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Valeu Zumbi Valeu


Comemorações Nacionais do Dia da Consciência Negra - 20 de Novembro - História e Cultura
Afro-brasileira para a implementação da Lei 11.645/08

31/03/2009
O Racismo de Casa Grande e Senzala em Quadrinhos
O texto abaixo é uma importante iniciativa do Observatório Negro do Recife que reune
um grupo de ativistas contra o racismo.
CASA GRANDE E SENZALA EM QUADRINHOS: REPRODUZINDO E
NATURALIZANDO A VIOLÊNCIA DE GÊNERO E RAÇA NAS SALAS DE
AULA
No ano de 2005, foi republicada, pela Fundação Gilberto Freyre e Global Editora, a
obra intitulada “Casa Grande & Senzala em Quadrinhos”. Trata-se de uma versão
juvenil e facilitada, através de desenhos em quadrinhos, do conhecido livro de
Gilberto Freyre, tornado célebre por ufanar a identidade nacional como fruto da
mestiçagem entre brancos, negros e índios. O livro vem sendo distribuído nas escolas
públicas municipais do Recife, desde 2001, mediante convênio estabelecido entre a
Prefeitura do Recife e a Fundação Gilberto Freyre, e será ainda distribuído nas
escolas públicas estaduais, conforme anúncio do Governo de Pernambuco, que
investira R$ 100.000,00 na produção de 40 mil exemplares. A obra conta ainda com
o apoio do Ministério da Cultura, que em 2006 destinou R$ 300.000,00 à Fundação
Gilberto Freyre (Convênio SIAFI n° 588641).
Ao contrário da obra clássica, que pelo seu caráter acadêmico, presta-se à refutação,
o livro em quadrinhos se propõe a reproduzir uma visão distorcida e discriminatória
da História do Brasil, perpetuando uma interpretação centrada no olhar da Casa
Grande e invisibilizando a participação política, intelectual e econômica da
população negra e indígena pela própria versão desses sujeitos.
As imagens e frases reproduzem, de forma simplória e equivocada, o mito da
democracia racial, que, por meio de um processo de revisionismo, desconsidera a
opressão, tortura e exploração ocorridas na escravidão colonial, escamoteia e
naturaliza os processos de violência física e simbólica sobre crianças, mulheres e
homens negros e indígenas. Chegam ao extremo de dar explicações inacreditáveis às
práticas de tortura contra escravizados/as:
Alguns escravos tinha o ‘vício’ de comer terra. Para combater esse mal, usavam-se
máscaras de flandres. Ou, então, era o paciente suspenso do solo e preso a
um panacum de cipó. O isolamento durava vários dias, durante os quais o negro
ficava sujeito a um regime especial de alimentação (pág. 51).
a) Naturalização da opressão e violência contra as mulheres negras e indígenas.
Na obra contestada, o recurso à imagem potencializa exponencialmente os
efeitos danosos da argumentação que, em si mesma, pode ser considerada um libelo
racista e sexista: são imagens plasticamente perfeitas, atrativas, que corporificam
visualmente as idéias que o texto apenas sugere. Ora, a carga simbólica que trazem
os desenhos de mulheres negras e indígenas nuas ao lado de homens e mulheres
brancas vestidos, e que mostram crianças negras “montadas” por crianças brancas, e
outras imagens de igual teor, vem ao encontro de um imaginário nacional em que
mulheres negras e indígenas são desconsideradas em sua dignidade humana,
reforçando o caráter de objeto sexual e de despersonalização com que o processo de
formação nacional as tratou, justificando este imaginário.

Noutros vícios escorregava a meninice dos ioiôs. As primeiras vítimas eram os


moleques e animais domésticos; mais tarde é que vinha o grande atoleiro de carne: a
negra ou a mulata (pág. 48,)
A relação de poder estabelecida sobre mulheres indígenas, que se trata hoje
do reconhecimento histórico exigido pelos movimentos indígenas brasileiros, é
distorcida de tal modo a representar os corpos das índias ressaltando uma suposta
“sensualidade natural”, criando modelos idealizados das mesmas que, pela idéia
transcrita no texto, se submetiam como objetos de desejo sexual do colonizador. Da
mesma forma, as mulheres negras são descritas como seres de sexualidade ativa e
tão-somente objetos de prazer do homem português, considerado, por essa espécie de
opressão, mais “tolerante” que outras nacionalidades de colonizadores:

Facilitou a mistura das duas “raças” a preferência da mulher gentia pelo


homem branco: sonhava a nossa índia em ter filhos pertencentes a um
povo que considerava superior, pois, segundo as suas idéias, só tinha
valor o parentesco pelo lado paterno (pág. 16).

A imagem da mulher negra e indígena vem sendo veiculada, ao longo destes 506
anos de história, com base em um paradigma, que é o da inferioridade e
desconstituição de sua humanidade. Como desdobramento desse paradigma,
podemos elencar inúmeros prejuízos. A discriminação resultante da utilização destes
estereótipos está não somente na violência simbólica contra a mulher; há ainda que
se considerar os efeitos deste paradigma no que se refere à violência física e
psicológica, concretizada nos números do tráfico de seres humanos, da violência
sexual, doméstica e infra-familiar contra meninas e mulheres. Tais formas de
violência traduzem o sentido de dominação sobre o corpo feminino, um sentido que
surge cinicamente na publicidade em geral e nas novelas e se concretiza na crença da
superioridade masculina que resulta nos espancamentos, assédios e abusos sexuais,
representando o poder que se busca impor através da satisfação dos interesses,
desejos ou dos conflitos doentios dos algozes, sejam eles sexuais ou emocionais, mas
também dos cidadãos e cidadãs comuns que constroem suas identidades,
expectativas e desejos num dos únicos espaços em que têm acesso a outras
linguagens e expressões culturais além daquelas da sua comunidade, que é através da
mídia de massa. Repetidamente expostos a essas idéias, têm um potencial maior para
repetirem esses mesmos valores.
Da mesma forma, esse paradigma confirma a naturalização das desigualdades de
gênero que, articuladas às desigualdades raciais, se apresentam nas assimetrias
quanto aos direitos sociais, econômicos e culturais, das quais o segmento mais
vulnerabilizado pela fragilidade das instituições garantidoras do acesso à justiça é,
sem sombra de dúvidas, o segmento de mulheres negras.
b) Da Discriminação Racial, de Gênero e da Violação aos Direitos da Criança e
do Adolescente.
Com base na normativa internacional de direitos humanos, denunciamos a obra
em questão como uma VIOLAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS DA
POPULAÇÃO NEGRA E INDÍGENA, por ser discriminatória racialmente.
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra
a Mulher - "Convenção de Belém do Pará" (1994) – determina que se deve “entender
por violência contra a mulher qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que
cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no
âmbito público como no privado” (art. 1º); segue este entendimento a Lei nº
11.340/2006, a Lei Maria da Penha, que ainda dispõe:
(...)
Art. 2o. Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual,
renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais
inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades
para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento
moral, intelectual e social.
Art. 3o Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos
direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia,
ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à
dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.
§ 1o O poder público desenvolverá políticas que visem garantir os direitos humanos
das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de
resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão.
(...) (LEI MARIA DA PENHA).
Art. 8o A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a
mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais, tendo por
diretrizes:
(...)
III - o respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e sociais da
pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou
exacerbem a violência doméstica e familiar, de acordo com o estabelecido no inciso
III do art. 1o, no inciso IV do art. 3o e no inciso IV do art. 221 da Constituição
Federal;
O dano e a violência a que nos referimos, portanto, estão consumados quando
da publicação e veiculação da obra em que se manifestam estereótipos
discriminatórios sobre a mulher negra e indígena, inclusive porque:
(...)
O direito de toda mulher a uma vida livre de violência inclui, entre outros: 1. o
direito da mulher de ser livre de toda forma de discriminação, e 2. o direito da
mulher ser valorizada e educada livre de padrões estereotipados de comportamento e
práticas sociais e culturais baseados em conceitos de inferioridade de subordinação
(Art. 6º, CONVENÇÃO DE BELÉM DO PARÁ).
Tal violência vem sendo naturalizada e potencializada pela ação da Prefeitura da
Cidade do Recife e do Governo do Estado de Pernambuco, de adotar referida
publicação nas escolas públicas municipais e estaduais, em programas especialmente
dirigidos às crianças e adolescentes, perpetuando tais padrões e práticas sociais e
culturais de inferioridade e subordinação. Por esse comprometimento, é inaceitável
permitir-se que um livro com tal conteúdo discriminatório permaneça sendo
distribuído em escolas públicas, além de amplamente comercializado em livrarias.
Além do conteúdo discriminatório, vemos que as imagens de abuso e assédio sexual
às mulheres negras contidas no livro em quadrinhos – imagens travestidas de
relações sexuais consensuais –, apresenta-se como material impróprio às crianças e
adolescentes, violando o Estatuto da Criança e do Adolescente quanto às medidas de
Prevenção Especial:
Art. 78. As revistas e publicações contendo material impróprio ou inadequado a
crianças e adolescentes deverão ser comercializadas em embalagem lacrada, com a
advertência de seu conteúdo (ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE).
Sua veiculação, insistimos, é um desrespeito à História da população negra e
indígena, conseqüentemente, à História do Brasil, e resulta em danos morais
coletivos e difusos. Assim, conclamamos as mulheres de

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