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Percursos históricos da transcestralidade: vidas múltiplas que resistem à colonialidade

de gênero

Introdução
Este artigo propõe realizar análises sobre como o projeto etnocida de dominação
colonial teve como ferramentas de controle dos corpos não somente o racismo como também
a cisnormatividade. Para tanto, darei enfoque inicial aos conceitos de “branquitude” e
“cisgeneridade”, enquanto esforços dos grupos subalternizados em nomear de voltar a norma
escondida, bem como o de “ciscolonialidade” como base para a discussão. Em seguida,
inspirada pelas discussões de Okara Yby e Vic Guimarães (informação verbal)1, retomarei as
narrativas sobre o etnocídio e genocídio dos povos colonizados para ilustrar o efeito
epistemicida de apagamento das formas de organização social não centradas no sistema
sexo/gênero ocidental. Retomarei as histórias de duas figuras importantes: Tybyra e Xica
Manicongo, para ilustrar os efeitos do projeto branco-colonial nos corpos dissidentes da
norma de gênero.
Por fim, darei foco ao surgimento de novas experiências de gênero, cujas estéticas e
nomeações fazem contraponto não só à cisgeneridade como à branquitude. Algumas dessas
experiências têm se constituído a partir, ao invés da biologia ou do psiquismo, do resgate da
ancestralidade e da relação com a espiritualidade e o território como pilares formadores de
identidade. Nesse sentido, objetiva-se demonstrar que é preciso analisar gênero sempre em
relação às formas de organização e hierarquização social de um território ou de um grupo
social específico, como, por exemplo, raça, etnia e espiritualidade.
Enquanto pessoa não-binária, branca, nortista e acadêmica, considero que este artigo
tem como pano de fundo as lacunas advindas do apagamento de nossas (pessoas dissidentes
de gênero da América Latina) histórias pelos colonizadores, o qual desemboca nas dores que
compartilhamos enquanto pessoas trans, pela falta de referências para as nossas existências
enquanto sujeitas e coletivos. Assim, retomar a nossa (trans)cestralidade, como nos propõe
Angie Barbosa (2022), a revisitar os passos daquelas que vieram antes de nós, é também
procurar pistas para rotas de fuga que nos possibilitem escapar das repetições dos mesmos
problemas, e que sejam encontradas novas soluções para problemas vindouros.

1
Falas feitas por Okara Yby e Vic Guimarães no curso “Cisgeneridade: efeitos da colonialidade do gênero y
mundos possíveis”, disponibilizado pela plataforma BRAV de cursos online, em 4 de junho de 2023.
1. Nomear a norma de volta
Nomear algo é ao mesmo tempo criá-lo. É dar visibilidade àquilo que se nomeia.
Nesse sentido, nomear a cisgeneridade e a branquitude põe essas categorias sob um foco de
luz e de atenção necessários para que possamos pensar sobre os efeitos da colonização sobre
as subjetividades dos povos colonizados, uma vez que o racismo e a cisnormatividade foram
dois instrumentos de dominação fundamentais do processo colonizador. O homem cis branco
europeu, historicamente, é quem detinha sozinho a máquina de escrever a História da
humanidade. Colocou a si mesmo no centro de tudo, chamou isso de antropocentrismo;
cobriu a si mesmo com uma “capa da invisibilidade”, e chamou isso de neutralidade
científica (Grosfoguel).
E, a partir dali, nomeou e criou as coisas e as pessoas. Nomeou/criou o negro, o
indígena, a mulher, o homossexual, as trans*, dentre outros, como periferias do humano,
aqueles que quase não são humanos ou têm a sua humanidade questionada, e, assim, criou
uma matriz cultural de inteligibilidade universalizada. Como revolta, nós, as Outras, então,
passamos a falar por nós mesmas a partir de nossas próprias matrizes, recriadas sem o homem
cis branco europeu no centro, mas a partir de nossas próprias vivências, dos nossos próprios
corpos. Recusamos as definições impostas, ressignificamos nomeações violentas, e passamos
a nomear de volta, redistribuindo, assim, a sua própria violência (Mombaça, 2019).

1.1. A cisgeneridade
Graças aos estudos de feministas negras e da Teoria Queer, da articulação política de
mulheres, negros, indígenas e de pessoas trans e travestis, passamos a nomear de volta
aqueles que se escondem na norma. De acordo com a professora travesti Letícia Carolina
Nascimento (2021), o conceito de cisgeneridade é como uma máquina de guerra discursiva,
que desvela o conteúdo por trás dos pressupostos de que os corpos de homens e mulheres
cisgênero são naturalmente generificados. Existe uma produção discursiva que visa a
construção de privilégios para esses corpos, inclusive o de subalternizar os corpos que deles
diferem como anormais, fantasiosos, falsos, loucos, patológicos.
Nesse sentido, nomear a experiência cisgênera “é necessária como alternativa de
definição dos corpos não trans* sem a recorrência à suposta matriz original da qual todas nós
seríamos desdobramentos subalternos” (2021, p. 61). Essa proposta envolve, então, desvelar e
desmontar os pressupostos desse sistema. Como nos mostra Viviane Vergueiro (2016),
pesquisadora travesti, a cisgeneridade possui três características fundamentais: a
pré-discursividade, a binariedade e a permanência.
A autora discreve a primeira como o entendimento sociocultural imposto
historicamente de que há elementos objetivos nas características corporais que funcionam
como critérios para defini-los conforme sexo e gênero, como machos ou fêmeas,
independente de sua autodefinição, ou dos contextos nos quais estão localizadas. Ou seja, é a
ideia de que a verdade do sexo está em fatores biológicos: na genitália, nos hormônios, na
genética.
A binariedade é a característica que determina que os corpos, se forem “normais”,
terão seus gêneros definidos a partir de duas possibilidades mutuamente exclusivas: machos
serão homens e fêmeas serão mulheres. Ela é base para a heterossexualização do desejo, uma
vez que considera o feminino e o masculino, o pênis e a vagina como opostos
complementares e que seu acoplamento proporciona a reprodução e geração da família.
Por fim, a terceira característica indica que, para além do sexo/gênero de corpos
normais poder ser objetivamente determinado, a partir de características observáveis, em duas
categorias possíveis, complementares e mutuamente excludentes, deve haver neles coerência
fisiológica e psicológica. Essa coerência deve ocorrer no sentido de pertencer a determinado
sexo biológico e expressar o gênero que a ele se conforma, durante toda a vida de uma
pessoa. É a ideia de que o sexo e gênero são fixos e não devem mudar sob condições normais.
Ou seja, seguir os roteiros determinados pela cisgeneridade concede aos sujeitos o
privilégio de serem reconhecidos pela matriz de inteligibilidade da cultura ocidental
globalizada, e, portanto, de ter a sua própria humanidade reconhecida (Aguiar, Guimarães,
2021). É por ser homem ou mulher cisgênero que um se torna humano, ou normal. Qualquer
desvio dessas características sofrerá tentativas de correção ou “cura”. A cisgeneridade
torna-se, dessa maneira, o ponto de partida que embasa a definição dos corpos não-cisgênero
como desviantes, loucos, subalternos. Nesse sentido, a cisnormatividade é imposta a todos os
corpos por meio de diversos dispositivos e tecnologias altamente sofisticadas.
Portanto, não apenas as pessoas trans são vigiadas quanto à cisgeneridade. A
cisnormatividade toma conta das vidas cis também, ao controlá-las para garantir que não
saiam dos eixos de uma performance aceitável. Esse controle recai sobretudo sobre as
mulheres cisgêneras, por meio do controle da autonomia de seus corpos e de suas expressões,
mas também sobre os corpos dos homens. É importante, então, pensar na cisgeneridade
enquanto sistema, ou “CIStema”, para dar conta do caráter institucional e estrutural das
perspectivas cissexistas (Vergueiro, 2016) e que interseccionam-se com outros sistemas de
dominação, como raça, classe e sexualidade.
1.2. Branquitude
Paralelamente ao conceito de cisgeneridade, que é proposto por pessoas trans com
vista a explicitação de um sistema de dominação sobre o gênero, a branquitude é
caracterizada por pessoas negras como o ponto de partida desde o qual pessoas não-brancas
tornam-se “o outro”, inevitavelmente racializadas. É preciso, portanto, retomar ao período de
colonização, quando os europeus invadiram territórios, e, de maneira taxonômica,
descreveram e (re)nomearam os povos que neles habitavam (Bento, 2022). Descreveram e
(re)nomearam como diferentes em relação a si mesmos: tinham costumes diferentes, línguas
diferentes, formas de organização social diferentes, religiosidades diferentes e,
principalmente, corpos diferentes.
A descrição das características físicas, como a cor da pele e a forma dos cabelos; bem
como a de características culturais, foram temas das inúmeras cartas escritas pelos europeus
nas colônias para outros europeus nas metrópoles. Relataram sobre as diferenças dos povos
com que se encontravam, em relação a si mesmos. Foi se criando, assim, uma identidade
branca comum e que teve os indígenas americanos e os negros africanos (dentre outros
povos) como contraste. As culturas e a corporalidades europeias constituíram-se enquanto
sinônimos de superioridade e civilização, e as identidades taxonomizadas foram atreladas à
selvageria e à inferioridade (Bento, 2022).
Ou seja, as categorias raciais foram criadas pelos povos brancos para designar os
povos não-brancos e essa foi uma das etapas de constituição do racismo como base para o
projeto colonial de dominação. Esse processo continuou, séculos mais tarde, para
desdobrar-se em outros dispositivos. Um deles foi o racismo científico, o qual consiste na
tentativa de embasar em fundamentos científicos o racismo fundado pelo colonialismo. Ou
seja, buscou-se legitimar e justificar a suposta “superioridade branca” em relação aos outros
povos, por meio de identificação de características anatômicas e genéticas essencialmente
atribuídas como inferiores aos povos colonizados, e pela valoração positiva das
características anatômicas e genéticas dos povos europeus (Shucman, 2020).
Por exemplo, as teorias do branqueamento buscavam justificar, por meio da raça, as
taxas de natalidade mais baixas, a maior incidência de doenças e a “desorganização social” de
grupo de pessoas negras em relação a de pessoas brancas. São teorias como essa que
embasaram, no Brasil, as políticas de embranquecimento da população, as quais tiveram
como objetivo diminuir o número de pessoas negras no país e aumentar o número de pessoas
brancas. Desse modo, entre o final do século XIX e o começo do século XX, o Brasil
incentivou a imigração de mais 1 milhão de italianos, portugueses, espanhóis e alemães para
o país, o que funcionaria como via para garantir o progresso da nação (Schucman, 2020).
Podemos observar, portanto, que o colonialismo e seus produtos simbólicos e culturais
mantiveram-se enraizados como ferida colonial e racismo estrutural (FANON) Enquanto os
não-brancos herdaram a ferida, os brancos também tiveram uma herança: a branquitude como
privilégio racial. A branquitude seria, então, uma posição do olhar, um lugar simbólico desde
o qual os brancos vêem a si mesmos, ao mundo e aos outros; é uma estrutura que permite aos
brancos uma série de facilidades em relação aos não-brancos, na forma de vantagens
econômicas, sociais e de status sustentadas pela subalternização dos grupos não-brancos
(Schucman, 2020; Bento, 2022).
Nesse sentido, a proposta de conceituar e estudar a branquitude vem da necessidade
de preencher lacunas dos estudos raciais, que, até então, não colocavam em questão a
racialização das pessoas brancas. Esse processo de subjetivação deve ser considerado com
base nos processos históricos e políticos de cada contexto (Schucman, 2020): a ocupação da
posição de sujeito branco deve ser diferente na Amazônia em relação a esse mesmo processo
no sul do país, por exemplo, assim como deve ser distinto em países diferentes:

“Nesse sentido, ser branco tem significados distintos


compartilhados culturalmente em diferentes lugares.
Nos EUA, ser branco está estritamente ligado à origem
étnica e genética de cada pessoa; no Brasil, está ligado
à aparência, ao status e ao fenótipo; na África do Sul,
fenótipo e origem são importantes demarcadores de
brancura” (Schucman, 2020, p. 60)

Essas diferenças culturais e contextuais influenciam na maneira como a branquitude é


subjetivada. Lia Vainer Schucman, pesquisadora judia (2020), em sua pesquisa sobre a
construção da branquitude na capital de São Paulo, identificou algumas características, como,
por exemplo: a possibilidade de dar visibilidade à sua identidade racial é opcional, ou seja,
ela aparece quando é conveniente, sobretudo quando em comparação com outras identidades
raciais, como os negros, os indígenas e os amarelos. Além disso, há uma ideia de pureza da
brancura ligada às origens européias, ou seja, “branco mesmo” é aquele que tem os traços
fenotípicos mais parecidos com os dos europeus e norte-americanos.
Podemos observar que nos relatos apresentados no livro de Lia, a dimensão estética é
um fator importante para um ser reconhecido como branco, uma vez que características como
cabelos crespos, narizes largos, ou uma pele um pouco mais escura, podem ser ligadas à
origens não-brancas e, por consequência, colocar uma pessoa em outra categoria racial. Nesse
sentido, vale ressaltar a existência de categorias internas dentro da branquitude, conforme
outros marcadores sociais, como a classe, por exemplo. Ou então, conforme características
físicas: pele clara, traços finos, corpo magro, cabelo liso e olhos claros são valorizados como
padrão de beleza. A mestiçagem, então, é vista como algo que prejudica a estética de uma
pessoa, reduzindo seu lugar na hierarquia racial.
Não somente na estética, mas ser branco também está ligado a ideais de bem-estar
econômico, de justiça e moral. Ou seja, a brancura de uma pessoa a garante algo como um
respeito automático ou autoridade inerente. É possível observar, nesse contexto, que a
branquitude é como a referência desde a qual outras identidades raciais são julgadas como
inferiores. Nesse sentido, de acordo com Geni Núñez, psicóloga e pesquisadora indígena
guarani, a branquitude “é um efeito colonial que busca manter e atualizar os benefícios
oriundos da escravização e é também uma posição racial de dominação que busca submeter
humanos e não humanos (demais animais, florestas, rios, etc) ao seu projeto colonial de
sociedade” (2022, p. 15).
Segundo a autora, nomear essas posições, tanto a cisgeneridade como a branquitude,
devem ser ações elaboradas sob perspectivas críticas, ou seja, que não funcionem de modo a
reificar o lugar da hegemonia e de protagonismo. Pelo contrário, descrever e analisar esses
processos nos permite desnaturalizar aquilo que se impôs como natural e desvelar os modos
como essa imposição se deu pela violência colonial (2022). Devemos, portanto,
problematizar e complexificar essas análises por meio do olhar sobre como essas categorias
se relacionam e produzem efeitos simbólicos e materiais.

1.3 A cisgeneridade é filha caprichada da branquitude (CUNHA, 2022)


Nesse sentido, é importante retomar María Lugones, pesquisadora argentina e
cisgênero, quando ela afirma que é impossível isolar gênero de raça, pois as duas categorias
constituem-se lado a lado. Para a autora, a colonialidade de gênero compreende a noção de
que a colonialidade do poder, do ser e do saber são constituídas não somente por uma
opressão de raça, mas uma opressão de gênero racializada (2014). A categorização dos
gêneros em modelos binários, fundamentada no dimorfismo sexual, é, então, a base
estruturante das hierarquias naturalizadas do projeto colonial. Nesse projeto de colonizar o
gênero, a cisgeneridade e a branquitude constituem-se como referência para a própria
condição humana.
Sobre as relações entre gênero e colonialidade, Viviane Vergueiro vai mais além e
nomeia a “ciscolonialidade” como a imposição da “organização cisnormativa de ideias
morais e familiares” através “dos históricos projetos coloniais europeus, cristãos,
branco-supremacistas, projetos que instaura(ra)m diferentes formas de colonialidade contra
diferenças étnico-raciais, cosmogônicas e de interpretações socioculturais sobre corpos e
identidades de gênero” (Vergueiro, 2016, p. 264).
Intercruzar essas perspectivas nos permite, portanto, reconhecer as raízes histórias de
processos atuais que produzem sofrimento para as população gênero dissidentes, como, por
exemplo a patologização de suas identidades, a invisibilidade nas políticas públicas, a
precariedade do acesso ao trabalho, a raridade de suas presenças nos espaços hegemônicos de
produção de conhecimento e a vulnerabilidade socioeconômica em que se encontram nossos
corpos. Nesse sentido, identificar que a naturalização da cisgeneridade tem origens na
colonização é importantíssimo para os estudos trans, uma vez que nos localiza na história
para além de nossa inscrição no campo da medicina e da psicologia por parte de homens
brancos cisgênero e, portanto, nos permite reconhecer que sempre estivemos aqui, não somos
“invenções” da Teoria Queer (Aguiar, Guimarães, 2021).
Dessa forma, se situarmos gênero como um modo de organização originalmente
europeu, podemos deduzir que nos territórios colonizados, outras formas de organização e
hierarquização social estavam em jogo, e que tinham como base suas próprias culturas e
cosmogonias. As experiências de gênero das pessoas de diversas comunidades indígenas
americanas e das diversas populações africanas e asiáticas, antes do processo de colonização
ter início, poderiam ter formas de expressão, de interpretação, de mediação e de nomeação
muito distintas e plurais, não ligadas estritamente à biologia, como é a perspectiva
cisnormativa eurocentrada.
Nomear a ciscolonialidade é, portanto, dar visibilidade ao processo de impor formas
de vivenciar o gênero originadas no norte global a todo o mundo. Para efetivar esse projeto
universalista e globalizante, os colonizadores apagaram qualquer perspectiva que ameaçasse
seu projeto de dominação. Nas palavras de Viviane Vergueiro, “através dos processos de
extermínio, invisibilização e marginalização destas perspectivas não ocidentais sobre corpos
e identidades de gênero, foram se constituindo formas institucionais e não institucionais de
ciscolonialidade que seguem como dispositivos necessários à continuidade destes processos”
(2016, p. 266). Ou seja, o que sustenta a cisgeneridade enquanto normativa é precisamente o
apagamento e o extermínio das experiências de pessoas gênero-diversas.
Então, para que possamos fazer resistência a esses projetos, precisamos reconhecer
uma continuidade não-linear entre os discursos produzidos pelos colonizadores sobre os
corpos de negros, indígenas e de outros povos originários; os discursos do campo da saúde
sobre os corpos trans; e os discursos mais recentes proferidos por figuras políticas, religiosas,
acadêmicas e midiáticas sobre o lugar dos copos trans na sociedade. Precisamos nos
questionar “Qual a herança colonial para os corpos cisgênero?”, “Como os corpos
gênero-dissidentes ainda sofrem com a ferida colonial?”. Retomemos, então, o processo de
colonização a fim de compreendê-lo um pouco melhor.

2. O projeto colonial
De acordo com Oyèrónké Oyěwùmí (2020), um dos principais efeitos da modernidade
(e da colonialidade) é o estabelecimento de uma hegemonia euro-estadunidense, sobretudo
“na produção de conhecimento sobre o comportamento humano, sua história, sociedades e
culturas” (p. 90). Nesse sentido, as narrativas produzidas nos territórios do Norte Global
foram universalizadas por meio da dominação colonial, que impôs seus modos de
conhecimento como verdades, na mesma medida em que inferiorizou os modos de
conhecimento dos povos dominados, classificando-os, assim, como bestiais e primitivos.
Esse processo começa, na América Latina, durante o período da invasão colonial,
sobretudo por meio dos missionários cristãos catequizadores, e se estende até a
contemporaneidade, atualizando-se em múltiplas formas. A essas atualizações, que persistem
em manter formas de dependência (econômica, social e cultural) do Norte sobre o Sul Global
através da hegemonia da perspectiva euro-estadunidense de conhecimento, chama-se de
colonialidade do saber e constitui parte importante do projeto colonial/moderno. Podemos
observar, nesse sentido, que o estabelecimento de uma perspectiva eurocêntrica como
absolutamente universal produz efeitos devastadores sobre as perspectivas e epistemologias
originadas nos territórios colonizados, os quais se materializam em sofrimento e morte.
Juntamente, então, com o genocídio e etnocídio dos povos originários, ocorreu um
epistemicídio. Ou seja, a escravização, o assassinato em massa, o roubo de suas terras e
sobretudo a catequização dos povos originários constituem estratégias de dominação que têm
como efeito o apagamento sistemático de suas produções e de seus saberes, concomitante à
implantação da moral e da epistemologia branco-cristã-européias. Esse processo têm como
base principal a supremacia branca, ou seja, a crença na superioridade dos povos europeus
(ou da “raça branca”) sobre os demais, de tal maneira que se botava em questão se os povos
indígenas possuíam alma ou se eram “como os animais”, seres bestiais.
Nesse sentido, para os colonizadores, conceder aos povos dominados o “acesso” à
civilização era um dever missionário. Era conceder aos seres sem alma, desprovidos de
humanidade, uma oportunidade de salvação, de redenção ao Deus cristão para que, assim,
conseguissem “um lugar no reino dos céus”. Nesse contexto de colonialismo, alguns
pressupostos foram implantados como chaves para uma nova organização e hierarquização
social, sendo o principal deles o conceito de raça. Junto, também estavam as normas de
gênero, e as próprias noções de homem e mulher, baseadas em pressupostos religiosos
cristãos.
Estevão Fernandes (2016b), ao analisar as cartas escritas pelos colonizadores sobre os
povos que encontraram no território que viria a se tornar o Brasil, descreve uma série de
choques culturais que os europeus experienciaram. Sob a ótica europeia, os comportamentos
dos diversos povos indígenas, desaprovados pela moral colonizadora, justificavam a missão
civilizatória, que transformaria, assim, o “Gentio” selvagem em bons cristãos. Por trás desse
projeto civilizatório e salvacionista, estava em curso um projeto de proletarização dos povos
indígenas.
Nesse contexto, embriagar-se, manter relações sexuais com múltiplas parceiros e/ou
parceiras, poligamia, endogamia2, antropofagia, incesto, “mulheres”3 ocupando funções
“masculinas”, a nudez, a sodomia, os casamentos entre “mulheres”, dentre outros
comportamentos, não eram compatíveis com os modelos familiares, com a ideologia
capitalista da propriedade privada, ou com as normas religiosas de sexo e de gênero. E,
portanto, deveriam ser inferiorizados para, então, serem “expurgados” da vida social. Nesse
sentido, as ações de renomear, vestir, cortar os cabelos, promover uma divisão do trabalho e
outorgar casamentos são todas formas de imposição da moral cristã, tendo como objetivo
final sua subordinação para a exploração de sua força de trabalho (FERNANDES, 2016a;
2016b).
De acordo com Geni Núñez (2021), este projeto se caracteriza por meio das
monoculturas como imposição colonial. A monocultura do pensamento é o cultivo de sempre
apenas um Deus, um afeto, uma sexualidade, um gênero, uma espécie para plantio, e assim
vai. Como a autora pontua, esse modelo antagoniza com a ideia de floresta, que comporta a
multiplicidade. Assim, podemos compreender que a implantação das monoculturas do
pensamento foi etapa essencial para o surgimento da ideia de gênero como a compreendemos
hoje. O etnocídio e o genocídio indígenas tiveram como resultado o extermínio da enorme
variedade de grupos étnicos, culturas e línguas e, com elas, modos de organização social que

2
A noção de endogamia só poderia existir desde o olhar do colonizador, visto que tem como embasamento as
ideias de casamento e de família cristãs e que não existiam nas sociedades indígenas antes da colonização. Em
seu lugar, outras noções, muito diversas, se faziam presentes nessas comunidades.
3
De acordo com Aguiar e Guimarães, “Comunidades e pessoas racializadas como negras, indígenas, marrons e
amarelas (em suma, pessoas não-brancas, sequer conciliáveis à noção colonial de “pessoa”) são então
caracterizadas em um domínio animalizado e portanto sem-gênero, no máximo diferenciado, binariamente, em
marcações sexuais de “macho/fêmea” (2021, p. 6)
compreendia gênero de maneiras diferentes, que não eram antrocentrados4, ou mesmo que
não levavam gênero em conta como fator importante.
Oyèrónké Oyěwùmí (2020) nos mostra que as formas de organização e hierarquização
social na sociedade iorubá diferenciavam-se muito da perspectiva eurocêntrica. Elas devem
ser compreendidas com cautela, uma vez que, por exemplo, as classificações dentro de suas
hierarquias eram feitas com base na posição familiar em relação às matriarcas da família, e
uma mesma classificação poderia ser concedida tanto a corpos masculinos como a corpos
femininos. De acordo com a autora, se hoje os estudos levam em conta as categorias de
gênero, é porque, para ser estudada, a sociedade iorubá precisou ser traduzida para o inglês, e,
nesse processo de passagem de uma língua para outra, a procura de equivalentes semânticos
pode provocar em equívocos que resultam em perdas de sentidos ou, nesse caso específico,
na tentativa de encaixá-la irresponsavelmente em um padrão ocidentalizado de gênero.
Nesse sentido, a missão civilizatória teve como um de seus aparatos violentos a
classificação dos corpos com base nas suas próprias nomeações. Generificar os corpos
originários de Abya Yala e de África enquanto homens e mulheres teve o efeito de voltar os
sujeitos contra si mesmos, uma vez que identificou neles uma “natureza sagrada” que estava
sendo subvertida e que deveria ser corrigida. A confissão, o pecado e a divisão maniqueísta
entre o bem e o mal surgem como dispositivos para demonizar práticas desviantes e valorizar
as que se encaixavam no modelo europeu-cristão. (Lugones, 2014) A exemplo disso,
podemos citar dois casos históricos retomados por Luis Mott (1999 apud. Jesus, 2019), na sua
pesquisa sobre as documentações inquisitoriais a respeito da perseguição dos chamados
“sodomitas” no Brasil colonial.
O primeiro que gostaria de trazer aqui é Tybyra. Essa pessoa aparece nos registros da
historiografia colonial do Brasil como uma pessoa indígena tupinambá condenado pelo
missionário Yves d’Évreux à pena capital por ter cometido o “pecado nefando” ou
“sodomia”. Na brutal execução, o corpo de Tybyra foi lançado amarrado em uma bola de
canhão (Fernandes, 2016c; Nyn, 2020). Atualmente, Tybyra é conhecido como o primeiro
homossexual ou a primeira pessoa vítima de homofobia no Brasil, e, por isso, é tido como
mártir por coletivos de ativismo como o Coletivo Tybyra.
A outra narrativa que pretendo resgatar aqui é a de Xica Manicongo. Ela foi uma
africana do Congo escravizada e vendida a um sapateiro da cidade de Salvador5. Os registros
mostram que em uma das expedições à terra brasilis, a Santa Inquisição atendeu a uma

4
Organizações sociais centradas no homem.
5
Neste período, século XVI, era conhecida como “São Salvador da Bahia de Todos os Santos”.
denúncia de um lisbonense cristão que por muitas vezes interpelava Xica para que se vestisse
como homem. Insatisfeito com a repetitiva recusa de Xica, aproveitou a visitação da Santa
Inquisição para denunciá-la pelo crime de “sodomia”. A punição era ser queimada viva, ter
seus bens confiscados pela Igreja e ter a infâmia lançada sobre as três gerações de seus
descendentes. Xica, como forma de sobrevivência, passou, então, a vestir-se como os homens
da época (Jesus, 2019).
Xica primeiro foi lida como um homossexual, e é retomada hoje pelas transfeministas
como a primeira travesti do Brasil (Jesus, 2019). Mas será que chamava a si mesma de
travesti? Qual denominação Xica usava para se referir a si mesma e a outras como ela lá de
onde veio, no Congo? Xica usava como vestimenta um pano que prendia com o nó para
frente, assim como os quimbanda, de sua terra natal. Linn da Quebrada (2023) nos traz a
história de Xica para provocar: se Xica Manicongo era do Congo, precisávamos compreender
a linguagem e a cultura de onde ela veio para tentar defini-la. Se ela, talvez, se dizia
quimbanda, ou seja, uma sacerdotisa, não era por meio do gênero que se definia, mas por
meio da “magia”, da religiosidade (Brasileiro, 2021).
E Tybyra? De acordo com Fernandes (2019), os registros dos colonizadores
descreviam “tibira” como o termo usado para designar os indígenas “homens” que se
relacionavam com outros “homens” - experiência que era descrita como sodomia pelos
europeus - e/ou que eram como líderes espirituais em suas comunidades. Mais uma vez, a
experiência de dissidência de gênero e sexual está ligada à espiritualidade. No entanto, como
considerar Tybyra um homosexual se essa nomenclatura veio surgir no século XX? Como
considerar que Tybyra era um homem que se relacionava com outros homens se nem mesmo
tinha a própria noção de homem?
Podemos observar, nessas estórias, exemplos do enquadramento dos corpos nas
normas de gênero européias por meio de uma brutal violência. Porém, é importante ressaltar
que definir Xica e Tybyra como homens não lhes garantia o mesmo status de humanidade que
o branco europeu. As categorias binárias de gênero só poderiam servir aos brancos
colonizadores, uma vez que eram e são vias de acesso à humanidade; e nunca foi uma meta
colonial transformar os colonizados em seres humanos (Lugones, 2014). O que se fez foi
inscrever nesses corpos as normas da cisgeneridade e da branquitude para apagar quaquer
sinal de ameaça à naturalização do corpo branco cisgênero como normal.
Portanto, reconhecer a discursividade dessas categorias é encarar que de naturais,
essenciais, imparciais ou imutáveis elas não têm nada, pelo contrário, são narrativas frutos de
projetos políticos parciais com origens locais específicas, aliados a morais específicas, e que
tiveram – e ainda têm – efeitos devastadores na vida dos povos colonizados (Lugones, 2020;
Aguiar, Guimarães, 2021). Nesse caminho, é importante desvelar o locus de enunciação
dessas narrativas parciais e locais, para que possamos construir contra-narrativas coerentes
com uma ética anti-colonial, que comporte a multiplicidade, a diversidade, ou como diria
Geni Núñez, que impulsione o reflorestamento da nossa existência (2021).
Somente assim, poderemos compreender as novas identidades que surgem
contemporaneamente, como subversões da ciscolonialidade, conectadas com a
territorialidade, com religiosidade, desde as culturas locais dos povos tradicionais e
originários. Apenas assim, conectando-nos com nossos ancestrais e honrando as estratégias
que elaboraram para manterem-se vives, poderemos aprender com as pistas que deixaram e
reelaborar novos projetos coletivos de resistência.

3. Rumo a descolonizar as identidades trans: a transcestralidade


Posto que revisitamos essas duas narrativas, inclusive, proponho que olhemos para a
diversidade de outras nomeações (re)existentes no mundo todo: as hijras na Índia, as muxes
no México, dois-espíritos na América do Norte, cudinas do povo Mbyá- Guaikuru, as
travestis na América Latina - sobretudo no Brasil -, Aredu Imedu do Povo Boe Bororo, dentre
muitos outras, que têm suas origens no passado pré-colonial e colonial, e que interpretam e
nomeiam suas experiências através de outras referências que não a cisnormatividade
(Bogdanovicz, Bernardino, 2023). São experiências que compõem a transcestralidade.
De acordo com Angie Barbosa, essa palavra foi usada primeiramente por Renata
Carvalho, no Manifesto Transpofágico, para designar uma forma de apropriação do pasado
para a fabulação do futuro travesti. A autora, então, propõe que

“A ancestralidade é um tipo de relação com o tempo.


Ter uma ancestralidade significa — mais do que
pertença a uma família ou grupo — o reconhecimento
de que os modos de vida de uma comunidade ao longo
de toda a sua história possibilitaram e informaram os
modos de vida do tempo presente, que conhecimento,
histórias, e modos de relação com o mundo e as pessoas
são aprendidos com aqueles que vieram antes de nós”.
(Barbosa, 2022).

Nesse sentido, a transcestralidade pode ser uma maneira pela qual as experiências de
gênero citadas anteriormente, dentre outras, ganham profundidade histórica e são
relocalizadas na História da humanidade. Inauguram-se, a partir delas, possibilidades de
criação de novas experiências, novas nomeações, novas estéticas, ligadas a coletividades
outrora indisponíveis para as nossas consciências. É possível, assim, expandir, pluralizar e
conectar os sujeitos das lutas contra a opressão ciscolonial, somando-nos como multidões
diversas.
Paul Preciado, filósofo trans espanhol, nos convoca a pensar nosso tempo como um
momento de revolução, marcado pelo surgimento de novos discursos contra o patriarcado e
contra a colonialidade, bem como novas tecnologias de modificação corporal e uma forte
retomada de conceitos arcaicos como reação a essa revolução. Nesse contexto, o autor se
questiona se ainda faz sentido identificar-nos com categorias identitárias criadas no século
XIX tendo enm vista a patologização das experiências gênero e sexo-dissidentes. Para ele,
essas categorias funcionam como tecnologias de governo populacional, que definem as
condições de vida e de morte dos corpos e que estabelecem diferenças entre os seres
(Preciado, 2019)
Nesse sentido, categorias como heterosexual ou homossexual limitam as
complexidades potencialidades de relações e de prazeres que o corpo pode ser capaz de
desenvolver, uma vez que estão baseadas em quais sexualidade reproduzem e quais não
reprduzem. Da mesma forma que raça é um conceito colonial, gênero também o é. Por isso,
ele interpela os movimentos de gays, lésbicas e transexuais sobre qual os nossos objetivos
enquanto movimentos. Seria o de redefinir, tornar visível e construir identidade? Ou seria o
de produzir novas formas de liberdade? Se as identidades que conhecemos estão incorporadas
às estruturas do Estado, dentro das instituições, o que fazemos com elas? (Preciado, 2019).
Para Viviane Vergueiro (2016), enfrentar a colonialidade envolve o trabalho de
desaprender criticamente as colonialidades que inferiorizam os nossos corpos, e reescrever as
narrativas com base na valorização dos saberes provenientes dos nossos contextos, das
intersecções em que nos encontramos. Fazer isso é enfrentar diretamente a exclusão de
nossos corpos dos sistemas de produção de conhecimento e fazê-lo sem o intermédio de
“especialistas”. Envolve também narrar as complexidades de nossas existências, em
contraponto com as epistemologias dominantes que tentam nos simplificar e explicar de
maneira binária.
Devemos, então, reconhecer as vivências de pessoas trans* que encontram nas
religiões de matriz afro-brasileira espaços para a performance de seus gêneros, bem como
elementos da espiritualidade para a sua própria autodefinição. Os terreiros podem ser espaços
de acolhimento dos corpos dissidentes; de desconstrução e reconstrução de gramáticas de
gênero e sexualidade por meio do manejo de saberes ancestrais; espaços para produzir
significados sobre suas vivências através de sua relação com os orixás e com os encantados,
afastando-se, assim, da epistemologia branco-cristã hegemônica (Pereira, 2012).
Na Amazônia, as curupiranhas produzem outras experiências, não somente mediadas
por gênero, mas pela conexão com sua ancestralidade negra e indígena, com a relação com o
mato, o território amazônico e suas florestas, com uma sexualidade livre das normativas
monogâmicas e heterossexuais coloniais (Sena, Borges, 2021). Curupiranha é um termo
criado por MC Pokaroupas, artista de Bragança, para designar sua experiência de gênero na
canção: “Eles não tão entendendo se sou homem, sou mulher / O que diabo que tu é? /
Curupiranha, a viada da Amazônia” (Mc Pokaroupas, 2021). Da mesma forma, as cabokas
(ou cabocas) são as pessoas que vêm do mato, possuem saberes sobre as ervas, os caminhos
das matas, as encantarias, e outros saberes saberes tradicionais e mantém relações próximas
com os povos originários do Brasil e das Áfricas (Olaia, Leite, 2021).
No campo da música e das multiartes, Linn da Quebrada faz um trabalho de
reconexão da sua ancestralidade trans e negra nos álbuns “Pajubá”, de 2017, e “Trava
Línguas”, de 2021. Nesse processo, ela conta que foi muitas, uma vez “Que já foi Bixa Preta,
que já Enviadesci e que, em via de ser, fui mulher, fui Bixa Travesti, sou travesti e agora, ao
meus trinta anos, me pergunto: quem sou eu?” (Quebrada, 2023, p. 13). E para responder essa
pergunta, Linn considera que é necessário compreender de onde veio, refazer os passos das
que vieram antes, e, então, vislumbrar como se posicionar no presente frente às demandas
que percebe que o mercado faz sobre o seu corpo.
Frente a isso, defende o direito de manter-se em mistério, falar de si com a língua
bifurcada, não explicar-se totalmente como é demandado pelo mercado, pela ciscolonialidade
que usa das denominações LGBTQIAPN+ para nos representar como se nossos gêneros e
sexualidades fossem a totalidade de nossos corpos, para nomear-nos pela diferença
(Quebrada, 2023).
Partindo de todas essas perspectivas, descolonizar as identidades trans* envolve
recobrar nosso direito a sermos ouvidas e respeitadas quando falamos de nós, mesmo em
espaços não-acadêmicos, sobre nossas demandas, sobre nossas autodefinições, sem que
tenhamos a multiplicidade de dimensões das nossas experiências apagada e sem que sejamos
generalizadas sob os termos da cisnorma ou mesmo da Teoria Queer. Envolve também
responsabilizar não somente a cisgeneridade como a branquitude sobre a manutenção da
colonialidade que aflige nossos corpos, bem como denunciar os privilégios advindos dessa
manutenção para pessoas cis brancas.
Por fim, é reconhecer Xica e com Tybyra no passado como ancestrais - não pelo
parentesco, mas pelo trauma compartilhado e pelo legado que nos deixaram -, bem como
muitas outras que “se encontraram, organizaram cuidado, revolta, amor e prazer juntas,
resistiram às violências e perdas através de modos criativos de se engajar com o conflito”
(Barbosa, 2022) e não deixar esquecer delas. A partir, então, das sensibilidades estéticas e
políticas aprendidas com nossa transcestralidade, podemos “atualizar os roteiros de nossa
resistência e de nossa responsabilidade para com nossa comunidade” (Barbosa, 2022). Nos
manteremos vivas e persistentes no presente e compromissadas com os devires de mundos
possíveis no futuro, pelo fim do mundo como o conhecemos hoje.

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