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Apresentação:

A forma (breve) ensaio na era da reprodutibilidade algorítmica

“(...) o ensaio tende a irritar todos os detentores de verdades


definitivas e de fórmulas teóricas que funcionam como chaves que
abrem todas as portas. O ensaio é essencialmente crítico, por seu
caráter experimental, por abrir mão de regras e códigos consagrados
em dado campo do conhecimento e ousar abrir-se para o ainda não
tentado. Ele nasce de uma atmosfera crítica e problematizadora onde
o consciente e conceitual se misturam ao instintivo e figurativo”
(JUNIOR, 2019, p. 17)

O ensaio encontra-se na fronteira entre a arte e a ciência, como afirmaram


grandes pensadores como Georg Lukács (1986), Theodor Adorno (2015) e Durval
Muniz de Albuquerque Júnior (2019). O debate sobre a forma da escrita da história, em
grande parte negligenciado pelos historiadores, trás uma importante problemática em
um contexto onde a história têm sido narrada sobre formas cada vez mais distantes da
autoridade da figura do historiador. Isto porque em uma temporalidade onde cada vez
mais há um claro descolamento entre o passado dos historiadores, disciplinado no
âmbito da academia, e a experiência presentista da cultura histórica contemporânea é a
forma “breve” que toma conta do cenário cultural, posto que é a capacidade de síntese
explicativa e as novas linguagens (o podcast, o canal do youtube, o meme, etc.) que
toma o conta da nossa cultura histórica.
Não é atoa, como mostraram pesquisadores (PEREZ, 2017), que as obras de
não-ficção com maior apelo comercial são aquelas que usam da dimensão da síntese
explicativa1 como recurso, esta que já foi tida como uma virtude epistêmica no
momento em que o ensaio sociológico – como no caso clássico da trilogia dos
interpretes do Brasil consagrada por Antônio Candido – tomou conta do cenário
intelectual. Os mesmos fatores que consagraram essa forma foram aqueles que levaram
a geração de historiadores formados na academia a ver a síntese, intuição e
generalização como aspectos nocivos2. A História dos acadêmicos ainda se reduz de
forma quase estrita a forma da monografia cartesiana onde as formas de “apresentação”
no geral reproduzem o tropos da história disciplinar oitocentista. Claro que isto não

1
Jurandir Malerba (2014) aponta também que o enfoque no pitoresco e no “anedótico” criam uma maior
atração com o grande público ao qual esta história é direcionada, ver também BAUER; NICOLAZZI
(2016).
2
Sobre essa transição do ensaismo sociológico à historiografia acadêmica, ver: OLIVEIRA (2018);
NICODEMO: SANTOS; PEREIRA (2018).
significa dizer que a monografia cartesiana é uma forma por si “envelhecida”, mas a
apresentação do trabalho do historiador estritamente nesta forma é certamente um
problema diante dos novos tempos. Mas, que novos tempos são esses?
Em nossa leitura o mundo das bolhas e dos algoritmos constitui nas últimas
décadas uma nova relação com a reprodutibilidade do trabalho intelectual. O covid-19 e
o momento pandêmico certamente trouxeram a necessidade de revitalização dessas
formas ao incorporar o diálogo com outros formatos de apresentação do trabalho
historiográfico, forçando à fórceps o aprendizado das linguagens do digital – o que
certamente fez implodir o debate sobre a História digital e pública.
Por outro lado, nunca vivemos na história recente um processo tão intenso de
estetização da política, onde setores da extrema direita se apropriam da História
enquanto forma para reproduzir seus preconceitos sociais e financiam com dinheiro
privado (e público) empreendimentos que reforçam leituras estereotipadas e
negacionistas da história nacional que são transmitidas via “compartilhamento” pelas
redes sociais (facebook, instagram, etc.) e em aplicativos multiplataformas de
mensagens instantâneas (whatsapp e telegram).
Os contornos aos quais estas leituras do passado são produzidas se concretizam
exatamente no formato destas novas linguagens do digital, de um lado, e na forma desse
ensaio onde o tropos fundamental são os enunciados de “síntese histórica explicativa”
(OLIVEIRA, 2020, p. 84), buscando através de uma “narrativa salvacionista” (de um
passado recente “obscuro” frente há um presente em transformação) afirmar o discurso
político onde os historiadores são “comunistas”, “vagabundos”, “traidores da pátria”
que ocultaram a “era de ouro” da ditadura militar 3. Diante da necessidade imperiosa de
responder às urgências do nosso tempo histórico, de um lado, e de se adaptar há um
contexto onde as formas de apresentação do trabalho historiográfico exigem uma
mudança concebemos que um conjunto de ensaios (breves) como esses são um

3
O bolsonarismo tem uma estrutura discursiva comum com aquilo que José Gil, um interprete do
salazarismo, chamou de "narrativas salvacionistas". Estas se caracterizam por um modelo de narração
global que divide o tempo em um período de crise, desordem, mentira, de anarquia, humilhação e
corrupção e um novo tempo positivo, onde projeta-se um "novo homem" através da figura mítica do
"líder". O "negativo" do passado recente se estende a todo os âmbitos: do econômico ao moral. No caso
do salazarismo em contraponto a este passado recente o negativo" projeta-se um passado glorioso nas
narrativas coloniais. No Brasil hoje projeta-se uma era de ouro na ditadura militar, onde o “comunismo" e
a corrupção foram purgados, instituindo o novo regime (com Bolsonaro) como uma forma de reviver a
"nação" dessa "doença". A era de ouro inicia-se exatamente com a derrocada do comunismo, a
instauração da ordem e paz social através da figura mítica do "líder". Para uma análise aprofundada das
“narrativas salvacionistas”, ver: GIL (1995).
importante esforço de publicização de conhecimentos sem cair na mesmice da
apresentação da monografia cartesiana tradicional.
O que não trabalha de forma alguma em desfavor dos autores, é nesta forma do
breve ensaio que muitos dos grandes interpretes do mundo contemporâneo se
expressaram, como o próprio Walter Benjamin e as suas famosas teses (1987). As
formas breves também fogem da lógica do fordismo acadêmico que modulou um padrão
disciplinar na forma “paper”, desconsiderando todas as outras possíveis formas de
apresentação das pesquisas (ensaio, pequenos textos, reportagens, produções
audiovisuais, etc.). Estas outras formas não cabem no tipo de padrão instituído por uma
lógica de acumulação de “cheques acadêmicos”, que cada vez mais se afunila em
formas cada vez mais fechadas ao mundo exterior em relação ao “campo de produção”
(BORDIEU, 1983) específico ao qual trabalhamos/pesquisamos.
Os textos aqui publicados têm, portanto, em seus diferentes campos de produção
(filosofia, história, literatura, educação, etc.) a centelha da heresia própria da forma
(breve) ensaio, com a sua busca pela infração à ortodoxia do pensamento. Nunca antes
foi tão importante pensar como as formas de apresentação dos nossos trabalhos devem
passar da ordem do impensado para o pensável, o que é certamente uma tarefa que todos
nós temos que ter em frente em tempos que urgem pela luta de ideias e resistência
cultural.

Referências Bibliográficas

ADORNO, Theodor. O ensaio como forma. in: Gabriel Cohn (org.). Theodor Adorno.
São Paulo: Ática, 1986 [1958].
BAUER, Caroline Silveira; NICOLAZZI, Fernando Felizardo. O historiador e o
falsário: Usos públicos do passado e alguns marcos da cultura histórica contemporânea.
Vária História, Belo Horizonte, v. 32, n. 60, 2016, p. 807-835.
BENJAMIN, Walter. “A obra e arte na era de sua reprodutibilidade técnica” [1936];
“Sobre o conceito de História” [1940]. In: ____________. Magia e técnica, arte e
política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987, p.
165-196; 222-234.
BOURDIEU, Pierre. Campo de poder, campo intelectual. Buenos Aires: Folios, 1983.
GIL, José. Salazar: a retórica da invisibilidade. Lisboa: Relógio D'Água, 1995.
JÚNIOR, Durval Muniz de Albuquerque. A infração à ortodoxia: o ensaio como forma.
In: _____________. O tecelão dos tempos (nove ensaios de teoria da história). São
Paulo: Intermeios, 2019, p. 13-24.
MALERBA, Jurandir. Acadêmicos na berlinda ou como cada um escreve a
História?: uma reflexão sobre o embate entre historiadores acadêmicos e não
acadêmicos no Brasil à luz dos debates sobre Public History. História da
Historiografia, Ouro Preto, n. 15, 2014, p. 27-50.
NICODEMO, Thiago; SANTOS, Pedro; PEREIRA, Mateus. Uma Introdução à
História da Historiografia Brasileira (1870-1970). Rio de Janeiro: Editora da FGV,
2018.
LUKACS, Georg. A alma e as formas. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015 [1911].
OLIVEIRA, Rodrigo Perez. O engajamento político e historiográfico no ofício dos
historiadores brasileiros: uma reflexão sobre a fundação da historiografia brasileira
contemporânea (1975-1979). História da Historiografia, Ouro Preto, n. 26, 2018, p.
197-222.
OLIVEIRA, Rodrigo Perez. Por que vendem tanto? O consumo de historiografia
comercial no Brasil em tempos de crise (2013-2019). Revista Transversos, Rio de
Janeiro, n. 18, abr. 2020, p. 64-85.

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