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Marieta de Moraes Ferreira


Margarida Maria Dias de OlivE;ira
[coordenação] .,

'''-FGV EDITORA
duais com força de currículo, como o Saeb e o Enem, que implicam certa
homogeneidade (Cerri, 2009:142).
5 . Relacionada à dimensão temporal, a possível dificuldade de os alunos
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estabelecerem uma compreensão clara da cronologia e de orientação LIVRO D ID Á TIC O


temporal, resultado de uma visão fragmentada da história a partir da
história temática. Itamar Freitas

O conjunto de críticas evidencia que a história temática escolar, ou a


história organizada por eixos temáticos, mostrou-se uma experiência cur­
ricular que veio a público em momento de grande expectativa na educação
“l i v r o d id á t ic o ” é categoria ideal-típica designadora de um artefato que
brasileira, e especialmente no ensino de história, de busca de superação do
“apresenta o conhecimento”. Etimologicamente, neste verbete, a expres­
antigo ensino de história e de seus problemas, exaustivamente apontados.
são é composta pelo termo latino libro (fibra vegetal usada como suporte
Possivelmente, a diversidade de expectativas e a polissemia do termo, sem
da escrita) e pela derivação adjetiva grega didáskei (modo de apresentar o
definição de que história temática se estivesse falando em cada contexto,
conhecimento).
tenham propiciado que se enfraquecesse uma alternativa com potencial para
Nas Europas Ocidental e Meridional, de onde veio a maior parte das
responder a algumas das necessidades de inovação no ensino de história.
orientações sobre livros didáticos de história (LDH) para o Brasil, as discus­
sões sobre “didática” referiam-se a todo o ambiente de formação educacional
regular. Havia, então, modos de apresentar história na educação generalista
dos alunos dos seis aos 15 anos (príncipes, plebeus ou burgueses) e também
modos de apresentar a história aos futuros profissionais civis e militares
que frequentavam as faculdades de filosofia, teologia, direito e medicina.
Assim, foram “didáticos” os livros História universal (1761), de J. C. Gatte-
rer, e a Teoria da história (1857-58), de J. G. Droysen, na Alemanha, a História
Antiga (1732), de C. Rollim, e a Introdução aos estudos históricos (1898), de
C.-V. Langlois e C. Seignobos, na França, as Considerações sobre as causas da
grandeza e da decadências dos romanos (1734), do barão de Montesquieu, e o
Compêndio de história universal (1881), de Z. C. Pedrozo - que incluía uma
propedêutica de teoria da história -, em Portugal.
Nesses países, na passagem do século XIX para o XX, “livro” permanecia
“artefato”, mas “didática” migrava de “modo de apresentação” a domínio aca­
dêmico sobre a “elementarização” do conhecimento histórico destinado aos
imaturos. Já os domínios demarcados, inclusive, sob a forma de impressos,
intitulados por “ciências históricas”, “metodologia da história” ou “teoria da
história”, ficavam descomprometidos desse tipo de discussão e assumiríam
como seus os objetos relacionados majoritariamente às questões de heurís­
tica, crítica, interpretação e representação na formação profissional. 143
144 Com a retirada dos objetos da “didática da história” do domínio da “his­
gente organização institucional - livro de “exames regulares” (Ordentliches
tória ciência”, é provável que os “livros didáticos” tenham sido, nominal­
Exameri), da população-alvo - “breve história para crianças” (Kurz-gefasste
mente, reduzidos à função de apresentadores do conhecimento histórico
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Kindei-Historié) ou, simplesmente, da sua função geral - o ensino (Lerhbuch)


circunscrito ao interior das escolas primárias e secundárias.
- distante da outra fimção geral universitária, a pesquisa.
Em geral, quem vê nessa separação um benefício para as “coisas” do
Na Espanha, “manual escolar de história” é categoria ideal-típica que
ensino escolar, dá como inequívoca a ideia de que o livro didático é objeto
também abarca títulos não necessariamente remetentes às coisas media­
“da” escola (primária e secundária), não raro atrelado à invenção da (tarti-
das pelos respectivos artefatos submetidos aos mais distintos interesses do
bém ideal-típica) “disciplina escolar” história. Como desdobramento dessa
classificador. O Compêndio dela historia de Espana (1750), por exemplo, foi
compreensão, por exemplo, o estudioso pode limitar a investigação sobre
tipificado como “manual” por sua intencionalidade pedagógica (facilitador
os livros didáticos de história, no Brasil, à institucionalização do curso se­
da memorização das crianças) e estruturado em versos. A Clave historiai con
cundário (Imperial Colégio Pedro II) e às obras distribuídas pelo Programa
que se abre la puerta a la historia eclesiástica, ypolítica (1783) agregava listas
Nacional do Livro Didático (PNLD).
cronológicas, quadros genealógicos e índices de nomes de santos. A História
Por outro lado, quem discorda dos benefícios da separação entre os cur-
dei artey dela cultura (1964) tinha o ensino secundário como alvo, era narra­
sos/seminários/disciplinas da “ciência de referência” (...de história) e as
tiva, desprovida de exercícios, ilustrada com representações fotográficas em
“disciplinas escolares” (história de...), adotando o sentido etimológico de
preto e branco e veiculava ideologia nacionalista-fascista.
“didático”, pode perceber o LDH em todos os lugares e situações formati-
Se ampliarmos os exemplos, chegaremos a uma conclusão que ajuda a
vas onde a “apresentação” de um conhecimento chamado “história” esteve
compreender por que Allain Choppin faleceu sem nos deixar uma definição
ou está em curso, independentemente da institucionalização de finalidade,
unívoca de livro didático e também porque Kazumi Munakata se demorou
designação ou espaço em horas no currículo. Em síntese, perceberão como
na descrição das possibilidades de investigação e na definição do livro didá­
didático o livro de história da Igreja empregado no colégio jesuíta da Sal­
tico como conjunto de idéias e valores, mercadoria e artefato utilizado em
vador colonial e o livro de introdução à história em uso no Departamento
uma instituição chamada escola. “Livro didático”, portanto, será o que de­
de História da cidade acreana Rohm de Moura.
cidirmos que ele for, dentro do que estabelecermos como parâmetro de uso
Nesse arrazoado sobre a “natureza” do LDH, apenas desenvolvemos uma
- aquilo que ele faz ou deixa de fazer, a qualidade que porta, a finalidade que
hipótese baseada em uma categoria ideal-típica (‘livro didático”). Ela nos
cumpre, a matéria no qual é vazado, o conteúdo que veicula, a situação que 0
serve para reunir e submeter à análise uma infinidade de coisas designadas
causa e a consequência que dele provém, o lugar que ocupa no mercado, no
por uma infinidade de palavras em diferentes tempos e espaços. Efetiva­
Estado, nas instituições religiosas, militares, partidárias, nos movimentos
mente, LDH não tem “essência”.
sociais, na universidade e na escola básica. É a plasticidade do uso que vai
Na Alemanha, por exemplo, entre meados do século XVIII e início do
determinar, por exemplo, se dicionários, enciclopédias, impressos de figuras,
século XXI, os “livros escolares de história” (Schuígeschichtsbuch) foram
de narrativas ficcionais, encartes para pinturas e colagens, objetos digitais
compreendidos como os mediadores de perguntas e respostas catequéti-
de tipo vário vão adquirir ou não o status de “didático”.

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cas, de quadros sincrônicos, de narrativas, fontes escritas, de biografias, de
Em países de políticas públicas educacionais bem díspares, como Brasil,
imagens e de métodos de ensino para alunos e professores de história. Seus
EUA e França, livro didático é dominantemente definido pela diferença em
nomes, entretanto, não correspondiam, necessariamente, às coisas ofere­
relação ao ensino superior: é destinado a crianças, adolescentes e jovens em
cidas aos alunos e professores: eles eram definidos a partir do principal
passagem pela escolarização obrigatória (não profissional) e veicula narra­
conteúdo substantivo - livro “de história universal” (Weltgeschichte), da
tiva linear sobre o local, a nação ou o mundo. Seus constituintes principais,
principal orientação didática - livro “de repetição” (Repetitionen), da emer­
contudo, são objetos de disputas e variam com os agentes envolvidos na ms
146 produção, compra, avaliação ou uso. Nos EUA, editores e fundações pri­ (escola metódica/marxismo, Annalcs, Nova História/história social inglesa
vadas privilegiam o conhecimento pedagógico dos textbooks. Já os profes­ e nova história cultural).
sores universitários de história e alguns conselhos estaduais enfatizam os
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Os LDH também são frágeis na seleção, na distribuição e na interpreta­


conhecimentos meta-históricos (conceitos e práticas da heurística, crítica e ção do conteúdo substantivo. Autores explicam que o “ensinar todo” o co­
hermenêutica). Valores e conteúdos substantivos nacionalistas ou globais, nhecimento produzido pelos historiadores é uma impossibilidade material,
voltados à história do Estado ou à difusão da alteridade, dependem do tom, epistemológica e ideológica. Eles criticam a composição linear, diacrônica,
mais ou menos conservador (moral ou econômico), das políticas de cada moldada em causa e consequência, e dão como antiquadas as propostas
estado. Texas e Califórnia dão exemplos de extremas diferenças. universalistas e teleológicas que fizeram a fama das histórias universais, na
Na França, o paradoxo resultante da obrigatoriedade dos programas na­ passagem do século XVIII para o XIX.
cionais e a liberdade de o professor escolher os manuels scolaiies mantêm Tais orientações, no entanto, são contraditadas quando anunciam tra­
a variação dos atributos do “bom” livro didático de história, flagradas no tar da “origem das primeiras sociedades até as desigualdades da globaliza­
descentralizado EUA. Os editores prescrevem o suporte e o design. Autores, ção contemporânea”. O mesmo acontece quando distribuem a matéria em
tutelados pelos editores, opinam sobre a estrutura e os objetivos. Conselhei­ “Pré-história”, “História Antiga”, “História Medieval”, “História Moderna”
ros pedagógicos, além da organicidade das partes, focam na coerência entre e “História Contemporânea”, justificando-as pela força do “hábito” e da
projeto pedagógico e aplicação, entre os programas nacionais e o conteúdo “tradição”, e quando incluem a experiência dos povos clássicos gregos e
substantivo apresentado. romanos dos quais a “civilização ocidental” é suposta “herdeira”.
No Brasil, editores, autores, representantes de secretarias estaduais e Essas escolhas de conteúdo, junto às abordagens essencializadas e ho-
municipais de educação básica e professores universitários formadores de mogeneizantes da experiência desses povos, provocam os mais criativos
licenciados em história foram os responsáveis pelas diretrizes definidoras de arranjos quando os autores são instados a incluírem a experiência de afri­
“bons” livros didáticos desde 1999. Poderíam ser uni ou pluridisciplinares, canos e ameríndios. A África transforma-se em “berço da humanidade”,
destinados a séries ou ciclos de ensino que estimulassem a formação de confrontado com o nascedouro da democracia (a Grécia) e a origem do
leitores e viabilizassem a formação continuada dos professores. monoteísmo (hebreus). Povos islâmicos que têm duração singular são se-
Nos últimos 15 anos, os critérios de avaliação foram refinados: o livro gregados em uma Idade Média e a experiência ameríndia é inserida em
deve explicitar e cumprir propostas pedagógica, historiográfica e dispositi­ uma Idade Moderna. A Europa aparece como “periferia” (História Medie­
vos legais sobre princípios de cidadania. O manual do professor foi reestru­ val) e centro do mundo” (História Moderna) e o Brasil, não raro, segue a
turado, a “aprendizagem” ganhou espaço sobre os “métodos de ensino” e as reboque de uma necessária expansão do capitalismo (-História Moderna e
habilidades meta-históricas estão distribuídas por todo o impresso. Mas o História Contemporânea).
principal objetivo do documento de 1999 não foi concretizado. Hoje, o LDH Não seria grande o problema se esses senões apontados pelos especialis­
é uma peça cristalizada por causa da legislação inclusiva e também devido tas estivessem dispersos nas duas dezenas de coleções lançadas na última
à inapetência de editores e autores que não tiram proveito da liberdade edição do PNLD para o ensino médio. Mas a situação é grave porque os

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prevista nos editais lançados pelo governo federal. LDH são extremamente parecidos em um país que não possui currículo
Essa cristalização está explícita na indiferenciação dos LDH destinados nacional. E é ainda mais grave porque os LDH, ainda que não sejam mais
aos anos finais do ensino fundamental e ao ensino médio, e entre os LDH os privilegiados meios de acesso às representações sobre o passado local,
projetados para a escolarização regular e o ensino de jovens e adultos, na nacional e global (a internet é a grande fonte), seguem como a principal
manutenção da história magistia vitae nos capítulos iniciais do livro do alu­ ferramenta de formação inicial e continuada para aquele que vai ministrar
no e na apresentação de uma diacronia equívoca de historiografia ocidental aulas do maternal ao ensino médio. 14 7
Evidentemente, as fragilidades do livro didático de história no Brasil não
encontram suas causas apenas no gabinete dos seus autores. Transformado
em literatura menor pela maioria dos professores orientadores nos ambien­
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tes de pós-graduação, e cartelizado entre poucas editoras de capital trans­ L IV R O D ID Á T IC O R E G IO N A L


national, ele está longe de ganhar outras figurações. Ü preconceito impede
que os bons pesquisadores se transformem em autores, a má formação e as Maria Teluira da Conceição
estratégias de sobrevivência desencorajam os docentes a experimentarem
novas escolhas, e os dispositivos que regulam as compras do governo não
possibilitam a entrega de todos os títulos escolhidos pelos professores, in­
dependentemente do volume demandado. DENOMINAÇÃO a t r i b u í d a a livros escolares de história, traditionalmente
Não bastassem esses problemas, a grande mídia e setores conservadores destinados ao ensino de 4s ou 5° anos da educação básica, caracterizados por
da sociedade civil ainda veem o livro didático de história como um poderoso um recorte geopolítico, cuja abrangência espacial pode ser a dimensão con­
formador de consciências, ou seja, um disseminador de ideologia perni­ junta ou individual de uma cidade, um município, um estado ou uma região
ciosa. Enfim, consideram que os alunos são desprovidos de discernimento brasileira, que apresentam uma seleção de conteúdos específicos dos pro­
para avafiar tanto os conhecimentos e valores mitigados no hvro didático de cessos históricos e socioculturais, coletivamente reconhecidos como demar-
história quanto o discurso alarmista dessa mesma imprensa supostamente cadores de suas fronteiras identitárias, articulados com a história do Brasil,
desprovida de ideologia. normalmente adotados como material de apoio ao professor e aos alunos,
no processo de escolarização formal. Artefatos da cultura escrita, letrada e
impressa brasileira, os livros didáticos de história regional, no sentido lato
do termo, surgiram no Brasil, na segunda metade do século XIX, no contexto
de instalação das primeiras instituições escolares públicas e no despontar
das primeiras editoras voltadas para a publicação de livros didáticos nacio­
nais, a exemplo da Editora B. L. Gamier, E. & H. Laemmerte Nicolau Alves
& Cia., organizadas com o fim do monopólio da imprensa Régia, em 1822, e
impulsionadas a partir da interrupção da importação, tradução e adoção de
compêndios estrangeiros, sobretudo franceses, alemães e portugueses, no
ensino oficial, conforme mostra o estudo de Bittencourt (1993). O manual
Quadro histórico da província de São Paulo para uso das escolas de instrução
pública, de autoria de J. J. Machado de Oliveira, editado em 1864, constituiu
um dos poucos exemplos desse período. No século XX, os livros didáticos
de história regional, no ensino escolar brasileiro, passaram por mudanças
significativas e foram marcados pelo processo de consolidação das políti­
cas estatais de controle, aquisição e expansão dos livros didáticos, com a
implementação de um conjunto de reformas educacionais e curriculares
e pela repercussão dos debates do movimento de revisão historiográfica e
da renovação do ensino de história. Tais processos constituíram os antece- 149

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