Você está na página 1de 22

ARES, DEUS DA GUERRA: PERSPECTIVAS SOBRE SUA INTERPRETAÇÃO

NA LITERATURA E ICONOGRAFIA GREGAS ENTRE OS SÉCULOS VIII E


V A.C.

Matheus Medeiros Piquera

Resumo: A Guerra é uma manifestação belicosa, político-social de caráter violento e de


alta taxa de mortalidade, que se vê repetidamente presente, em inúmeros momentos da
História. Tal aspecto aguerrido tão recorrente na História, por sua vez, foi muito
presente nas sociedades antigas em diversas conjunturas, que diferem dos contextos nos
quais entendemos a guerra em outros momentos. Para a sociedade grega, não somente
importante era a guerra, mas também, um fato natural, um aspecto inerente de sua
sociedade (SOUZA, 1988). Ares representava a guerra sanguinolenta, a violência
desenfreada no campo de batalha, e seus epítetos, dados por Hesíodo são: “perfurador
de escudos”; “destruidor de muralhas”. Tal representação comparada com as narrativas
homéricas na Ilíada, que por natureza violenta já inicia com a carnificina que Aquiles, o
Pélida causa na Guerra de Tróia, pode indicar que o deus era venerado pelos diversos
povos que compunham a região da Hélade, dado o caráter belígero desta civilização.
Considerando este ponto de partida, investigamos em um conjunto de fontes (Homero,
Hesíodo e vasos gregos) escritas e da cultura material, que ideias e imagens os textos e a
iconografia construíam sobre o deus. A ideia final foi, ao fim da pesquisa, ter um
repertório inicial de imagens do deus a partir das fontes propostas, pensando em uma
pesquisa futura em que este material pudesse ser analisado de forma interpretativa.
Palavras-chave: Ares; Mitologia Grega; História Antiga; Literatura Clássica; Cerâmica
Grega

Introdução

Como parte fundamental da História das civilizações que compuseram a região


banhada pelo mar Mediterrâneo e da construção das disciplinas e conteúdos dentro da
ampla História Antiga, se encontra a civilização grega. Tema recorrente nos estudos de
Antiguidade dentro do contexto acadêmico, a Grécia Antiga, ou Hélade como era
referenciada por seus contemporâneos, compreendia uma vasta região ocupada por
povos, ou melhor dizendo, sociedades extremamente intrincadas, com uma duração de
centenas de anos, disposição territorial ampla e variada, e de uma cultura vasta e volátil
acompanhando as transformações sociais que uma civilização tão longeva
inevitavelmente sofre.
A construção da civilização grega como entendemos hoje é, um processo
complexo derivado de dominações e amálgamas de culturas, como sintetiza Funari:

Ou seja, mais do que um povo homogêneo, uma raça superior, o que ocorreu
na Grécia — e que nos lembra o Brasil, com seu amálgama de culturas — foi
uma grande mistura, que talvez explique a própria capacidade de adaptação e
dinamismo que os gregos demonstram ao longo da História. Os gregos
souberam incorporar elementos culturais de outros povos à sua própria
civilização, adaptando-os às suas necessidades. (FUNARI, 2020, p.25-26)

Como mostrado por Funari (2020) esta construção sociocultural “grega” é plena
de entrecruzamentos, porém, a visão difundida de que um único povo grego superior
militarmente que dominou a região que hoje entendemos como Grécia, se assentou, e
impôs sua cultura. A ideia anterior é amplamente contestada, e como o excerto acima
argumenta, falha em muitos aspectos. A civilização grega era extremamente complexa,
plena de amálgamas, diferentemente da visão amplamente difundida pela história.

Esta sociedade construída através de toda sua longa história, com todas suas
particularidades e cultura tão rica é fundamental, como já mencionado, como uma área
de interesses de História Antiga. Porém, há de se questionar o significado do estudo
desta disciplina na atualidade, uma vez que majoritariamente o ensino de História no
Brasil traz consigo a carga da escola positivista em seu cerne. A História Antiga,
incluída nesse modelo histórico positivista, atua como mero parâmetro sequencial para
contextualizar a “linha do tempo” histórica, complementar como antecessora, a Idade
Média e Idade Moderna que viriam logo depois. Como argumenta Guarinello: “Ao
assumirmos e ensinarmos que esta é a nossa História Antiga, fazemos um trabalho de
memória e, como vimos, de produção de identidade” (GUARINELLO, 2013, p.13).

No excerto antes citado, Guarinello (2013) argumenta que a História Antiga,


como ensinada hoje, faz um trabalho de memória e como defende Menezes: “[...]a
memória deve ser o objeto da História e não seu objetivo[...]” (MENEZES, 1999, p.21).
É do interesse do Historiador situar uma história problema, e não simplesmente uma
história narrativa a serviço da criação de uma identidade ocidental hegemônica.

No tocante a esta questão, cabe elencar duas ramificações deste problema no


Brasil mais precisamente, envolvendo pesquisa e ensino, ramificações da problemática
apresentada evidenciam as dificuldades da História Antiga como disciplina. A primeira
seria no investimento estatal e pessoal de acadêmicos da área em estudos dentro da área
de História Antiga e mais precisamente na corrente da História problema, uma história
que dialogue com diversas temporalidades históricas e suas relações evidenciando as
ligações da Antiguidade com o cotidiano atual, como propõe Hecko (2019), e também
como abrangem Funari, Silva e Martins (2008) na apresentação do livro, História
Antiga: contribuições brasileiras, defendendo essa transformação da História Antiga no
Brasil em uma disciplina em ascensão e que tende, cada vez mais, a se preocupar com
problematizações e uma ampliação dos paradigmas tradições do tratamento da História.

Já a outra ramificação que deve ser abordada, se trata do tema de História Antiga
dentro do contexto educacional brasileiro. Nesse viés, além do afastamento da História
Antiga dos currículos escolares de forma geral como é possível observar no material
ofertado pelo estado de São Paulo ao professor, para que baseie suas aulas chamado
Currículo em Ação (2022), também temos uma precarização temática no ensino de
História Antiga. Dando enfoque ao contexto histórico do projeto em questão, sobre a
Grécia Antiga, como Hecko e Puga (2020) abordam, há uma descontextualização
histórico-cultural da Grécia Antiga nos manuais didáticos ainda que a BNCC de 2018
aponte a importância desses aspectos, também é apontado por Hecko e Puga:

Quais os prejuízos pedagógicos quando se fornece um olhar sobre o antigo


que se centraliza apenas em poderios sociopolíticos, militar- e/ou
econômicos? Há que se problematizar a ausência de estudos que permitam
fazer com que os alunos tenham acesso a multiplicidade e pluralidade sociais
e regionais que envolvam o que situarmos como “Grécia”, na antiguidade, as
diversas peculiaridades culturais, entre outros fatores. (HECKO; PUGA,
2020, p.142).

Muitos outros problemas dos manuais didáticos ainda são apontados no tocante à
História Antiga, como as correlações feitas entre passado/presente, e na falta de ênfase
da importância das culturas clássicas no período contemporâneo onde, de certa forma
elas estão presentes, com suas constantes representações e reinterpretações.

Deste modo, vemos que a História Antiga ainda sofre com algumas tribulações,
problemas que ficam ainda mais evidentes, se colocarmos o foco das áreas comentadas,
no Brasil. Ainda que, como apontam Funari, Silva e Martins (2008), haja um
crescimento nas pesquisas que focam na temática da História Antiga no Brasil com o
olhar de uma Nova História, uma história-problema, ainda há muito o que acrescentar
nesses estudos e principalmente na sua extensão para o público geral e no ensino de
História. É necessário evidenciar tais problemáticas a fim de suportar uma pesquisa que
se concentre em aspectos culturais e religiosos da Grécia Antiga.

Neste contexto, o artigo em questão, é resultado de uma pesquisa circunscrita nas


discussões sobre a História Antiga e as investigações de brasileiros, e pretende lançar Comentado [LH1]: Para fala de Maringá, pensar daqui pra
frente, porém ainda terá que fazer um resumo pra ficar em
um olhar acerca das representações do deus Ares para os gregos antigos dando foco aos torno de 6pp. (risos)

aspectos culturais das representações do deus e suas particularidades. Todo o panorama


contextual da Grécia em seu auge civilizatório é fundamental para a presente pesquisa,
bem como analisar suas reverberações como produção de conteúdo acadêmico também
são relevantes para o contexto desta pesquisa.

O artigo segue uma linha direta na investigação dos aspectos interconexos do


deus Ares com a cultura e sociedade grega. No tópico que segue, intitulado Um breve
olhar sobre a guerra no mundo grego antigo: entre Ares e Athena, é feita a
contextualização do estado da guerra para os gregos, suas características e as
representações da guerra na figura de Ares em contraposição à Athena, as
particularidades do conflito bélico grego, e a diferença estratégica e de significação das
diferentes formas de se guerrear numa relação simbiótica da religião com a guerra. Já no
terceiro momento deste artigo será posta a discussão da figura de Ares em si, no tópico
Ares a partir das fontes: repertório de representações do deus entre os séculos VIII e V
a.C., sendo abordada toda a construção mitológica da figura de Ares, os seus traços
físicos e psicológicos interpretados analiticamente através das obras de Homero e
Hesíodo, e das cerâmicas gregas que representavam a figura do Deus da Guerra em
diferentes contextos mitológicos. Concluindo o artigo, serão comentados os resultados
obtidos no decorrer da pesquisa, evidenciando as características que denotam as
representações usualmente depreciativas da figura de Ares, tanto na literatura clássica
grega, que salvaguarda as principais fontes contextuais da mitologia, tanto quanto nas
cerâmicas que apoiam, com a imagética, as representações observadas.

Um breve olhar sobre a guerra no mundo grego antigo: entre Ares e Athena

A Guerra é uma manifestação belicosa, político-social de caráter violento e de


alta taxa de mortalidade, que se vê repetidamente presente, em inúmeros momentos do
que se conhece como a História da humanidade. Tal aspecto aguerrido tão recorrente
nas políticas voltadas ao aspecto militar, muito presentes nas sociedades antigas em
diversas conjunturas, contudo, que diferem dos contextos nos quais entendemos a
guerra em outros momentos da História (SOUZA, 1988).

Esta manifestação social de guerra era, para os Gregos, um aspecto tão


importante que justamente um dos dois poemas mais conhecidos e importantes da
“literatura” helênica, trata deste tema, a Ilíada de Homero (Souza, 1988). Esta que por
sua vez relata o conflito mais famoso da Grécia, a Guerra de Tróia, tal guerra que ainda
é tão relevante nos dias de hoje quanto foi na Antiguidade, visto que gera debates
constantes sobre seu caráter e veracidade na academia até o presente momento.

Para a sociedade grega, não somente importante era a guerra, mas também, um
fato natural, um aspecto inerente de sua sociedade (SOUZA, 1988). Tal característica
única de um fator natural transforma guerra em um aspecto social e cívico em muitas
regiões da Hélade em especial na Lacônia e Trácia, e como tal aspecto a guerra tinha
um deus patrono, Ares deus da guerra, filho de Zeus com Hera de acordo com Hesíodo.
“Por último tomou Hera por florescente esposa, ela pariu Hebe, Ares e Ilitía unida em
amor ao rei dos Deuses e dos homens.” (HESÍODO, Teogonia, Lin. 921-923).

Ares representava a guerra sanguinolenta, a violência desenfreada no campo de


batalha, e seus epítetos, dados por Hesíodo são: “perfurador de escudos” e “destruidor
de muralhas”. Tal representação comparada com as narrativas Homéricas na Ilíada, que
por natureza violenta já inicia com a carnificina que Aquiles, o Pélida causa na Guerra
de Tróia, pode indicar que o deus era venerado pelos diversos povos que compunham a
região da Hélade, dado o caráter belígero desta civilização. Contudo, nos deparamos
com uma problemática que esta pesquisa visa compreender: Ares, ainda que fosse
patrono de um aspecto tão presente e natural na sociedade grega, pouco aparece nas
narrativas, nas fontes de forma geral e pouco se sabe sobre seu culto.

Ao entrar diretamente na Ilíada de Homero, nos deparamos com uma outra


perspectiva de problemáticas. A “questão homérica” já sendo uma delas, com debates
acerca de temporalidade e autoria influenciam na interpretação dos poemas, e inclusive
na análise das figuras relacionadas a divindades. Nesse ínterim, entendemos os textos
homéricos como uma complexidade histórica ainda a ser discutida e estudada a fundo,
as fortes questões de temporalidade que ligam seus textos a períodos muito anteriores ao
de sua existência, dificultam o estabelecimento de regras inflexíveis e definitivas na
interpretação do texto homérico, como defendem Gonçalves e Souza:

A historicidade que pesa nos poemas homéricos é uma historicidade latente,


apreensível quando pensamos nas possibilidades de amálgama dos poemas
relacionadas à própria questão da poesia oral. Como poemas cantados,
sintetizam em uma narrativa temporalidades diversas, informações que
podem ser relacionadas ao período micênico, à Idade do Ferro ou ao próprio
período Arcaico, além de encontrarmos elementos que só figuram na própria
poesia homérica, não sendo encontrados vestígios materiais que corroborem
determinados trechos da narrativa. Para entendermos Homero, temos que
pensar em uma verdadeira estratigrafia da Ilíada e da Odisseia, relativa e
passível de exageros poéticos ligados simplesmente à função do aedo e sua
arte. (GONÇALVES; SOUZA, 2019, p.31)

Gonçalves e Souza, em sua proposta de abordagem dos poemas homéricos


discorrem sobre a descoberta arqueológica do Linear B, linguagem micênica traduzida
por Michael Ventris em 1952. Tal descoberta em conjunto com o texto homérico,
possibilita a visão de tal historicidade nos poemas homéricos, Gonçalves e Souza ainda
exploram esse conceito demonstrando que algumas divindades na língua micênica do
Linear B são nomeadas como deuses, e aparecem posteriormente fundidas a divindades
posteriores. Uma das divindades que aparecem no Linear B como divindade isolada é e-
nu-wa-ri-jo /enuwalioi, que no alfabeto grego corresponde a um dos epítetos de Ares,
ou seja, um deus único na cultura micênica é associado a um aspecto de uma divindade
grega, neste caso Ares (GONÇALVES; SOUZA, 2019). Este fenômeno pode ser
observado com a comparação do Linear B ao texto de Homero, e permite visualizarmos
a dimensão da historicidade contida na Ilíada.

Usualmente nas narrativas mitológicas e na grande parte das representações do


deus da guerra Ares, este, quando aparece, é majoritariamente representado como
vencido, e muitas vezes humilhado. Na própria poesia Homérica Ares lutou do lado
perdedor, por amor a sua Afrodite que indubitavelmente estava do lado dos troianos,
Ares seguiu para lutar ao lado de Páris e seus homens e vencido pela perspicácia de
Atena que conseguiu mediar a batalha para que Diomedes ferisse o deus que teve de
fugir para o Olimpo. Não somente nesta batalha, mas o deus também seria humilhado
por Héracles em outras narrativas, e pela própria deusa Atena pessoalmente.

Os motivos pelos quais o patrono da guerra e dos soldados era pouquíssimo


cultuado permanecem incertos. Um dado importante aparece, no mapeamento realizado
por Hecko (2006) de templos, santuários e lugares sagrados na obra de Heródoto, onde
não consta nenhum templo dedicado ao Deus que tenha sido mencionado pelo
historiador grego nas suas Histórias. Fato é que Ares é pouquíssimo mencionado e
cultuado em contraste a deusa Atena, a face da guerra raciocinada, da guerra estratégica.

A consequência de tais representações nas narrativas mitológicas, pode ser vista


nas pesquisas e nos trabalhos que tratam do tema de mitologia grega. Fora as narrativas
dicionarescas, que ainda assim são muito reduzidas se compararmos aos outros
olimpianos, constatamos que seus verbetes são muito diminutos, e Ares usualmente
pouco aparece ou apenas é brevemente mencionado. Quando se trata de trabalhos
acadêmicos e pesquisas na área de mitologia grega que sejam voltados a sua figura, sua
representação é ainda mais rara.

Dessa forma, cabe-se questionar o papel de Ares no culto grego, seu papel como
olimpiano, seu papel como patrono da Guerra e dos soldados, cabe-se questionar os
motivos de uma região regida e movida pela guerra como a Lacônia não ter templos
nem cultos evidentes ao deus da guerra. Como Souza aponta: “Vernant (1985, p.10)
observa que a guerra era vista como parte do agon, isto é, do espírito de confronto que
presidia não só às relações humanas como à própria natureza;” (SOUZA, 1988, p.14). E
ainda nesse quesito Souza aponta que a religião era um fator tão fundamental na
mentalidade grega de guerra que antes de cada batalha geralmente havia rituais e
sacrifícios aos deuses para proteção e para garantir a vitória, e nesse acerto nenhuma
vez é mencionado rituais ao próprio deus da guerra Ares.

As trocas culturais nas relações das poleis gregas eram múltiplas e complexas
com altos graus de compartilhamento religioso e linguístico. Roberts (2017), em seu
livro The Plague of War, ressalta essas características de um forte senso de cultura
compartilhada ao menos no período das Guerras Persas, ao analisar o relato tucidiano,
Roberts percebe relatos de um forte senso de união das pólis através dos laços
compartilhados, de sangue, de língua, e de religiosidade.

At least from the time of the Persian Wars (490–479 bc), there was a strong
sense of a shared culture, even in the absence of any political unity among
the poleis. Thucydides’ predecessor Herodotus, historian of the Persian Wars,
portrayed the Athenians as explaining what held them back from going over
to the Persians: “what we as Greeks all share—our blood, our language; our
temples and sacrifices to our gods; our Greekness.”. (ROBERTS, 2017, p.6)
Roberts aponta também a extensa importância do culto religioso como um todo
na Grécia Antiga, os helênicos veneravam seus deuses cotidianamente com preces,
oferendas e votos de promessa, a fim de ganharem favores diretos. O culto era aos
Olimpianos como um todo, mas havia culto a divindades individuais, com patronatos e
principalmente na vida cívica, fora os grandes festivais que cultuavam os deuses de
forma mais conjunta (ROBERTS, 2017).

Em sua análise, Lalonde (2020) assinala também a existência de uma identidade


cultural coletiva no culto religioso de diversas sociedades, e a grega inclusa. Lalonde
aproxima o estudo da religiosidade grega com o estruturalismo funcional de Durkheim
no sentido que indivíduos ou comunidades agem em certas funções num sistema
ordenado de estruturas com o propósito de ganhar ou manter um relacionamento
favorável e proveitoso com figuras sobrenaturais (além do poder natural humano). Não
havia separação em religião e estado, nenhuma forma de estrutura sagrada ou teologia,
mas havia sim, um sistema de crenças de culto organizada por sacerdotes em seus
múltiplos templos. Ainda acerca dessa multiplicidade religiosa nas figuras e
representações dos deuses e da religiosidade como um todo, Vernant assinala:

Sem dúvida, um deus grego define-se pelo conjunto de relações que o unem e
o opõem às outras divindades do panteão, mas as estruturas teológicas assim
evidenciadas são demasiado múltiplas e sobretudo de ordem demasiado
diversa para poder integrar-se no mesmo esquema dominante. Segundo as
cidades, os santuários, os momentos, cada deus entra numa rede variada de
combinações com os outros. Esses reagrupamentos de deuses não obedecem
a um modelo único, que tenha valor privilegiado; eles se ordenam numa
pluralidade de configurações que não se superpõem exatamente, mas sim se
compõem um quadro de várias entradas, de eixos múltiplos, cuja leitura varia
em função do ponto de partida considerado e da perspectiva adotada.
(VERNANT, 2006, p.30).

A relação da religião com a política e a guerra, é fundamental e intrínseca à


sociedade grega do período contemplado, e considerando tamanha força na relação
desses três aspectos dentro dessa sociedade cabe pensar na relação das divindades com
esses aspectos e na motivação das representações depreciativas e minimizadas do deus
da guerra. Parker (2016) inclusive aponta um senso de “Guerra Sagrada”, um conceito
muito conhecido principalmente pela Idade Média, mas que denota uma relação da
guerra com a religiosidade, e de acordo com o autor, era um conceito intrínseco na
Antiguidade, inclusive nas guerras gregas. Contudo, Parker aponta a diferença entre as
Guerras Sagradas como um conceito mais conhecido e as guerras de religião, na Grécia
Antiga as questões de uma guerra de religião não tinham relação com julgamento de
valor religioso, mas de controle sobre domínios religiosos e influência, ou seja, uma
relação simbiótica da política com a religião, ofensas religiosas muitas vezes eram uma
invasão e sacrilégio de templos, muitas vezes culpando o lado agressor por ofensas
religiosas, como ocorreu durante as Guerras Persas. No excerto a seguir, Parker aponta
tais fatores:

There was no clash here of religious values. When states went to war, they
often asserted religious offences of the other side as a justification: the
Persians in 480 claimed to be burning Greek shrines in revenge for the
burning of the temple of Kybebe at Sardis in 499 (Hdt. 5.102.1), Alexander a
century and a half later professed to be avenging those Persian impieties
when he led his great expedition. But supposed acts of sacrilege were at issue
here, not belief. Greeks never fought one another or their neighbours on the
ground that their own choice of gods or way of worshiping the gods was the
one true way and that of others impious; there were, as we have seen,
religious factors within Greek warfare, but there were no wars of religion.”
(PARKER, 2016, p. 130-131).

Outro grande ponto a ser mencionado é relação de Ares com a deusa Athena,
ambos representando facetas muito distintas da guerra, se complementando muito mais
do que se excluindo, em uma complexa relação de representações de aspectos
simbólicos vistos culturalmente pelo povo, em suas crenças religiosas, que respaldavam
diretamente em seus cultos e na guerra em si. Como aponta Deacy (2009), estudos mais
tradicionais, mostram uma forte dicotomia entre as figuras de Ares e Athena, onde a
deusa representava os ideais da guerra que deveriam ser seguidas pelos guerreiros na
batalha, já Ares representava o temperamento agressivo que estes deviam evitar.

Contudo, Deacy (2009) também ressalta que muitas vezes ambas as divindades
aparecem com termos de comparação nos textos de Homero e Hesíodo, em aspectos
relacionados a postura de batalha, aos gritos de guerra de ambos no canto 20 da Ilíada
quando fazem seus clames de guerra apoiando os guerreiros de cada lado do conflito.
Outros aspectos que assemelham os dois são mencionados, como: a bagagem
estrangeira de cada um dos deuses, com Ares e suas conexões com a Trácia e Athena
com sua origem fortemente associada a Líbia; ambos os deuses tinham associações com
culto em cidades, Athena de forma mais expoente sendo muitas vezes patrona das
cidades, mas Ares também era representado com um forte apelo cívico por vezes,
inclusive na cidade Athena, Atenas.
Ainda tratando sobre a comparação essencial entre os dois deuses, Ares e
Athena, um ponto essencial na diferenciação do aspecto da guerra vinculado a ambos os
deuses, é que Athena é uma deusa que no processo de colocar e tirar a armadura para
batalha, consegue se desprender de todos seus aspectos furiosos e de geração de terror,
ao contrário de Ares que se banha em sangue e viva a guerra, o aspecto guerreiro de
Athena é fundamentalmente separável de seus demais aspectos (DEACY, 2009). Dentro
de um panorama de continuações e descontinuações, os aspectos de Ares e Athena se
complementam tanto quanto se excluem, são figuras que representam muito bem todas
as facetas da guerra e são muito complexas para simplesmente reduzi-las a uma
dicotomia ultrapassada. Como Deacy aponta:

War is in essence contradictory: it is fundamental to civilised society, but is


also necessarily anarchic. After all, it is in war that normal rules are
suspended, and it is acceptable to kill people and sack cities. It depends upon
controlled and defensive violence, but also violence that is wild and
aggressive. It also depends upon creating winners and losers. Athena and
Ares share in these contradictions. Previous studies which have
compartmentalised them as evincing different – not to say opposite – aspects
of warfare have done justice neither to the complex nature of their roles, nor
to the complexity of war itself, and have imposed too neat a pattern upon
what is often messy and disordered. Far from having a uniform place in a
comprehensible system, Athena and Ares resist straightforward clarification
and definition. In short, the deities of war are as variable as war itself.
(DEACY, 2009, p. 293-294)

Além de pensar apenas na relação da mentalidade cultural grega com as


representações dúbias de Ares, também compete o questionamento da falta de análises
mais profundas da figura do deus nos estudos da Grécia Clássica e na sua minimizada
representatividade fora os dicionários mitológicos contemporâneos. Como dito acima, a
figura de Ares se mostra muito mais complexa para explicar a forte relação dos mais
variados aspectos da guerra com a mentalidade cultural de muitos dos povos helênicos.
São necessários estudos mais avançados na figura do deus, para entender mais a fundo a
complexidade defendida do Deacy (2009), em todo o seu contexto histórico-cultural.

Por fim, considerando o conjunto da mentalidade cultural e religiosa grega, dos


cultos e ritos aos deuses, e sua relação com outros aspectos da sociedade grega, é
necessário problematizar tais representações, analisar e questionar os impactos das
mesmas e o que as motivaram. A importância desses detalhes para toda a construção
cultural da sociedade grega é evidente, como já declarado anteriormente, a Grécia
Antiga foi uma civilização com uma cultura abstrusa, construída por um amálgama de
diversas culturas, portanto fica claro o caráter múltiplo das representações.

Ares a partir das fontes: repertório de representações do deus entre os séculos VIII
e V a.C.

Como material principal para o desenvolvimento da pesquisa que culminou neste


artigo, foram utilizados materiais documentais de dois tipos, literário e iconográfico.
Dentro da tipologia literária, o repertório documental foi apoiado no texto homérico da
Ilíada, e na Teogonia de Hesíodo. Ambos os textos contribuem fundamentalmente para
a construção de um denso panorama da religiosidade grega durante o recorte temporal
do século VIII ao século V a.C.

Jones define Hesíodo e Homero como os responsáveis por dar aos gregos
divindades, não apenas deuses rasos, porém personagens de um universo cosmogônico
complexo e com camadas que os aproximam muito da humanidade latente e que
representassem os diversos aspectos da existência humana. Os deuses já existiam e já
eram cultuados desde civilizações muito anteriores aos gregos em si, entretanto Homero
e Hesíodo dão a eles esse aspecto de semelhança tão forte com os mortais que estes
mesmos patronizavam, cada um com uma faceta individual e aspectos de humanidade,
como linha cronológica de vida, com nascimento, família, atividades cotidianas e nas
relações uns com os outros (JONES, 2013). Tais aspectos são fundamentais para a
construção de um entendimento maior e mais completo da figura de cada divindade
dentro de seus contextos e suas particularidades. Dentro da figura de Ares por exemplo,
ter sua luta com Diomedes como exemplo de sua postura infantil perante Zeus após sua
derrota, é um indicativo de muitos aspectos de sua individualidade e de seus traços de
personalidade.

A Ilíada pode, por sua vez, ser considerada como a primeira obra da literatura
ocidental, a primeira tragédia do mundo, século antes dos poetas trágicos gregos
começarem a produzir suas obras para o teatro grego, Homero já concebia uma ideia de
tragédia na relação de Pátroclo com Aquiles, e na perda de Pátroclo. O escopo da obra é
objetivo e bem definido, narrar o último ano da Guerra de Tróia, todo seu contexto e a
relação entre homens e deuses no conflito, onde há uma grande amplitude de visão de
cenário, personagens e eventos (JONES, 2013). O poema épico gira em torno dos
dilemas morais de Aquiles em cima da questão do preço da vida mortal em
consequência da glória.

Para a obra homérica, seu estudo, sua interpretação e significação, utiliza-se de


três pontos principais e fundamentais para estruturar seus signos e significados numa
abrangente compreensão da sociedade grega deste contexto temporal. Três linhas que,
holisticamente, se colidem em alguns pontos dos estudos dos textos, são elas: linha
narrativa que age segundo a perspectiva de Milman Parry, onde estuda-se a oralidade
dos poemas utilizando a teoria literária que se assemelha a filologia; a linha
arqueológica que vem se firmando fortemente nos estudos homéricos, e que, por sua
vez, oferece apoio a narrativa homérica segundo as escavações, e por vezes, refuta
alguns pontos apontados por Homero, ou mesmo acrescenta observações possíveis; e a
linha histórica que conversa muito com as demais relacionando-as, de forma as usar as
ferramentas de cada uma das linhas para colocar luz sobre o que muitas vezes apenas os
textos homéricos não possibilitariam colocar (GONÇALVES; SOUZA, 2019). Ainda
nesse ínterim, os autores ressaltam:

Difícil é escolher e mediar entre essas abordagens. O ponto a ser encontrado,


talvez, seja muito próximo daquele que permeia o embate sobre a existência
ou não de Homero: o da pluralidade de entendimentos, formando um corpo
de conhecimento variado, múltiplo, algumas vezes incongruente, mas
também tremendamente aberto a novas reflexões. Estes elementos, juntos,
ajudam a ampliar nossa compreensão e nosso horizonte de interpretação de
tão complexas e belas composições. (GONÇALVES; SOUZA, 2019, P. 41).

Tais aspectos caracterizam e justificam o estudo interdisciplinar do texto


homérico em duas diversas camadas, sua importância para o entendimento histórico do
contexto que viviam os gregos do século VIII a V a.C., e muito de civilizações ainda
anteriores.

Hesíodo na Teogonia, pretende declarar através da Musas, portadoras da palavra,


filhas diretas do rei dos deuses, Zeus o uno, com Memória, a história e a linhagem
divina das divindades gregas. Todo o processo cosmogônico centrado nos feitos e na
figura de poder de Zeus. Um discurso já embutido de reflexão e subjetividade de
Hesíodo por declarar da forma mais legítima, através das musas, sua eulogia de
afirmação à Zeus. Como define Torrano nas passagens:
[...] a Teogonia uma sinopse não só de mitos de diversas procedências, mas
uma sinopse do próprio processo cosmogônico e mundificante mostram que
neste canto arcaico pulsa já o primeiro impulso do pensamento racional.
(TORRANO, 1991, p.18).
A leitura da Teogonia ultrapassa e extrapola o interesse da mera erudição
acadêmica, porque o mundo que este poema arcaico põe à luz, e no qual ele
próprio vive, está vivo de um modo permanente e - enquanto formos homens
- imortal. Um mundo mágico, mítico, arquetípico e divino, que beira o
Espanto e o Horror, que permite a experiência do Sublime e do Terrível, e ao
qual o nosso próprio mundo mental e a nossa própria vida estão
umbilicalmente ligados. Porque também num sentido etimológico a poesia
hesiódica é arcaica. (TORRANO, 1991, p.19).

Dessa forma, podemos perceber a importância de ambas as obras nos estudos do


grande campo da Antiguidade Clássica, principalmente se considerarmos as figuras dos
deuses gregos como temas centrais dessa investigação como o caso de Ares. Ambas as
obras fornecem um arcabouço de informações a ser decifradas, comparadas e elencadas
e forma dar sentido a narrativa dessas figuras na mentalidade grega clássica, suas
concepções no culto diário, e sua influência nas atividades patronizadas por elas.

Dentro da categoria literária foi utilizada uma metodologia de catalogação e


separação documental centrada na proposta de Bardin (2011). Dado o caráter da
pesquisa de levantamento de fontes, houve uma utilização parcial da tese de Bardin,
mais focada na análise documental do que na análise de conteúdo em si. Como ressalta
Santos (2012) analisando a obra de Bardin:

Ademais, Bardin conclui a primeira parte da obra estabelecendo reflexões


acerca da análise do conteúdo e a linguística, por conterem um objeto
comum, a linguagem. Embora suas diferenças sejam acentuadas, a linguística
preocupa-se com o estudo da língua e seu funcionamento, ao passo que a
análise do conteúdo procura conhecer aquilo que está por trás do significado
das palavras; e da análise do conteúdo e análise documental, pois, segundo
ela algumas técnicas e procedimentos da análise de conteúdo, fazem menção
à análise documental como forma de condensação das informações, para
consulta e armazenamento. (SANTOS,2012, p.384).

O objetivo principal sendo a indexação de informações relacionadas à Ares


contidas nas fontes, é mais proveitoso a utilização essencial da análise documental
proposta por Bardin, onde o foco é na separação de fontes documentais, na classificação
do objeto de pesquisa nas fontes separadas, a indexação desses dados. Dessa forma, os
dados indexados possibilitariam uma representação mais condensada do objeto para
consulta futura.
Tratando das fontes iconográficas, sua importância é singular no processo dos
estudos clássicos, é uma das tipologias de fonte mais utilizadas no estudo do
Mediterrâneo Antigo. Geralmente, a análise das fontes iconográficas requer uma
abordagem multidisciplinar, unindo História da Arte, Filologia e Arqueologia,
formando um campo de estudo chamado por Cerqueira, Francisco e Sarian (2020) como
Estudos Iconográficos ou Iconografia Clássica. Este campo dedica-se ao estudo das
fontes imagéticas das sociedades antigas. Mais especificamente tratando da iconografia
na cerâmica, os autores apontam que desde o século XVIII há um forte interesse estético
na cerâmica grega que a coloca no estudo de Iconografia Clássica, em estudos modernos
surgiram novas abordagens, mas o interesse acadêmico no tema prevalece
(CERQUEIRA; FRACISCO; SARIAN, 2020).

A metodologia utilizada na indexação das cerâmicas foi o estudo do Corpus


Vasorum Antiquorum (CVA) com uma leitura flutuante inicial para a posterior
separação de cerâmicas que tivessem a figura de Ares, ainda que em alguma cena da
mitologia grega. Após separadas quatro cerâmicas que identificam Ares em suas cenas,
foi feita as fichas catalográficas das cerâmicas para indexação e posterior análise em
futuras pesquisas. Utilizando do aporte teórico que entende a tipologia e forma,
estrutura, técnicas de modelamento da cerâmica e pintura, e a escolha temática das
imagens, compreendendo as especificidades do empregador e do artista com suas
intencionalidades (CERQUEIRA, 2000; DIAS, 2009; CERQUEIRA, FRANCISCO e
SARIAN, 2020).

De forma geral, a pesquisa teve resultados expressivos principalmente no tocante


à catalogação de fontes envolvendo a figura de Ares, devido o tempo curto de pesquisa
pouca análise crítica pode ser empregada nos materiais selecionados, contudo, uma
abrangente quantidade de evidências propicia pesquisas futuras na área. Ainda assim,
muitas características de Ares são possíveis ser mapeadas no estudo das fontes
selecionadas, e padrões gerais começam a aparecer para futura problematização.

Ares de forma geral é caracterizado como alto e forte, corpo atlético, portando
sua lança rompe escudos e seu elmo protetor, o furioso e sanguinário são adjetivos
psicológicos usualmente associados à sua figura, por vezes na cerâmica, o deus aparece
com sua couraça, peça mencionada em alguns estudos e trabalhos sobre Ares. Na
Teogonia uma passagem centraliza a caracterização generalizada de Ares no imaginário
grego: “E de Ares rompe-escudo Citeréia pariu Pavor e Temor terríveis que tumultuam
os densos renques de guerreiros com Ares destrói-fortes no horrendo combate, e
Harmonia que o soberbo Cadmo desposou.” (HESÍODO, 933-935). Tal descrição é
corroborada por este Lekythos Ático, atribuído a Pholos P de Vos datado de 500-400
a.C., o lécito mostra Ares brandindo sua lança contra o escudo de um inimigo,
rompendo-o efetivamente.

Fig. 1: Lekythos Ático de figuras negras, atribuído a Pholos P de Vos, datado de 500 a 400 a.C.

Vemos em Homero um respaldo direto as análises de Deacy (2009), Homero


destaca características submissas de Ares, ações tomadas por diálogo e parcimônia, ao
mesmo tempo que assinala seus epítetos que evocam características presentes na
Teogonia e na maior parte das fontes gregas, como no trecho:

"Porém Atena de olhos garços


pegou na mão de Ares furioso e assim lhe dirigiu a palavra:

«Ares, Ares flagelo dos mortais, sanguinário derrubador de


muralhas!
E se deixássemos agora os Troianos e os Aqueus a combater,
seja deles qual for a quem Zeus pai quer conceder a glória?
Pela nossa parte cedamos, evitando deste modo a ira de Zeus.»

Assim dizendo, conduziu Ares furioso para longe da batalha.” (HOMERO,


Ilíada, Canto V - 29-35).

Na catalogação das fontes textuais gregas, em especial na Ilíada é possível notar


a estreita relação trabalhada por Deacy (2009) entre Ares e Athena, ambos possuem
epítetos semelhantes, e são descritos de forma semelhante, muitas vezes juntos, “[...]Os
outros saíam, liderados por Ares e Palas Atena, ambos de ouro e de ouro revestidos,
belos e altos nas suas armas, como deuses que eram, salientes no meio dos outros; os
homens eram mais pequenos.” (HOMERO, Canto XVIII – 16-19); muitas vezes com
termos comparáveis em força e influência de poder, “Nem Ares, incitador das hostes,
nem Atena a poderiam ter amesquinhado, se a vissem, enorme embora fosse a sua
raiva." (HOMERO, Canto XVII – 397-399). Porém, a relação de ambos os deuses, tem
suas muitas e evidentes dicotomias muito bem apresentadas na Ilíada no momento da
manipulação de Athena da luta de Diomedes com Ares, tal momento marca a rivalidade
de ambos os deuses, rivalidade descrita por uma batalha simbológica e de certa forma
metafórica pelo posto do real significado de deus da guerra, uma batalha identitária, que
ressaltava as semelhanças e diferenças de ambos:

"Quando estavam já perto, avançando um contra o outro,


Ares arremeteu por cima do jugo e das rédeas dos cavalos
com a lança de bronze, desejoso de o privar da vida.
Com sua mão segurou a lança Atena de olhos garços,
e atirou-a por cima do carro para seguir seu vão caminho.
Em seguida arremeteu Diomedes, excelente em auxílio,
com a lança de bronze; e apressou-a Palas Atena
até ao baixo ventre, onde o cingia uma mitra protetora.

Foi aí que o atingiu e feriu, rasgando a linda pele;


de novo retirou a lança. Urrou então o brônzeo Ares,
como urram nove mil ou dez mil homens
na guerra, que se juntam no conflito de Ares.
E um tremor dominou os Aqueus e os Troianos aterrados,
de tal forma urrou Ares que da guerra se não sacia.
Tal como das nuvens surge a densa escuridão
quando do bafo canicular um vento agreste se levanta —
ao Tidida Diomedes assim surgiu o brônzeo Ares,
lançando-se por meio das nuvens na celestial vastidão.
Depressa chegou à sede dos deuses, ao escarpado Olimpo,
e ao lado de Zeus Crónida se sentou, desalentado;
indicou o sangue imortal que fluía da ferida
e lamentando-se proferiu palavras apetrechadas de asas:" (HOMERO, Ilíada,
Canto V – 850-871).

Tal dualidade pode também ser vista, a serviço de comparação, no fragmento de


cálice Ático de meados do século V a.C., que ressalta a sincronicidade e o duelo
metafórico da figura dos deuses da guerra, onde a sobreposição de um pelo outro
ressalta suas características já mencionadas, assim como possivelmente características
físicas e regionais.

Fig. 2: Fragmento de Cálice Ático de figuras negras, datado de 550 a 500 a.C.

No texto Homérico foram catalogadas 72 citações dignas de análise espalhadas


pelos XXIV cantos da obra de Homero, menções a Ares que caracterizam o deus,
possibilitam a identificação de características físicas, mentais, cenas de batalha,
posições na hierarquia mitológica, rivalidades, amores, e mesmo suas relações com
deuses, heróis e mortais inclusive de culto. Evidentemente nos cantos V e XX são onde
mais menções e momentos mais relevantes do deus aparecem na obra, entretanto o deus
aparece ainda que por relações com mortais de forma generalizante em todo o poema.
Em Hesíodo apenas duas menções são dignas de análise futura, entretanto são menções
fundamentais que calcam as características estruturais do deus e de suas relações com os
demais deuses do panteão, elas denotam suas características base.

Nas cerâmicas, seis cerâmicas foram catalogadas para análise futura e


comparação com as obras textuais, todas as obras pertencem a um período muito
próximo, com suas datações flutuando do século IV ao V a.C., de forma geral através da
análise comparativa dos dois tipos de fontes, foi possível corroborar as afirmações
contidas nos textos gregos.

Considerações Finais

Ares é um deus que se mostrou muito complexo e de muitas facetas ainda


ocultas pelos olhos da pesquisa acadêmica. O percurso da pesquisa não permitiu uma
análise profunda de sua figura, mas na catalogação de fontes, evidências foram
encontradas que corroboram com uma visão já muito diferente de ideia inicial de um
deus deixado de lado por ser contrário ao ideal grego de guerra.

A guerra assim como Ares é muito complexa, a relação do deus com a deusa
Athena demarca a forte dificuldade de entendê-la, para caracterizá-la é necessário
compreender diversas especificidades, e entender que essas especificidades vão
influenciar diretamente na interpretação da guerra e de seus deuses patronos. A
geografia influencia na regionalidade, que por sua vez influencia na influência de cada
deus, em seu culto, e na visão deles para o povo grego, na mentalidade religiosa
propriamente dita.

A conclusão mais explícita é a necessidade de aprofundamentos no estudo da


figura de Ares, estudos que ao problematizarem o deus, podem compreender uma visão
muito mais abrangente da civilização grega em suas multiplicidades. A continuidade da
pesquisa analisando criticamente e ampliando o arcabouço de fontes possibilitará uma
maior compreensão da enigmática e dual figura do deus da guerra. A quantidade de
fontes acerca de Ares é realmente maior do que o imaginado, porém o deus tem pouco
foco de pesquisa e, portanto, torna a busca por tais evidências de sua ocorrência na
cultura grega de difícil acesso direto. Todos esses fatores elencados deixam claro um
certo grau de apagamento da figura do deus em parâmetros práticos, porém um
reavivamento de sua figura em cenários da cultura pop da modernidade. Há uma forte
necessidade da retomada dos estudos de Ares, da conservação da memória do deus, para
que novas perspectivas sejam lançadas no estudo e ensino da antiguidade clássica e da
interrelação da religião com os demais aspectos da sociedade grega.

Referências Bibliográficas

FONTES

Fig. 1: Lekythos Ático de figuras negras, atribuído a Pholos P de Vos, datado de 500 a
400 a.C. Imagem retirada de:
https://www.carc.ox.ac.uk/XDB/ASP/recordDetails.asp?id={997F1051-7C53-420B-
A6E8-35C66EB1288F}&noResults=272&recordCount=6&databaseID={12FC52A7-
0E32-4A81-9FFA-C8C6CF430677}&search=%20{AND}%20Ares.

Fig. 2: Fragmento de Cálice Ático de figuras negras, datado de 550 a 500 a.C. Imagem
retirada de: https://www.carc.ox.ac.uk/XDB/ASP/recordDetails.asp?id={613D7247-
A304-4609-821C-
7E814C22759A}&noResults=272&recordCount=14&databaseID={12FC52A7-0E32-
4A81-9FFA-C8C6CF430677}&search=%20{AND}%20Ares.

HESÍODO. Teogonia a origem dos deuses. Tradução: Jaa Torrano. São Paulo:
Iluminuras, 1991.

HOMERO. Ilíada. Tradução: Frederico Lourenço. Quetzal Editores: Lisboa, 2019.

BIBLIOGRAFIA
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado.
Bauru, SP: Edusc, 2007.

ARÓSTEGUI, Julio. A pesquisa histórica: teoria e método. Bauru, SP: Edusc, 2006.

BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.

DEACY, Susan. Athena and Ares: War, violence and warlike deities. In: WEES, Hans
van (edit.). War and Violence in Ancient Greece. The Classical Press of Wales:
Swansea, 2009.

FRANCISCO, Gilberto da Silva; SARIAN, Haiganuch; CERQUEIRA, Fábio Vergara.


Retomando a Arqueologia da imagem: entre Iconografia clássica e cultura material.
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 40, nº 84, 2020. Disponível em:
https://doi.org/10.1590/1806-93472020v40n84-07 .

FUNARI, Pedro Paulo, A. Grécia e Roma. São Paulo: Contexto, 2020.

FUNARI, Pedro Paulo A; SILVA, Glaydson José da; MARTINS, Adilton Luís (orgs.).
História Antiga: contribuições brasileiras. São Paulo: Annablume, Fapesp, 2008.

GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo:


Companhia das Letras, 1989.

GONÇALVES, Ana Teresa Marques; SOUZA, Marcelo Miguel de. Possibilidades de


abordagem dos poemas homéricos: arqueologia e linguística como “horizonte
hermenêutico” das obras. ArtCultura Uberlândia, v.21, n. 38, p. 25-41, jan-jun. 2019.

GUARINELLO, Norberto Luiz. História Antiga. São Paulo: Contexto, 2013.

HECKO, Leandro (org.). Antiguidades e usos do passado – temas e abordagens. São


João de Meriti, RJ: Desalinho, 2019.

HECKO, Leandro. O sagrado na paisagem em Heródoto. Orientador: Francisco


Marshall. 96 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História,
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 2006.

HECKO, Leandro; PUGA, Dolores. A História Antiga nos manuais didáticos:


horizontes de expectativas. In: SQUINELO, Ana. Livro didático e paradidático de
história em tempos de crise e enfraquecimento: sujeitos, imagens e leituras. Campo
Grande, MS: Life Editora, 2020.

JONES, Peter. Introdução e Apêndices. In: ILÍADA/HOMERO. Tradução e prefácio de


Frederico Lourenço. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2013.

KURY, Mario da Gama. Dicionário de Mitologia Grega e Romana. Rio de Janeiro, RJ:
Editora Jorge Zahar, 2009.

LALONDE, Gerald V. Athena Itonia: Geography and Meaning of an Ancient Greek


War Goddess. Brill, Leiden Boston, 2020.

MENEZES, Ulpiano T. Bezerra de. A crise da Memória, História e Documento:


reflexões para um tempo de transformações. In: SILVA, Zélia Lopes da. (org.).
Arquivos, patrimônios e memória: trajetórias e perspectivas. São Paulo: Editora
UNESP: FAPESP, 1999.

PARKER, Robert. War and Religion in Ancient Greece. In: ULANOWSKI, Krzysztof
(edit.). The religious aspects of war in the ancient Near East, Greece, and Rome. Leiden,
Boston: Brill, 2016.

PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2008.

REDE, Marcelo. História e Cultura Material. In: CARDOSO, Ciro Flamarion;


VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Novos domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier,
2012.

ROBERTS, Jennifer T. The plague of war: Athens, Sparta, and the struggle for ancient
Greece. New York, NY: Oxford University Press, 2017.

SANTOS, Fernanda Marsaro dos. Análise de Conteúdo: A visão de Laurence Bardin.


Revista Eletrônica de Educação. v.6, n.1, mai. 2012. Resenhas. ISSN 1982-7199.

SOUZA, Marcos Alvito Pereira de. A Guerra na Grécia Antiga. São Paulo: Editora
Ática S.A., 1988.

TORRANO, Jaa. Revisão e Tradução. In: TEOGONIA/HESÍODO. São Paulo:


Iluminuras, 1991.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religião na Grécia antiga. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2006.

Você também pode gostar