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Marieta de Moraes Ferreira


Margarida Maria Dias de OlivE;ira
[coordenação] .,

'''-FGV EDITORA
Grécia clássica, principalmente, mas também em outros referenciais ociden­
tais, quem somos e como havíamos chegado até aquele presente.
O problema desse tipo de narrativa é que ele se faz passar por uma história
H IS TO R IA LOCAL geral e, portanto, universal. Como se valesse de igual medida para todos os
recortes geográficos ou para todos os grupos sociais, presumindo ser capaz
A r y a n a C o s ta
de explicá-los. No nível da história geral, isso é chamado por um termo já
bastante conhecido: eurocentrismo. A mesma lógica (de uma parte se fazer
passar pelo todo), porém, também ocorre na história nacional. Isso acontece,
por exemplo, quando no nosso dia a dia acreditamos que somente uma cida­
O USO DE HISTÓRIA local para o en sin o de histó ria pode ser considerado
de como o Rio de Janeiro é “histórica”. Por causa do patrimônio preservado,
tanto a partir do seu próprio valor q u an to um grande p o n to de partida para
também outras cidades como Minas Gerais ou Salvador, por exemplo, são
atividades que desenvolvem inúm eras outras com petên cias para a con stru ­
lembradas. Mas quando olhamos ao nosso redor, nos nossos bairros, associa­
ção do con h ecim en to histórico. ções, para as pessoas com quem convivemos, não enxergamos história neles
Fazer/ensinar/estudar história local pressupõe tomá-la como ohjeto do
e tampouco em nós mesmos. E por vezes, por isso, até (n)os desvalorizamos.
conhecimento (quando nos concentramos em escalas “menores” e mais
Por raramente vermos “gente como a gente” como objetos das histórias que
próximas a nós nos nossos recortes, como o bairro, a cidade, o Estado, mas estudamos, também não aprendemos a nos vermos a nós próprios como ob­
também grupos sociais e cultura material que não necessariamente corres­ jetos de história no próprio presente. Muito menos, então, como sujeitos.
pondem aos limites geográficos e políticos dos lugares) ou como o lugar As transformações socioculturais do século XX (a urbanização, escola-
de onde partem os conhecimentos (dos próprios professores e alunos, da rização, emancipação feminina, os movimentos civis organizados - negros,
comunidade, de associações e organizações locais, das universidades). Assim indígenas, de gênero etc. -, a descentralização geográfica, o crescimento de
é que uma primeira discussão que ela permite fazer é sobre a “presença de regiões periféricas, entre vários outros fatores) e os avanços na produção his­
história” em espaços (como objeto) ou a partir de sujeitos que, no senso toriográfica têm contribuído para dar um pouco mais de cor a uma história
comum, não seria cogitada. até então centrada na política, nos homens (literalmente), e nas “instâncias
A narrativa historiográfica por bastante tempo se dedicou a um recorte decisórias do poder”.
ocidental. Da Mesopotâmia, passando por Egito, Grécia, Roma, a Europa Os avanços na investigação historiográfica atentaçam para o fato de que
(ocidental, vale dizer!) durante a Idade Média e chegando à Península Ibé­ uma história somente institucional, biográfica, mastulina, política e elitis­
rica, o processo histórico era alinhavado e chamado inclusive de “história ta não dava conta dos desafios que se punham às pesquisas, aos objetos
da civilização”, se passando por uma narrativa que dava conta de tudo e de que se estudava. E as mudanças pelas quais passamos nas últimas décadas
todos. Como se ao longo do tempo tivesse havido uma única direção na qual resultaram em novas pessoas reivindicando direitos, reafirmando e/ou re­
as sociedades se desenvolveram, naturalmente passando pelo predomínio

H IS TÓ R IA LO C AL
construindo suas identidades e, portanto, querendo tomar-se visíveis. Além
das sociedades europeias, tidas como parâmetro de civilização. O processo de pôr esses desafios aos historiadores, isso também significou esses novos
de construção de uma identidade nacional no pós-independência, por sua personagens como produtores de conhecimento: ou seja, o reconhecimento
vez, procurou então encaixar o Brasil nessa linhagem. Era preciso encon­ de si como sujeito e, não menos importante, a inserção dessas pessoas tam­
trar o lugar do Brasil no meio da narrativa já existente e da mesma forma, bém como produtoras de história, não mais somente como objetos.
então, foi concebida uma história da civilização brasileira. Aquele encadea- Assim é que história, como objeto e como produção de conhecimento,
132 mento de fatos explicava, buscando como referências Portugal, França e a vem se descentralizando, pois passou a estudar diferentes lugares/sujeitos 133
134 e a ser produzida por grupos mais diversificados de pessoas. E como isso cristãos, afiro-brasileiros, islâmicos, judeus etc.); de temas como saneamento,
pode ser aproveitado pela escola? saúde, moradia, lazer; de atividades como feiras, comércios, ocupação do
Um primeiro ponto a ser indicado é que dificilmente o material base solo, práticas agrícolas. Ou seja, diferentes escalas que não necessariamente
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com que trabalhamos em sala de aula, ou seja, os livros didáticos e apostilas, correspondem aos limites políticos dos municípios e estados, mas que são
conseguirá dar conta das nossas especificidades locais. Como são produzi­ construídas ou percebidas pelos próprios alunos à medida que elegem seus
dos para atender professores e alunos de norte a sul do país, esses materiais temas de investigação.
costumam trazer uma abordagem mais “universal” da história, a que mais O mesmo raciocínio se aplica à periodização. Nem sempre os temas que
pessoas possam se relacionar e não têm como se aprofundar equanimemen- elegemos para estudar na história dos lugares obedece aos mesmos marcos
te em orientações para trabalhos referentes aos estados do Amazonas, da temporais estabelecidos para a história nacional, que geralmente são polí­
Paraíba, do Mato Grosso ou de Santa Catarina, por exemplo. Muito menos ticos e onde a mudança é explicada pela sucessão de regimes de governo:
de cidades ou regiões diferentes dentro dos estados. O que isso significa é Colônia, Império, República. É possível que um estudo sobre as moradias de
que, para engajar-se num trabalho de história local, os professores vão pro­ um determinado lugar, por exemplo, encontre outras datas para a detecção
vavelmente ter que realizar suas próprias investigações para coleta e produ­ de mudanças nas construções, na sua quantidade e nos seus materiais, nos
ção de material. Isso quer dizer, por outro lado, que um trabalho de história seus espaços, nas pessoas que ali moram ou deixaram de morar, e também
local é uma ótima oportunidade para a atuação dos próprios professores e que se identifiquem outras causas, como desastres naturais, fatores am­
alunos como sujeitos produtores do conhecimento eleito como objeto de bientais ou econômicos, que não só as decisões políticas vindas de alguma
estudo, atendendo também às discussões psicopedagógicas que prezam por instância superior como promotoras de mudança.
uma educação centrada na promoção da autonomia, da responsabilidade e Saber estabelecer outros marcos temporais e múltiplas causalidades para
da proatividade dos alunos. o processo histórico ajuda os alunos a desnaturalizarem a narrativa histó­
História local não precisa ser somente a história da cidade ou do Esta­ rica. A noção de que os nomes que damos a determinadas temporalidades
do, muitas vezes feita nos mesmos moldes de uma história nacional - ou (Idade Média, História Contemporânea etc.) são convenções estabelecidas
seja, uma listagem de prefeitos/govemadores ou de pessoas tidas como im­ pelas próprias pessoas que as estudaram é um primeiro passo para o ques­
portantes, muitas das vezes pela sua condição social privilegiada. Para um tionamento das informações que recebemos o tempo todo de fontes dife­
melhor aproveitamento dos recortes possíveis, o trabalho com história local rentes. Um passo para entender que os dados com que lidamos são sempre
precisa da mobilização de conceitos comuns também à geografia, como os dados interessados, pois produzidos em um determinado tempo, por de­
de paisagem, região, território. Eles servem como guias para a delimitação terminadas pessoas em determinados locais. Esse é mais um passo para os
dos objetos de estudo, conferindo inteligibilidade ao tema/espaço/recorte alunos perceberem que a história que eles leem nos livros didáticos também
selecionado. é produzida por alguém. E que aquela narrativa pode ser incrementada,
Assim é que se pode selecionar elementos que compõem um determinado confirmada ou modificada por eles mesmos, desde que seguindo algumas
padrão visual dentro de um espaço (paisagem - natural ou construída) ou um regras para sua produção.

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espaço definido pelas ações das pessoas que agem sobre ele (território). O Uma dessas regras é a condição básica de produção do conhecimento
interessante é ter em mente que mais de uma dessas escalas pode ser super­ histórico - o uso de fontes - e para o qual o trabalho com história local é
posta ao definir um recorte, e a exploração dessas diferentes escalas depende, uma grande oportunidade. Mobilizar “matéria-prima” propicia uma visão
naturalmente, das faixas etárias e das classes em que se encontram os alunos. do making o f da história, de uma primeira incursão em como ela é produzi­
Os temas podem, portanto, ser a história da própria comunidade escolar, da. E como se estivéssemos vendo os alicerces e as vigas de um prédio em
do bairro; de instituições como grupos religiosos (de diferentes orientações - construção e não só o prédio já construído e rebocado, como é o caso quan- 135
do só temos contato com narrativas de processo histórico. O uso de fontes
possibilita sua mobilização em várias escalas: pessoais, institucionais, orais,
escritas, visuais. Possibilita o conhecimento do local dos alunos por meio
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da busca pelos seus espaços de memória, acervos, arquivos, monumentos, H IS TÓ R IA TE M Á TIC A


pessoas a serem entrevistadas. E propicia também o trabalho coletivo, a
tomada de decisões, o desenvolvimento das habilidades de raciocínio a ar­ Helenice Rocha

gumentação dos alunos.


O trabalho com história local na escola tem sido utilizado como fer­
ramenta para a interdisciplinaridade. A depender do recorte escolhido,
é possível trabalhar com a geografia, a educação física, a biologia etc. em A HISTÓRIA TEMÁTICA é uma forma de organização e seleção curricular no
conexão com diferentes campos, temas e abordagens da história: patrimô­ ensino da história que coloca no tema a potencialidade de sua problemati-
nio, memória, história ambiental, sensibilidades, manifestações artísticas, zação histórica e contemporânea. Ela envolve seleções e recortes temáticos,
produção de gostos, do que é considerado belo ou desagradável, história do articulados a conteúdos e conceitos. A seleção de temas gerais ou eixos te­
corpo, das atividades físicas, dos modos de morar, de comer, de se cuidar. máticos é regida por critérios tais como de significação, abrangência, além
As possibilidades são tantas quantas forem percebidas pelos sujeitos en­ de esses temas estarem situados em problemáticas históricas, considerando
volvidos nas atividades. ainda pressupostos pedagógicos, como faixa etária, nível escolar, entre ou­
Todavia, a proposta de história local para o ensino de história também tros (Bittencourt, 2004:126).
enseja alguns cuidados. A história local por si só, assim como a história “ge­ Busca constituir temas significativos e, visando esse fim, tanto consi­
ral”, não consegue dar conta de tudo. Ela não consegue prover visões amplas dera aspectos do contexto social, estabelecendo relações entre o presente
ou sínteses como os recortes nacionais e globais exigem e conseguem dar. e o passado, quanto considera as experiências dos alunos a que se destina.
Confinar-se ao local pode alimentar o desconhecimento e a intolerância em Problematiza permanências e transformações em múltiplas temporalidades.
relação ao outro, ao diferente. E ela é suscetível ao mesmo personalismo e A história temática se coloca como alternativa à pretensão estabelecida nos
elitismo se for feita como a história tradicional em nível nacional que nós currículos durante todo o século XX, de abranger a história da nação e do
já conhecemos. A história local só tem seu valor plenamente explorado se mundo em uma dimensão temporal unibnear e evolutiva.
trabalhada com escalas que sejam intercamhiadas e sobrepostas para que No Brasil, a história temática escolar - nas diferentes,experiências das dé­
os alunos possam perceber justamente onde o local e o geral se distanciam cadas finais do século XX - buscou referências teórico-ftietodológicas princi­
e se aproximam. palmente na Nova História francesa, mas dialogou também com o marxismo,
especialmente em sua vertente britânica. Por entender que a experiência dos
alunos confere significado aos temas, ancorou-se em aspectos do construti-
vismo e na proposta pedagógica de Paulo Freire, como os temas geradores.
Recuando algumas décadas, Libânio Guedes registrou em livro de i960 uma
proposta temática de história, inspirada no escolanovismo (Cerri, 2009:140).
A história temática teve seu boom como proposição curricular em algu­
mas redes públicas no Brasil, no momento da redemocratização do final do
século XX, quando também foram produzidas coleções de livros didáticos
de organização temática. Tanto os currículos como as coleções foram objeto 137

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