Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Introdução
Ou seja, mais do que um povo homogêneo, uma raça superior, o que ocorreu
na Grécia — e que nos lembra o Brasil, com seu amálgama de culturas — foi
uma grande mistura, que talvez explique a própria capacidade de adaptação e
dinamismo que os gregos demonstram ao longo da História. Os gregos
souberam incorporar elementos culturais de outros povos à sua própria
civilização, adaptando-os às suas necessidades. (FUNARI, 2020, p.25-26)
Como mostrado por Funari (2020) esta construção sociocultural “grega” é plena
de entrecruzamentos, porém, a visão difundida de que um único povo grego superior
militarmente que dominou a região que hoje entendemos como Grécia, se assentou, e
impôs sua cultura. A ideia anterior é amplamente contestada, e como o excerto acima
argumenta, falha em muitos aspectos. A civilização grega era extremamente complexa,
plena de amálgamas, diferentemente da visão amplamente difundida pela história.
Esta sociedade construída através de toda sua longa história, com todas suas
particularidades e cultura tão rica é fundamental, como já mencionado, como uma área
de interesses de História Antiga. Porém, há de se questionar o significado do estudo
desta disciplina na atualidade, uma vez que majoritariamente o ensino de História no
Brasil traz consigo a carga da escola positivista em seu cerne. A História Antiga,
incluída nesse modelo histórico positivista, atua como mero parâmetro sequencial para
contextualizar a “linha do tempo” histórica, complementar como antecessora, a Idade
Média e Idade Moderna que viriam logo depois. Como argumenta Guarinello: “Ao
assumirmos e ensinarmos que esta é a nossa História Antiga, fazemos um trabalho de
memória e, como vimos, de produção de identidade” (GUARINELLO, 2013, p.13).
Já a outra ramificação que deve ser abordada, se trata do tema de História Antiga
dentro do contexto educacional brasileiro. Nesse viés, além do afastamento da História
Antiga dos currículos escolares de forma geral como é possível observar no material
ofertado pelo estado de São Paulo ao professor, para que baseie suas aulas chamado
Currículo em Ação (2022), também temos uma precarização temática no ensino de
História Antiga. Dando enfoque ao contexto histórico do projeto em questão, sobre a
Grécia Antiga, como Hecko e Puga (2020) abordam, há uma descontextualização
histórico-cultural da Grécia Antiga nos manuais didáticos ainda que a BNCC de 2018
aponte a importância desses aspectos, também é apontado por Hecko e Puga:
Muitos outros problemas dos manuais didáticos ainda são apontados no tocante à
História Antiga, como as correlações feitas entre passado/presente, e na falta de ênfase
da importância das culturas clássicas no período contemporâneo onde, de certa forma
elas estão presentes, com suas constantes representações e reinterpretações.
Deste modo, vemos que a História Antiga ainda sofre com algumas tribulações,
problemas que ficam ainda mais evidentes, se colocarmos o foco das áreas comentadas,
no Brasil. Ainda que, como apontam Funari, Silva e Martins (2008), haja um
crescimento nas pesquisas que focam na temática da História Antiga no Brasil com o
olhar de uma Nova História, uma história-problema, ainda há muito o que acrescentar
nesses estudos e principalmente na sua extensão para o público geral e no ensino de
História. É necessário evidenciar tais problemáticas a fim de suportar uma pesquisa que
se concentre em aspectos culturais e religiosos da Grécia Antiga.
Um breve olhar sobre a guerra no mundo grego antigo: entre Ares e Athena
Para a sociedade grega, não somente importante era a guerra, mas também, um
fato natural, um aspecto inerente de sua sociedade (SOUZA, 1988). Tal característica
única de um fator natural transforma guerra em um aspecto social e cívico em muitas
regiões da Hélade em especial na Lacônia e Trácia, e como tal aspecto a guerra tinha
um deus patrono, Ares deus da guerra, filho de Zeus com Hera de acordo com Hesíodo.
“Por último tomou Hera por florescente esposa, ela pariu Hebe, Ares e Ilitía unida em
amor ao rei dos Deuses e dos homens.” (HESÍODO, Teogonia, Lin. 921-923).
Dessa forma, cabe-se questionar o papel de Ares no culto grego, seu papel como
olimpiano, seu papel como patrono da Guerra e dos soldados, cabe-se questionar os
motivos de uma região regida e movida pela guerra como a Lacônia não ter templos
nem cultos evidentes ao deus da guerra. Como Souza aponta: “Vernant (1985, p.10)
observa que a guerra era vista como parte do agon, isto é, do espírito de confronto que
presidia não só às relações humanas como à própria natureza;” (SOUZA, 1988, p.14). E
ainda nesse quesito Souza aponta que a religião era um fator tão fundamental na
mentalidade grega de guerra que antes de cada batalha geralmente havia rituais e
sacrifícios aos deuses para proteção e para garantir a vitória, e nesse acerto nenhuma
vez é mencionado rituais ao próprio deus da guerra Ares.
As trocas culturais nas relações das poleis gregas eram múltiplas e complexas
com altos graus de compartilhamento religioso e linguístico. Roberts (2017), em seu
livro The Plague of War, ressalta essas características de um forte senso de cultura
compartilhada ao menos no período das Guerras Persas, ao analisar o relato tucidiano,
Roberts percebe relatos de um forte senso de união das pólis através dos laços
compartilhados, de sangue, de língua, e de religiosidade.
At least from the time of the Persian Wars (490–479 bc), there was a strong
sense of a shared culture, even in the absence of any political unity among
the poleis. Thucydides’ predecessor Herodotus, historian of the Persian Wars,
portrayed the Athenians as explaining what held them back from going over
to the Persians: “what we as Greeks all share—our blood, our language; our
temples and sacrifices to our gods; our Greekness.”. (ROBERTS, 2017, p.6)
Roberts aponta também a extensa importância do culto religioso como um todo
na Grécia Antiga, os helênicos veneravam seus deuses cotidianamente com preces,
oferendas e votos de promessa, a fim de ganharem favores diretos. O culto era aos
Olimpianos como um todo, mas havia culto a divindades individuais, com patronatos e
principalmente na vida cívica, fora os grandes festivais que cultuavam os deuses de
forma mais conjunta (ROBERTS, 2017).
Sem dúvida, um deus grego define-se pelo conjunto de relações que o unem e
o opõem às outras divindades do panteão, mas as estruturas teológicas assim
evidenciadas são demasiado múltiplas e sobretudo de ordem demasiado
diversa para poder integrar-se no mesmo esquema dominante. Segundo as
cidades, os santuários, os momentos, cada deus entra numa rede variada de
combinações com os outros. Esses reagrupamentos de deuses não obedecem
a um modelo único, que tenha valor privilegiado; eles se ordenam numa
pluralidade de configurações que não se superpõem exatamente, mas sim se
compõem um quadro de várias entradas, de eixos múltiplos, cuja leitura varia
em função do ponto de partida considerado e da perspectiva adotada.
(VERNANT, 2006, p.30).
There was no clash here of religious values. When states went to war, they
often asserted religious offences of the other side as a justification: the
Persians in 480 claimed to be burning Greek shrines in revenge for the
burning of the temple of Kybebe at Sardis in 499 (Hdt. 5.102.1), Alexander a
century and a half later professed to be avenging those Persian impieties
when he led his great expedition. But supposed acts of sacrilege were at issue
here, not belief. Greeks never fought one another or their neighbours on the
ground that their own choice of gods or way of worshiping the gods was the
one true way and that of others impious; there were, as we have seen,
religious factors within Greek warfare, but there were no wars of religion.”
(PARKER, 2016, p. 130-131).
Outro grande ponto a ser mencionado é relação de Ares com a deusa Athena,
ambos representando facetas muito distintas da guerra, se complementando muito mais
do que se excluindo, em uma complexa relação de representações de aspectos
simbólicos vistos culturalmente pelo povo, em suas crenças religiosas, que respaldavam
diretamente em seus cultos e na guerra em si. Como aponta Deacy (2009), estudos mais
tradicionais, mostram uma forte dicotomia entre as figuras de Ares e Athena, onde a
deusa representava os ideais da guerra que deveriam ser seguidas pelos guerreiros na
batalha, já Ares representava o temperamento agressivo que estes deviam evitar.
Contudo, Deacy (2009) também ressalta que muitas vezes ambas as divindades
aparecem com termos de comparação nos textos de Homero e Hesíodo, em aspectos
relacionados a postura de batalha, aos gritos de guerra de ambos no canto 20 da Ilíada
quando fazem seus clames de guerra apoiando os guerreiros de cada lado do conflito.
Outros aspectos que assemelham os dois são mencionados, como: a bagagem
estrangeira de cada um dos deuses, com Ares e suas conexões com a Trácia e Athena
com sua origem fortemente associada a Líbia; ambos os deuses tinham associações com
culto em cidades, Athena de forma mais expoente sendo muitas vezes patrona das
cidades, mas Ares também era representado com um forte apelo cívico por vezes,
inclusive na cidade Athena, Atenas.
Ainda tratando sobre a comparação essencial entre os dois deuses, Ares e
Athena, um ponto essencial na diferenciação do aspecto da guerra vinculado a ambos os
deuses, é que Athena é uma deusa que no processo de colocar e tirar a armadura para
batalha, consegue se desprender de todos seus aspectos furiosos e de geração de terror,
ao contrário de Ares que se banha em sangue e viva a guerra, o aspecto guerreiro de
Athena é fundamentalmente separável de seus demais aspectos (DEACY, 2009). Dentro
de um panorama de continuações e descontinuações, os aspectos de Ares e Athena se
complementam tanto quanto se excluem, são figuras que representam muito bem todas
as facetas da guerra e são muito complexas para simplesmente reduzi-las a uma
dicotomia ultrapassada. Como Deacy aponta:
Ares a partir das fontes: repertório de representações do deus entre os séculos VIII
e V a.C.
Jones define Hesíodo e Homero como os responsáveis por dar aos gregos
divindades, não apenas deuses rasos, porém personagens de um universo cosmogônico
complexo e com camadas que os aproximam muito da humanidade latente e que
representassem os diversos aspectos da existência humana. Os deuses já existiam e já
eram cultuados desde civilizações muito anteriores aos gregos em si, entretanto Homero
e Hesíodo dão a eles esse aspecto de semelhança tão forte com os mortais que estes
mesmos patronizavam, cada um com uma faceta individual e aspectos de humanidade,
como linha cronológica de vida, com nascimento, família, atividades cotidianas e nas
relações uns com os outros (JONES, 2013). Tais aspectos são fundamentais para a
construção de um entendimento maior e mais completo da figura de cada divindade
dentro de seus contextos e suas particularidades. Dentro da figura de Ares por exemplo,
ter sua luta com Diomedes como exemplo de sua postura infantil perante Zeus após sua
derrota, é um indicativo de muitos aspectos de sua individualidade e de seus traços de
personalidade.
A Ilíada pode, por sua vez, ser considerada como a primeira obra da literatura
ocidental, a primeira tragédia do mundo, século antes dos poetas trágicos gregos
começarem a produzir suas obras para o teatro grego, Homero já concebia uma ideia de
tragédia na relação de Pátroclo com Aquiles, e na perda de Pátroclo. O escopo da obra é
objetivo e bem definido, narrar o último ano da Guerra de Tróia, todo seu contexto e a
relação entre homens e deuses no conflito, onde há uma grande amplitude de visão de
cenário, personagens e eventos (JONES, 2013). O poema épico gira em torno dos
dilemas morais de Aquiles em cima da questão do preço da vida mortal em
consequência da glória.
Ares de forma geral é caracterizado como alto e forte, corpo atlético, portando
sua lança rompe escudos e seu elmo protetor, o furioso e sanguinário são adjetivos
psicológicos usualmente associados à sua figura, por vezes na cerâmica, o deus aparece
com sua couraça, peça mencionada em alguns estudos e trabalhos sobre Ares. Na
Teogonia uma passagem centraliza a caracterização generalizada de Ares no imaginário
grego: “E de Ares rompe-escudo Citeréia pariu Pavor e Temor terríveis que tumultuam
os densos renques de guerreiros com Ares destrói-fortes no horrendo combate, e
Harmonia que o soberbo Cadmo desposou.” (HESÍODO, 933-935). Tal descrição é
corroborada por este Lekythos Ático, atribuído a Pholos P de Vos datado de 500-400
a.C., o lécito mostra Ares brandindo sua lança contra o escudo de um inimigo,
rompendo-o efetivamente.
Fig. 1: Lekythos Ático de figuras negras, atribuído a Pholos P de Vos, datado de 500 a 400 a.C.
Fig. 2: Fragmento de Cálice Ático de figuras negras, datado de 550 a 500 a.C.
Considerações Finais
A guerra assim como Ares é muito complexa, a relação do deus com a deusa
Athena demarca a forte dificuldade de entendê-la, para caracterizá-la é necessário
compreender diversas especificidades, e entender que essas especificidades vão
influenciar diretamente na interpretação da guerra e de seus deuses patronos. A
geografia influencia na regionalidade, que por sua vez influencia na influência de cada
deus, em seu culto, e na visão deles para o povo grego, na mentalidade religiosa
propriamente dita.
Referências Bibliográficas
FONTES
Fig. 1: Lekythos Ático de figuras negras, atribuído a Pholos P de Vos, datado de 500 a
400 a.C. Imagem retirada de:
https://www.carc.ox.ac.uk/XDB/ASP/recordDetails.asp?id={997F1051-7C53-420B-
A6E8-35C66EB1288F}&noResults=272&recordCount=6&databaseID={12FC52A7-
0E32-4A81-9FFA-C8C6CF430677}&search=%20{AND}%20Ares.
Fig. 2: Fragmento de Cálice Ático de figuras negras, datado de 550 a 500 a.C. Imagem
retirada de: https://www.carc.ox.ac.uk/XDB/ASP/recordDetails.asp?id={613D7247-
A304-4609-821C-
7E814C22759A}&noResults=272&recordCount=14&databaseID={12FC52A7-0E32-
4A81-9FFA-C8C6CF430677}&search=%20{AND}%20Ares.
HESÍODO. Teogonia a origem dos deuses. Tradução: Jaa Torrano. São Paulo:
Iluminuras, 1991.
BIBLIOGRAFIA
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado.
Bauru, SP: Edusc, 2007.
ARÓSTEGUI, Julio. A pesquisa histórica: teoria e método. Bauru, SP: Edusc, 2006.
DEACY, Susan. Athena and Ares: War, violence and warlike deities. In: WEES, Hans
van (edit.). War and Violence in Ancient Greece. The Classical Press of Wales:
Swansea, 2009.
FUNARI, Pedro Paulo A; SILVA, Glaydson José da; MARTINS, Adilton Luís (orgs.).
História Antiga: contribuições brasileiras. São Paulo: Annablume, Fapesp, 2008.
KURY, Mario da Gama. Dicionário de Mitologia Grega e Romana. Rio de Janeiro, RJ:
Editora Jorge Zahar, 2009.
PARKER, Robert. War and Religion in Ancient Greece. In: ULANOWSKI, Krzysztof
(edit.). The religious aspects of war in the ancient Near East, Greece, and Rome. Leiden,
Boston: Brill, 2016.
PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2008.
ROBERTS, Jennifer T. The plague of war: Athens, Sparta, and the struggle for ancient
Greece. New York, NY: Oxford University Press, 2017.
SOUZA, Marcos Alvito Pereira de. A Guerra na Grécia Antiga. São Paulo: Editora
Ática S.A., 1988.