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<'olct;ão Estudos

Dirigida por J. Guinsburg Johan Huizinga

HOMO LUDENS
O JOGO COMO ELEMENTO DA CULTURA

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Equipe de realização - Tradução: João Paulo Monteiro; Revisão: Mary Amazonas.
Leite de Barros; Produção: Ricardo W. Neves e Raquel Fernandes Abranches. //f\\~
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l /0111<1 l.udens - vom Unprung der Kultur im Spie/ Prefácio
l opyright © by Johan Huizinga

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Hu izinga, Johan, 1872-1945


Homo ludens : o jogo como d emen to da cultura /
Johan Huiz inga ; (tradução João Paulo Monteiro J. -
São Paulo : Perspectiva, 2007. - (Estudos/
dirigida por J. Guinsburg)

Título original: Homo Ludcns : Vom Unprung der


Kultur im Spiel.
3ª reimpr. da 5. cu de 2001.
Bibliografia. Em época mais otimista que a atual, nossa espécie rece-
ISBN 97X-85 -273 -0075-9 beu a designação de Homo sapiens. Com o passar do tempo,
acabamos por compreender que afinal de contas não somos
1. C ivili7.açàu - Filosofia 2. Cultura 3. Jogo - tão racionais quanto a ingenuidade e o culto da razão do
Filosofia 1. Guinsburg, J. li. Titulo. Ili. Série. século XVIII nos fizeram supor, e passou a ser de moda
designar nossa espécie como Homo faber. Embora faber
05-5170 CDD-306.481
não seja uma definição do ser humano tão inadequada como
indiccs para catálogo sistemático: ..apiens, ela é, contudo, ainda menos apropriada do que esta,
1. Jogo : Elemento cultural : Sociologia 306.481 visto poder servir para designar grande número de animais.
Mas existe uma terceira função, que se verifica tanto na vida
humana como na animal, e é tão importante como o racio-
cínio e o fabrico de objetos : o jogo. Creio que, depois de
1-lomo faber e talvez ao mesmo nível de Homo sapiens, a
expressão Homo ludens merece um lugar em nossa nomen-
r:latura.
Seria mais ou menos óbvio, mas também um pouco
5' edição - 3' reimpressão fácil, considerar "jogo" toda e qualquer atividade humana.
Aqueles que preferirem contentar-se com uma conclusão meta-
f ,sica deste genero farão melhor não lerem este livro. Não
Direitos reservados em língua portuguesa à vejo, todavia, razão alguma para abandonar a noção de jogo
EDITORA PERSPECTIVAS .A. como um fator distinto e fundamental, presente em tudo o
Av. Brigadeiro Luís Antônio, 3025
411 e acontece no mµndo . Já há muitos anos que vem cres-
0 140 1-000 São Paulo SP Brasil ce ndo em mim a cor,vicção de que é no jogo e pelo jogo que
Telefax: (Oll) 3885-8388 a civilização surge e se desenvolve. I! possível encontrar in-
www.editoraperspectiva.com.br dícios dessa opinião em minhas obras desde 1903. Foi ela

2007
1. Natureza e Significado do Jogo
como Fenômeno Cultural

O jogo é fato mais antigo que a cultura, pois esta, mes-


mo em suas definições menos rigorosas, pressupõe sempre a
sociedade humana; mas, os animais não esperaram que os
homens os iniciassem na atividade lúdica. f:-nos possível afir-
mar com segurança que a civilização humana não acrescen-
tou caracteóstica essencial alguma à idéia geral de jogo. Os
animais brincam tal como os homens 1 • Bastará que observe-
mos os cachorrinhos para constatar que, em suas alegres evo-
luções, encontram-se presentes todos os elementos essenciais
do jogo humano. Convidam-se uns aos outros para brincar
mediante um certo ritual de atitudes e gestos. Respeitam a
regra que os proíbe morderem, ou pelo menos com violência,
a orelha do próximo. Fingem ficar zangados e, o que é mais
importante, eles. em tudo isto, experimentam evidentemente
imenso prazer e divertimento. Essas brincadeiras dos ca-
chorrinhos constituem apenas uma das formas mais simples
de jogo entre os animais. Existem outras formas muito
mais complexas, verdadeiras competições, belas representa-
ções destinadas a um público.
Desde já encontramos . aqui um aspecto muito impor-
tante: mesmo em suas formas_mais simples, ao nível animal,
o jogo é mais do que um fenômeno fisiológico ou um reflexo
psicológico. Ultrapassa os limites da atividade puramente
física ou biológica. :f: uma função significante, isto é, encerra
(1) A diferença entre as principais línguas e11ropéiu (onde splelen, to
play, Jou~,. jugar significam tanto Jogar como br1néa~) e a _nossa nos <?briga
freqilcntcmcnte a escolher um ou outro destes dois, sacnftcando assim à
exatidão da tradução uma unidade terminológica que só naqueles idiomas seria
poss(vel. (N. do T . )
4 HOMO LUDENS NATUREZA E SIGNIFICADO l)O Joco 5

um det_erminado sentido. No jogo existe alguma coisa "em Se alguma delas fosse realmente decisiva, ou climinari,1 a,
jogo" que transcende as nec;essidades imediatas da vida e demais ou englobaria todas em uma unidade maior. A grand L
confere um sentido à ação. Todo jogo significa alguma coisa. maioria, contudo, preocupa-se apenas superficialmente cm
Não se explica nada chamando "instinto" ao princípio ativo saber o que o jogo é em si mesmo e o que ele signi fica
que constitui a essência do jogo; chamar-lhe "espírito" ou para os jogadores. Abordam diretamente o jogo, utilizando-se
"vontade" seria dizer demasüado. Seja qual for a maneira dos métodos quantitativos das ciências experimentais. scm
como o considerem, o simples fato de o jogo encerrar um antes disso prestarem atenção a seu caráter profund ami.:ntc
sentido implica a presença de um elemento não material em estético. Por via de regra, deixam praticamente de lado a
sua própria essência. característica fundamental do jogo. A todas as "explicações··
A psicologia e a fisiologia procuram observar, descrever acima referidas poder-se-ia perfeitamente objetar : "Está tudo
e explicar o jogo dos animais, crianças e adultos. Procuram muito bem, mas o que há de realmente divertido no jogo?
determinar a natureza o o significado do jogo, atribuindo-lhe Por que razão o bebê grita de prazer? Por que motivo o
um lugar no sistema da vida. A extrema importância deste jogador se deixa absorver inteiramente por sua paixão? Por
lugar e a necessidade, ou pelo menos a utilidade da função que uma multidão imensa pode ser levada até ao delírio por
do jogo são geralmente consideradas coisa assente, consti- um jogo de futebol?" A intensidade do jogo e seu poder de
tuindo o ponto de partida de todas as investigações científicas fascinação não podem ser explicados por análises biológicas.
dêsso gênero. Há uma extraordinária divergência entre as E, contudo, é nessa intensidade, nessa fascinação, nessa ca-
numerosas tentativas de definição da função biológica do pacidade de excitar que reside a própria essência e a carac-
jogo. Umas definem ~ origens e fundamento do jogo em terística primordial do jogo. O mais simples raciocínio noi-
termos de descarga da energia vital superabundante, outras indica que a natureza poderia igualmente ter oferecido a
como satisfação de um certo "instinto de imitação", ou ainda suas criaturas todas essas úteis funções de descarga de energia
simplesmente como uma "necessidade" de distensão. Segundo excessiva, de distensão após um esforço, de preparação para
uma teoria, o jogo constitui uma preparação do jovem para as exigências da vida, de compensação de desejos insatis-
as tarefas sérias que mais tarde a vida dele exigirá, segundo feitos etc., sob a forma de exerdcios e reações puramente
outra, trata-se de um exercício de autocontrole indispensável mecânicos. Mas não, ela nos deu a tensão, a alegria e o
ao indivíduo. Outras vêem o princípio do jogo como um divertimento do jogo.
impulso inato para exercer uma certa faculdade, ou como Este último elemento, o divertimento do jogo, resiste
desejo de dominar ou competir. Teorias há, ainda, que o a toda análise e interpretação lógicas. A palavra holandesa
consideram uma "ab-reação", um escape para impulsos pre- aardigheid é extremamente significativa a esse respeito. Sua
judiciais, um restaurador da energia dispendida por uma derivação de aard ( natureza, essência) mostra bem que a
atividade unilateral, ou "realização do desejo", ou uma ficção
idéia não pode ser submetida a uma explicação mais prolonga-
destinada a preservar o sentimento do valor pessoal etc. 2•
da. Essa irredutibilidade tem sua manifestação mais notável,
Há um elemento comum a todas estas hipóteses: todas para o moderno sentido da linguagem, na palavra inglêsa fun,
elas partem do pressuposto de que o jogo se acha ligado a cujo significado mais corrente é ainda bastante recente. :É
alguma coisa que não seja o próprio jogo, que nele deve curioso que o francês não possua palavra que lhe corresponda
haver alguma espécie de finalidade biológica. Todas elas se exatamente e que tanto em holandês (grap e aardigheid) como
interrogam sobre o porquê e os objetivos do jogo. As di-
em alemão (Spass e Witz) sejam necessários dois termos para
versas respostas tendem mais a completar-se do que a ex-
exprimir esse conceito 3• E é ele precisamente que define a
cluir-se mutuamente." Seria perfeitamente possível aceitar
essência do jogo. Encontramo-nos aqui perante uma cate
quase todas sem que isso resultasse numa grande confusão
goria absolutamente primária da vida, que qualquer um é
de pensamento, mas nem por isso nos aproximaríamos de uma
capaz de identificar desde o próprio nível animal. É legítimr
verdadeira compreensão do conceito de jogo. Todas as res-
considerar o jogo uma "totalidade", no moderno sentido da
postas, porém, não passam de soluções parciais do problema.
( 3J Também em porttJguês a palavra d/vntimento é apenas a maneira
(2) Sobre estas teoriu, consultar H . Zondervan, Het Sptl bl/ Dler,r,, menos inadequada de exprimir esse conceito, que para o autor corresponde
K.INl•r•n ,,. Volwa,sen 'Mtn.n:lr.111 (Amsterdl, 1928) e F. 1. 1. Buytendijk, Htt à própria ess8ncia do jogo (v. infra), e está ligado também a noções como
.tfNf va11 M,nsch .., Dt•t ais. optnbarln1 va11 l•••nsdrtften (Am•terdl, 1932). :- ; de prazer. •~rodo. alegria etc. (N . dn T . 1
r, HOMO LUDENS NATUREZA E SIGNIFICADO DO JOGO

palavra, e é como totalidade que devemos procurar avaliá-lo geral, tomando-o em suas múltiplas formas concretas, cn·
e compreendê-lo. quanto estrutura propriamente social. Procuraremos consi -
Como a realidade do jogo ultrapassa a esfera da vida derar o jogo como o fazem os próprios jogadores, isto é ,
humana, é impossível que tenha seu fundamento cm qualquer em sua significação primária. Se verificarmos que o jogo se
..:!emento racional, pois nesse caso, limitar-se-ia à humani- baseia na manipulação de certas imagens, numa certa " ima-
dade. A existência do jogo não está ligada a qualquer grau ginação" da realidade (ou seja, a transformação desta em
determinado de civilização, ou a qualquer concepção do uni- imagens) , nossa preocupação fundamental será, então, captar
verso. Todo ser pensante é capaz de entender à primeira o valor e o significado dessas imagens e dessa "imaginação".
vista que o jogo possui uma realidade autônoma, mesmo que Observaremos a ação destas no próprio jogo, procurando
sua língua não possua um termo geral capaz de defini-lo. assim compreendê-lo como fator cultural da vida
A existência do jogo é inegável. É possível negar, se se As grandes atividades arquetípicas da sociedade humana
quiser, quase todas as abstrações: a justiça, a beleza, a ver- são, desde início, inteiramente marcadas pelo jogo. Como
dade, o bem, Deus. É possível negar-se a seriedade, mas por exemplo, no caso da linguagem, esse primeiro e supremo
não o jogo. instrumento que o homem forjou a fim de poder comunicar,
Mas reconhecer o jogo é, forçosamente, reconhecer o ensinar e comandar. E a linguagem que lhe permite distinguir
espírito, pois o jogo, seja qual for sua essência, não é ma- as coisas, defini-las e constatá-las, em resumo, designá-las e
terial. Ultrapassa, mesmo no mundo animal, os limites da com essa designação elevá-las ao domínio do espírito. Na
realidade física . Do Ponto de vista da concepção determi- criação da fala e da linguagem, brincando com essa mara-
nista de um mundo regido pela ação de forças cegas, o jogo vilhosa faculdade de designar, é como se o espírito estivesse
seria inteiramente supérfluo. Só se torna possível, pensável constantemente saltando entre a matéria e as coisas pen-
e compreensível quando a presença do espírito destrói o deter- sadas. Por detrás de toda expressão abstrata se oculta uma
minismo absoluto do cosmos. A própria existência do jogo metáfora, e toda metáfora é jogo de palavras. Assim, ao
é uma confirmação permanente da natureza supralógica da dar expressão à vida, o homem cria um outro mundo, um
situação humana. Se os animais são capazes de brincar, é mundo poético, ao lado do da natureza.
porque são alguma coisa mais do· que simples seres mecâ- Outro exemplo é o mito, que é também uma transfor-
nicos. Se brincamos e jogamos, e temos consciência disso, mação ou uma "imaginação" do mundo exterior, mas implica
é porque somos mais do que simples seres racionais, pois o em um processo mais elaborado e complexo do que ocorre
jogo é irracional. no caso das palavras isoladas. O homem primitivo procura,
Ao tratar o problema do jogo diretamente como função através do mito, dar conta do mundo dos fenômenos atri-
da cultura, e não tal como aparece na vida do animal ou da buindo a este um fundamento divino. Em todas as capri-
criança, esta mos iniciando a partir do momento em que as chosas invenções da mitologia, há um espírito fantasista que
abordagens da biologia e da psicologia chegam ao seu termo. joga no extremo limite entre a brincadeira .e a seriedade.
Encontramos o jogo na cultura, como um elemento dado Se, finalmente, observarmos o fenômeno do culto, verifica-
existente antes da própria cultura, acompanhando-a e mar- remos que as sociedades primitivas celebram seus ritos sa-
cando-a desde as mais distantes origens até a fase de civili- grados, seus sacrifícios, consagrações e mistérios, destinados a
zação em que agora nos encontramos. Em toda a parte en- assegurarem a tranqüilidade do mundo, dentro de um espí-
contramos presente o jogo, como uma qualidade de ação bem rito de puro jogo, tomando-se aqui o verdadeiro sentido da
determinada e distinta da vida "comum". Podemos deixar palavra.
de lado o problema de saber se ató agora a ciência conseguiu
reduzir esta qualidade a fatores quantitativos. Em minha Ora, é no mito e no culto que têm origem as grandes
opinião não o conseguiu. De qualquer modo, o que importa forças instintivas da vida civilizada: o direito e a ordem, o
é justamente aquela qualidade que é característica da forma comércio e o lucro, a indústria e a arte, a poesia, a sabe-
de vida a que chamamos "jogo". O objeto de nosso estudo doria e a ciência. Todas elas têm suas raízes no solo prime-
é o jogo como forma específica de atividade, como "forma vo do jogo.
significante", como função social. Não procuraremos analisar A finalidade deste estudo consiste em mostrar que o
os impulsos e hábitos naturais que condicionam o jogo em exame da cultura sub specie ludi é mais do que uma compa-
s HOMO LUDENS NATUREZA E SIGNIFICADO DO JOGO ()

1 açáo retórica. Não se trata de modo algum de uma idéia cundária. Considerado em si mesmo, o jogo não é cômico
nova. Houve uma época em que era geralmente aceita, em- nem para os jogadores nem para o público. Os animais mui-
hora num sentido limitado e muito diferente daquele que aqui t0 jovens, ou ·as crianças, podem por vezes ser extremamente
se adotou: o início do século XVII, quando surgiu o grande cômicos em suas brincadeiras, mas observar cães adultos per-
teatro laico. Numa brilhante série de figuras, desde as de seguindo-se mutuamente dificilmente suscita em nós o riso.
Shakespeare até as de Calderón e Racine, o teatro dominava Quando chamamos "cômica" a uma farsa ou uma comédia,
a literatura ocidental. Era costume comparar o mundo a um fazemo-lo levando em conta o não jogo da reprcsentétção pro-
palco, no qual cada homem desempenhava seu papel. To- priamente dito, mas, sim, a situação e os pensa mentos ex-
da via, isto não significa que o elemento lúdico da civilização pressos. A arte mímica do palhaço, cômica t: risível . t.lificil-
fôsse claramente reconhecido. O costume de comparar a mente pode ser considerada um verdadeiro jogo.
vida a um palco, bem analisada, revela-se como pouco mais
que um eco do neoplatonismo então dominante, com um tom A categoria do cômico está estreitamente ligada à d<1
moralista fortemente acentuado. Era uma variante do velho loucura, ao mesmo tempo no sentido mais elevado e nu mais
tema do caráter vão de todas as coisas. A estreita ligação baixo do termo . Mas não há loucura no jogo. jú qu e se
entre o jogo e a cultura não era observada nem expressa, ao situa para além da antítese entre a sabedoria e a loucura. Na
passo que a nós importa apenas mostrar que o puro e simples baixa Idade Média, os dois modos fundamentai s de vida . o
jogo constitui uma das principais bases da civilização. jogo e a seriedade, eram expressos de maneira bastante impcr-
feita através da oposição entre folie et sens, até o momento
Em nossa maneira de pensar, o jogo é diametralmente em que, em seu Laus stultiliae, Erasmo mostrou a improce-
oposto à seriedade. À primeira vista, esta oposição parece dência desse contraste.
tão irredutível a outras categorias como o próprio conceito
de jogo. Todavia, caso o examinemos mais de perto, verifi-
caremos que o contraste entre jogo e seriedade não é decisivo
nem imutável. É lícito dizer que o jogo é a não-seriedade,
.. Todas as idéias, aqui vagamente reunidas num mesmo
grupo - jogo, riso, loucura , piada, gracejo, cômico etc. -
participou daquela mesma característica que nos vimos obri-
mas esta afirmação, além do fato de nada nos dizer quanto gados a atribuir ao jogo, isLo é, a de resistir a qualquer
às características positivas do jogo; é extremamente fácil de tentativa de redução a outros têrmos. Sem dúvida , sua
refutar. Caso pretendamos passar de "o jogo é a não-serie- ratio e sua mútua dependência residem numa camada muito
dade" para "o jogo não é sério", imediatamente o contraste profunda de nosso ser espiritual.
tomar-se-á impossível, pois certas formas de jogo podem Quanto mais nos esforçamos por estabelecer uma sepa-
ser extraordinariamente sérias. Além disso, é facílimo de- ração entre a forma a que chamamos "jogo" e outras formas
signar várias outras categorias fundamentais que também aparentemente relacionadas a ela, mais se evidencia a abso-
são abrangidas pela categoria da "não-seriedade" e não apre- luta independência do conceito de jogo. E sua exclusão do
sentam qualquer relação com o jogo. O riso, por exemplo, domínio das grandes oposições entre categorias não se de-
está de certo modo em oposição à seriedade, sem de maneira tém aí. O jogo não é compreendido pela antítese entre sa-
alguma estar diretamente ligado ao jogo. Os jogos infantis, bedoria e loucura, ou pelas que opõem a verdade e a falsi-
o futebol e o xadrez são executados dentro da mais profunda dade, ou o bem e o mal. Embora seja uma atividade nãG
seriedade, não se verificando nos jogadores a menor tendência material, não desempenha uma função moral, sendo impos•
para o riso. É curioso notar que o ato puramente fisioló- sível aplicar-lhe as noções de vício e virtude.
gico de rir é exclusivo dos homens, ao passo que a função Se, portanto, não for possível ao jogo referir-se direta-
significante do jogo é comum aos homens e aos animais. O mente às categorias do bem ou da verdade, não poderia ele
animal ridens de Aristóteles caracteriza o homem, em opo- talvez ser incluído no domínio da estética? Cabe aqui uma
sição aos animais, de maneira quase tão absoluta quanto o dúvida porque, embora a beleza não seja atributo inseparável
homo sapiens. do jogo enquanto tal , este tem tendência a assumir acen-
O qtie vale para o riso vale igualmente para o· cômico. tuados elementos de beleza. A vivacidade e a graça estão
O cômico é compreendido pela categoria da não-seriedade originalmente ligadas às formas mais primitivas do jogo. Ê
e possui certas afinidades com o riso, na medida em que o neste que a beleza do corpo humano em movimento atinge
provoca, mas sua relação com o jogo é perfeitamente se- seu apogeu. Em suas formas mais complexas o jogo está
(
Joco
10 HOMO LUDENS NATUREZA E SIGNIFICADO DO
''
saturado de ritmo e de harmonia, que são os mais nobres algo supérfluo. Só se torna uma necessidade urgente na 111..: -
dons de percepção estética de que o homem dispõe. São dida em que o prazer por ele provocado o transforma numa
m11itos, e bem íntimos, os laços que unem o jogo e a beleza, necessidade. f: possível, em qualquer momento, adiar ou su~-
Apesar disso, não podemos afirmar que a beleza seja pender o jogo. Jamais é imposto pela necessidade física ou
inerente ao jogo enquanto tal. Devemos, portanto, limitar- pelo dever moral, e nunca constitui uma tarefa, sendo sem-
-nos ao segu inte : o jogo é uma função da vida, mas não é pre praticado nas " horas de ócio". Liga-se a noções de obri-
passível de definição exata em termos lógicos, biológicos ou gação e dever apenas quando constitui uma função cultural
estéticos. O conceito de jogo deve permanecer distinto de reconhecida, como no culto e no ritual.
todas as outras formas de pensa mento através das quais ex- Chegamos, assim, à primeira das características funda -
primimos a estrutura da vida espiritual e social. Teremor.. mentais do jogo : o fato de ser livre, de ser ele próprio liber-
portanto, de limitar-nos a descrever suas principais caracte- dade. Uma segunda característica, mtimamente ligada à
rísticas. primeira, é que o jogo não é vida "corrente" nem vida
Dado que nosso tema são as relações entre o jogo e a " real". Pelo contrário, trata-se de uma evasão da vida "real"
cultura, não é indispensável fazer referência a todas as formas para uma esfera temporária de atividade com orientação pró-
possíveis de jogo, sendo possível limitarmo-nos a suas ma- pria. Toda criança sabe perfeitamente quando está "só fa-
nifestações sociais. Poderíamos considerar estas as form as zendo de conta" ou quando está "só brincando" . A seguinte
ma is elevadas de jogo. Geralmente são muito mais fáceis estória, que me foi contada pelo pai de um menino, constitui
de descrever do que os jogos mais primitivos das crianças um excelente exemplo de como essa consciência está pro-
e dos animais jovens, por possuírem forma mais nítida e fundamente enraizada no espírito das crianças. O pai foi
articulada e traços mais variados e visíveis, ao passo qu.: na encontrar seu filhinho de quatro anos brincando "de trenzi-
interpretação dos jogos primitivos deparamos imediatamente nho" na frente de uma fila de cadeiras. Quando foi beijá-lo,
com aquela característica irredutível, puramente lúdica, que disse-lhe o menino: "Não dê beijo na máquina, Papai, senão
em nossa opinião resiste inabaJí,1.velmente à análise. Faremos os carros não vai acreditar que é de verdade". Esta carac-
referência aos concursos e às corridas, às representações e terística de "faz de conta'' do jogo exprime um sentimento
aos espetáculos, à dança e à música, às mascaradas e aos da inferioridade do jogo em relação à "seriedade", o qual
torneios. Algumas das características que vamos indicar são parece ser tão fundamental q_uanto o próprio jogo. Todavia,
próprias do jogo em geral, enquanto outras pertencem aos conforme já salientamos, esta consciência do fato de "só
jogos sociais em particular. fazer de conta" no jogo não impede de modo algum que ele
Antes de mais nada, o jogo é uma atividade voluntária. se processe com a maior seriedade, com um enlevo e um
Sujeito a ordens, deixa de ser jogo, podendo no máximo ser entusiasmo que chegam ao arrebatamento e, pelo menos
uma imitação forçada . Basta esta característica de liberdade temporariamente, tiram todo o significado da palavra "só"
para afastá-lo defiqitivamente do curso da evolução natural. da frase acima. Todo jogo é capaz, a quaJquer momento, de
É um demento a esta acrescentado, que a recobre como um absorver inteiramente o jogador. Nunca há um contraste bem
ornamento ou uma roupagem. E evidente que, aqui, se nitido entre ele e a seriedade, sendo a inferioridade do jogo
entende liberdade em seu sentido mais lato, sem referência sempre reduzida pela superioridade de sua seriedade. Ele se
ao problema filosófico do determinismo. Poder-se-ia objetar torna seriedade e a seriedade, jogo. E. possível. ao jogo al-
que esta liberdade não existe para o animal e a criança, por cançar extremos de beleza e de perfeição que ultrapassam
serem estes levados ao jogo pela força de seu instinto e pela em muito a seriedade. Voltaremos a referir-nos a problemas
necessidade de desenvolverem suas faculdades físicas e sele- difíceis deste tipo quando analisarmos mais minuciosamente
tivas. Todavia, o termo "instinto" levanta uma incógnita e, as relações entre o jogo e o culto.
além disso, a pressuposição inicial da utilidade do jogo cons-
No que diz respeito às características formais do jogo,
titui uma petição de princípio. As crianças e os animais
brincam porque gostam de brincar, e é precisamente em tal todos os observadores dão grande ênfase ao fato de ser ele
fa to que reside sua liberdade. desinteressado . Visto que não pertence à vida "comum" ,
Seja como for, para o indivíduo adulto e responsável o ele se situa fora do mecanismo de satisfação imediata das
jogo é uma função que facilmente poderia ser dispensada. é necessidade.s e dos desejos e, pelo contrário, interrompe este
12 HOMO LUO t, NS NATUREZA E SIONIFICAOO 00 J OGO n
mecanismo. Ele se insinua como atividade temporária, que como uma criação nova do espírito, um U.:!>uu ro " ,.:, 1.:011
tem uma finalidade autônoma e se realiza tendo em vista servado pela memória. :e transmitido, torna-se tradiç,-,o.
uma satisfação que consiste nessa própria realização. :É Pode ser repetido a qualquer momento, quer scju ••jogn
pelo menos assim que, em primeira instância, o ele se nos infantil" ou jogo de xadrez, ou em períodos detcrmi11mlu~.
apresenta: como um inJervalo em nossa vida quotidiana. como um mistério. Uma de suas qualidades funuamc111a"
Todavia, em sua qualidade de distensão regularmente veri- reside nesta capacidade de repetição, que não se aplica ap1: ·
ficada, ele se toma um acompanhamento, um complemento e, nas ao jogo em geral, mas também à sua estrutura inl1:r11:i
em última análise, uma parte integrante da vida em geral. Em quase todas as formas mais elevadas de jogo. o~ clt.:•
Ornamenta a vida, ampliando-a, e nessa medida torna-6e meatos de repetição e de alternãncia (como no refrain) c1m~-
uma necessidade tanto para o indivíduo, como função vital , tituem como que o fio e a tessitura do objeto.
quanto para a sociedade, devido ao sentido que encerra, à
sua significação, a seu valor expressivo, a suas associações A limitação no espaço é ainda mais flagrante do 4u,
espirituais e sociais, em resumo, como função cultural. Dá a limitação no tempo. Todo jogo se processa e existe n11
satisfação a todo o tipo de ideais comunitários. Nesta medida, interior de um campo previamente delimitado, de maneira
situa-se numa esfera superior aos processos estritamente bio- material ou imaginária, deliberada ou espontânea. Tal como
lógicos de alimentação, reprodução e autoconservação. Esta não há diferença formal entre o jogo e o culto, do mesmo
afirmação está em aparente contradição com o fato de que modo o "lugar sagrado" não pode ser formalmente distingtüdo
os jogos ligados à atividade sexual se verificam justamente do terreno de jogo. A arena, a mesa de jogo, o círculo
na época do cio. Mas seria assim tão absurdo atribuir ao mágico, o templo, o palco, a tela, o campo de tênis, o
canto, à dança e o "paradear" das aves um lugar exterior tribunal etc., têm todos a forma e a função de terrenos de
ao domínio puramente fisiológico, tal como no caso do .jogo jogo, isto é, lugares proibidos, isolados, fechados, sagrados,
humano? Seja como for, este último pertence sempre, em em cujo interior se respeitam determinadas regras. Todos
todas as suas formas mais elevadas, ao domínio do ritual eles são mundos temporários dentro do mundo habitual, de-
e do culto, ao domínio do sagrado . . dicados à prática de uma atividade especial.
Mas o fato de ser necessário, de ser culturalmente útil Reina dentro do domínio do jogo uma ordem específica
e, até, de se tornar cultura diminuirá em alguma coisa o e absoluta. E aqui chegamos a sua outra característica,
caráter desinteressado do jogo? Não, porque a finalidade a mais positiva ainda: ele cria ordem e é ordem. Introduz na
que obedece é exterior aos interesses materiais imediatos e à confusão da vida e na imperfeição do mundo uma perfeição
satisfação individual das necessidades biológicas. Em sua temporária e limitada, exige uma ordem suprema e absoluta:
qualidade de atividade sagrada, o jogo naturalmente contri- a menor desobediência a esta "estraga o jogo", privando-o
bui para a prosperidade do grupo social, mas de outro modo e de seu caráter próprio e de todo e qualquer valor. Ê tal-
através de meios totalmente diferentes da aquisição de ele- vez devido a -esta afinidade profunda entre a ordem e o jogo
mentos de subsistência. que este, como assinalamos de passagem, parece estar em
tão larga medida ligado ao domínio da estética. Há nele
O jogo distingue-se da vida "comum" tanto pelo lugar
uma tendência para ser belo. Talvez este fator estético seja
quanto pela duraçã<;> que ocupa. :É esta a terceira de suas
idêntico aquele impulso de criar formas ordenadas que pe-
características principais: o isolamento, a limitação. :E: "jo- netra o jogo em todos os seus aspectos. As palavras que
gado até ao fim" dentro de certos limites de tempo e de empregamos para designar seus elementos pertencem quase
espaço. Possui um caminho e um sentido próprios. todas à estética. São as mesmas palavras com as quais
O jogo inicia-se e, em determinado momento, "aca- procuramos descrever os efeitos da beleza: tensão, equilí-.
bou". Joga-se até que se chegue a um certo fim. Enquanto brio, compensação, contraste, variação, solução, união e de-
está decorrendo tudo é movimento, mudança, alternância, sunião. O jogo lança sobre nós um feitiço: é "fascinante",
sucessão, associação, separação. E há, diretamente ligada à "cativante". Está cheio das duas qualidades mais nobres que
sua limitação no tempo, uma outra característica interessante somos capazes de ver nas coisas: o ritmo e a harmonia .
do jogo, a de se fixar imediatamente como fenômeno cultural. O elemento de tensão, a que acabamos de nos referi!,
Mesmo depois de o jogo ter chegado ao fim, ele permanece desempenha no jogo um papel especialmente importante.
14 HOMO UJDENS NATUREZA E SIGNIFICADO 00 Joc;c, 1 ·,

Tensão significa incerteza, acaso. Há um esforço para levar A figura · do desmancha-prazeres desenha-se com ma is 11111
o jogo até ao desenlace, o jogador quer que alguma coisa dez nos jogos infantis. A pequena comunidade não pron 1, a
"vá" ou "saia", pretende "ganhar" à custa de seu próprio averiguar se o desmancha-prazeres abandona o jogo por in-
esforço. Uma criança estendendo a mão para um brinquedo, capacidade ou por imposição alheia, ou melhor, não reco-
um gatinho brincando com um novelo, uma garotinha jo- nhece sua incapacidade e acusa-o de falta de audácia. Para
gando bola, todos eles procuram conseguir alguma coisa düí- ela, o problema da obediência e da consciência é reduzido ao
cil, ganhar, acabar com uma tensão. O jogo é "tenso", do medo ao castigo. O desmancha-prazeres destrói o mundo
como se costuma dizer. :e este elemento de tensão e solução mágico, portanto, é um covarde e precisa ser expulso. Mesmo
que domina em todos os jogos solitários de destreza e apli- no universo da seriedade, os hipócritas e os batoteiros sempre
cação, como os quebra~abeças, as charadas, os jogos de ar- tiveram mais sorte do que os desmancha-prazeres: os após-
mar, as paciências, o tiro ao alvo, e quanto mais estiver tatas, os hereges, os reformadores, os profetas e os objetores
presente o elemento competitivo mais apaixonante se toma o de consciência.
jogo. Esta tensão chega ao extremo nos jogos de azar e nas
competições esportivas. Embora o jogo enquanto tal esteja Todavia, freqüentemente acontece que, por sua vez, os
para além do domínio do bem e do mal, o elemento de tensão desmancha-prazeres fundam uma nova comunidade, dotada
lhe confere um certo valor ético, na medida em que são de regras próprias. Os fora da lei, os revolucionários, os
postas à prova as qualidades do jogador: sua força e tena- membros das sociedades secretas, os hereges de todos os ti pos
cidade, sua habilidade e coragem e, igualmente, suas capa- têm tendências fortemente associativas, se não sociáveis, e
cidades espirituais, sua "lealdade". Porque, apesar de seu todas as suas ações são marcadas por um certo elemento
ardente desejo de ganhar, deve sempre obedecer às regras lúdico.
do jogo. As comunidades de jogadores geralmente tendem a tor-
Por sua vez, estas regras são um fator muito impor- nar-se permanentes, mesmo depois de acabado o jogo. 1::
tante para o conceito de jogo. Todo jogo tem suas regras. claro que nem todos os jogos de bola de gude, ou de bridge,
São estas que determinam aquilo qu~ "vale" dentro do mundo levam à fundação de um clube. Mas a sensação de estar
temporário por ele circunscrito. As regras de todos os jogos "separadamente juntos", numa situação excepcional, de par-
são absolutas e não permitem discussão. Uma vez, de tilhar algo importante, afastando-se do resto do mundo e
passagem, Paul Valéry exprimiu uma idéia das mais impor- recusando as normas habituais, conserva sua magia para
tantes: "No que diz respeito às regras de um jogo, nenhum além da duração de cada jogo. O clube pertence ao jogo
ceticismo é possível, pois o princípio no qual elas assentam tal como o chapéu pertence à cabeça. Seria demasiado sim-
é uma verdade apresentada como inabalável". E não há plista explicar todas as associações a que os antropólogos
dúvida de que a desobediência às regras implica a derrocada chamam "fratrias" ( como por exemplo os clãs, as irmandades
do mundo do jogo. O jogo acaba: O apito do árbitro quebra etc. ) apenas como sociedades lúdicas. Mas, mais de uma
o feitiço e a ·vida "real" recomeça. vez se verificou como é difícil estabelecer uma separação
nítida entre, de um lado, os agrupamentos sociais perma-
O jogador que desrespeita ou ignora as regras é um nentes ( sobretudo nas culturas arcaicas, com seus costumes
"desmancha-prazeres". Este, porém, difere do jogador de- extremamente importantes, solenes e sagrados) e, de outro,
sonesto, do batoteiro, já que o último finge jogar seriamente o domínio lúdico.
o jogo e aparenta reconhecer o círculo mágico. :e curioso
notar como os jogadores são muito mais indulgentes para com O caráter especial e excepcional do jogo é ilustrado de
o batoteiro do que com o desmancha-prazeres; o que se deve maneira flagrante pelo ar de mistério em que freqüentemente
se envolve. Desde a mais tenra infância, o encanto do jogo
ao fato de este último abalar o próprio mundo do jogo.
Retirando-se do jogo, denuo.cia o caráter relativo e frágil é reforçado por se faze r dele um segredo. Isto é, para nós,
desse mundo no qual, temporariamente, se havia encerrado e não para os outros. O que os outros fazem , "lá fora ", é
com os outros. Priva o jogo da ilusão - palavra cheia de coisa de momento não nos importa. Dentro do círculo do
sentido que significa literalmente "em jogo" (de inlusio, illu- jogo, as leis e costumes da vida quotidiana perdem validade.
dere ou inludere) . Torna-se, portanto, necessário expulsá- Somos d_iferentes e fazemos coisas diferentes. Esta supress ão
-lo, pois ele ameaça a existência da comunidade dos jogadores. temporária do mundo habitual é inteiramente manifesta no
l(l HOMO LUl>tNS NATUREZA E SIGNIFICADO DO JOGO 17

mundo infantil, mas não é menos evidente nos grandes jogos se tome uma luta para melhor representação de . alguma
ritu ais dos povos primitivos. Na grande festa de iniciação coisa.
em que os jovens são aceitos na comunidade dos homens. Representar significa mostrar, e isto pode consistir sim-
não são apenas os neófitos que ticarn isentos das leis e plesmente na exibição, perante um públ ico, de uma caracte-
regras da tribo ; há uma trégua geral de todas as querelas rística natural. O pavão e o peru limitam-se a mostrar às
e uma suspensão de todos us atos de vingança. Desta fêmeas o esplendor de sua plumagem, mas aqui o aspecto
suspensão tempor;1ria <la vida social normal, durante a época essencial é a exibição de um fenômeno invulgar destinado a
dos jogos sagrados, existem também numerosos ind ícios em provocar admiração. Se a ave acompanha essa exibição
civilizações mais evoluídas. Todas as saturnais e costumes com alguns passos de dança passamos a ter um espetáculo,
carnavalescos são exe mplos disso. A inda recentemente entre uma passagem da realidade vulgar para um plano mais ele-
nós, em época <le costumes locais mais rudes, privilégios <le vado. Nada sabemos daquilo que o animal sente durante
classe mais acentuados e uma políci<1 ma is tolerante, acei- esses atos, mas sabemos que as exibições das crianças ·mos-
tavam-se as orgias dos jovens de classe alta como .. estudan- tram, desde a mais tenra infância, um alto grau de imagi-
tadas ". Estas ainda subsistem nas universidades inglesas, sob nação. A criança representa alguma coisa diferente, ou mais
o nome de ragging, o qual o Oxford E ng/ish Dictionury de - bela, ou mais nobre, ou mais perigosa do que habitualmente
fine como w1 extensive display of noisy a11d di.1orderl_,, con- é. Finge ser um príncipe, um papai, uma bruxa malvada
cluct carrir:d out in defiance of authvrity and discipli11e \ ou um tigre. A criança fica literalmente "transportada" de
A capacidade de tornar-se outro e o mistério <lll jogo prazer, superando-se a si mesma a tal ponto que quase chega
manifestam-se de modo marcante no costume da mascarada . a acreditar que realmente é esta ou aquela coisa, sem con-
Aqui atinge n múximo a natureza "ex tra-ordinária"' do jogo. tudo perder inteiramente o sentido da "realidade habitual".
O indivíduo disfa rçado ou mascarado desempenha um papel Mais do que uma realidade falsa, sua representação é a reali-
como se fosse outra pessoa, ou melhor, é outra pessoa . Os zação de urna aparência: é "imaginação", no sentido original
terrores da infância. a alel!ria esfusiante, a fantasia mística do termo.
e os ritua is sagrado~ encontram-se inextricavelmcntc mistura- Se passarmos agora das brincadeiras infantis para as
dos nesse estranho mundo do disfarce e da máscara . representações sagradas das civilizações primitivas, veremos
que nestas se encontra "em jogo" um elemento espiritual
Numa tentativa de resumi r as características form.1is do
diferente, que é muito difícil de definir. A representação .sa-
jogo. poderíamos considerá-lo uma atividade livre. conscien- grada é mais do que a simples realização de uma aparência
temente tornada como "não-séria" e exterior à vida hahitual. é até mais do que uma realização simbólica: é uma realiza-
mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de manei - ção mística. Algo de invisível e inefável adquire nela uma
ra intensa e total. É uma atividade desligada de todo e forma bela, real e sagrada. Os participantes do ritual estão
qua lquer interesse materi al, com a qual não se pode obter
certos de que o ato concretiza e efetua uma certa beatificação,
qu alq uer lucro, praticada dentro de limites espaciais e tem-
faz surgir uma ordem de coisas mais elevada do que aquela
porais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras. em que habitualmente vivem. Mas tudo isto não impede
Promove a formação de grupos sociais com tendência a ro- que essa "realização pela representação" conserve, sob todos
dearem-se de segredo e a sublinharem sua di ferença cm os aspectos, as características formais do jogo. É executada
relação ao resto do mundo por meio de disfarces ou nu tras no interior de um espaço circunscrito sob a forma de festa,
meios semelhantes. isto é, dentro de -um espírito de alegria e liberdade. Em
A função do jogo, nas formas mais elevadas que aqui sua intenção é delimita.do um universo próprio <.:e valor
nos interessam, pode de maneira geral ser definida pelos dois temporário. Mas seus efeitos não cessam depois de acabado
as pectos fundamentais que nele encontramos: uma luta por / o jogo; seu esplendor continua sendo projetado sobre o
alguma coisa ou a representação de alguma coisa . Estas mundo de todos os dias, influência benéfica que garante à
duas funções podem também por vezes confundir-se, de tal segurança, a ordem e a prosperidade de todo o grupo até à
próxima época dos rituais sagrados.
modo que o jogo passe a "represéntar'' uma luta, ou , então,
·Em toda a · parte do mundo podem encontrar-se exem-
(5) Uma ímensa mani/cltação de comportam ento bar11lhe111U e c/e_,,,_,rdeir"o. plos disso. Segundo uma velha crença chinesa, a musica e a
1r 1 a da o ,·a/Jo num rspirirn .rfe de .t respeilo d autoridade e à d isciplina . (N . do T . l
18 HOMO UJDENS NATUREZA 1:: SIGNll'ICAOO 00 Jo,.,., i ''

dança têm a finalidade de manter o mundo em seu devido O culto é, portanto, um espetáculo, uma reprcsc111 ;11;;11,
curso e obrigar a natureza a proteger o homem. A prosperi- dramática, uma figuração imaginária de uma realidade tbc
dade de cada ano depende da fiel execução de competições jada. Na época das grandes festas, o grupo social cclch, ;,
sagradas na época das festas. Caso essas reuniões não se os acontecimentos principais da vida da natureza levando ;1
realizem, as colheitas não poderão amadurecer•. efeito representações sagradas, que representam a mudança
O ritual é um dromenon., isto é, uma coisa que é feita, das estações, o surgimento e o declínio dos astros, o cresc i-
uma ação. A matéria desta ação é um drama, isto é, uma mento e o amadurecimento das colheitas, a vida e a morte
vez mais, um ato, uma ação representada num palco. Esta dos homens e dos animais. Como escreve Leo Frobenius,
ação pode revestir a forma de um espetáculo ou de uma a humanidade "joga", representa a ordem da natureza tal
competição. O rito, ou "ato ritual", representa um aconte- como ela está impressa em sua consciência 10• Num passado
cimento cósmico, um evento dentro do processo natural. remoto, segundo Frobenius, os homens começaram por to-
Contudo, a palavra "representa" não exprime o sentido exato mar consciência dos fenômenos do mundo vegetal e animal
da ação, pelo menos na conotação mais vaga que atualmente só depois, adquirindo as idéias de tempo e espaço, dos meses
predomina; porque aqui "representação" é realmente identi- e das estações, do percurso do sol e da lua. Passaram de-
ficação, a repetição mística ou a reapresentação do aconteci- pois a representar esta grande ordem da existência em ce-
mento. O ritual produz um efeito que, mais do que figura- rimônias sagradas, nas quais e através das quais realizavam
tivamenJe mostrado, é realmente reproduzido na ação. Por- de novo, ou "recriavam", os acontecimentos representados,
tanto, a função do rito está longe de ser simplesmente imi- contribuindo assim para a preservação da ordem cósmica. E
tativa, leva a uma verdadeira participação no próprio ato há mais. As formas desse jogo litúrgico deram origem à
sagrado 7• Ê um fator helping the action out 8• ordem da própria comunidade, às instituições políticas pri-
mitivas. O rei é o sol, e seu reinado é a imagem do curso
Para a ciência da cultura, o problema não é determinar do sol. Durante toda sua vida o rei desempenha o papel do
como a psicologia concebe o processo que se exprime nestes sol, e no final sofre o mesmo destino que o sol: deve s.er
fenômenos. A psicologia poderá tentar arrumar a questão morto, de forma ritual, por seu próprio povo.
definindo o ritual como identificação compensadora, uma espé-
cie de substituto, "um ato represéntativo devido à impos- Podemos deixar de lado o problema de saber até que
sibilidade de levar a cabo uma ação real e intencional" 9 • ponto esta explicação do regicídio ritual e toda a concepção
O que é importante para a ciência da cultura é procurar com- em que ela assenta podem ser consideradas "demonstradas" .
preender o significado dessas figurações no espírito dos povos O problema que aqui nos interessa é o seguinte: que devemos
que as praticam e nelas crêem. pensar desta projeção concreta da i>rimitiva consciência da
natureza? Como devemos encarar um processo espiritual
Tocamos aqui no próprio âmago da religião comparadà: que se inicia com uma experiência inexpressa dos fenômenos
a natureza e a essência do ritual e do mistério. Todos os cósmicos e conduz a sua representação imaginária no jogo?
antigos sacrifícios rituais dos Vedas baseiam-se na idéia de
que a cerimônia - seja ela sacrifício, competição ou repre- Frobenius tem razão ao rejeitar a fácil explicação que
sentação, - representando um certo acontecimento cósmico se contenta com a noção de um "instinto de jogo" inato.
que se deseja, obriga os deuses a provocar sua realização Alega ele que o termo "instinto" é "uma invenção, uma
efetiva. Há, portanto, um jogo, no sentido pleno do termo. confissão de impotência perante o problema da realidade" JJ _
Deixaremos agora de lado os aspectos especificamente reli- Com idêntica clareza, e com mais razão ainda, rejeita, como
giosos, concentrando-nos na análise dos elementos lúdicos nos vestígio de uma maneira ultrapassada de pensar, a tendência
rituais primitivos. para explicar todo progresso cultural em termos de uma
(6) M. Granei: Fêtt!.s et Chansun,- un,•;t1.nne, de lcl Chine, Paris, 1914, pp . "finalidade especial", de um "porquê" ou um "por que
ISO, 292: Danses et Légende.r de la Chine ancienne , Paris. 1926, p . 351 e n .: .razão", como critério para julgar a capacidade criadora de
L~ c:ivilisarion chinoiJe. Paris, 1929, p. 231.
(1) A.s the Gr.eeks woul.d sa_v, rarhor melh~ctic rhan m{meric..·. Jane E. cultura de uma comunidade. Ponto de vista este que qua-
Harrison. Themis: A Srudy of tire Social OriginJ· o/ Greek Religio 11, Cambridice.
19 12. p . 125. oo, Lco Fr-obcnius, Kulturgesclaichte A./rikas. Pro(egoml!nu z.u einer hlsto-
(8) R . R. Mal"~U, Tlu Thre shu tJ ui Religion. Londres , 1912, P, 48. risch,n G,staltkhr,, Phaidon Vcrlag, 1933; Schicksalskund, im Sin, d,s Kul-
(9) Buytendijk , H~r Spel ,an Mrn n·/r rn Dif'r ai., opt'nhurin.i.: ,·011 /,.,. ,.,, ,._ turwrrdens. Leiprl~ 1932.
,lrifun. Amsterdã . 1932, pp. 70- 71. ( 11) Kulturg,schicht<, l'I'- 23, 122 .
~ () HOMO LUDENS
NATURF.ZA E SIGNIFICADO llU JO(.(J .' 1

lifica como "a pior forma de tirania da causalidade" e como não difere de maneira. essencial das formas superiorc~ "" '
·•utilitarismo antiquado" 12 • jogos infantis ou animais, e dificilmente poderia afirm.ir -w
A concepção deste processo espiritual defendida por que estas duas últimas formas tenham sua origem numc1 lrn •
Frobenius é mais ou menos a seguinte: a experiência, ainda tativa de expressão de qualquer emoção cósmica. Os jogo~
inexpressa da natureza e da vida, manifesta-se no homem pri- infantis possuem a qualidade lúdica• em sua própria essência ,
mitivo sob a forma de "arrebatamento" 13 • "A capacidade e na forma mais pura dessa qualidade.
criadora, tanto nos povos quanto nas crianças ou em qualquer Seria talvez possível descrever o processo que conduz.
indivíduo criador, deriva desse estado de arrebatamento. "Os do "arrebatamento" pela natureza até à realização do ritual
homens são arrebatados pela revelação do destino ." "A em termos ligeiramente diferentes dos de Frobenius, sem pre-
realidade do ritmo natural da gênese e da extinção arrebata tender oferecer a explicação de uma realidade inteiramente
sua consciência e este fato leva-o a representar sua emoção impenetrável, mas procurando apenas dar conta de uma si-
em um ato, inevitável e como que reflexo" 14• Assim, se- tuação de fato. Diríamos, entâ0, que, na sociedade primi-
gundo ele, trata-se aqui de um processo espiritual de trans- tiva, verifica-se a presença do jogo, tal como nas crianças
formação que é absolutamente necessário. A emoção, o ar- e nos animais, e que, desde a origem, nele se verificam todas
rebatamento perante os fenômenos da vida e da natureza é as características lúdicas: ordem, tensão, movimento, mudan-
condensado pela ação reflexa e elevado à expressão poética ça, solenidade, ritmo, entusiasmo. Só em fase mais tardia d;;.
e à arte. e. esta a maneira mais aproximada para dar conta sociedade o jogo se encontra associado à expressão de algu-
do processo de imaginação criadora, mas está longe de poder ma coisa, nomeadamente aquilo a que podemos chamar "vi-
ser considerada uma verdadeira explicação. Continua tão da'' ou "natureza". O que era jogo desprovido de expressão
obscuro como antes o caminho que leva da percepção estética verbal adquire agora uma forma poética. Na forma e na
ou mística, ou pelo menos metalógica, da ordem cósmica até função do jogo, que em si mesmo é uma entidade independente
aos rituais sagrados. desprovida de sentido e de racionalidade, a consciência que
O grande estudioso da cultura emprega freqüentemente o homem tem de estar integrado numa ordem cósmica en-
o termo jogo, sem contudo definir com exatidão qual o sen- contra · sua expressão primeira, mais alta e mais sagrada. Pou-
tido que lhe atribui. Parece até por vezes aceitar subreptl- co a pouco, o jogo vai adquirindo a significação de ato sa-
ciamente aquilo mesmo que tão energicamente repudia e que, grado. O culto vem-se juntar ao jogo; foi este, contudo, o
de maneira alguma, corresponde à característica essencial do fato inicial.
jogo: o conceito de finalidade. Porque na descrição propo~ta Encontramo-nos aqui em regiões difíceis de penetrar.
por Frobenius, o jogo serve explicitamente para represen- tanto P,ela psicologia quanto pela filosofia . São questões que
tar 15 um acontecimento cósmico, de certo modo tornando-o tocanf no que há de mais profundo em nossa consciência.
presente. Há um elemento quase racionalista que irresisti- O culto é a forma mais altá e mais sagrada da seriedade.
velmente se impõe. Afinal de contas, o jogo e a represen- Como pode ele, apesar disso, ser jogo? Começamos por
tação têm para Frobenius sua razão de ser na expressão de dizer que todo jogo, tanto das crianças como dos adultos,
qualquer coisa de diferente, que é o "arrebatamento" por pode efetuar-se dentro do mais completo espírito de serie-
um acontecimento cósmico. Mas o próprio fato de a drama- dade. Mas irá isto a ponto de implicar que o jogo continua
tização ser representada parece ter para ele importância se- sempre ligado à emoção sagrada do ato sacramental? Quanto
cundária. Pelo menos teoricamente, a emoção poderia ser a isto, nossas conclusões são de certa maneira obstruídas pela
transmitida de maneira diferente. De nosso ponto de vista, rigidez de nossas idéias habituais. Estamos habituados a
pelo contrário, o. que é importante é o próprio jogo. O ritual considerar o jogo e a seriedade como constituindo uma antí-
( 12) lbld ., p. 21. tese absoluta. Contudo, parece que isto não . permite chegar
( 13J lbid., p. 122 . A Ergrl/l•nh•lr (arrcbawncnlo) como momcnl<> dos
jo~os infantis, p . 147 ; veJa•se o termo de Buytendijk, tomado de Erwin Strauss. ao nó do problema.
que ~linifica "disp0sição patética" ou •4 estado de: comoção·•. comn fundamento
dos Jo~o• lnfanlls. Obra citada, p. 20. Prestemos um momento de atenção aos seguintes as •
(14) Schlck,~lskundt. p. 142. pe.ctos. A criança joga e brinca dentro da mais perfeita
( IS J O termo alemão 3pielen significa ao mesmo tempo Jogar e rri,rtsentar.
1anto no sentido de figurar como no da rcpre~entação teatral (tal comt' em
seriedade, que a justo título podemos considerar sagrada.
intr,lê~ u, pia _,. e: n francê~ }mttr) . (N . do T . ) Mas sabe perfeitamente que o que está fazendo é um jogo.
22 HOMO LUDEN~ NATUR EZA E S10NIFl<,;ADO DO JOGO .' \

Também o esportista joga com o mais fervoroso entusiasmo, A identificação platônica entre o jogo e o sagrado 11,111
ao mesmo tempo que sabe estar jogando. O mesmo verifi- desqualifica este último, reduzindo-o ao J'bgo, mas, pelo c.;11 11 -
camos no ator, que, quando está no palco, deixa-se absorver irário, equivale a exaltar o primeiro, elevando-o às mais ,ilt :1,
inteiramente pelo "jogo" da representação teatral, ao mesmo regiões do espírito. Dissemos no início que o jogo é an1erior
tempo que tem consciência da natureza desta. O mesmo à cultura ; e, em certo sentido, é também supl!rior,
é válido para o vlolinista, que se eleva a um mundo ~uperior ou pelo menos autônomo em relação a ela. Podemos situar-
ao de todos os dias, sem perder a consciência do caráter -nos, no jogo, abaixo do nível da seriedade, como faz a
lúdico de sua atividade. Portanto, a qualidade lúdica pode criança; mas podemos também situar-nos acima desse nível ,
ser própria das ações mais elevadas. Mas permitirá isto quando atingimos as regiões do belo e do sagrado.
que prolonguemos a série de maneira a incluir o culto, afir- Adotando este ponto de vista, podemos agora definir de
mando ser também meramente lúdica a atividade do sacer- maneira mais rigorosa as relações entre o ritual e o jogo. A
dote que executa os rituais do sacrifício? A primeira vista extrema semelhança das duas formas não nos deixa mais
isto parece absurdo, pois, aceitá-lo para uma religião nos perplexos, e nossa atenção continua presa ao problema de
obrigaria a aceitá-lo para todas. Assim, nossa:; idéias de saber até que ponto todos os atos de culto são abrangidos
culto, magia, liturgia, sacramento e mistério seriam tôdas pela categoria do jogo.
abrangidas pelo conceito de jogo. Ora, quando lidamos com Verificamos que uma das características mais importan-
abstrações devemos sempre evitar o exagero de sua impor- tes do jogo é sua separação espacial em re.lação à vida quo-
tância, e estender demasiado o conceito de jogo não levaria tidiana. f:-]he reservado, quer material ou idealmente,
a mais do que a um mero jogo de palavras. Mas, levando um espaço fechado, isolado .do ambiente quotidiano, e é
em conta todos os aspectos do problema, não creio que seja dentro desse espaço que o jogo se processa e que suas regras
um erro definirmos o ritual em termos lúdicos. O ato de têm validade. Ora, a delimitação de um lugar sagrado é
culto possui todas as características formais e essenciais do também a característica primordial de todo ato de culto.
jogo, que anteriormente enumeramos, sobretudo na medida Esta exigência de isolamento para o ritual, incluindo a magia
em que transfere os participantes para um mundo diferente. e a vida jurídica, tem um alcance superior . ao meramente
Esta identidade do ritual e do j<,>go era reconhecida sem espacial e temporal. Quase todos os rituais de consagração e
reservas por Platão, que não hesitava em incluir o sagrado iniciação implicam um certo isolamento artifical tanto dos
na categoria de jogo. "E preciso tratar com seriedade aqui- ministros como dos neófitos. Sempre que se trata de profe-
lo que é sério", diz ele 16• "Só Deus é digno da suprema rir um voto, de ser recebido numa Ordem ou numa confraria ,
seriedade, e o homem não passa de um joguete de Deus, e de fazer um juramento ou de entrar para uma sociedade
é esse o melhor aspecto de sua natureza. Portanto, todo secreta, de uma maneira ou de outra há sempre essa delimi-
homem e mulher devem viver a vida de acordo com essa tação de um l ugar do jogo. O mágico, o áugure e o sacri-
natureza, jogando os jogos mais nobres, contrariando suas ficador começam sempre por circunscrever seu espaço sagra-
inclinações atuais . . . Pois eles consideram a guerra uma coisa do. O sacramento e o mistério implicam sem pre um lugar
séria, embora não haja na guerra jogo ou cultura dignos santificado. ·
desse nome 17, justamente as coisas que nós consideramos
mais sérias. Portanto, todos de.vem esforçar-se ao máximo De um ponto de vista formal, não existe diferença al-
guma entre a delimitação de um espaço para fins sagrado<.:
por viver em paz. Qual é, então, a maneira mais certa de
viver? A vida deve ser vivida como jogo, jogando certos e a mesma operação para fins de simples jogo. A pista de
corridas, o campo de tênis, o tabuleiro de xadrez ou o ter-
jogos, fazendo sacrifícios, cantando e dançando, e assim o
reno da amarelinha não se distinguem, formalmente, do tem-
homem poderá conquistar o favor dos deuses e defender-se
plo ou do círculo mágico. A extrema semelhança que se verifi-
de seus munigos, triunfando no combate 18 ." ca entre os rituais dos sacrifícios de todo o mundo mostra que
(16) úú, VII, 803 CD. esses costumes devem ter suas raízes em alguma característica
<17) ou-r cw uc&Gt . . . M' citli ,ca.1.6dix • •• OLl;ió>-.oyo •
( li) Cf. úú, VII, 796 B, onde Platlo fala daa danças sasradas dos curei,., t ./lui·t f•, pp. 56-70 \Ecc lesia Oran,, llerausK, voa Dr. ll~cfo ns Herwe~cn , 1.
Freibure 1. 8 . 1922) . Sem faz.cr rdcr!nc:lct K Placão, aproxima o mn :s f,0$'1iÍVcl
oomo -rwv X"'-lpT}Ttl>V ivcmÀ.14 1Ül\yvt4• Aa lnUmu relações cxlstcnlcs cn1rc das idéia~ deste acima citatlas. At ribui à lilurgi.l ~rande r,í'1 r.\ Cn1 de carnctcri: ,
o ió,w e CtS nú~étiol lll&l'ad;olo aio Lratadu ele maneira c:Xtremamenle !'Up:stha comumcnte. acchos como p-róprios <.lo jo go. T .11.,hém a lhur):i.\ ~. cm Ultiinn
por Rnm::no Gu1rd1nl n" qpflúÍO DI• Llturfl• al, Sp/,1 de seu Vo"' Grbt ,/,. nn á li ~~ . ~ ·,.,·ldn, abrr do, ·h ,\/rrm 1nfl sem fl rJAlid t1\h:. t.· conlmlo rk:1 de sc mlt.lo.
.' •I HOMO LUOENS NA'IUJU!ZA E SIGNIFICADO DO JOGO 2:'i

111ml;1111enlal e essencial do espírito humano. .E: costume re- Quajs são, então, a atitude e o ambiente predominantes
duzir esta analogia geral das formas de cultura a qualquer nas celebrações sagradas? A palavra celebrar quase diz tudo :
l'. ausa "racional" ou "lógica", explicando a necessidade de iso- o ato sagrado é celebrado, isto é, serve de pretexto para uma
lamento e separação pela ânsia de proteger os indivíduos festa. A caminho dos santuários, o povo prepara-se para
t:onsagrados de influências maléficas, pois eles, em seu estado urna manifestação de alegria coletiva. As consagrações, os
de consagração, são particularmente vulneráveis às práticas sacrüícios, as danças e compt~tições sagradas, as representa-
dos espíritos malignos, além de constitu.írem eles mesmos um ções, os mistérios, tudo isto vai constituir parte integrante de
perigo para os que os rodeiam. .1:. uma explicação que coloca uma festa. Pode acontecer que os ritos sejam sangrentos,
na origem do processo cultural em causa uma reflexão de que as provas a que é submetido o iniciado sejam cruéis,
ordem racional e uma intenção utilitária, precisamente aquilo que as máscaras sejam atemorizantes, mas tudo isso não
que Frobenius recomendava evitar. Mesmo que não volte- impede que o ambiente dominante seja de festividade, impli-
mos aqui a cair na antiquada teoria da invenção da religião cando a interrupção da vida quotidiana. A festa é acompa-
pela classe. sacerdotal, continuamos, mesmo assim, a introdu- nhada, em toda sua duração, por banquetes, festins e toda
zir um elemento racionalista que deveria ser evitado. Se, por . a espécie de extravagâncias. Tanto nas festividades da Gré-
outro lado, aceitarmos a identidade essencial e original do cia antiga como nas das religiões da Africa atual, seria difi-
jogo e do ritual, limitamo-nos a reconhecer o lugar santifi- cil traçar um limite preciso entre o ambiente da festa em
cado como um campo de jogo, sem chegar a colocar a ilusó- geral e a santa emoção suscitada pelo mistério central.
ria questão do "por que e para que•·. Quase ao mesmo tempo que a primeira edição deste
Mesmo estabelecida a identidade formal do ritual e do livro, o sábio húngaro Karl Kerényi publicou um estudo sobre
. jogo, continua sendo necessário saber se esta semelhança vai a natureza da festa cuja ligação com nosso tema é das mais
mais longe que o aspecto puramente formal. f: surpreen- estreitas 19• Segundo Kerényi, também as festas possuem
dente que a antropologia e a religião comparada tenham pres- aquele caráter de independência primeira e absoluta que atri-
tado tão pouca atenção ao problema de saber até que ponto buímos ao jogo. "Entre as realidades psíquicas", diz ele,
as práticas rituais, desenrolando-se dentro do quadro formal "a festa é uma entidade autôI1oma, impossível de se assimi-
do jogo, são marcadas também pela attiude e pela atmosfera lar a qualquer outra coisa que exista no mundo" 20 • Tal como
do jogo. Mesmo Frobenius, que 'eu saiba, não colocou este nós em relação ao conceito de jogo, também Kerényi con-
problema. sidera que a festa foi tratada de maneira insuficiente pelos
Escusado seria dizer que a atitude espiritual de um estudiosos da cultura. "O fenômeno da festa parece ter sido
grupo social, ao efetuar e experimentar seus ritos sagrados, inteiramente ignorado pelos etnólogos 21 .'' O fato real da
é da mais extr-ema e mais santa gravidade. Mas insistamos festa é ignorado, "como se não existisse para a ciência" 22•
uma vez mais: o jogo autêntico e espontâneo também pode ser Exatamente da m~ma maneira que o jogo, poderíamos nós
profundamente sério. O jogador pode entregar-se de corpo acrescentar.
e alma ao jogo, e. a consciência de tratar-se "apenas" de um Existem entre a festa e o jogo, naturalmente, as mais
jogo pode passar para segundo .plano. A alegria -que está estreitas relações. Ambos imp,licam uma eliminação da vida
indissoluvelmente ligada ao jogo pode transformar-se, não quotidiana. Em ambos predominam a alegria, embora não
necessariamente, pois também a festa pode ser séria. Ambos
só em tensão, mas também em arrebatamento. A frivoli- são limitados no tempo e no espaço. Em ambos encontramos
dade e o êxtase são os dois pólos que limitam o âmbito do uma combinação de regras estritas com a mais autêntica li-
jogo. berdade. Em resumo, a festa e o jogo têm em comuns suas
O jogo tem, por natureza, um ambiente instável. A características principais. O modo mais íntimo de união de
qualquer momento é possível à "vida quotidiana" reafirmar ambos parece poder encontrar-se na dança.. Segundo Keré-
seus direitos, seja devido a um impacto exterior, que venha nyi, os índios Cora; da costa oriental . do México, chamam
interromper o jogo, ou devido a uma quebra das regras, ou (19) Jlo,n Weu11 hs Fwes. Paideuma, Mlttellunaen z:ur J(ulturkunde. 1,
então do interior, devido ao afrouxamento do espírito do Heft 2 (dezembro de 1938), pp. 5~74.
(20) Loc. clt., p . 63.
jogo, a uma desilusão, um desencanto. (21) ld.• p . 65.
(22) ld., p . 63.
/, HOMO LUUl:.NS NATUREZA E SIONIFICADO DO Jooo 27

., ,ua, kstas religiosas realiwdas por ocasiao da trituração sabem exatamente quem se esconde por trás desta ou daquela
,· da torrefação do milho o ''jogo" de seu deus supremo 23 . máscara. Apesar disso, quando uma máscara se aproxima
As idéias de Kerényi sobre a festa como conceito cul - em atitude ameaçadora apoderam-se delas uma extrema agi-
tural autônomo consolidam e ampliam as idéias que servem tação e terror, e fogem gritando para todas as direções.
dt: base a este livro. Não se pense, todavia, que o estabele- Segundo Jensen, estas manifestações de terror são, em parte,
.:imcnto de uma estreita relação entre o espírito do jogo e o inteiramente autênticas e espontâneas, e, apenas em JJarte,
111ual possa servir para explicar tudo. O jogo autêntico pos- um papel imposto pela tradição. É assim que "é costume
, ui. além de suas características formais e de seu ambiente fazer". Em resumo, as mulheres desempenhàm o papel do
de alegria, pelo menos um outro traço dos mais fundamentais , coro da peça, e sabem que não podem comportar-se como
a saber a consciência, mesmo que seja latente, de estar "desma\lcha-prazeres" 28 •
··apenas fazendo de conta". Permanece de pé a questão de É impossível determinar de maneria rigorosa qual é o
saber até que ponto essa consciência é compativel com os limite mínimo a partir do qual a gravidade religiosa passa a
atos rituais efetuados dentro de um espírito de devoção. ser simples divertimento (fun). Entre nós, um pai que · seja
Se nos limitarmos aos ritos sagrados das culturas primi- um tanto ou quanto pueril poderá ficar seriamente zangado
tivas, não será impossível determinar o grau de seriedade com se seus filhos o surpreenderem no exato momento em que
que são efetuados. Tanto quanto me consta, os etnólogos estiver preparando os presentes de Natal. Na Colômbia Bri-
e antropólogos concordam todos com a idéia de que o estado tânica, um pai Kwakiutl matou a filha por esta o ter sur-
de espírito que preside às festas religiosas dos povos selva- preendido no momento em que talhava os objetos para uma
gens não é de ilusão total. Existe uma consciência subja- cerimônia tribal 29 • A natureza instável do sentimento reli-
cente de que as coisas " não são reais". Podemos encontrar gioso entre os negros Loango é descrita por Pechuel-Loesche
uma viva descrição desta atitude no livro de Ad. E. Jensen em termos muito semelhantes aos de Jensen. A crença desses
sobre as cerimônias de circuncisão e puberdade nas socie- selvagens nos espetáculos e nas cerimônias sagradas é uma
dades primitivas 2'. Os indivíduos parecem não sentir terror epécie de semicrença, sempre acompanhada por uma atitude
algum t;m relação aos espíritos que circulam por toda a parte de troça e de indiferença. O essencial, conclui esse autor,
no decorrer da [esta e aparecem perante os olhos de todos reside no ambiente 30• No capítulo intitulado Primitive Cre-
no ponto culminante desta. Não é de se admirar, pois são dulity, de seu livro The Threshold of Religian, R. R. Marette
sempre os mesmos, os homens encarregados da direção do expõe a idéia de que em todas as religiões primitivas se en-
conjunto das cerimônias; foram ele~ mesmos que confeccio- contra um certo elemento de "faz de conta" (make-believe).
naram as máscaras que usam e que, depois de tudo terminado, Tanto o feiticeiro como o enfeitiçado são ao mesmo tempo
ocultam-se dos olhos das mulheres. Sãó eles que emitem os conscientes e iludidos. Mas um deles escolhe o papel do
ruídos que anunciam o aparecimento dos espíritos, que de- iludido 31 • "O selvagem é um bom ator, capaz de deixar-se
senham as pegadas destes na areia, que tocam as flautas absorver inteiramente por seu papel, tal como a criança
que r'e presentam as vozes dos antepassados, que agitarn os quando brinca; e, também tal como a criança, é um bom
ruidosos tamborins. Em resumo, conclui, Jensen, sua situação espectador, capaz de ficar mortalmente assustado com o ru-
assemelha-se em tudo à dos pais que brincam de Papai Noel gido de uma coisa que sabe perfeitamente não ser um ver-
com seus filhos : conhecem a máscara, mas escondem-na de- dadeiro leão 32 ." O indígena, diz Malinowski, sente e teme
les 25 • Os homens contam às mulheres estórias fictícias acer- sua crença, mais do que a formula de maneira clara para si
ca do que se passa nos bosques sagrados 26 • A atitude dos mesmo 33 : Emprega certos termos e expressões, que devemos
neófitos oscila entre o êxtase, a loucura fingida, o frêmito de recolher como documentos da crença, tais como são, sem
horror e a afetação dos garotos 27 • Além disso, nem as mu- procurar integrá-los numa teoria estruturada. O comporta-
i heres, em última análise, são inteiramente iludidas. Elas
c2s, u ., p . 150 .
123) ld ., p. 60, ••~undo K, Th. Preuss. VI, Najarlt-Exp,d/tlun, 1, 191 2, (29) F. Boas, The Social Or11an i.,·atlon and 1ht Se,:rtt Socitties oi 1h~
ll - !06 e sc~uin tcs. Kwaklut/ lmJian,, Washington, 1897, p , 435.
( 24 ) /Jt: .n:h11t'idung und Rei/ezere mtm len bel Nawn 1ólkern~ Snucgart , 1933 . (30) Vol~ik11nde von loanKO, S1u1t1prt , IS"7, p, 34S,
(2S 1 1,1 ., p . 15 1. (31) /d ,, pp , 41-44 ,
1261 /d ., 11, 156. (32 l /d ,, p. 4S ,
27 , ltl . , r-. l ~R. (33) Th, ArN0na11,., o( 1/i, W,sr,rn Paclfll', London, 1922, p , 239.
28 HOMO Luu~.NS
NA~ E SIGNIFICADO DO JOGO 2')

menLo dos indivíduos aos quais a sociedade primitiva atribui que o processo ·mental do selvagem é "algo de inteiramente
poderes sobrenaturais pode freqüentemente ser definido como diferente" do da criança, Jensen está se referindo, de um
um playing up to the role (manter-se fiel ao papel) 34• lado, aos originadores do culto, e, de outro, à criança de hoje.
Apesar desta consciência parcial do caráter fictício das Mas nada sabemos desses originadores. Tudo aquilo que se
coisas na magia e nos fenômenos sobrenaturais em geral, os nos oferece como objeto de estudo é uma comunidade reli-
mesmos observadores insistem que daí não deve concluir-se giosa que recebe as imagens de seu culto sob a forma de
que todo o sistema de crenças e práticas seja apenas uma um material tradicional tão "acabado" como acontece no
fraude inventada por um grupo de "incrédulos", tendo em caso de criança, e que reage a essas imagens de maneira
vista dominar os "crédulos". f: certo que esta interpretação semelhante. Em segundo lugar, e mesmo que desprezemos
não só é defendida por muitos viajantes, mas aparece até nas este primeiro aspecto, continua inteiramente fora do alcance
tradições dos próprios indígenas, mas, mesmo assim, não de nossa observação o processo de "interpretação" do meio
é possível que ela seja correta. "A origem de qualquer ato ambiente natural, assim co~o o de sua "captação" e "re-
religioso só pode assentar na credulidade de todos, e sua presentação" numa imagem ritual. Só através de. metáforas
manutenção espúria em defesa dos interesses de um grupo fantasiosas Frobenius e Jensen conseguem forçar a uma
só pode ser a fase final de uma longa evolução 35 • Em minha abordagem do problema. Sobre a função que opera no pro-
opinião, também a psicanálise tende a cair nesta antiquada cesso de construção de imagens, ou imaginação, o máximo
interpretação das cerimônias da circuncisão e da puberdade, que podemos afirmar é que se trata de uma função poética;
que Jensen com tanta razão rejeita 36 ." e a melhor maneira de defini-la será chamar-lhe função de
De tudo isto decorre claramente, pelo menos para mim, jogo ou função lúdica. ·
uma conseqüência: que é impossível perder de vista, por um Assim, o problema aparentemente simples de saber o
momento só que seja, o conceito de jogo, em tudo quanto que é na realidade o jogo nçs faz penetrar profundamente
diz respeito à vida religiosa dos povos primitivos. Somos no problema da natureza e origem dos conceitos religiosos.
forçados constantemente, para descrever numerosos fenôme- Como se sabe, esta é uma das idéias básicas mais imp<?rtan-
nos, a empregar a palavra "jogo". Mais ainda: a unidade tes para todo estudioso de religião comparada. Quando\ uma
e a indivisibilidade da crença e da incredulidade, a indisso- certa forma de religião aceita uma identidade sagrada entre
lúvel ligação entre a gravidade do sagrado e o "faz cie conta" duas coisas de natureza diferente, como par exemplo um ser
e o divertimento, são melhor compreendidas no interior do humano e um animal, não podemos definir corretamente esta
próprio conceito de jogo. Embora admita a semelhança entre relação como uma "ligação simbólica", no sentido em que a
o mundo da criança e o do selvagem, Jensen pretende estabe- entendemos. A identidade e unidade essencial de ambos é
lecer uma distinção de princípio entre a mentalidade de am- muito mais profunda do que a relação entre uma substância
bos. Quando colocada em presença da figura de Papai Noel, e sua imagem simbólica. :E: uma identidade mística. Um se
a criança, segundo Jensen, encontra-se perante um "con- tornou o outro. Em sua dança mágica, o selvagem é um can-
ceito acabado", no qual "se encontra imediatamente" graças guru. Devemos sempre ter o máximo cuidado com as defi-
a seu próprio talento e lucidez. Mas "a atitude criadora do ciências e as diferenças de nossos meios de expressão. Para
selvagem em relação às cerimônias aqui em questão é algo formularmos uma idéia mínima dos hábitos mentais do sel-
de inteiramente diferente. Ele não se encontra perante con- vagem. somos obrigados a traduzi-los em nossa terminologia.
ceitos acabados, e sim perante seu meio ambiente natural, Quer queiramos quer não, sempre transpomos as concepções
o qual exige uma interpretação; ele capta o misterioso de- religiosas do selvagem para o plano de exatidão rigorosamente
monismo desse meio ambiente e procura dar-lhe uma forma lógica d.e nosso tipo de pensamento. Exprimimos a relação
representativa" 37 • Reconhecemos aqui os pontos de vista de entre ele e o animal com o qual se identifica como sendo
Frobenius, que foi professor de Jensen. Há, contudo, duas uma "realidade" para ele, e um "jogo" para n6s. O selvagem
objeções que se impõem. Em primeiro lugar, quando afirma diz que se apoderou da "essência" do canguru, e n6s dizemos
(34) ld., p. 240.
que ele "brinca" de canguru. Mas o selvagem nada sabe das
(35) Jeosen , loc. c/1 ,. p . 152. distinções conceptuais entre "ser" e "jogo", nada sabe sobre
(36) ld., pp. 153, 173-7. "identidade", "imagem" ou "símbolo". Portanto, continua em
07 J ld.. p . 149 e ss.
aberto a questão de saber se a melhor maneira de apreender o
NATUkt:ZA t: S1GNll'ICAIJO DO JOGO li
li• HoMo Lu1>~-"''

turalmente . para os sacrifícios rituais dos Vedas, os 4u,11 ,


<·,1 auo de espírito do. selvagem no momento em que celebra contêm já, nos hinos do Rig-Veda, toda a sabedoria Jo,
,..: us rituais não será o recurso à noção primária e univer- Upanishads, para as profundamente místicas homologias ent r<·
, :tlmcnlc compreensível de "jogo". Em nossa concepção do deus, homem e animal na religião dos egípcios, para os
1o go, desaparece a distinção entre a crença e o "faz de conta". mistérios de Orfeu ou de Elêusis. Tanto quanto à formu
A noção de jogo associa-se naturalmente à de sagrado. Qual- como quanto à prática, todos estes estão intimamente ligados
,,ucr prelúdio de Bach, um verso de qualquer tragédia é às chamadas religiões primitivas, mesmo quanto aos porme-
prova disso. Decidindo considerar toda a esfera da chamada nores mais cruéis e bizarros. Mas o elevado grau de sabe-
i.:ultura primitiva como um domínio lúdico, abrimos caminho doria e de verdade que neles vemos, ou julgamos ver, nos
para uma compreensão mais direta e mais geral de sua natu- impede de a eles nos referirmos com aquele ar de superiori-
reza, de maneira mais eficaz do que se recorrêssemos a uma dade que, afinal de contas, era igualmente despropositado no
meticulosa análise psicológica ou sociológica. caso das culturas "'primitivas". Ê preciso determinar se esta
O jogo sagrado, pelo fato de ser indispensável ao bem- semelhança formal nos autoriza a aplicar a noção de jogo
-estar da comunidade e um germe de intuição cósmica e de à consciência do sagrado, à crença que essas formas supe-
<lesenvolvimento social, não deixa de ser um jogo que, como riores contêm. Se aceitarmos a definição platônica do jogo,
dizia Platão, se processa fora e acima das austeras necessida- nada haverá de incorreto ou irreverente em que o façamos.
des da vida quotidiana. Segundo a concepção de Platão, a religião é essencialmente
Ê nos domínios do jogo sagrado que a criança, o poeta constituída pelos jogos dedicados à divindade, os quais são
e o selvagem encontram um elemento comum. O homem mo- para os homens a mais elevada atividade possível. Seguir
derno. graças à sua sensibilidade estética, conseguiu aproxi- esta concepção não implica de maneira alguma que se aban-
mar-se desses domínios muito mais do que o homem "escla- done o mistério sagrado, ou que se deixe de considerar o;:ste
recido" do século XVIII. Pensamos aqui no encanto espe- a mais alta expressão possível daquilo que escapa às regras da
cial da máscara, como objeto artístico, para o espírito mo- lógica. Os atos de culto, pelo menos sob uma parte importan:
derno. Há hoje um esforço para sentir a essência da vida te de seus aspectos, serão sempre abrangidos pela categoria
primitiva. Esta forma de exotismo é por vezes acompanhada de jogo, mas esta aparente subordinação em nada implica o
de uma certa afetação, mas mesmo. assim é muito mais pro- não reconhecimento de seu caráter sagrado.
íunda de que a moda dos turcos, dos indianos e dos chineses
no século XVIII. O homem moderno tem uma aguda sen-
sibilidade para tudo quanto é longínquo e estranho. Nada
o ajuda melhor a compreender as sociedades primitivas do
que seu gosto pelas máscaras e disfarces. A etnologia de-
monstrou a imensa importância social deste fato, e por seu
lado todo indivíduo culto sente perante a máscara uma
.:moção estética imediata, composta de beleza, de temor e
de mistério. Mesmo para o adulto civilizado de hoje, a más-
cara conserva algo de seu poder misterioso, inclusive quando
a ela não está ligada emoção religiosa alguma. A visão de
uma figura mascarada, como pura experiência estética, nos
transporta para além da vida quotidiana, para um mundo
onde reina algo diferente da claridade do dia: o mundo do
selvagem, da criança e do poeta, o mundo do jogo.
Mesmo se pudermos legitimamente resumir nossa con-
cepção do significado dos ritos primitivos ·a um irredutível
conceito de jogo, continuará de pé uma questão embaraçosa.
Poderemos passar das formas religiosas inferiores para as
mais dP.vadas? Dos estranhos e bárbaros rituais dos indíge-
nas da África, da América e da Austrália o olhar passa na-

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