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VIOLÊNCIA RACIAL E PROSTITUIÇÃO: UM DEBATE PARA ALÉM DO

GÊNERO
Alyne Isabelle Ferreira Nunes1

Resumo: O debate sobre a prostituição tem contemplado diversas abordagens e repensado inúmeras
problemáticas. Entre as abordagens o aspecto mais recorrente é a discussão de gênero, seja via
enfretamento às múltiplas violências sofridas por essas mulheres seja via compreensão das outras
faces da prostituição, por exemplo, a prostituição de luxo e os desdobramentos desse tipo de
mercado. É possível perceber nessas produções que apesar de se identificar uma preocupação em
tratar à realidade da prostituição a questão racial não é contemplada, sendo essa discussão
invisibilizada no que tange a análise desse mercado. Essa invisibilidade é fruto do nosso tipo
particular de racismo que insiste em pensar o mesmo como não estruturante das opressões
existentes. Compreender historicamente o lugar da prostituição no Brasil é aceitar que foram as
mulheres negras que estiveram ocupando esse espaço desde a época colonial até os dias atuais. As
mulheres negras estão expostas as opressões estruturantes da sociedade de maneira interseccional,
tais como, a de classe, raça e gênero que muitas vezes as forçam a escolhas menos privilegiadas de
sobrevivência, e a prostituição acaba por ser uma delas. Analisar a prostituição ignorando a questão
racial como um dos fatores determinantes de entrada e permanência dessas mulheres negras é
garantir a manutenção de um discurso que subsumi ou exclui o racismo como elemento central das
opressões que estruturam nossa sociedade.
Palavras-chave: Violência racial. Prostituição. Invisibilidade. Interseccionalidade.

O debate sobre o mercado do sexo, e suas variadas configurações, entre elas a prostituição, é
um dos campos que mais geram controvérsias. Sendo disputada discursivamente em diversos
espaços e por diferentes grupos sociais, especialmente, os movimentos feministas, a prostituição
acaba por ensejar um debate que foca, sobretudo, na leitura acerca dos corpos das mulheres e os
motivos que as levaram a entrada em tal ocupação2. Muito embora seja um fenômeno constituído
por diferentes gêneros, sexualidades e corpos, a prostituição permanece ainda, majoritariamente, um
espaço formado por mulheres (cis e trans)3. Dito isso, as questões de gênero e de classe acabam
sendo por excelência as categorias analíticas norteadoras das produções discursivas acerca desse
fenômeno.

1
Doutoranda em Sociologia (PPGS), UFPE, Recife, Brasil. Pesquisadora do NUPERR (Núcleo de Pesquisa em
Relações Raciais) Frantz Fanon.
2
No ano 2002 a prostituição foi incluída na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), que é o documento que
reconhece, nomeia e codifica as ocupações existentes no mercado brasileiro (MINISTÉRIO, 2008).
3
Cisgênero é o termo utilizado para se referir ao indivíduo que se identifica, em todos os aspectos, com o seu “gênero
de nascença”. Já os transgêneros são as pessoas que não se identificam com o seu sexo biológico, mas sim com um
gênero diferente daquele que lhe foi atribuído biologicamente.

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Essas produções buscam apreender o fenômeno da prostituição através da compreensão dos
processos subjetivos das mulheres, enquanto prostitutas, alcançando até o debate sobre a
regulamentação da profissão4. No Brasil, as produções acadêmicas começam a problematizar a
prostituição a partir da década de 1970. Os interesses dessas produções, que possuíam forte apelo
moral, giraram em torno dos processos de controlo e regulação da prostituição, questionando a
organização dos espaços urbanos frente a crescente demanda por tal atividade, se debruçaram
também sobre os aspectos decadentes e perversos que marcavam a identidade dessas mulheres,
buscando entender o porquê dessa escolha e questionavam acerca da responsabilidade do Estado, da
Igreja e da sociedade em relação as prostitutas.
Cabe destacar a relevância dos movimentos feministas para a reconfiguração desses debates.
Ao trazerem a reflexão sobre os papéis de gênero, sobre a questão da liberdade e da escolha, das
sexualidades, da mercantilização dos corpos e das questões sobre violência, o universo da
prostituição começou a ser analisado por diversas frentes analíticas. Temas como os limites
simbólicos do corpo e da prostituta, a representação social e a construção da cidadania, turismo
sexual e o contexto transnacional, os processos identitários, os dilemas da profissão, as relações de
poder no universo da prostituição, as performatividades dos gêneros, etc. são preocupações que
permeiam os debates5 mais recentes sobre a prostituição.
Embora seja possível reconhecer o avanço e a diversidade dos temas que tratam sobre a
prostituição é preciso, contudo, assumir que algumas questões permanecem negligenciadas. No
Brasil, ao pensarmos nas opressões que estruturam a sociedade não podemos desconsiderar a
intersecção entre as questões de raça, gênero e classe, e outros marcadores, que operam como
fortalecedores das desigualdades. Historicamente, desde o período colonial a condição de
subalternidade imposta à população negra reverbera até os dias atuais nos espaços que a mesma
ocupa. Da negação da humanidade aos estereótipos reforçados através dos meios de comunicação
em massa foi produzido um imaginário e uma variedade de insígnias acerca da população negra que
geram implicações subjetivas, físicas e materiais.

4
A lei aqui proposta se intitula “Gabriela Leite” em homenagem a profissional do sexo de mesmo nome, que era
militante de Direitos Humanos, mais especificamente dos direitos dos profissionais do sexo, desde o final dos anos 70
nos episódios ocorridos na região Boca do Lixo em São Paulo.
Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/PL
5
Para aprofundar o debate ver: Fonseca, 1996; Pasini, 2000; Piscitelli, 2005; Merchán Hamann e Guimarães, 2005;
Silva e Blachette, 2005; Silva, 2007; Ceccarelli, 2008; Diniz e Queiroz, 2008.

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No Brasil, a prostituição é um fenômeno que existe desde o período colonial. Inicialmente
foram as mulheres indígenas, que além de passar por abusos e estupros se viram submetidas à
prostituição pelos seus capturadores, em seguida esse espaço foi compartilhado com as mulheres
brancas vindas de Portugal que desfrutavam de outras condições e tratamento e, por último, sob
similares marcas de violência6 destinadas às mulheres indígenas, chegaram as mulheres negras
escravizadas. Com o início da escravidão negra, no Brasil, o cenário da prostituição foi
marcadamente alterado pelo fator racial, por meio da exploração dos seus senhores e das suas
senhoras era possível encontrar em sua constituição uma significativa quantidade de mulheres
negras. (CARMO, 2011, p.74). A condição da mulher negra enquanto cativa se desdobrou em uma
série de violências que perduram até os dias atuais. Equacionada ao seu corpo, a mulher negra teve
em sua sexualidade uma das principais demarcações da sua dimensão identitária.
Os estereótipos7 correspondentes às mulheres negras, e que são (re) produzidos através dos
meios de comunicação em massa, reforçam e legitimam uma série de violências contra essas
mulheres. Os meios de comunicação “imprimem sobre todas as nossas mentes as imagens negativas
da natureza feminina negra”, existindo, basicamente, dois perfis que determinam as mulheres
negras: a primeira imagem “são de objeto sexual, prostitutas, vacas” e a segunda imagem é a “gorda
e irritante figura maternal.” (hooks, 2014, p. 48). Esses estereótipos engessam a identidade das
mulheres negras em um discurso ambivalente que vai desde a negra lasciva, se jovem, até a mulher
dessexualizada, se mais velha. Ou como pontua Gonzáles ao destacar a dupla imagem da mulher
negra, que abarca desde a “‘mulata’, a doméstica e a mãe preta” (GONZALES, 1988, p.224). O
discurso que ora invisibiliza, ora hipersexualiza a mulher negra opera a partir da violência racial e
demarca como esses corpos devem ser tratados.

6
Davis (2016) sobre o estupro reflete “na verdade, era uma expressão ostensiva do domínio econômico do proprietário
e do controle do feitor sobre as mulheres negras na condição de trabalhadores.” (p.20) E complementa “Seria um erro
interpretar o padrão de estupros instituído durante a escravidão como uma expressão dos impulsos sexuais dos homens
brancos, reprimidos pelo espectro da feminilidade casta das mulheres brancas. Essa explicação seria muito simplista. O
estupro era uma arma de dominação, uma arma de repressão, cujo objetivo oculto era aniquilar o desejo das escravas em
resistir e, nesse processo, desmoralizar seus companheiros.” (p.36)
7
Segundo Hall o estereótipo é “Típico desse sistema racializado de representação foi a prática de reduzir a cultura do
povo Negro à Natureza, ou “naturalizando” a diferença. A lógica sobre a naturalização é simples. Se a diferença entre
negros e brancos são “culturais”, então eles estão abertos a modificação e mudança. Mas se elas são “naturais” – como
os donos de escravo acreditam – eles estão além da história, permanente e fixado. Naturalização é portanto uma
estratégia representacional designada a fixar a “diferença”, e assim prendê-lo para sempre. (HALL, 2003, p.245),

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Esses discursos fortalecem o processo de desumanização das mulheres negras, sendo
manifestado através da subalternização, ou como hooks destaca que são mulheres definidas como
“corpos sem mente”. (hooks, 1995, p. 469). De acordo com Gillian e Gillian “a objetificação sexual
das mulheres negras cria indivíduos destinados a serem ‘cozinhados’ e depois consumidos, em vez
de tratados como cidadãos” (GILLIAN E GILLIAN, 1995, p.529). Os estereótipos que objetificam
as mulheres se transformam em marcadores identitários que se apoiam tanto racismo, quanto no
sexismo para serem validados. Para hooks,
O sexismo e o racismo, atuando juntos, perpetuam uma iconografia de representação da
negra que imprime na consciência cultural coletiva a ideia de que ela está neste planeta
principalmente para servir aos outros. Desde a escravidão até hoje, o corpo da negra tem
sido visto pelos ocidentais como o símbolo quintessencial de uma presença feminina
“natural”, orgânica, mais próxima da natureza, animalística e primitiva. (hooks, 1995, p.
468).

Gonzáles (1988) pontua que será graças ao mito da democracia racial e, especificamente, no
carnaval que a representação da hipersexualidade da mulher negra ganhará destaque. Na figura da
“mulata” é reforçada a ideia que a mulher negra “é puro corpo, ou sexo, não ‘engendrado’
socialmente” (Corrêa, 1996, p. 40), o discurso racista se atualizará sob os signos da falsa
valorização dessas mulheres. Saffioti (1987) já denunciava o aspecto perverso desse discurso racista
que se transfigura sob a forma de um elogio, da exaltação da beleza da mulher “morena”
considerada “tipo exportação”, ou seja, a mulher que une em seu corpo o suposto “encontro das
raças” (CORRÊA, 1996, p. 47).
O impacto que essas representações causam nas trajetórias de vida das mulheres negras
merece ser investigado de maneira mais acurada. O discurso racista não se limita em apenas
classificar o que são as mulheres negras, ele alcança o processo subjetivo, interferindo,
principalmente, na maneira como essas mulheres se compreendem. Para hooks
Os esforços de disseminação contínua de desvalorização da natureza feminina negra
tornaram extremamente difícil e frequentemente impossível às mulheres negras
desenvolverem um autoconceito positivo. Porque somos diariamente bombardeadas por
imagens negativas. De facto, uma força opressiva foi este estereótipo negativo e a nossa
aceitação disso como uma papel viável e modelo sobre o qual podemos modelar as nossas
vida. (hooks, 2014, p. 62)

Questões como a baixa escolaridade, os constantes apelos ao corpo sob a forma falaciosa de
elogio, os índices de violência e até mesmo os eufemismos do cotidiano posicionam as mulheres

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negras como um grupo consumidor do discurso racista e sexista que as desqualificam enquanto
mulheres.
Os reflexos do racismo enquanto opressão estruturante marcam também as escolhas das
mulheres negras. Um dos aspectos que pode ser analisado sobre a influência dessas escolhas e a
forma como o racismo se configura é no fenômeno da prostituição. É importante destacar que as
produções acadêmicas incorrem no erro ao manter o debate sobre o fenômeno da prostituição,
principalmente no Brasil, a partir de discursos atravessados apenas pela leitura de gênero e/ou de
classe. Apesar da reconhecida importância e da pluralidade das abordagens produzidas sobre a
prostituição é preciso reconhecer também que o debate, no que tange ao recorte racial é inexistente
por ainda ser tratado como opressão tangencial, hooks destaca que as feministas, tanto acadêmica
como dos movimentos, “tendem a diminuir raça” e acrescenta que “elas fazem questão de
reconhecer que raça é importante e em seguida procede fornecendo uma análise em que raça não é
considerada.”.8 (hooks, 2000, p 144)
De acordo com Kempadoo é necessário e, principalmente, urgente examinar o fenômeno da
prostituição a partir de novas perspectivas. Um das questões que autora chama atenção é para a
lacuna das análises raciais nas produções.
A mulher de cor permanece de várias formas racializada como altamente sexual pela
natureza, e posicionada como “ideal” para o trabalho sexual. [...] Nossas percepções,
conhecimento, e compreensão do trabalho sexual têm sido amplamente obscurecidos ou
dominados pelas feministas brancas radicais, neomarxistas e feministas socialistas
ocidentais inspirando análises que tenham sido incapazes ou relutantes em lidar com as
complexidades da vida da mulher negra. (KEMPADOO, 2001, p. 40) (tradução livre) 9

Para uma compreensão mais ampla das distintas realidades alguns autores têm chamado a
atenção para a utilização um conceito emergente, a interseccionalidade. Tal conceito se constitui
uma ferramenta fundamental tanto para ativistas e teóricas feministas comprometidas com análises
das relações entre classe, gênero e raça, e outros marcadores, em distintos contextos (RODRIGUES,

2013). A interseccionalidade vem denunciar que a produção de uma teoria e prática


feminista não pode apenas contemplar as questões de gênero e de classe, lançar mão dos conceitos
como raça, religião, corpo, territorialidade, sexualidades, e outros marcadores, é coadunar com a

8
bell hooks (2000, p.144) “they tend to dismiss race or they make a point of acknowledging that race is important and
then proceed to offer na analysis in which race is not considered.”
9
Texto original: Women of color remains in various ways racialized as highly sexual by nature, and positioned as
“ideal” for sex work. [...] Our insights, knowledges, and understanding of sex work have been largely obscured or
dominated by White radical feminist, neo-marxist or Western socialist feminist inspired analyses that have been either
incapable or unwilling to address the complexities of the lives of women of color. (KEMPADOO, 2001, p. 40).

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postura de que essas outras opressões são de menor importância para o enfrentamento das
hierarquias existentes.
O conceito de interseccionalidade ao ajudar a compreender os processos e as
dinâmicas da desigualdade é útil como ferramenta analítica para identificar como se dão as
opressões e, consequentemente, como são produzidos os privilégios para uma parcela da sociedade.
A emergência desse conceito é destacada pelas feministas negras brasileiras em suas produções
acadêmicas que procuram compreender como o racismo, o sexismo e o classismo, e outros
marcadores, produzem formas variadas de opressão.
Dito isso, os movimentos feministas e as produções sobre o mercado do sexo precisa pautar
suas problematizações a partir de outras opressões, reconhecendo emergência do debate racial em
tais análises. Segundo Nunes (2015) as prostitutas negras enfrentam opressões interseccionais de
gênero, raça e classe, e outros marcadores, desconstruindo os discursos que partem da concepção do
empoderamento e da livre escolha defendida tanto por alguns movimentos feministas como algumas
produções acadêmicas. Tal análise se apoiou no conceito de escolha proposto por hooks (2000), não
obstante considere e reconheça que o sexismo seja um marcador opressivo extremamente violento
que atinge todas as mulheres, ao ser cruzada com o racismo, e outros marcadores, essa escolha, para
as mulheres negras passa a operar como ausência de escolhas. A autora justifica que a existência de
um escopo limitado de possibilidades não pode ser definida como escolha.
Destarte, o debate sobre a escolha, ou ausência dela, associado aos dados de exclusão
revelam que as mulheres negras e pobres, numa estrutura de opressão onde raça, gênero e classe, e
outros marcadores se interseccionam, são destituídas da possibilidade de reconhecimento positivo
da identidade10, no que tange a educação representam o maior número das retenções escolares11,
somam a maior parcela entre as desempregadas ou assalariadas sem carteira assinada12, são as mais
vulneráveis ao aborto de risco13, são as que mais sofrem com abandono e solidão, pois não são
consideradas um modelo para o “mercado de afetos”, mas para o “mercado do sexo” 14. A
articulação desses fatores caracteriza o que Carneiro (2011) e Nascimento (2013) classificam como
feminização da pobreza, marcando as possibilidades reais que existem para as mulheres negras e
pobres.

10
Ver Araujo, 2000; Aguiar, 2007; Gomes, 2002, 2012; Pacheco, 2012.
11
Ver Rosemberg, 1999; Gomes, 2002a; Carneiro, 2011; Dias 2013; Lewis e Nascimento, 2013.
12
Ver Ipea, 2011; DIEESE, 2013.
13
Ver Diniz e Medeiros, 2012.
14
Ver hooks, 2006; Pacheco, 2015.

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Esses dados foram facilmente identificado na pesquisa desenvolvida por Nunes (2015), ao
revelar a trajetória de vida das prostitutas de rua no Recife, esta constituída, majoritariamente, por
mulheres negras e pobres. Segundo Nunes
Todos esses dados revelam, estruturalmente, que as possibilidades para as mulheres negras
e pobres são mais difíceis. A escolha pela prostituição, a partir desses recortes (de raça, de
gênero e de classe), não pode ser compreendida apenas pelo viés das necessidades
econômicas, é preciso reconhecer que outros fatores contribuem para tal escolha e pela
permanência das mesmas na prostituição. A inscrição do racismo nos corpos das mulheres
negras na condição de prostituta revela os espaços que elas devem e podem, naturalmente,
ocupar (NUNES, 2015, p. 12).

Para a mulher negra que se reconhece nos discursos dos meios de comunicação de massa por
meio dos estereótipos que “ultravalorizam” a sexualidade em detrimento de qualquer outro aspecto,
onde seu corpo é equacionado a uma ideia que a hiper-fetichiza e essas representações a
personificam como um sexo diferenciado unindo as dificuldades financeiras e as necessidades
emergenciais, entrar e permanecer na prostituição não pode ser compreendido apenas pelo debate da
livre escolha (NUNES, 2015).
A trajetória de vida das mulheres negras15 entrevistas por Nunes (2015) apresentaram
diversas traços em comum, muito embora não se conhecessem foi possível identificar que aspectos
da infância, da adolescência, do campo dos afetos, em relação ao abandono, sobre a entrada e
permanência na prostituição se reproduziam nos relatos dessas mulheres. Um ponto central nas falas
das entrevistadas se refere à dimensão da sexualidade como fator relevante no contexto da
prostituição. Enquanto mulheres negras a existência da necessidade pela disputa dos espaços e dos
clientes para conseguir se manter na prostituição compõe uma das dificuldades que elas enfrentam.
Ao alegarem a preferência, por parte dos clientes, pelas mulheres jovens e brancas revelam
um dos entraves enfrentados no que se refere a possibilidade de maiores ganhos.
Apesar de reconhecerem o preterimento, as mulheres negras na condição de prostituta
evocam a relação entre o desejo e a cor como forma de destacarem o diferencial que possuem frente
as prostitutas brancas. Todas foram assertivas quanto a confirmação do desejo diferenciado que as

15
Foram entrevistas cinco mulheres negras como faixa etária que varia dos 20 aos 47 anos. O recorte geográfico das
zonas de prostituição em Recife permitiu identificar algumas diferenças que garantem a manutenção de algumas
hierarquias entre os bairros, tais como perfil das prostitutas, valores cobrados e o perfil dos clientes. Foram escolhidos
os bairros de Boa Viagem (zona sul), Imbiribeira (zona sul) e o bairro de São José (centro). No bairro de Boa Viagem,
zona conhecida pela alta concentração de turistas, o perfil físico das mulheres atendem a uma demanda mercadológica
de um padrão estético de beleza. Esse público é jovem, composto por mulheres brancas, majoritariamente, que cobram
em média de 100 a 200 reais por programa. Nos outros dois bairros os perfis se assemelham; são mulheres em sua
grande maioria negras, com faixa etária a partir dos 30 anos os corpos estão fora dos padrões estéticos e os valores
cobrados pelo programa variam de 30 a 70 reais.

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mulheres negras possuem, Luiza16 destaca “Na minha opinião, a mulher negra, ela é mais
avoroçada, entendeu? Ela é mais quente sabe e eu acho mesmo, entendeu? Ela é mais avoroçada,
mais quente, ela é mais mulher.”. Seguindo o mesmo raciocínio Patrícia comenta “Muitos já
falaram pra mim que num é pelo meu corpo e sim pela minha cor que saem comigo, porque me
acham muito bonita. Não só pela minha cor e sim porque tenho a pele muito limpa. Já escutei
muito isso. Muito limpa, muito macia, lisa, eu já escutei muito isso e eles assim dizem que é muito
quente.”. Segundo Carolina “A mulher negra...porque a mulher bronzeada quando quer tirar onda
ela pode, ela endoida. Ela sabe como tirar onda, porque até, porque quando quer, se você cismar,
se você quiser chamar a atenção, chama.”. E Gê ao se definir defende “Eu me acho uma mulher
quente! Porque tem tudo, eu acho assim, que tem tudo, visse.”.
É perceptível na fala das entrevistadas que o reforço dos estereótipos raciais,
principalmente no que tange a hipersexualidade, passa por uma estratégia de valorização do que
elas conseguem oferecer aos clientes. Muito embora se considere que as relações cotidianas são
construídas a partir de negociações que podem provocar tensões na ordem, defender que existe a
possibilidade das mulheres negras “positivarem” os estereótipos raciais, visando garantir e aumentar
seu lucro para se estabelecerem na prostituição, é considerável, no entanto a possibilidade de
relativizar as insígnias produzidas sobre os corpos das mulheres negras é praticamente inexistente.
Os corpos das mulheres negras estão racialmente marcados pela dimensão da hipersexualidade, ao
serem destituídos de humanidade as chances de negociação é praticamente inexistente.
Dito isso se torna urgente tencionar o debate acerca da invisibilidade das questões raciais na
prostituição feminina no Brasil. Considerando o processo de formação nacional e os espaços
ocupados, historicamente, pelas mulheres negras, é necessário trazer a reflexão, tanto teórica, como
empírica, através de uma análise crítica que busca a superação dos debates de gênero e de classe
como as únicas estruturas/hierarquias que contribuem para compreensão do universo do mercado do
sexo e seus variados fenômenos.
O posicionamento em escolher não utilizar a categoria racial para apreender o fenômeno da
prostituição, principalmente no Brasil, permite a manutenção das violências que atingem as
mulheres negras. São essas mulheres que, independente dos espaços que ocupa ou da função que
exerça, são designadas como “sexualmente selvagens, e em termos sexuais uma selvagem sexual,
uma não-humana” (hooks, 2014, p.39). Existe uma construção discursiva que é reforçada
cotidianamente em que as mulheres negras são naturalmente predispostas, acessíveis e depravadas.

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A pedido das entrevistadas foram utilizados nomes fictícios.

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Percebemos que os materiais, citados no decorrer do texto, privilegiam em suas as perspectivas as
categorias de gênero e/ou de classe, o que nos direciona a repensar a questão17 da invisibilidade das
mulheres negras, sob um discurso que reforça a naturalização das suas representações e,
consequentemente, dos espaços ocupados.

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Racial violence and prostitution: a debate beyond gender


Astract: Abstract: The debate on prostitution has contemplated several approaches and rethought
numerous problems. Among the approaches, the most recurrent aspect is the discussion of gender,
either through a confrontation with the multiple violence suffered by these women or through an
understanding of the other aspects of prostitution, for example, prostitution and the unfolding of this
type of market. It is possible to perceive in these productions that although a concern is identified in
dealing with the reality of prostitution the racial question is not contemplated, being this discussion
invisibilizada in what concerns the analysis of this market. This invisibility is the fruit of our
particular type of racism that insists on thinking the same as non-structuring of existing oppressions.
To understand historically the place of prostitution in Brazil is to accept that it was the black
women who have been occupying this space from colonial times to the present day. Black women
are exposed to the structuring oppressions of society in an intersectional way, such as class, race,
and gender, which often force them into less privileged choices of survival, and prostitution turns
out to be one of them. Analyzing prostitution by ignoring the racial question as one of the
determining factors of entry and permanence of these black women is to guarantee the maintenance
of a discourse that subsumed or excludes racism as a central element of the oppressions that
structure our society.
Keywords: Violência racial. Prostituição. Invisibilidade. Interseccionalidade.

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Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

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