIX - marcado pela desintegração da escravidão - e
supervalorizam, por exemplo, casos de negros e negras que conseguiram
comprar sua própria alforria ou a de seus filhos e casos de assimilação e
recriação de práticas culturais senhoriais ou de negociações e arranjos
cotidianos entre escravos e senhores.”
• “Aqueles que repugnam a ideia de ações diretas da massa de trabalhadores
negros e pobres e/ou os que defendem a acomodação dos negros no
capitalismo - seja por meio do chamado empoderamento negro, seja pelas
estratégias tradicionais do reformismo de ocupação das instituições
burguesas - encontram, nessas interpretações "que igualam o fundamental ao
secundário", um ponto de apoio.”
• “A quilombagem era, ainda, um movimento abrangente, capaz de incluir
diferentes setores sociais explorados e oprimidos" além de negros fugitivos,
como indígenas acossados, curibocas, pessoas perseguidas pela polícia em
geral, bandoleiros, devedores do fisco, fugitivos do serviço militar, mulheres
sem profissão, brancos pobres e prostitutas (MOURA, 1992).”
• “Seguindo essa linha de raciocínio, creio que também valha a pena recuperar
o emblemático ano de 1789, em Ilhéus, Bahia, quando negras e negros
escravizados se rebelaram, mataram o mestre de açúcar, tomaram as
ferramentas e pararam o trabalho por quase dois anos. Após longos e
sangrentos combates, esses mesmos negros rebelados redigiram uma espécie
de tratado de paz e exigências para que pudessem retornar ao trabalho nas
fazendas. Segundo relato extraído de Reis e Silva (1989), o senhor de
engenho Manuel da Silva Ferreira armou uma cilada para os rebelados,
simulando acordo com o tratado, prendendo seus líderes e pondo fim ao
movimento de ocupação.”
p. 144 • “Apesar de experiências como essa, na segunda metade do século XIX,
marcado pela decadência da escravidão e pela ruína das economias
assentadas na cana-de-açúcar, os políticos abolicionistas terminaram pondo-
se à frente dos negros na luta contra a escravidão, dando os contornos de suas
ações. Por se apoia- rem na insatisfação dos negros e negras e terem
conduzido, de conjunto, a luta contra a escravidão nos marcos da ordem, é
que recai sobre os abolicionistas - e, claro, a própria classe dominante -a
responsabilidade por uma Abolição negligente e precária.”

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