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O MOVIMENTO ABOLICIONISTA

E A ABOLIÇÃO DA PENA DE MORTE EM PORTUGAL


(R E SE N H A H IST Ó R IC A )

G u il h e r m e B r a g a d a C r u z

1.A publicização do ius pmiendi, que se inicia a partir dos séculos xil
e X III com o renascimento do direito romano e o consequente fortalecimento
do poder real, deu lugar em todos os países da Europa à formação de
sistemas penais em que a pena de morte, mandada aplicar pelos tribunais
ou directamente pelo rei, ocupava um lugar proeminente no quadro da
repressão criminal.
Chamando a si o direito de punir, o poder político prestava ao pro
gresso e à paz interna dos povos um serviço de altíssimo relevo, pondo
cobro às antigas formas de auto-defesa, dominantes na alta Idade Média,
de que eram expressões acabadas a vingança privada e a perda da paz (x).
Essa tarefa meritória não ultrapassava, no entanto, os limites duma simples
transferência para as mãos do Estado do direito de represália, até aí enca
beçado na própria vítima ou na comunidade ofendida; e, daí, que o direito

C1) Sobre o direito penal da alta Idade M édia peninsular, vejam-se, por todos,
os trabalhos de José Orlandis, «Sobre el concepto del delieto en el derecho de la alta
Edad Media», in Anuario de Historia del Derecho Español, tom o X V I, 1945, pp. 112 a 192
e «Consecuencias del delieto en el derecho de la alta Edad Media», no mesmo Anuario,
tom o X V III, 1947, pp. 61 a 165; e também os Apontamentos das lições do Prof. Doutor
E duardo Correia ao curso do 5.° ano jurídico de 1953-54, Sobre as penas e sua graduação
no direito criminal português (evolução e estado actual) (ed. em ciclostilo, Coimbra, 1953),
pp. 5 a 18.

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de punir tenha mantido, na titularidade do seu novo detentor, todas as
características da época pretérita, aparecendo-nos dominado pela ideia
de vingança, de retribuição do mal com o mal, de expiação pessoal e de
intimidação geral, com a pena de morte a servir de base e fulcro de todo
o sistema punitivo, acompanhada muitas vezes de torturas, mutilações,
esquartejamento, incineração e toda a sorte de atrocidades (x).
Foi isto assim em toda a Europa, desde a publicização do direito de
punir até ao século das luzes, países havendo, como a Inglaterra, onde
ainda nos começos do séc. xix mais de duzentas infracções eram passíveis
da pena máxima (2).
2. Portugal não fugiu à regra, se bem que possa considerar-se a
este respeito, e apesar de tudo, um país privilegiado, pois que, exceptuados
certos períodos de exaltação política ou religiosa, a brandura dos nossos
costumes, aliada à bondade de coração dos nossos julgadores, poupou
a subida ao patíbulo, ao longo dos séculos, a milhares de delinquentes
a quem a lei irrefragàvelmente mandava aplicar a pena última.
As nossas Ordenações Afonsinas — e, na sequência delas, as Manue
linas e as Filipinas — colocaram sob a alçada da pena de morte um avultado
número de infracções, a começar pelos crimes de lesa-majestade (3) e de
C1) V. E duardo Correia, ob. cit.y pp. 18 a 22; e 23 e ss.
(2) Cfr. M arc A ncel, La peine de mort dans les pays européens; Rapport présenté
p ar...; Conseil de l’Europe — Strasbourg, 1962, p. 10.
(3) Ordenações Afonsinas, Livro V , T ítulo II (Dos que fazem treiçomy ou aleive
contra EIRei, ou seu Estado Real)y § 12: «Em todos estes casos, e cada hum déliés dizemos,
e declaramos seer propriamente cometido crime de lesa M agestade, que se chama em
linguagem treiçom cometida contra EIRey. E porem dizemos, que seendo alguum conveen-
cido, e condapnado em cada huum delles, deve por ello morrer naturalmente de morte cruel,
e todos seus bees, que ouver ao tem po da comdapnaçom, devem seer confiscados pera
nós, nom embargando que filhos lidimos aja, ou alguns acendentes: pero se o maleficio
for notorio, serom elles confiscados, tanto que o maleficio for com etido, per esse meesmo
feito sem outra algüa sentença». Cfr. Ordenaçoens do Senhor Rey D. Affonso V. Livro Vy
(Coimbra. N a Real Imprensa da Universidade. Anno de M D C C L X X X X II), p. 10.
Em idêntico sentido estatuem as Ordenações Manuelinas, V , 3, 9 (cfr. Ordenaçoens
do Senhor Rey D. Manuel. Livro V. Coimbra: N a Real Imprensa da Universidade.
Anno de M D C C L X X X X V II, p. 17) e as Ordenações Filipinas, V , 6, 9 (Cfr. Ordena
ções e leis do Reino de Portugal, recopiladas per mandado delRei D. Filippe o Primeiro.
Nona Edição, feita sobre a primeira de Coimbra de 1789, confrontada e expurgada pela
original de 1603. Tom o III. Coimbra. N a Real Imprensa da Universidade. 1824.
Quinto Livro. Pág. 10).
As citações seguidamente feitas às Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas
reportar-se-ão sempre às edições acabadas de referir. Dispensar-nos-emos de fazer cita
ções de página, por desnecessárias.

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moeda falsa 0 e a acabar nos delitos de quebra de degredo perpétuo (2), tirada
de presos do poder da Justiça (3) e encobrimento de malfeitores passíveis da
pena capital (4), sem esquecer, de permeio, os crimes passionais [violação (5),

C1) Ord. Af., V, 5, 4: «E vistas per nós as ditas leyx, declarando ácerca delias
dizemos, que a moeda falsa he cousa mui prejudicial aa Repubrica, em tanto que se
nom fosse asperamente refreada, a Repubrica nom poderia longamente durar, e converia
necessariamente perecer; e por tanto estranharom os direitos gravemente este crime,
estabelecendo que todo a quelle, que falsa moeda fezer, ou der a ello favor, ajuda,
e conselho, ou for dello sabedor, deve de morrer morte de fogo, e todos seus bees devem
seer confiscados pera a Coroa do Regno». N o m esmo sentido dispõem as Ord. Man.,
V, 6, pr., e as Ord. Fil., V, 12, pr.
(2) Ord. Af., V, 67, 2: «...E se alguum foi degradado por dez annos, ou d’hi
pera cima, e elle quebrantou em alguma guisa o degredo, em todo o caso seja degra
dado pera sempre, e nunca lhe seja levantado o degredo. E o que for degradado pera
sempre, e quebrantar o degredo, tal como este mandamos que moira porem». N o mesmo
sentido dispõem as Ord. Man., V , 107, I, e as Ord. Fil., V , 143, pr.
(3) Ord. Af., V , 90, 2: «E se acontecer que o dito preso ja jaça na prisom apri-
soado em poder do Carcereiro, e so sua guarda, todo a quelle, que o per força tirar de
seu poderio contra sua vontade, ou der a ello ajuda, quebrando as portas, ou ferrolhos
da prisom, ou furando as paredes, ou telhados, ou quebrando os ferros, ou cadea, em
que jouvesse preso, mandamos que moira porem». N o mesmo sentido, Ord. Man., V, 35, 1 ;
e Ord. Fil., V, 48, 1.
Para o caso de a fuga se ter verificado por culpa do carcereiro, dispõem as Ord.
Af., V , 93, pr.: «...se o preso foge por malicia, ou manifesta culpa do Carcereiro,
deve esse Carcereiro a morrer por ello, se aquel que fugio era acusado por tal maleficio,
que se provado fosse devera de morrer; e seendo accusado por outro qualquer maleficio
menor, em tal caso deve esse Carcereiro seer açoutado pubricamente, e degradado por
doos annos pera Cepta: e em todo o caso deve emendar o dapno aas partes, que por a dita
fogida forem dapnificadas». Em idêntico sentido, Ord. Man., V, 54, 3, e Ord. Fil., I, 77, 3,
bem como a lei de Filipe I, de 10 de Dezembro de 1602, que figura em apenso ao livro V
das Ordenações (na ed. cit., pp. 318 a 320).
(4) Ord. Af., V , 100, 1: «...E se per ventura alguüs pousarem, ou se acolherem
encobertamente a sabendas em alguma casa, ou nos outros lugares, o senhor da casa, ou
o que em ella morar, deite-os hende logo fora, e faça-o saber aa justiça da terra ante que
se o mal faça. E os que o assim nom fezerem, se dessas casas sairem pera matar, ou fazer
outro mal, ajam tal pena, qual merecerem aquel ou aquelles, que o mal fezerem». N o mesmo
sentido, Ord. Man., V , 71, e Ord. Fil., V , 105.
(5) Ord. Af., V , 6, 4: «E vistas per nós as ditas Leyx, conformando-nos aos Direitos
Imperiaaes, e Hordenaçooês, poêm os por Ley, que todo hom em , de qualquer estado e
condiçom que seja, que forçosamente, e per força dormir com molher casada, ou religiosa,
ou moça virgem, ou viuva, que honestamente vivesse, moira porem, e nom possa em tal
caso gouvir de nenhuü privilegio pessoal, per que possa seer relevado da dita pena».
Ibidem, § 5.° : «Item. M andamos, que aja a dita pena qualquer, que pera a dita força seer
feita der alguã ajuda, ou conselho». Em sentido idêntico, Ord. Man., V , 14, pr. e 1 ; e Ord.
Fil., V, 18, pr. e 1.
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adultério (*), coito com parenta de seu amo ou senhor (2), bigamia (3), aleo-
C1) Ord. Af.y V , 7, 2: «...estabelecemos, e poem os por Ley, que daqui em diante
todo hom em , que fezer adulterio com alguã molher, sabendo que he casada, se for
homem Fidalgo, que tenha maravidys de nós, ou de rico hom em , por seer seu vassallo,
perca o que de nós, ou do rico hom em tever, e quanto ouver, e seja daquelle, a que
fez o torto; e seja deitado de nosso Senhorio: e se per ventura aquelle, a que o torto
for feito, non queser estes bees, aja-os a Coroa do Regno. E se for outro homem o que
esto fezer, moira porem». Ibidem, § 4.°: «E porque fom os certamente enformado, que
assy se praticou em tempo do Senhor Rey meu A voo, e Padre, M andamos e poem os
por L ey, que assy se guarde e cumpra daqui em diante: pero se acontecesse, que alguü
Cavalleiro, ou Fidalgo cometesse adulterio com molher d’outro semelhante a sy, em
este caso deve morrer, nom embargante a perrogativa de sua dignidade». Ibidem, V, 12, 1 :
«...estabelleço por Ley e ponho pera sempre, que toda m olher, que daqui em diante pera
fazer fornizio ou adulterio, se for com alguém per seu grado de casa de seu marido, ou
d’alhur, hu a seu marido tever, que ella, e aquelle, com que se for y ambos moiram porende,
E se a levarem per força, e ella sinaaes certos fezer, que per força a levam, que moira aquelle,
que a levar, e nom ella. E que esto se entenda também dos Filhos dalgo, como nas outras
gentes...».
N o mesmo sentido dispõem as Ordenações Manuelinas (V, 15, pr. e V, 15, 1, res
pectivamente), com uma diferença importante, porém: nas Ordenações Afonsinas, como
se viu, sendo o sedutor de condição social superior ao marido da adúltera, não era passível
da pena de morte (dois primeiros textos transcritos: V, 7, 2 e V , 7, 4), a menos que a
tivesse levado de casa do marido (terceiro dos textos transcritos: V, 12, 1); nas Ordena
ções Manuelinas, pelo contrário, a condição social superior já não exime da pena capital,
mas esta não deve ser executada sem o rei ser ouvido: «Estabelecemos que todo hom em ,
que fezer adulterio com algüa molher casada, e que em fama de casada esteuer, moura
por ello; porem se for Caualeiro, ou Fidalguo de solar, e o marido da molher, com quem
assi o dito Caualeiro, ou Fidalguo dormio, for de menor condiçam, conuem a saber, sendo
o adultero Fidalguo, e o marido nom , ou sendo Caualeiro, ou Escudeiro o adultero, e o
marido piam, non se fará nelle execuçam atee No-lo fazerem saber, e verem sobre isso Nosso
Mandado» (V, 15, pr.). Exactamente no m esm o sentido das Manuelinas dispõem as Orde
nações Filipinas, em V, 25, pr. e V , 25, 1.
(2) Ord. Af.y V, 11, pr.: «EIRey D om D onis estabelleceo per conselho de sua
Corte, e pôs por Ley pera todo o sempre, que todo hom em , que com Senhor viver,
quer por soldada, quer a bem fazer, seendo seu governado, ou andando por seu, e com
sua filha, Irmãa, Prima com Irmãa, segunda Irmãa, ou com sua M adre, ou com criada
de seu Senhor, ou de sua molher, ou que tenha em sua casa, casar sem mandado do
Senhor, com que viver, que moira porem. E esta pena aja aquel, que jouver com cada
húa das sobreditas, ainda que com ella nom case...». Ibidemy § l.°: «E vista per nós a dita
Ley, mandamos que se guarde, segundo em ella he contheudo:...». Ibidemy § 2.°: «E dizemos
que seendo alguum condapnado por tal crime, nom se faça em elle eixecuçom, a menos de
no-lo fazerem sabery pera nós veermos o caso qual he corn suas qualidadeSy e circunstancias
e assy mandarmos como for nossa mercee,*...». N a mesma ordem de ideias, Ord. Man.y V .,
18, pr. e 1; e Ord. Fil.y V , 24, pr..
(3) Ord. Af.y V , 14, 1: «...que todo hom em des aqui em diante, seendo casado
ou recebudo com huã molheer, e nom seendo ante delia partido per juizo comprido da

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vitaria reincidente (*), sodomia (2), incesto (3), etc. (4)], as injúrias graves
Igreja, se com outra casar, ou se a receber por molher, que moira porem:... e que esta
meesma pena aja toda molher, que dous maridos receber, ou com elles casar. E esto
se entende também aos Fidalgos, como aos villaaõs». Em idêntico sentido, Ord. Man.,
V, 19 (mas com certas atenuantes e com mais pormenorizada regulamentação); e Ord.
Fi7., V, 19.
C1) Ord. Af., V, 16, 1: «...estabellecemos, e poemos por Ley pera sempre, que
todo hom em , ou molher, que em sua casa alcovetar molher virgem, ou casada, ou reli
giosa, ou viuva, que viva honestamente, ou consentir, que em sua casa alguã destas molheres
façam mal de seus corpos, polia primeira vez sejam açoutados per toda a Villa com pregom,
e sejam deitados della pera sempre; e demais percam os beês que ouverem, e sejam d’ElRey;
e polia segunda vez moiram porem». A pena de morte podia, porém, ser aplicada logo à
primeira infracção, em hipóteses mais graves de alcovitaria: «se algum hom em ou molher
alcovetar a molher da quelle, com que viver, ou for seu panigado, ou de quem receber bem
fazer»; e se alguém «alcovetar alguã Christaã pera Judeu, ou Mouro» (Ibidem, V , 16, 2).
Correspondem a esta disposição, com alguma variante, as das Ord. Man., V, 29 e das
Ord. Fil., V , 32.
(2) Ord. Af.y V , 17: «Sobre todollos peccados bem parece seer mais torpe, çujo,
e deshonesto o peccado da Sodomia, e nom he achado outro tam avorrecido ante D eos,
e o m undo, como ele; ... E porque segundo a qualidade do peccado, assy deve grave
mente seer punido: porem M andamos, e poemos por Ley geeral, que todo hom em , que
tal peccado fezer, per qualquer guisa que seer possa, seja queimado, e feito per fogo em poo
por tal que já nunca de seu corpo, e sepultura possa ser ouvida memoria». N o mesmo sentido,
Ord. Man., V , 12, pr., e Ord. Fil., V , 13, pr. e 1.
(3) A punição autónoma do crime de incesto aparece pela primeira vez nas Ord.
Man., V, 13, pr.: «Toda pessoa de qualquer condiçam que seja, que dormir com sua filha,
ou qualquer outra sua descendente, ou com sua mãy, ou com qualquer outra sua ascen
dente, sejam queimados ambos, e feitos per foguo em poo». Ibidem, § l.°: «Outro si M andamos,
que o irmaõ que dormir com sua irmã mouram ambos morte natural». Ibidem, § 3.°: «E o
que dormir com sua nora, ou madrasta, posto que sejam viuuas, ou com sua enteada,
posto que a mãy da dita enteada já seja finada, ou com sua sogra, posto que a filha da dita
sogra já seja finada, mouram ambos morte naturaU. N o mesmo sentido, Ord. Fil., V , 17,
pr. e 1.
(4) As Ordenações consideram também delito sexual punível com a pena de
morte a união carnal de judeu ou mouro com mulher cristã ou vice-versa. D izem , a esse
propósito, as Ord. Af., V , 25, pr.: «...poem os por Ley e mandamos, que nenhuü Chris-
taão nom aja ajuntamento carnal com alguã Judia, ou M oura, nem Christaã com M ouro,
ou Judeu: e que qualquer, que o contrairo fezer, moira porem». E o § l.° do mesm o
título acrescenta: «E esto entendemos quando tal ajuntamento fosse feito per voontade,
e assabendas; ca se alguã molher de semelhante condiçom fosse forçada, nom deveria
por elio aver pena, soomente averia a dita pena aquele, que cometesse a dita força: e per
semelhante dizemos do que tal peccado fezesse per ignorancia, a saber, nom sabendo,
nem avendo justa razom de saber como a outra pessoa era de Ley desvairada;...». N o
mesmo sentido, Ord. Man., V , 21; e Ord. Ftl., V , 14.
A partir das Ordenações Manuelinas, aparece também previsto como delito autó
nom o, passível da pena de morte, o facto de entrar em mosteiro de freirás com fins
ilícitos (V, 22, pr.): «Qualquer pessoa, de qualquer qualidade e condiçam que seja,

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(«meter ou mandar meter merda em boca») (*), o homicídio voluntário (e até
os meros ferimentos, em circunstâncias especiais) (2), a falsificação de carta
que entrar em alguü M oesteiro de Freirás de Religiam aprouada, e for tomado dentro,
ou lhe for prouado que entrou, ou esteue de dia, ou de noute dentro no M oesteiro em
algüa casa, ou luguar que seja de dentro do ençarramento do M oesteiro, que pareça
que era pera algüa cousa ilicita nelle fazer, paguará cem cruzados pera o tal M oesteiro,
e mais moura por ello morte natural». D a mesma pena era passível o pião (mas não a
«pessoa de moor qualidade») «a que for prouado que tirou algüa Freirá dalguü Aloes-
teiro, ou que a dita Freirá por seu mandado, e induzimento se foi a certo luguar, donde
assi leuou, e se for com ella» ( Ibidem, V , 22, 1). D e qualquer maneira, acrescentava-se
que «a execuçam da morte nom se fará nos sobreditos casos, sem primeiro No-lo fazerem
saber» (Ibidem), Estes preceitos foram reproduzidos quase textualmente nas Ord.
Fil.y V, 15, pr. e 1.
C1) Ord. Af ., V , 32, 1: «...Estabelecemos e Poem os por Ley, que todo hom em ,
ou molher, que a outrem meter merda em boca, ou mandar meter, moira porem». A partir
das Ordenações Manuelinas, porém, o crime de injúria deixou, em qualquer caso, de ser
passível da pena capital.
(2) Ord. Af ., V, 32, 4: «...que todo hom em , de qualquer estado e condiçom
que seja, que matar outro a sem razom, que moira porem». Ibidem, V , 33, 7: «Porem
M andamos e estabelecemos, que qualquer hom em , ou molher, que outrem matar em
qualquer parte do Regno per vontade sem outra necessidade, que moira porem...».
Ibidem, V , 33, 8: «E se alguü Cavalleiro, ou Fidalgo de grande sollar for achado,
que matou alguém per vontade, tal como este nom seja julgado aa morte, a menos de o
fazerem saber a EIRey, pera elle veer sua pessoa, estado, e linhagem, e a morte como foi
feita, e o morto de que condiçom era, e a qualidade e circustancias da dieta morte; e assy
mandar, como achar por serviço de D eos, e bem da Republica».
As Ordenações Manuelinas reproduzem estas disposições, com variantes de forma,
em V , 10, pr. e V , 10, 1, respectivamente. M as previnem, pela primeira vez, certas moda
lidades de homicídio qualificado, a que mandam aplicar pena de morte agravada. Tais são
os casos de:
a ) Homicídio por dinheiro : «E qualquer pessoa que matar outra por dinheiro,
ser-lhe-ham ambas as maõs decepadas, e moura morte natural, e mais perca sua fazenda;
e ferindo outra pessoa por dinheiro, moura por ello morte natural. E estas mesmas penas
auerá aquelle que mandar matar, ou ferir outrem por dinheiro, seguindo-se a dita morte
ou ferimento» (V, 10, 2).
b) Homicídio com arma de tiro : «E se algüa pessoa de qualquer condiçam que
seja matar outrem com beesta, aalem de por ello morrer morte natural, lhe seram decepadas
as maõs ao pee do pelourinho. E se com a dita beesta ferir de prepósito com farpam, palheta,
seeta, ou viratam, posto que não mate, moura por ello morte natural» (V, 10, 3).
c) Homicídio de senhor, perpetrado por escravo : «Outrosi M andamos, que qual
quer escrauo, ora seja Christaõ, ora fora da L ey, que matar seu senhor, ou filho de seu
senhor, que seja atinazado, e lhe sejam decepadas as maosy e moura morte natural na forca
pera sempre. E se ferir seu senhor sem o matar, moura por ello morte natural» (V, 10, 6).
É curioso registar que as Ordenações Manuelinas, ao estabelecerem a pena de morte
agravada para qualquer destas 3 formas de homicídio qualificado, estipulam para os simples
ferimentos provocados nas mesmas circunstâncias a pena de morte simples. U m a quarta

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ou selo de El-Rei (*), a feitiçaria (2), o furto superior a determinado mon
tante, ou de certos objectos, ou praticados em certas circunstâncias (s), etc. (4).
hipótese em que a simples provocação de ferimentos se considera passível de pena capital
é a que vem prevenida mais abaixo, em V , 10, 8: «E qualquer pessoa de qualquer estado,
e condiçam que seja, que ferir a outra pessoa em rixa em Nossa presença, ou na casa onde
N ós esteuermos, moura morte natural e perca sua fazenda pera a Coroa».
Todos estes preceitos passaram às Ordenações Filipinas, V, 35, pr. ( = Man., V, 10, pr.),
V , 35, 1 ( = Man., V , 10, 1), V , 35, 3 ( = Man., V , 10, 2), V, 35, 4 ( = Man., V , 10, 3),
V , 41, pr. ( = Man., V, 10, 6) e V , 39, pr. ( = Man., V, 10, 8). D e novo, há apenas o facto
de aparecer referido agora autonomamente o crime de envenenamento, que é passível sempre
da pena capital, ainda que não tenha provocado a morte ( Ord. FU., V, 35, 2) ; e ainda o
facto curioso de o texto referente ao homicídio ou ferimento com besta, acrescentar «ou
espingarda». Para o crime de atirar «com Arcabuz de menos comprimento que de quatro
palmos de cano» há um texto novo e autónomo ( Ord. Fil., V, 35, 5), que manda aplicar
sempre a pena de morte «postoque não fira». Este último preceito tem a sua origem numa
lei de 3 de Agosto de 1557, que foi incluída na Colecção de leis extravagantes de D uarte
N unes de L eão, Parte IV, tít. 2.°, lei 11 (Cfr. Leis extravagantes collegidas e relatadas pelo
licenciado D varte N vnez do L ião per mandado do muito alto e muito poderoso Rei Dom
Sebastião Nosso Senhor. Ed. de Coimbra: N a real Imprensa da Universidade, anno de
M D C C L X X X X V I, pp. 412-413).
0 ) Ord. Af., V, 32, 3: «Outro sy esta meesma pena (pena de morte) aja o que falsar
Carta, ou Seello d’ElRey, ou d’outra qualquer pessoa de Villa, ou Concelho, como quer
que sejam autênticos». N o mesmo sentido, Ord. Man., V , 7, pr., e Ord. Fil., V, 52, pr.
D elito semelhante, e igualmente punido com a pena capital, era o da falsificação
de documentos por parte de funcionários dotados de fé pública (tabeliães, escrivães),
conforme preceito das Ord. Man. (V, 7, 4), que as Ord. Fil. reproduziram (V, 53, pr.).
N a mesma pena incorreriam os que ordenassem a tabelião ou escrivão a feitura de
documento falso (Ord. Man., V , 7, 5, e Ord. Fil., V , 53, 1).
(2) Ord. Af., V, 42, 3: «...estabellecemos e poem os por Ley em todos nossos
Regnos e Senhorio, que nom seja nenhuü tarn ousado, de qualquer estado e condiçom
que seja, que daqui em diante use de feitiçaria; e o que for achado que delia usou,
trautando por ella morte, ou deshonra, ou alguú outro dampno d’alguâ pessoa, ou seu
estado e fazenda, mandamos que moira porem». Em idêntico sentido, com mais porme
nor, Ord. Man., V, 33, pr. e 1; e Ord. Fil., V , 3, pr. e 1.
(3) Ord. Af., V , 65, 1: «...Que se alguum furtar na Villa ou no lugar, honde
he natural ou vizinho, que pollo primeiro furto qualquer que seja, ainda que seja maior
de vinte libras, escape per noveas, como manda seu foro, e seu custume antigo; e se nom
for natural ou vizinho da quelle lugar hu furtar, se o furto for pequeno ataa vinte libras,
e for o primeiro furto, seja-lhe guardado o foral das noveas ; e se for de vinte libras pera cima,
nom lhe valham noveas, e moira porem». N o mesmo sentido, Ord. Man., V, 37, pr.
e Ord. Fil., V , 60, pr., com a diferença de que o lim ite passou a ser um marco de prata.
As Ord. Man. e as Ord. Fil. mandam igualmente punir com a pena capital, em
matéria de furto:
a) Aquele que «abrió algüa porta, ou entrou em algüa casa, que estaua fechada,
por a porta, ou janela, ou telhado, ou por qualquer outra maneira, e que furtou meo
(A nota 4 encontra-se nas páginas seguintes)
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A condenação à morte — na expressiva frase das Ordenações: «moira
marco de prata, ou sua valia, e di pera cima» ( Ord. Man., V , 37, 1, na sequência dum
Alvará de 12 de Outubro de 1515, e Ord. Fil., V , 60, 1);
b) Aquele que fez «tres furtos por desuairados tem pos, se cada huú dos ditos
furtos por si valer huü cruzado ao m enos,... posto que já por o primeiro, ou segundo,
ou por ambos fosse punido» ( Ord. Man., V , 37, 3 e Ord. Fil., V, 60, 3);
c) Aquele «que furtar algüa prata, ou ouro de Igreja, de dentro da Igreja, ou
M oesteiro, ou d’algüa casa que dentro do circuito da dita Igreja, ou M oesteiro esteuer, ou
furtar algüa escriptura d’alguü cartono das taees Igrejas, ou M oesteiros,... posto que
nom achegue a valia de marco» ( Ord. Man., V , 37, 4 e Ord. Fil., V , 60, 4);
d) Aquele «que comprar algüa cousa que verisimelmente pareça segundo a quali
dade da cousa, e da pessoa que a vende, que he furtada, ou que nom he da quelle que
a vende, e despois se prouar que a dita cousa era furtada», se ao respectivo furto corres
ponder pena capital, já que se determina «que aquelle que assi a comprou seja punido,
como se a furtara» ( Ord. Man., V , 37, 5 e Ord. Fil., V , 60, 5);
e ) Aquele que praticou o crime hoje denominado abuso de confiança (e que as
Ordenações curiosamente qualificam de «furtos (que) se fazem por algüas pessoas nom
começando em furto, por as cousas furtadas a princípio virem aa sua maõ por vontade
de seus donos»), se for entendido, «segundo o aluidro do Julgador», que a gravidade
do caso justifica a pena de morte ( Ord. Man., V , 37, 8 e Ord. Fil., V , 60, 8). (Para
este delito, as Ord. Man. estabelecem taxativamente a pena capital «em todo caso que
o furto for de dez marcos, ou sua valia», o que já não acontece nas Filipinas, que deixam a
graduação da pena, em qualquer hipótese, ao arbítrio do julgador);
f) Aquele que furtar coisa de valor superior a m il reais, com violência contra
as pessoas («por força, e contra vontade daquelle, que a em seu poder teuer») (Ord.
Man., V , 38 e Ord. Fil., V , 61).
É de notar, ainda, que tanto as Ord. Af. (V, 54, 4), como as Man. (V, 41, pr. e 1),
como as Fil. (V, 62, pr. e 3) mandam punir como furto a conservação indevida da coisa
achada.
(4)B a sta n te s outros casos havia, ainda, para os quais as Ordenações cominavam
a pena capital, especialmente as Ordenações Manuelinas e as Filipinas, nesta matéria muito
mais minuciosas e tècnicamente mais perfeitas que as Afonsinas.
T al é, designadamente, o caso (transcrito duma lei de D . Afonso V , de 5 de
Março de 1450, que figura em apenso ao livro II das Ord. Af., como «título 123») de
«qualquer que abrir N ossa Carta assinada por N ós, na qual sejam contheudas algüas
cousas de segredo,... e o segredo delia descobrir, do que a N ós poderia viir alguü im pe
dim ento, ou desserviço» ( Ord. Man., V , 80, pr. e Ord. Fil., V, 8, pr.); e o caso de alguém
«do nosso Conselho de qualquer estado, e condiçam que seja, que descobrir os segredos,
que N ós com elles em Conselho Praticarmos, e Falarmos» ( Ord. Man., V , 80, 6 e Ord.
Fil. V , 9, pr.).
Tais são igualmente os casos dos ourives que falsificam a liga de ouro ou prata,
«se a falsidade, ou falsidades que teuer feitas cheguarem á verdadeira valia de huü marco
de prata» (Ord. Man., V , 6, 7 e Ord. Fil., V , 56, 4); «Dos que falsificão mercadorias»,
«se a falsidade... valer huü marco de prata (Ord. Man., V , 87, 1 e Ord. Fil., V , 57);

430
porem»3 «moura por ello» ou «morra por isso»(1) — dava lugar normalmente
à simples execução na forca (2); mas podia5 no caso dos delitos mais graves,
ser executada com especiais requintes de crueldade. O género de morte,
então, ou era fixado expressamente na lei — «deve de morrer morte de
fogo», «seja queimado, e feito per fogo em poo, por tal que já nunca de
seu corpo, e sepultura possa seer ouvida memoria» —, como era o caso
dos crimes de moeda falsa e de sodomia, respectivamente (3), ou era deixado
«Dos que m edem , ou pesão com medidas ou pesos falsos», «se a falsidade... valer hum
marco de prata» ( Ord. Fil., V , 58); «Dos que m olhão, ou lanção terra no pão, que trazem,
ou vendem», «se o dano e perda, que se receber do tal pão, valer dez mil reis» (Ord.
Man., V, 87, pr. e Ord. FU., V , 59); etc.
0 ) Das transcrições feitas nas notas anteriores pode facilmente ver-se que a
expressão «moira porem» é a preferida das Ordenações Afonsinas e que a expressão «moura
por ello» é característica das Ordenações Manuelinas. As Ordenações Filipinas empregam
normalmente a expressão «morra por isso«.
(2) As Ordenações não se referem à forma de execução da pena de morte senão
quando pretendem impor uma forma especial (V. as duas notas imediatas). Sabe-se,
porém , que a forma ordinária da execução era a forca, com o, aliás, indirectamente
se infere das próprias Ordenações Afonsinas, ao falarem do «foro e custume antigo»
de o ladrão de primeiro furto se poder livrar da pena capital pagando «anoveas» «ao
pee da forca» (V, 65, 1). Cfr. Eduardo C orreia, Sobre as penas e sua graduação,
cit., p. 23. Este nosso ilustre colega chama também a atenção, em nota, para a
Crónica de D. João II, de R uy de P ina, da qual se infere, a propósito da execução
do Duque de Bragança, que a forma normal da execução, quanto aos fidalgos, era
a degolação (Cfr. R uy de P ina, Croniqua delRey Dom Joham II (nova edição com prefácio
e notas de Alberto Martins de Carvalho. Atlântida — Coimbra, 1950), pp. 48 a 50.
Ver também, em anexo (Documentos), a Sentença do Duque de Bragança (ibidem,
pp. 216 a 224).
Nas Ordenações Manuelinas e nas Filipinas, já aparecem textos que mandam
aplicar expressamente a pena de morte na forca ( Ord. Man., V, 10, 6, transcrito supra,
nota 2 da p. 428, e Ord. Fil., V, 80, 8); e há outros textos dos quais se infere que a forma
de execução (designadamente a forca e a degolação) podia ser fixada livremente pelo
juiz na sentença condenatoria, quando não havia forma específica de execução imposta
pela lei (Ord. Man., V, 44, 7: «...e como forem presos, se a condenaçam for de morte
natural, sejam loguo enforcados, ou degolados, segundo na sentença for contheudo»,* e Ord.
Fil., V , 126, 7, em texto idêntico).
(3) As frases transcritas no texto pertencem às Ord. Af., V , 5, 4 (cfr. supra, nota 1 da
p. 425) e V, 17 (cfr. supra, nota 2 da p. 427). A morte pelo fogo era a que as Ordenações
impunham, não só nos dois citados casos de moeda falsa e de sodomia, como ainda,
a partir das Ordenações Manuelinas, no caso de «homem, ou m olher, que dormir carnal
mente com algüa alimaña» ( Ord. Man., V, 12, 4 e Ord. Fil., V , 13, 2) e no crime de incesto
entre parentes em linha recta (Ord. Man.,V, 13, pr., transcrito supra, nota 3 da p. 427;
e Ord. Fil., V, 17, pr.).
As Ordenações Afonsinas não prevêem específicamente outra forma de morte cruel
senão a de fogo (muito embora refiram, como se dirá na nota imediata, a «morte cruel»

431
ao arbítrio e imaginação do juiz, limitando-se a lei a afirmar, como no crime
de lesa-majestade, que o réu «deve por ello morrer naturalmente de morte
cruel» C1).
não especificada). As Ordenações Manuelinas e as pelo contrário, indicam várias
vezes formas específicas de crueldade na execução da pena.
T al é o caso do homicídio por dinheiro ou com arma de tiro, em que a execução
deve ser precedida de decepamento de ambas as mãos ( Ord. Man., V, 10, 2 e V , 10, 3, trans
critos supra, nota 2 da p. 428; e Ord. Fil., V, 35, 3 e V, 35, 4); e ainda o caso do homicídio
do senhor perpetrado pelo escravo, em que a execução deve ser precedida de atenazamento
(ou seja, apreensão de tecidos com tenaz em braza) e decepamento de ambas as mãos
(Ord. Man., V , 10, 6, transcrito supra, mesma nota; e Ord. Fil., V, 41, pr.).
C1) A frase transcrita no texto pertence às Ord. Af., V , 2, 12 (cfr. supra, nota 3
da p. 424), N o mesmo sentido, Ord. Man., V , 3, 9 e Ord. Fil., V , 6, 9.
A execução da pena máxima tinha o seu ritual, que a prática foi consagrando e que
as Ordenações Filipinas em parte referem (V, 137, 2 e 3) ; e a sentença de morte podia conter
indicações sobre a forma da execução, m esm o quando a lei não exigisse morte cruel.
É impressionante, a esse respeito, a minuciosa descrição feita do macabro cerimonial da
execução, na obra de M anoel L opes F erreira, Pratica criminal, expendida na fórma da
praxe observada neste nosso Reyno de Portugal, tom o IV (Lisboa, 1761), pp. 98 e ss.
Transcreveremos alguns excertos:
«2. Em quanto á primeira, que he sobre a execução corporal, ou de morte*
devemos saber, que tirada a sentença do processo, se notifica logo ao Reo condemnado,
e feita a notificaçaõ no primeiro dia, trata logo o padecente do Sacramento da peni
tencia, confessando-se de todos seus peccados, no segundo dia recebe o Santíssimo Sacra
mento da Eucharistia por modo de viatico, chamadas, e convocadas pessoas Religiosas,
e de conhecido espirito, e virtude, para que o disponha, e solicite á conformidade, que
deve ter com a vontade de D eos, e da Justiça para morrer no patíbulo, ou lugar depu
tado, a que chamaõ forca, com hum conhecimento verdadeiro, de que morre pelas
culpas que tem commetido: e naõ vay a padecer nesse dia em reverencia do Senhor
que recebeo nelle, mas no dia seguinte, que he o terceiro, depois da notificaçaõ, vay
de manhãa fazerse a dita execuçaõ na pessoa do tal Reo sendo primeiro avisados os
Irmãos da Santa Casa da M isericordia em tudo piissimos pelos exercicios em que se
occupaõ, os quaes o acompanhaõ até a quelle referido lugar.
3.Nesta mesma forma se executaõ também as sentenças dadas aos condemnados
a morte, ou seja indo por seu pé ao lugar do patíbulo, onde se lhe ha de dar o garrote,
ou seja indo a a arrastar, ou atanazar, e ultimamente a morrer; porque para todas
estas execuçoens, se obra sempre primeiro o que assima dissemos. A fôrma de arrastar
he quando o caso he muito mais grave, e atroz, e sendo o crime de leza M agestade
Divina, ou humana da primeira cabeça; e sempre os Irmãos da Santa Casa da M ise
ricordia, levaõ o couro em q o tal padecente vay deitado, no ar, levantando-o do chaõ;
para que aquelle corpo naõ se vá arrastando, e pizando, pelas ruas; e pelo qual vay
puxando hum cavallo. E a fôrma de atanazar sò se executa hoje nos pretos quando
mataõ a seus senhores, ou fazem outros crimes graves pelos quaes merecem este
castigo: vay posto em hum carro, nù da sintura para sima, e junto a elle hum brazeiro
com uma tanaz, e nos lugares aonde o porteiro deita o pergaõ, o algòs pega na dita

432
A sentença de morte podia também resultar de decisão pessoal e
arbitrária do monarca, sem julgamento prévio; mas, neste caso, a execução
devia retardar-se vinte dias, «porque a sanha sooe a enbargar o coraçom,

tanaz em braza, e com ella lhe aperta as carnes das costas. Estes padecentes despois de
chegados ao lugar do ultim o suplicio, saõ enforcados, e feitos em quartos, e decepadas
as mãoos, ou conforme a sentença declara se faça a tal execução, e os quartos, e a
cabeça os vay pòr o algós onde pela Justiça lhe he mandado, em lugar alto onde seja
visto de todos, e ficaõ ahi até que o tem po os consumad, sendo sempre os taes padecetes
acompanhados com os Padres em quanto vaõ para o suplicio, e atè que morraõ: pois sò
atendem à salvaçaõ das suas almas, por meyo das confiçoens, e arrependimento de suas
culpas.
4. E na mesma fórma se obra, quando também pelos crimes que comm etem ,
saõ sentenciados a morrer queimados, ou sejaõ vivos, ou de garrote : de garrote he quando
commettem o crime de moeda falsa, sodom ia, bestialidade, e outros semelhantes; porque
feitas as disposiçoens referidas se lhe dà o garrote, estando sentado em sima de hum barril
de alcatraõ; e lhe poem o fogo depois de morto.
5. E se he por furto de Sacrameto, he na mesma forma de arrastados, e chegando
ao lugar do patibulo se lhe corta primeiro a maõ, e se lhe m ette o pulso em trometina
fervendo, despois se lhe dà o garrote setado no barril de alcatraõ, e depois de morto se
lhe poem fogo; Assim saõ também os relaxados por judaismo, excepto o decepamento
de maõ, e arrastado.
6. Porém os que negaõ a verdadeira Fè, de N osso Senhor Jesu Christo, saõ quei
mados vivos, fazendose-lhe huma polé alta em que estaõ sentados prezos, e debaixo se
ascende huma grande fogueira,...».
A mesma obra dá-nos seguidamente outros esclarecimentos curiosos, já não sobre
a forma da execução, mas sobre vários factos e circunstâncias relacionados com a apli
cação da pena capital. Abona-se, nesse sentido, na citação de numerosas obras doutrinais,
o que parece indicar que não se tratava de meras práticas costumeiras, mas de problemas
levantados e solucionados pelos praxistas, a este propósito. Ficamos assim a saber:
a) Que a pena de morte e as demais penas corporais não se executavam em dias
feriados, nem em domingos ou dias santos, excepto se se destinassem a castigar o crime
de lesa majestade divina (auto-de-fé) (Ibidem, n.os 11, 12 e 13, a p. 101);
b) Que a execução devia consumar-se em lugar público e costumado, mas que
a sentença podia ordenar a execução no lugar do crime, ou ter lugar ocultam ente por
ordem do Rei (Ibidem, n.os 14 e 15, a p. 101);
c) Que, não havendo carrasco, podia o juiz ordenar que a execução fosse feita
por um carniceiro ou o esfolador seu ajudante (Ibidem, n.os 16 e 17, a p. 101);
d) Que era necessária autorização superior para levantar o corpo do executado
e dar-lhe sepultura (Ibidem, n.° 19, a p. 102);
e) Que os corpos dos sentenciados, «pelo costume antigo do direito comm uni, se
podiaõ dar aos M edicos para nelles fazerem anatomia», excepto se tivessem sido esquar
tejados e devessem ficar expostos ao tem po até se consum irem , como era de norma em
certas execuções (Ibidem, n.° 20, a p. 102);

433
28 — II Voi.
em tanto que nom pode homem veer direitamente as cousas», e a sentença
só se tornaria executória, «se a Nós em este comeos nom revogarmos» (-1).
Todo este rigor legal encontrava apenas, na letra das Ordenações,
a limitação resultante do perdão ou comutação da pena por graça do rei,
f) Que os corpos dos executados deviam conservar os seus vestidos, sendo casti
gados os que deles os espoliassem (Ibidem, n.os 21, 22 e 23, a p. 102);
g) Que, exceptuado o caso de lesa-majestade divina (auto-de-fé), a aplicação
da pena de morte pelo fogo se devia sempre entender com o garroteamento, seguido de
incineração post mortem (Ibidem, n.os 25, 26, 27 e 28, a pp. 102-103);
h) E , finalmente, que, no crime de sodomia ou de bestialidade, o condenado
devia ser afogado no lugar do suplício e seguidamente queimado (Ibidem, n.° 29,
a p. 103).
(l) As Ordenações Afonsinas — mas já não assim as Manuelinas e as Filipinas —
deixam várias vezes ao arbítrio do Rei a determinação da pena a aplicar a certos
delitos: V, 2, 21 («que a pena corporal seja em nosso alvidro, pera nós darmos a esse
malfeitor a pena, que acharmos per direito, e nos bem parecer que esse malfeitor merecer»);
V , 31, 4 («e os seus corpos e averes sejam obrigados a m im , e aa minha Justiça, pera lho
eu estranhar, como for minha mercee»); V , 43, 4 («e esté aa mercee do dito Senhor Rey
pera lhe dar pena, qual entender»); V , 45, 13 («em esta parte mandamos, que a pena fique
em nosso alvidro, pera nos veermos o caso qual for, e assy lhe darmos aquella pena, que
nos bem parecer, e acharmos per D ireito que em tal caso caberá»); etc..
N ão era, porém, para estes casos duma justiça régia regularmente exercida (embora
com fixação arbitrária da pena) que se preceituava a suspensão por 20 dias da sentença
de m orte, mas sim para a sentença sumária, proferida arbitràriamente, e sem processo
prévio, pelo monarca. Eis o teor completo da citada Ordenação (V, 70):
«EIRey D om Affonso o Segundo, de m uito gloriosa e esclarecida memoria, em seu
tem po fez Ley em esta forma, que se segue.
1. Porque a sanha sooe a enbargar o coraçom, em tanto que nom pode hom em
veer direitamente as cousas; porem estabellecem os, que se per ventura N ós per m ovi
m ento de nosso coraçom alguém julgarmos aa morte, ou que lhe cortem alguü m embro,
tal Sentença seja perlongada ataa vinte dias; e des i adiante seja a dita Sentença dada aa
eixecuçom , se a N ós em este cómeos nom revogarmos.
2. E vista per N ós a dita L ey, declarando em ella dizem os, que aja lugar naquelle,
que N os condepnarmos per nosso proprio m oto, sem outra hordem e figura de Juizo,
por ira ou sanha que delle ajamos; e aquelle que for condapnado per via e hordem
de Juizo, seendo primeiramente ouvido com seu direito, tal como este mandamos, que
tanto que for condapnado per N os, ou per nossos Desenbargadores, que pera ello tenham
nossa authoridade, logo seja feita em elle eixecuçom , ou o mais cedo que se honesta
mente possa fazer, dando-lhe tem po, em que razoadamente confessar possa seus pecados;
ca em outra guisa ligeiramente se poderia dar aazo, per que esse condapnado fogisse da
prisom, e perecer Justiça, o que sempre devemos tolher e desviar a todo nosso poder».
Este preceito passou, melhorado na forma, para as Ord. Manuelinas (V, 60, pr. e 1)
e para as Filipinas (V, 137, pr. e 1). L opes F erreira, na cit. Pratica Criminal (cit. tom o IV,
p. 105), atribui a origem deste preceito ao direito romano: l. si vindican Cod. De pen.
( = C. 9, 47, 20). É possível que assim seja. A dilação consignada nessa passagem do
Código Justinianeu é, porém , de 30 dias.

434
que podia ter lugar, não só na hipótese acabada de indicar — sentença
de morte proferida arbitràriamente pelo monarca—, como no caso de
vários delitos de gravidade duvidosa, expressamente apontados na lei,
em que o recurso à Coroa era obrigatório, «pera nós veermos o caso qual
he com suas qualidades, e circunstancias, e assy mandarmos como for
nossa mercee»^). E, com o andar do tempo, não só foi alargado o número
de casos concretos de recurso obrigatório à clemência régia (2), como passou
C1) As palavras citadas no texto pertencem às Ord. A f, V , 11, 2 (cfr. supra, nota 2 da
p. 426) e referem-se à pena de morte mandada aplicar ao «que casa, ou dorme com parenta,
ou manceba daquelle, com que vive». N o mesmo sentido, Ord. Man., V , 18, 1 e Ord.
Fil., V , 24, pr.
O recurso obrigatório à clemência régia encontra-se igualmente estabelecido a
propósito da condenação à morte «Do H om em , que casa com duas m olheres, ou com
criada daquelle, com que vive» (Ord. Af ., V , 14, 3). A este propósito, as Ord. Man.
limitaram o campo do recurso obrigatório, que passou a ter lugar apenas «se o conde
nado aa morte polo dito caso, e maleficio, for menor de vinte e cinco annos, ou for hom em
Fidalguo, e por tal auido, e a segunda molher com que casou for de baixa condiçam, ou
se o dito condenado sendo-lhe fogida aprimeira m olher casou com a segunda, sem saber
certo que era a primeira viua, ou em outros casos semelhantes» (Ord. Man., V , 19, 1).
N o m esmo sentido, Ord. Fil., V , 19, 1.
Outro tanto sucede, ainda, no hom icídio praticado por «cavalleiro, ou Fidalgo de
grande solar», conforme o estabelecem já as Ordenações Afonsinas, V , 33, 8 (texto transcrito
supra, nota 2 da p. 428) e, depois delas, as Ord. Man. (V, 10, 1) e as Ord. Fil. (V, 35, 1).
(2) Enquanto as Ordenações Afonsinas só previam o recurso obrigatório à clem ência
régia nos três casos indicados na nota anterior, as Ordenações Manuelinas e as Filipinas
alargaram ampiamente o número desses casos. Tais são, pelo m enos, os seguintes:
a) N o crime de violação : D epois de se estabelecer que «todo hom em de qualquer
estado, e condiçam que seja, que forçosamente dormir com qualquer m olher, posto que
escraua, ou molher que guanhe dinheiro por seu corpo seja, moura por ello», acres
centa-se que «porem quando for com escraua, ou molher que guanhe dinheiro por seu corpo,
nom se fará execuçam atee N o-lo fazerem saber, e por N osso Mandado» (Ord. Man., V , 14,
pr. e Ord. Fil., V , 18, pr.);
b) N o crime de adultério, se se tratar de «Caualeiro, ou Fidalguo de solar, e o
marido da molher, com quem assi o dito Caualeiro, ou Fidalguo dormio, for de menor
condiçam» ( Ord. Man., V , 15, pr., transcrito supra, nota 1 da p. 426, e Ord. Fil., V , 25, pr.);
c ) N a pena de morte de que é passível o pião que tirou freirá de mosteiro ou que
a induziu a ir a certo lugar para a levar (Ord. Man., V , 22, 1, transcrito supra, nota 4
de pp. 427-428, e Ord. Fil., V , 15, 1);
d)N a condenação à morte por crime de feitiçaria, quer através da invocação de
«espritos diabólicos», «em circulo, ou fora delle, ou em encruzilhada», quer por ter dado
«a comer, ou beber qualquer cousa pera querer bem , ou mal a outrem, ou outrem a elle»,
pois que, «em estes dous casos sobreditos nom se fará execuçam, atee N o-lo primeiro
fazerem saber, pera Vermos a qualidade da pessoa, e o m odo em que se taees cousas
fezeram, e sobre ello Mandarmos o que se aja de fazer» (Ord. Man., V, 33, 1 e Ord. Fil.,
V , 3, 1);

435
a ser imposição legal solicitá-la sempre que o monarca estivesse no lugar
onde o condenado à morte se encontrava preso a aguardar execução
— a partir das Ordenações Manuelinas (*) — e sempre que o condenado
fosse pessoa nobre com a categoria de «cavalleiro* ou dahi para cima» —
a partir das Ordenações Filipinas (2). Mas, para além destes casos, a prática
dos nossos tribunais e a doutrina dos nossos praxistas tinham-se encarregado
de fixar uma longa lista de motivos pelos quais se devia adiar a execução ou
considerar a pena automàticamente perdoada ou comutada (3); e, por outro
e ) N o caso de furto de prata, ou ouro, ou escritura, ou outra coisa de Igreja ou
Mosteiro (cfr. supra, nota 3 de pp. 429-430, alínea c) ( Ord. Man,, V , 3 7 ,4 e Ord. Fil, V , 6 0 ,4 ) ;
f) N o caso do crime hoje denominado abuso de confiança, relativamente a coisa
de valor igual a dez marcos (Ord. Man,, V , 37, 8) — caso que deixa de ser referido nas
Ord, FU., pelos m otivos já indicados supra mesma nota, alínea e).
C1) Ord. Man., V , 60, 1: «...loguo seja feita execuçam o mais cedo que honesta
m ente se possa fazer,... saluo se o condenado aa morte esteuer preso no luguar onde Nós a
esse tempo Esteuermos ; cá em tal caso ante de se nelle fazer execuçam de morte N o-lo
faram saber». N o mesmo sentido, Ord. Fil., V, 137, 1.
(a) Ord. Fil., V , 137, 1: «...E procedendo-se summariamente contra algum Cavai-
leiro, ou dahi para cima, e sendo condenado á morte, antes de se fazer execução, nol-o
farão saber, postoque stemos fora do lugar, onde se houver de fazer».
Conforme foi visto nas notas 1 e 2 da p. 435, o recurso obrigatório à clemência
régia com fundamento na categoria social do condenado já estava previsto nas Ordenações
Afonsinas para o crime de homicídio (V, 33, 8); e foi alargado pelas Manuelinas ao crime
de bigamia ( Ord. Man., V, 19, 1) e de adultério ( Ord. Man., V , 15, pr.), As Ordenações
Filipinas, portanto, a este respeito, passam a consagrar como regra geral o que antes só
tinha aplicação a casos isolados.
(8) Pode ver-se uma extensa enumeração de casos de adiamento e de perdão da
pena de morte em M anoel L opes F erreira, ob. e voi. cits., pp. 103 e seguintes.
Eram causas de adiamento da execução, designadamente, as seguintes:
a) «O caso em que o Reo se opponha a dita exeção (sic) com alguma excepção
relevante» (loc. cit., n.° 32, a p. 103) — caso que, aliás, se acha expressamente previsto
nas Ord. FU., V , 137, 4;
b) «Se o Reo pedir, que o admitaõ a produsir, ou fazer perguntar testemunhas
sobre o que foy articulado na causa, allegando, e mostrando, que por estarem auzentes
no tempo da inquirição, ou por outra justa causa, naõ poderaõ ser perguntadas a seu
tempo» (ibidem, n.° 34, a p. 104);
c) «Se o condemnado era procurador de alguém, ou administrador de alguns
bens, e o senhor lhe pede conta delles, e de seus rendimentos, com tanto, que a dilacção
seja pequena, e que possa a conta concluirse em tres dias» (ibidem, n.° 35, a p. 104);
d) «Se a condemnada for mulher, que esteja prenhe», caso em que só deve ser
executada depois do parto (ibidem, n.os 37, 38 e 39, a p. 104);
e) «Quando o Reo condemnado propuzer contra outra (sic) alguma accusaçào;
porque em quanto se naõ finda, se deve suspender a execuçaõ» (ibidem, n.° 43, a p. 105);
f) «Quando o Principe, sem conhecimento algum da causa, m ovido só pelo calor
da ira e paxaõ, mandou proceder contra o Reo a pena de morte» ( ibidem, n.os 45 a 50,

436
lado, a já referida brandura de costumes e generosidade de coração da
a pp. 105 a 107) (é o caso expressamente previsto nas Ordenações e referido supra, nota 1
P. 434);
g) «Se depois de commetido o delieto, ou feita a condemnação, o delinquente
enloquecer, e se fizer furioso; no qual caso se resolve, que no tem po do furor se naõ deve
castigar... E neste caso se dá credito aos M edicos, em quanto pòde durar a louquisse
ou furor do Reo» (ibidem, n.os 63 a 66, a pp. 108 e 109);
h ) «Se aquelle que for condemnado em sua auzencia, quizer antes que a sentença
se execute na sua pessoa, provar a sua innocencia:... com tanto que a pareça dentro
do anno, e antes de ser prezo se venha meter na prizão, para della se defender» (ibidem,
n.os 68 e 69, a p. 109, de acordo, aliás, com o expressamente disposto nas Ord. Fil.,
V , 126, 7).
Eram, por outro lado, causas de comutação ou de perdão da pena de morte, designa-
damente, as seguintes:
a) «Quando o Reo, que está sentenceado, e condemnado, era peritíssim o, e muito
insigne na sua arte: porque semelhante qualidade de hom em , e que tem tal engenho naõ
deve morrer; e sómente deve ser castigado com outra pena, dando-se parte ao Príncipe,
para convir nesta commutação» (ibidem, n.° 36, a p. 104);
b) «Quando o baraço, do que está ja pendurado na forca se quebra, e cahe o corpo
no chaõ : porque isto se reputa por milagre, e se naõ deve reiterar o supplicio, visto que o
instromento da morte lhe sugerio a vida» (ibidem, n.° 42, a págs. 105); mas o nosso infor
mador acrescenta que nem todos assim entendem , citando vozes discordantes a este respeito;
c) «Se o Rey, ou o Príncipe perdoa ao delinquente, porque por este Decreto fica
livre daquella pena de morte» (ibidem, n.° 44, a p. 105);
d) «Se o condemnado quãdo he levado ao suplicio fugir para a Igreja; porque
neste caso lhe aproveita a immunidade, e naõ pòde ser tirado para o supplicio, e dahi
da Igreja deve ser solto, e ir para sua casa perdoado... E isto também se entende ao caso,
em que o condemnado fuja para o Sacerdote que leva o Santíssimo Sacramento da Eucha-
ristia, e se abrasse com elle»; mas tudo isto com a importante restrição de que só aproveita
«aquelle condemnado ao qual devia aproveitar a immunidade da Igreja, se antes de condem
nado fugisse para ella»; e o nosso informador fornece seguidamente uma longa lista de
crimes para os quais, pela sua gravidade, não existe protecção da imunidade eclesiástica
(ibidem, n.os 53 a 61, a pp. 107 e 108);
e) «Se aquelle delinquente no tem po que comm etteo o delicto ja era furioso;
porque entaõ, ainda que delinquente, naõ pode ser castigado com pena alguma» (ibidem,
n.° 67, a p. 109);
f) «Se o Reo de novo quizer vir com alguma excepção, dizendo que he de menor
idade, o que atè li naõ tinha m ostrado...; porque a isto sempre deve o menor ser admit-
tido, por ser de direito que aos menores se deminuaõ as penas dos delictos, que commetterem»
(ibidem, n.° 70, a p. 109);
g) «Se aquelle que he condemnado a forca... he taõ Nobre que está excuso de
pena vil; porque este também pòde vir com esta excepção contra a execuçaõ da sentença,
e se lhe deve admittir, para effeito de se lhe impor a pena competente a sua Nobre sa»;
mas o nosso informador esclarece que «porém isto naõ deve ter lugar naquelles crimes
pelos quaes se perde de jure a nobreza» — e que são os enumerados nas Ord. FU., V , 138, 2
(ibidem, n.os 73 a 80, a pp. 110 e 111);
437
nossa gente fazia que, na prática, o quadro da justiça penal do chamado
«Antigo Regime» fosse entre nós muito menos sombrio do que o pintavam
as leis e que ficasse, sobretudo, muito longe da rigidez e dos extremos
atingidos no mesmo período noutros países da Europa.
3. Teoricamente, porém, as coisas encontravam-se assim, ainda na
segunda metade do séc. xvni; e o século xvm timbrou mesmo em ser,
durante o consulado do Marquês de Pombal, um dos períodos em que
a nossa justiça penal fez uso mais violento e mais cruel das duras leis que
nos regiam 0 .
Foi então que se difundiu na Europa, procedente de Itália, o movi
mento humanitarista, de directa filiação na filosofia iluminista e no enciclo
pedismo francês, e dentro do qual a abolição da pena de morte culminava
uma série de reivindicações instantes para a reforma do direito penal vigente.
Foi porta-bandeira desse movimento, como é sabido, o Marquês de Beccaria,
César Bonesana, cujo famoso ensaio Dei delitti e delle , publicado em
Livorno em 1764, ràpidamente adquiriria uma divulgação e aceitação raras
vezes atingidas por qualquer obra literária na história da cultura europeia (2).
h) E , Analmente, «se a quelle que he condemnado a pena de m orte, ou outras penas
corporaes, he Clérigo, ainda que subisse ao estado Clerical despois do delieto commettido :
porque de toda a sorte fica izento de semelhantes penas: e deve ser remittido ao juiso
Ecclesiastico, para que nelle se castigue com a pena, que merecer» ( ibidemy n.os 83 a 89,
a págs. 111).
C1) Cfr. E d u a r d o C o r r e ia , ob. cit.y p . 59.
(2) O mais completo e mais perfeito estudo bibliográfico sobre Beccaria é o que,
em comemoração do 2.° Centenário da publicação da sua obra Dei delitti e delle pene
(em 1964), publicou o ilustre professor de língua e literatura italianas na Faculdade de
Letras de Coimbra G iacinto M anuppella: «Cesare Beccaria (1738-1794). Panorama
bibliografico», no Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbray vol. X X X IX ,
pp. 107 a 375, de que existe separata (Coimbra, 1964, 292 pp.).
N esse valioso e pacientíssimo estudo, o Prof. M anuppella começa pela tarefa de
recolher notícia de toda a bibliografia conhecida sobre «Cesare Beccaria: l’uom o e la
famiglia» ( l.a Secção); «C. B. nei Dizionari Enciclopedici» (2.a Secção); «Opere generali
con riferimenti a C. B.» (3.a Secção); e obras várias «sulle condizioni politico-sociali e
intellettuali d’Europa e d’America al tem po de C. B.» (4.a Secção). Num a 5.a Secção, que
é o objectivo fundamental do trabalho, recolhe notícia de todas as edições em língua italiana
e traduções estrangeiras das obras de B eccaria, e especialmente do ensaio Dei delitti e
delle pene (pp. 40 a 162); e, finalmente, consagra uma 6.a Secção ao estudo dos «Echi
e riflessi del pensiero di C. B. negli ambienti intellettuali italiani e stranieri» e urna 7.a e
ùltima Secção aos «Studi vari sul pensiero e sull’opera di C. B.».
Aqui interessa particularmente frisar que a 1.a edição Dos delitos e das penas veio
a lum e em Livorno, em Julho de 1764, sem indicação de autory nem de lugar de publicaçãoy
nem de impressor; portanto, sob anonimato absoluto: Dei delitti e delle pene (In rebus

438
Não era Beccaria um filósofo nem muito menos um penalista, mas
antes — e simplesmente — um jovem idealista, de velha ascendência nobre,
que aos vinte anos se lança sôfregamente na leitura dos enciclopedistas
franceses, após oito anos de educação de tipo clássico num colégio da
Companhia de Jesus, e que aos 26 publica timidamente, sob a capa do
anonimato, sem a menor confiança em si e apenas incentivado pelos seus
companheiros de tertúlia dum café milanês, o ensaio que viria mais tarde
a imortalizá-lo (x). Ele próprio confessa, numa das suas cartas, que deve
quibuscumque difficilioribus non expectandum, ut quis simuli & serai, &* metati sed praepa-
ratione opus esti ut per gradus maturescant. Bacon. Serm. fidel, num. X L V ). M D C C L X IV ;
e que a 2.a edição saiu logo um m ês depois (Agosto de 1764), com a indicação fictícia
«In Monaco», mas, na realidade, impressa na mesma tipografia de Livorno (de M arco
Coltellini). Com lugar de publicação falseado («In Lausanna»), saiu ainda a 3.a edição,
em 1765, que, como as anteriores, não contém ainda o nome do autor e foi efectivamente
impressa em Livorno (agora, na tipografia de Pietro Coltellini). Só na 4.a edição (1766)
aparece, pela primeira vez, o nome do autor.
Para fazer uma ideia da difusão do livro de B eccaria, bastará dizer que, ao dobrar
do século (1800), tinha já tido 23 edições em língua italiana e que, até hoje, além de 72 edições
em italiano, já foi objecto de 23 edições em língua francesa, 15 edições em língua alemã,
16 edições em língua inglesa, 6 edições em russo, uma em holandês, 8 em espanhol, uma em
sueco, uma em dinamarquês, duas em grego, 3 em húngaro, uma em sérvio, uma em checo,
uma em polaco, 5 em português (todas saídas a lum e no Brasil) e uma em turco. As mais
antigas traduções foram as que, logo em 1766, se fizeram em língua francesa e
em língua alemã; em 1767, saiu a primeira tradução inglesa; em 1768, a tradução
holandesa (única, aliás, conhecida nesta língua); em 1770, a tradução sueca; em 1772,
a tradução polaca; e em 1774, a primeira edição espanhola. Deste m odo, dez anos volvidos
sobre a sua publicação em Itália, já a obra de Beccaria tinha sido traduzida e editada
em 7 idiomas estrangeiros. Isto, sem contar as Instruções de Catarina da R ússia à Comissão
encarregada da elaboração dum Código Penal, saídas a lum e em M oscovo, em 1767, que
são, em grande parte, uma tradução literal do livro de B eccaria e a que adiante nos refe
riremos (nota 2 da p. 450). (Cfr. M anuppella, ob. cit., p. 212).
Em Portugal, não se editou, até hoje, nenhuma tradução do livro Dos delitos e das
penas, apesar da difusão e aceitação que a obra, logo no século x v m , mereceu entre os
nossos intelectuais, como adiante veremos. Isso deve-se, sem dúvida, ao facto de o texto
ser suficientemente acessível aos nossos eruditos no seu original italiano, ou nas traduções
francesas e espanholas. O Prof. M anuppella prepara presentemente, com um dos seus
discípulos, uma tradução portuguesa, que a Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra editará.
(!) Cfr. F austin H élie, Introduction au Traité des délits et des peines de Beccaria
(in Des délits et des peines, par Beccaria. Deuxièm e édition avec une introduction et un
commentaire revus et augmentés de notes nouvelles par M . F austin H élie, Paris, 1870),
p. V ; e G uillermo Cabanellas, Beccaria y su obra (em introdução à edição argentina
do Tratado de los delitos y de las penas, Buenos Aires, Editorial Atalaya, 1945), pp. 13 e 15.
Os autores são unânimes em reconhecer o fraco nível de B eccaria como filósofo
e como jurista. Em justa apreciação da sua obra, afirma designadamente P hilarète

439
tudo aos livros franceses e que as obras imortais de d'Alembert, Diderot,
Helvetius, Buffon e Hume são o objecto das suas ocupações durante o
dia e das suas meditações no silêncio da noite (**). Foram as
de Montesquieu, segundo afirma, que o converteram à filosofia; e foi o
De l’Esprit de Cláudio Helvetius a segunda obra que rematou a revolução
seu espírito (2). E, para o quadro ser completo, o Contrat social de Rousseau
sai à luz da publicidade dois anos antes do tratado Dos delitos e das ,
dando tempo ainda a Beccaria de lhe assimilar as ideias e de invocar na
sua obra o nome e a autoridade do filósofo genebrino (s).
Ch a s l e s (in Voyages d'un critique à travers la vie et les livres, vol. Il : Italie et Espagne.
Paris, 1869, p. 115): «(Ce livre) servit de bannière, d’étendart et de point de ralliement.
mu, éloquent, souvent habile, assez irrégulier, manquant de profondeur métaphysique
et de bases philosophiques et juridiques, c’était néanmoins ime oeuvre attendue, un coup
de force, un magnifique pamphlet. Toutes les nations s’éveillèrent». Citado por Je a n
S a r r a il h , L'Espagne éclairée de la seconde moitié du XVIIIe siècle (Paris, Imprimerie
N ationale, 1954), p. 53 ; e por M a n u ppe l l a , ob. cit.y pp. 229 e 241.
O Cfr. H é l ie , ob. cit., p. IV ; e Ca ba ne l l a s , ob. cit., p. 15.
(2) Cfr. C a ba ne l l a s , ob. e loc. cits.
(*) A obra de R o us se a u , apesar de publicada apenas dois anos antes (1 62),
é invocada e louvada por B e c c a r ia logo na «Introdução» do seu ensaio, quando diz:
«...merita la gratitudine degli uomini quel Filosofo, che ebbe il coraggio dall’oscuro e
disprezzato suo gabinetto di gettare nella moltitudine i primi semi lungamente infruttuosi
delle utili verit ». E , ainda na mesma «Introdução», faz B e c c a r ia referência expressa ao
«immortale Presidente Montesquieu».
N a reprodução de passagens da obra de B e c c a r ia , daremos preferência, na medida
do possível, ao texto da versão originalitaliana, utilizando para o efeito o texto da 2.aedição
(que é, como vimos — supra> nota 2 de pp. 438-439 — , de Agosto de 1 64 e que, apesar de
apresentada como impressa «in Monaco», foi editada, de facto, em Livorno). O exemplar
que utilizámos, que é hoje da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, pertenceu
«Livraria do Real Collegio dos Militares» e deve ter sido, portanto, o pr prio livro de
que se serviram M e l l o F r e ir e e R ibe ir o d o s S a nt o s para os seus estudos. O passo
transcrito encontra-se a p. 4 desta edição; e a referência a M ontesquieu, a p. 5.
D evemos advertir, no entanto, que, na citação dos vários capítulos do livro.
Dos delitos e das penas, seguiremos a ordem por que estes ficaram definitivamente na obra
de B e c c a r ia (isto é, tal como se encontram, designadamente, na citada tradução francesa
de F a u s t in H é l ie , Paris, 18 0) e não a ordem original, que ainda figura na edição italiana
a que nos reportamos.
Isto carece duma explicação:
N a primeira tradução francesa do tratado Dos delitos e das penasy saída a lume
em 1 66 (dois anos volvidos sobre o aparecimento da obra), o tradutor francês, Abbé
An d r é M o r e l l e t , além de introduzir algumas pequenas modificaç es no texto, alterou
profundamente a ordem dos capítulos; e escreveu a Be c c a r ia , a enviar-lhe um exemplar
do trabalho e a justificar-se das alteraç es que resolvera fazer. Be c c a r ia , em carta dirigida
a M o r e l l e t e datada de M aio de 1 66, felicita-o pelas modificaç es introduzidas e lamenta
que a nova edição italiana (que deve ser, ao que se percebe, a 5.a, publicada ainda em 1 66)

440
Ao lançar no mercado das letras o seu pequeno e tímido ensaio, mal
poderia adivinhar César Bonesana que ele constituiria a pedra fundamental
de todo o direito penal moderno e que tuna verdadeira revolução iria
abalar, a partir dele, as próprias estruturas do sistema punitivo até aí
admitido sem discrepância por todas as nações da Europa. Na verdade,
e como já alguém disse, Beccaria foi penalista sem ele mesmo o saber;
foi revolucionário contra a sua própria vontade; e foi inovador, sem
no entanto nada ter feito senão captar e formular um conjunto de
ideias que andava no ar, mas que ninguém antes dele soubera con
cretizar e ordenar (*). Esse, o seu pequeno mas ao mesmo tempo grande
mérito.
4. Tudo parte, no seu ensaio, duma posição nova acerca do funda
mento das penas e do direito de punir — problema em que repudia uma
e outra das doutrinas extremas até aí dominantes, se bem que nunca intei
ramente formuladas em todas as suas implicações lógicas: a doutrina,
de inspiração religiosa, que vê na justiça humana um reflexo da justiça
divina, e para a qual a pena é uma espécie de penitência para a expiação
do mal ou pecado cometido, deixando para segundo plano a ideia de intimi
dação ou exemplaridade e a ideia de correcção do delinquente; e a doutrina,
de fundo laicista, que vê na justiça humana uma exigência das estruturas
sociais e para a qual a pena se apresenta ora como represália ora como
defesa da sociedade ofendida, mas sempre dominada pela ideia de correcção
do delinquente e de exemplaridade colectiva, deixando em segundo plano

esteja prestes a sair dos prelos, não podendo já nela perfilhar a nova ordem sistemática
da sua obra, adoptada pelo tradutor francês; mas protesta segui-la nas futuras edições
italianas. E, de facto, a partir da 6.a edição italiana (Buglione, 1767), que abre com um
AV VISO alusivo à tradução francesa e às meritórias alterações nela introduzidas pelo
tradutor, Beccaria passou a adoptar a nova ordem sistemática dos capítulos. Cfr.
M anuppella, ob. cit., pp. 43 e 78 a 80. As cartas trocadas entre M orellet e B eccaria
a este propósito encontram-se publicadas, designadamente, em apêndice a uma outra
tradução francesa que tivem os à mão (Des délits et des peines, par B eccaria. Traduit
de Titalien par J. A. S. C ollin de Plancy. Deuxièm e édition. Paris, 1823, pp. 442
a 459).
Esta diferença de «sistemática» entre as primeiras edições do tratado Dos delitos
e das penas e as edições posteriores a 1767 deu origem, como era de esperar, a que,
a partir daí, começassem a aparecer, lado a lado, edições (e, sobretudo, traduções) com
a primeira sistemática dos capítulos, e edições e traduções com a segunda sistemática, o que
causa não pouca perturbação a quem compulsa pela primeira vez, em edições diversas,
a obra de B eccaria.
C1) Cfr. C abanellas, ob. cit.> p. 19.

441
a ideia de expiação, e afirmando que a pena visa mais à prevenção do mal
futuro do que à reparação do mal passado^).
Repudiando uma e outra destas doutrinas como posições extremas,
Beccaria é no entanto o primeiro pensador a tentar tuna conciliação entre
elas, aproveitando a parte de verdade relativa que cada uma encerra e
colocando-se numa posição essencialmente utilitarista, que o leva a defender
que a base de toda a justiça penal é a utilidade comum, o interesse geral,
o bem do maior número (2), obedecendo ao lema que deve ser, no fim de
contas, o de todas as leis que regem as sociedades civis: todo o bem-estar
possível para o mais largo número de homens possível («la massima felicità
divisa nel maggior numero») (3).
A este princípio, que forma como que o primeiro postulado de toda
a sua construção, junta Beccaria mais dois, que fecham a triangulação
do sistema, fornecendo a chave para todas as soluções que vai preconizar
e defender ao longo do seu livro: o de que, sendo a utilidade comum a
base e fundamento de todo o direito de punir, se deve considerar iníquo
e injustificado todo o castigo que não se apresente como estritamente neces
sário à conservação da ordem social e dos interesses gerais da sociedade
(«le pene che oltrepassono la necessità di conservare il deposito della salute
pubblica, sono ingiuste di lor natura») (4) ; e o principio de que as sanções penais
não devem aplicar-se senão aos factos que constituam conjuntamente uma
infracção às leis sociais e tuna infracção à lei moral, porque a lei positiva
não pode nunca apartar-se da lei moral nem muito menos entrar em contra-(*)

C1) Cfr. H élie, ob. eit., p. X L II.


(2) Cfr. H élie , ob. cit., pp. X X X IX e X L V . Eis alguns dos mais expressivos
passos da obra de B eccaria, nesse sentido: «La sola necessità ha fatto nascere dall’urto
delle passioni, e dalle opposizioni degl’interessi l’idea della Utilità comune, che è la
base della Giustizia umana» (cap. X X IV ). «Il fine (delle pene) dunque non è altro, che
d’impedire il reo dal far nouvi danni ai suoi Cittadini, e di rimuovere gli altri dal farne
degli uguali» (cap. XV ). «Perchè una pena ottenga il suo effetto, basta che il male della
pena ecceda il bene, che nasce dal delitto; e in questo eccesso di male debb’essere calcolata
l’infallibilità della pena, e la perdita del bene, che il delitto produrrebbe: T utto il di più
è dunque superfluo, e perciò tirannico» (cap. XV ). As passagens transcritas figuram,
respectivamente, a pp. 22, 34 e 64 da ed. cit.
(3) Cfr. B eccaria , ob. cit., «Introdução» (na ed. cit., p. 4).
(*) Cfr. H élie , ob. cit., pp. X L V , X L V III e 17. O passo transcrito no texto
pertence ao capítulo II da obra de B eccaria ; mas, na sua versão primitiva, tinha uma
redacção algo diversa: «E per Giustizia io non intendo altro, che il vincolo necessario
per tenere im iti gl’interessi particolari, che senz’esso si scioglierebbero nell’antico stato
d’insociabilità: tutte le pene, che oltrepassano la necessità di conservare questo vincolo
sono ingiuste di lor natura». Cfr. ed. cit., p. 9.

442
dição com ela l1). Este apelo à lei moral como marco e limite de qualquer
incriminação — que, aliás, aparece na obra de Beccaria de modo mais
difuso mas não menos incisivo que os dois princípios anteriores — tem
sido com razão considerado uma das notas mais importantes e mais inova
doras do seu pensamento, não devendo ser-lhe estranho, segundo nos
quer parecer, um certo influxo das ideias jusnaturalísticas ao tempo correntes
na Europa.
5. É à luz desta triangulação de princípios — utilidade comum como
fundamento do direito de punir; iniquidade de todas as penas que ultra
passem essa utilidade; e lei moral como limite da incriminação — que
Beccaria vai escrever serenamente o que poderíamos chamar o processo
histórico dos sistemas punitivos tradicionais, marcando posição contra a
interpretação arbitrária das leis penais e contra a sua obscuridade (2), escalpe
lizando os abusos correntes nos tradicionais meios de prova e de captação da
confissão do criminoso (3), condenando enèrgicamente a tortura (4), as confis
cações (5) e as penas infamantes (6), repudiando como contrárias à certeza da
justiça penal as medidas de clemência e os asilos (7) — aliás desnecessários
no sistema de penas moderadas que preconiza—, condenando em nome
da lei moral o uso de pôr a cabeça a prémio (8), etc. E é neste quadro e nesta
sequência de críticas serenas mas implacáveis ao que até aí parecera indis
cutível a sucessivas gerações de juristas, moralistas e filósofos que surge,
no momento próprio, a condenação da pena de morte — tema a que o
tratado «Dos delitos e das penas» consagra um capítulo inteiro (o cap. XVI) (9).
Se noutras críticas ao direito penal vigente Beccaria tivera já precur
sores, como no que toca à condenação das confiscações (10), a sua opinião
C) Cfr. H élie, ob. cit., pp. X L e X L V III-X L IX .
(2) Tratado Dos delitos e das penas, cap. IV («Da interpretação das leis») e cap. V
(«Da obscuridade das leis»).
(3) Ibidem, cap. V II («Dos indícios do delito e da forma dos julgamentos»);
cap. V ili («Das testemunhas«); cap. IX («Das acusações secretas»); cap. X («Das inter
rogações sugestivas»); cap. X I («Dos juramentos»).
(4) Ibidem, cap. X II («Da tortura»).
(5) Ibidem, cap. X V II («Do banimento e das confiscações»).
(6) Ibidem, cap. X V III («Da infàmia»).
(7) Ibidem, cap. X X («Que o castigo deve ser inevitável. — Das medidas de
clemência»); e cap. X X I («Dos asilos»).
(8) Ibodem, cap. X X II («Do uso de pôr a cabeça a prémio»).
(9) Ibidem, cap. X V I («Da pena de morte»).
(10) Entre esses precursores, indica F austin H élie (na ob. cit., p. L X X IV )
Jean B odin (De Republica, liv. V) e M ontesquieu (De Vesprit des lois, liv. V , cap. XV)*

443
a respeito da pena de morte surge na época, porém, como posição intei
ramente inédita, original e arrojada i1). Os enciclopedistas franceses, seus
mestres confessados, não tinham sequer posto em dúvida a sua legitimidade:
Montesquieu considerava a pena de morte «um remédio para a sociedade
doent©> (2); Voltaire, Diderot e Rousseau admitiam-na expressamente (3)
C1) Inteiramente original de B eccaria é também a reprovação das penas infa
mantes (cfr. H élie, ob. e p. cits.). Quanto à pena de morte, não houve, antes de
B eccaria, senão algumas reacções parcelares, tímidas e isoladas. F austin H élie (ob.
cit., p. LX X V ) refere, entre os autores antigos, Platão ( Republica, liv. IX ) e Quin
tiliano (Inst, orai., liv. X II, cap. I), que, aliás, não manifestaram senão «quelques scrupules
assez timidement exprimés à ce sujet» (ver a transcrição desses textos a pp. 106-107
da ob. cit.) ; e, entre os modernos, T homas M orus, que contestara somente a necessidade
da aplicação da pena de morte aos crimes de furto ( Utopia, liv. I). N ão nos foi possível
conferir estas citações.
Entre os jusnaturalistas do século x vn , a legitimidade da pena de morte não foi
sequer posta em dúvida (cfr. H élie, ob. cit., p. 107). H ugo G rócio, fundador da
escola jusnaturalista, apenas levanta o problema de saber se, do ponto de vista religioso,
é lícito ou não aplicar a pena capital, pronunciando-se pela afirmativa, com base nas
leis mosaicas e noutros textos da Sagrada Escritura (V. H ugonis G rotii, De iure belli
ac pads libri tres, accompanied by an abridged translation by W illiam W hewell.
Volum e II. Cambridge, at the University Press, pp. 272 a 276 = Cap. X X , §§ 11 e 12);
e Puffendorf, o grande teorizador e sistematizador da escola, reconhece sem discussão
o direito de vida e de morte da parte do soberano sobre todos os seus súbditos: «Com-
petit quoque summo imperio civili potestas in corpus ac vitam , ut & bona vicium ex
causa delicti; quae presse solet vocari jus vitae & necis» (Cfr. S amuelis Puffendorfii,
De jure naturae et gentium libri octo. Amstelodami, apud Andream ab Hoogenhuysen,
M D C L X X X V III. Edição facsimilada. Oxford, 1934, p. 791 = Lib. V III, Caput I, § l.°).
(2) Cfr. H élie, ob. cit., pp. L X X V e 107-108. «C’est une espèce de talion, qui
fait que la Société refuse la sûreté à un Citoyen qui en a privé, ou qui a voulu en priver
un autre. Cette peine est tirée de la nature de la chose, puisée dans la Raison & dans les
sources du Bien & du M al. U n Citoyen mérite la mort lorsqu’il a violé la sûreté au point
qu’il a ôté la vie, ou qu’il a entrepis de l’ôter. Cette peine de mort est comme le remède
de la Société malade». (Cfr. M ontesquieu, De Vesprit des loix. N ovelle édition. A Genève,
chez Barrillots & Fils. M D C C L III, T om e I, pp. 300-301 = Livre X II, chap. IV).
(3) Cfr. H élie, ob. e loc. cits., e Cabanellas, ob. cit., p. 26. Eis o pensamento
de R ousseau sobre a pena de morte: «D’ailleurs, tout malfaiteur, attaquant le droit social,
devient par ses forfaits rebelle et traître à la patrie: il cesse d’en être membre en violant
ses lois, et m êm e il lui fait la guerre. Alors la conservation de l’État est incompatible
avec la sienne; il faut qu’un des deux périsse; et quand ont fait mourir le coupable, c’est
moins comme citoyen que comme ennemi. Les procédures, le jugement, sont les preuves
et la déclaration qu’il a rompu le traité social, et par conséquent qu’il n’est plus membre
de l’État. Or, comme il s’est reconnu tel, tout au moins par son séjour, il en doit être
retranché par l’exil, comme infracteur du pacte, ou par la m ort, comme ennemi public».
Cfr. Jean Jacques R ousseau, Du contrat social (texte présenté par F rançois B ouchardy.
Collection «Les classiques de la politique». Paris, 1946), Livre deuxième, chapitre V
(Du droit de vie et de mort), p. 80.
444
e não consta que Beccaria tivesse conseguido fazer-lhes mudar de opi
nião í1).
Compreende-se que o jovem ensaísta italiano, consciente de ter na
sua frente uma muralha desta consistência, tenha lançado cautelosamente
e com certa timidez a sua tese abolicionista: — No plano filosófico — e dando
muito fraca conta de si como filósofo —, Beccaria não encontra, para atacar
a pena de morte, senão um argumento quase infantil, tirado da ideia de
contrato social, a que adere neste como em vários outros pontos da sua
obra: o argumento de que «a soberania e as leis não são senão a soma das
pequenas liberdades que cada um cedeu à sociedade», e que é absurdo
supor que o homem, ao passar do estado de natureza para o estado de
sociedade, tenha oferecido a esta o direito de lhe tirarem a vida, que é o
mais precioso de todos os seus bens; nem isso se conciliaria — termina
dizendo — com a regra que reprova e proíbe o suicídio (*i2).
Beccaria deve ter tido consciência da fraqueza deste seu único argu
mento, que já antecipadamente estava rebatido na obra de Locke e que
os pensadores que se seguiram — inclusivè os mais fervorosos abolicio
nistas, como Filangieri — unánimemente repudiaram (3) ; e tanto assim que,
C1) N o conhecido comentário de V oltaire ao livro de B eccaria (que a citada
edição argentina do Tratado de los delictos y de las penas — supra> nota 1 da p. 439 — publica
em apêndice, de pp. 155 a 198), há um capítulo sobre sobre a pena de morte, onde este
se limita a marcar posição clara contra a pena de morte aplicada a arbítrio do julgador,
«quando a lei não condena expressamente ao último suplício». Quanto aos casos em que
a pena de morte resulta expressamente de texto legal, V oltaire aconselha moderação,
salienta que há outros meios de reprimir a criminalidade, m as... não toma posição aberta
contra a pena capital.
(2) Cfr. B eccaria, ob. cit.9 cap. X V I : «Qual può essere il diritto, che si attribuiscono
gli uomini di trucidare i loro simili? N on certamente quello, da cui risulta la Sovranità,
e le Leggi. Esse non sono, che una somma di minime porzioni della privata libertà di
ciascuno: Esse rappresentano la volontà generale, che è l’aggregato delle particolari. Chi
è mai colui, che abbia voluto lasciare ad altri uom ini l’arbitrio di ucciderlo? Come mai
nel minimo sacrificio della libertà di ciascuno vi può essere quello del massimo tra tutti
i beni, la vita? E se ciò fu fatto, come si accorda un tal principio coll’altro, che l’uomo
non è padrone di uccidersi, e doveva esserlo, se ha potuto dare altrui questo diritto, o
alla Società intera? (Cfr. ed. cit.9 pàgs. 66-67).
(3) Cfr. H élie, ob. cit.9 pp. L X X V I e 109-110, com transcrição dos textos de
L ocke, de F ilangieri e de K ant onde o argumento de B eccaria é contestado. T em
especial interesse, a este propósito, a crítica de K ant a B eccaria: — Depois de justificar
a sua posição em favor da pena de m orte, refere-se a B eccaria nos seguintes termos:
«Hiergegen hat nun der M archese Beccaria aus teilnehmender Empfindelei einer affektierten
Humanität ( compassibilitas ) seine Behauptung der Unrechtmässigkeit aller Todesstrafe
aufgestellt; weil im ursprünglichen bürgerlichen Vertrage nicht enthalten sein könnte;
denn da hätte jeder im Volk einwilligen m üssen, sein Leben zu verlieren, wenn er etwa einen

445
deixando-se de mais filosofias, onde sente pisar terreno resvaladiço, passa
imeditamente a apreciar o problema da pena de morte no único plano
em que se sente à-vontade e que é, como já dissemos, o diapasão por que
afina toda a sua obra: o plano da utilidade comum e da lei moral, i*1)
6. Chegado a este ponto, Beccaria começa por fazer uma concessão,
talvez receoso de se lançar numa tese demasiadamente arrojada. Reduzindo
todo o problema da pena de morte à questão de saber se ela é útil e neces
sária, concede que ela seja necessária em duas hipóteses: em tempo de
guerra ou de anarquia interna, quando uma nação esteja em risco de perder
a sua própria liberdade, e se chegue à conclusão de que «um certo cidadão,
mesmo privado da sua liberdade, pode ainda, pelas suas relações e pelo
seu prestígio, constituir um perigo para a segurança pública», isto é, «se a
sua simples existência — são palavras suas — pode produzir uma perigosa
revolução dentro do governo estabelecido» (2) ; e, fora disso, em tempos de
paz — ou, como ele diz, «sob o reinado tranquilo das leis» —, na hipótese,
tão-sòmente, de a morte do criminoso ser «o verdadeiro e único freio para
dissuadir os outros de cometer delitos» («il vero ed unico freno per distogliere
gli altri dal commettere delitti») (3).
anderen (im Volk) ermordete; diese Einwilligung aber sei unm öglich, weil niemand über
sein Leben disponieren könne. Alles Spohisterei und Rechtsverdrehung. Strafe erleidet
jemand nicht, weil er will, sondern weil er eine strafbare Handlung gewollt hat; denn es ist
keine Strafe, wenn einem geschiet, was er w ill, und es ist unm öglich, gestraft werden zu
wollen». (Os sublinhados são nossos). Cfr. I mmanuel K ant, Metaphysik der Sitten
(Dritte Auflage, herausgegeben von K arl V orländer. Leipzig, 1919), Der Rechtslehre,
Zweiter T eil (Das öffentliche Recht), Erst Abschnitt (Das Straatsrecht), Allgemeine
Anmerkung, E ), I, pp. 162-163).
(1) Efectivamente, logo após a frase transcrita supra (nota 2 da p. 445), B eccaria
acrescenta: «Non è dunque la pena di morte un Diritto, mentre ho dimostrato, che tale
essere non può; ma è una guerra della Nazione con un Cittadino, perchè giudica necessaria,
o utile la distruzione del suo essere: M a se dimostrerò non essere la Morte nè utile, nè
necessaria, avrò vinta la Causa dell9Umanità. (Os sublinhados são nossos). E com isto,
e sem mais, transfere-se B eccaria imediatamente do plano filosófico — onde não passou
da porta, e mal — para uma apreciação do problema em plano puramente utilitarista.
(2) Eis textualmente o passo referido: «La morte di un Cittadino non può credersi
necessaria, che per due motivi. Il primo, quando anche privo di libertà egli abbia ancora
tali relazioni, e tal potenza, che interessi la sicurezza della Nazione; quando la sua esistenza
possa produrre una rivoluzione pericolosa nella forma di Governo stabilita. La morte
di qualche Cittadino divien dunque necessaria quando la Nazione ricupera, o perde la sua
libertà; o nel tempo della Anarchia, quando i disordini stessi tengon luogo di Leggi»
(na ed. cit., p. 67).
(8) Imediatamente a seguir ao texto anterior: «...ma durante il tranquillo regno
delle Leggi in ima forma di Governo, per la quale i voti della Nazioni sieno riuniti, ben

446
Há-de reconhecer-se que a primeira destas duas concessões, com a
amplitude com que Beccaria a formula, constitui talvez o ponto mais
vulnerável da sua obra, na medida em que deixa a porta aberta para o
assassinato legal dos antagonistas políticos por parte dos governantes
estabelecidos, a quem é sempre fácil invocar o argumento de que a mera
existência dos seus opositores, ainda que privados de liberdade, constitui
um perigo iminente contra a segurança pública e um risco permanente
de subversão contra os poderes constituídos; e o exemplo do que se passou
alguns anos depois com a Revolução Francesa e todo o conturbado período
da história europeia que se lhe seguiu aí está a demonstrá-lo à saciedade,
pois a simpatia crescente do movimento abolicionista nos meios revolu
cionários foi acompanhada, nesse período, do uso e abuso mais indis
criminado que pode imaginar-se da pena de morte para os crimes
políticos í1).
Já o mesmo se não pode dizer da segunda das concessões feitas por
Beccaria à pena capital, admitindo-a, em tempo de paz, quando se mostre
ser o verdadeiro e único freio capaz de dissuadir os outros de cometer
delitos. Trata-se duma concessão extremamente arguta e, segundo toda
a probabilidade, duma concessão feita calculadamente pelo autor do ensaio
«Dos delitos e das penas» para não ser tomado pelos seus contemporâneos
como um simples visionário, pois o que ele vai demonstrar em seguida,
nas restantes páginas do capítulo da sua obra consagrado à pena de morte,
é justamente a desnecessidade daquela concessão inicial, porque há sempre,
em seu entender, meios mais eficazes do que a pena última para evitar
a prática de futuros crimes; e, desse modo, desaparece a única razão de
ordem utilitarista que podia justificar a pena capital.
É essa parte do seu ensaio a que tem mais mérito intrínseco e que
constitui maior título de glória para o fundador do movimento abolicionista.
O grande mérito de Beccaria, nesta matéria, esteve, com efeito, em ter
tido a intuição do único caminho que podia levar à vitória, no campo
m unita al di fuori, e al di dentro dalla forza, e dalla opinione, forse più efficace della forza
medesima, dove il comando non è che presso il vero Sovrano, dove le ricchezze comprano
piaceri, e non autorità; io non veggo necessità alcuna di distruggere un Cittadino, se non
quando la di lui morte fosse il vero ed unico freno per distogliere gli altri dal commettere
delitti; secondo m otivo, per cui può credersi giu sta , e necessaria la pena di morte». (Os
sublinhados são nossos, nesta como na nota anterior). Cfr. ed. c it.3 pp. 67-68.
C1) O contraste assinalado no texto é flagrante: enquanto se vivia em pleno regime
de m atança p o lítica , a Convenção publicava um decreto, com data de 14 de Brumário do
ano IV, em que se previa a abolição da pena de m orte para quando a paz interna fosse resta
belecida — promessa que nunca se cumpriu. Cfr. M a r c A n c e l , L e peine de m ort dans les
p a y s européens , c it.9 p. 10.

447
prático, a luta contra a pena de morte: a demonstração da sua desneces
sidade (*). Beccaria parece ter compreendido a mínima importância que tinha,
para o futuro da sua campanha, a discussão do problema da pena capitai
no plano filosòfico, moral e teològico; e, na verdade, tudo quanto nesse
dominio se escreveu seguidamente — e que foi muito — pouco adiantou
ou atrasou para o sucesso ou insucesso dos movimentos abolicionistas,
nos vários países, no plano legislativo. O problema ficava transplantado,
com a obra de Beccaria, para o campo pragmático e utilitário; e, daí em
diante, a questão que todos se põem, no mundo dos homens do direito
e da política — doutrinadores, legisladores e governantes —, passa a ser
sempre, e tão-sòmente, a de saber se a pena de morte pode ou não ser substi
tuída por outra pena, sem risco do aumento da criminalidade (2).
Com razão se tem dito que Beccaria, preconizando a pena de trabalhos
forçados por toda a vida — «escravidão perpétua», como ele lhe chama —
para substituir a pena capital, se mostra incoerente consigo próprio e
com a linha geral da sua obra, pois do ponto de vista humanitário a pena
de escravidão perpétua não é menos dura nem menos cruel que a pena
capital (3). Ele próprio prevê que venha a ser-lhe feita essa objecção, respon
dendo «tant bien que mal» que a escravidão perpétua é menos pesada que
a pena de morte, porque dilui o infortúnio sobre todo o curso da vida,
em vez de o concentrar num só momento, como o assassinato legal; e
sobretudo — e é isso que mais conta no ponto de vista utilitário e pragmá
tico em que se coloca — porque a escravidão perpétua, ao contrário da
pena máxima, causa mais temor a quem a presenceia do que a quem a
sofre (4).

C1) Cfr. H élie , ob. cit., pp. L X X V I e 110.


(2) Cfr. H élie , ob. cit., pp. 110 e 111.
(8) Cfr. C abanellas , ob. cit., pp. 26 e 27.
(4) A passagem a que nos reportamos não figura na versão primitiva do tratado
Dos delitos e das penas. É duvidoso, por isso, se B eccaria a acrescentou na previsão
de ser-lhe levantada essa objecção (como dizemos no texto) ou já para responder a uma
objecção que por alguém lhe tivesse sido levantada. N a impossibilidade de reproduzir
aqui o texto italiano — que não figura ainda na edição que pudemos ter à mão (vide, supra,
nota 3 da p. 440) — transcrevemos o texto em causa da tradução francesa de F austin
H élie : On dira peut-être que l’esclavage perpétuel est une peine aussi rigoureuse, et par
conséquent aussi cruelle que la mort. Je répondrai qu’en rassemblant en un point tous
les moments malheureux de la vie d’un esclave, sa vie serait peut-être plus horrible que
les supplices les plus affreux; mais ces moments sont répandus sur tout le cours de sa vie,
au lieu que la peine de mort exerce toutes ses forces en un seul instant».
«La peine de l’esclavage — continua o mesmo texto — a cela d’avantageux pour
la société, qu’elle épouvante plus celui qui en est le tém oin que celui qui la souffre, parce

448
Este ponto é, de resto, secundário. A outros competiria depois, na
linha de pensamento deixada por Beccaria, estudar melhor o problema
da pena sucedânea, que acabou por se reconhecer não poder ser, por
demasiado cruel, a de trabalhos perpétuos. A ele coube o não pequeno
mérito de demonstrar a desnecessidade da pena de morte e a possibilidade
de ser substituída, com vantagem, por outras penas. Foi isso o que ficou
da sua obra, em matéria de pena capital; e há-de reconhecer-se que não
foi nada pouco, porque foi pràticamente... tudo.
7. A repercussão da obra de Beccaria excedeu toda a expectativa,
depressa tendo sido traduzida e editada em quase todas as línguas europeias (*)
e tornando-se a fonte inspiradora — com mais larga ou mais restrita aceitação
das suas ideias, consoante os casos — de todas as grandes reformas legis
lativas operadas no campo do direito penal das nações do velho e do novo
mundo.
No único ponto concreto dessa obra que nos importa considerar
— o da abolição da pena de morte —, o seu éco não ficou confinado às
obra dos criminalistas, que ainda no séc. x v i i i e ao longo do séc. xix
foram dando a sua adesão crescente ao movimento abolicionista (2).
O brado do jovem pensador italiano foi logo ouvido por legisladores,
governantes e políticos, que começaram imediatamente a levar a efeito
ou pelo menos a propugnar reformas legislativas dominadas pela ideia
da abolição.
Essas reformas ou projectos de reforma limitavam-se normalmente,
nesta primeira fase do movimento abolicionista, a cercear o âmbito de
aplicação da pena máxima, como primeiro passo para uma futura abolição
total, que se declarava desejável como ideal a atingir, mas que se reconhecia
só ser possível num grau mais avançado de preparação da sociedade. Mas
não faltam exemplos de reformas que foram, logo no século x v i i i , até

que le premier considère la somme de tous les moments malheureux, au lieu que le
second est distrait de ridée de ses peines venir, par le sentiment de son malheur
présent».
E , na mesma ordem de ideias, conclui: «L’imagination agrandit tous les maux.
Celui qui souffre trouve dans son âme, endurcie par l’habitude du malheur, des conso
lations et des ressources que les témoins de ses maux ne connaissent point, parce qu’ils
jugent d’après leur sensibilité du moment». Cfr. ob. cit., p. 100.
C1) Vide supra> nota 2 de pp. 438-439.
(2) Pode ver-se em H é l ie (ob, cit., pp. 111-112), a indicação sumária dos autores
que seguidamente se ocuparam do problema da pena capital e que defenderam a sua
abolição, na esteira de B e c c a r ia .

449
29- II Vol.
abolição total, aliás precipitadamente, como o futuro se encarregou de
demonstrar.
Não causa surpresa que os primeiros legisladores e governantes a
tomar posição nesse sentido tenham sido os omnipotentes monarcas do
despotismo esclarecido, porque o próprio Beccaria tinha terminado o
capítulo consagrado na sua obra à pena de morte com uma inquebrantável
manifestação de fé política nesses «príncipes benfeitores, amigos das virtudes
pacíficas, protectores das ciências e das artes, pais dos seus povos e cidadãos
coroados», formulando o voto — são ainda palavras suas — de «que o poder
desses soberanos seja fortalecido mais ainda e se torne suficientemente
grande para que se lhes torne possível reformar uma legislação funesta» í1).
O apelo foi ouvido. E já em 1767, passados apenas três anos sobre
a publicação do tratado «Dos delitos e das penas», as ideias de Beccaria
obtinham éco nas Instruções para o Código da Rússia, de Catarina II,
que aliás não chegaram a concretizar-se em reforma legislativa (2). Outro
(f) Eis o texto completo dessa manifestação de fé nos príncipes iluminados com
que B eccaria encerra o capítulo da sua obra consagrado à pena de morte: «La voce di
un Filosofo è troppo debole contra i tum ulti, e la grida di tanti, che son guidati dalla cieca
consuetudine; ma i pochi Saggi, che sono sparsi sulla faccia della terra, mi faranno eco
neirintim o de’loro cuori; e se la verità potesse fra gl’infiniti ostacoli, che l’allontanano
da un Monarca, mal grado suo, giungere fino al suo trono, sappia che ella vi arriva coi voti
segreti di tutti gli uomini ; sappia, che tacerà in faccia a lui la sanguinosa fama dei conquis
tatori; e che la giusta Posterità gli assegna il primo luogo fra i pacifici Trofei dei T iti,
degli Antonini, e dei Traiani.
Felice ro m a n ità, se per la prima volta le si dettassero Leggi ora che vediamo
riposti sui Troni di Europa M onarchi benefici animatori delle pacifiche Virtù, delle
Scienze,delle Arti, Padri de’loro Popoli; Cittadini coronati, l’aumento della autorità
dei quali forma la felicità dei sudditi, perchè toglie quell’intermediario dispotismo più
crudele, perchè men sicuro, da cui venivano soffogati i voti sempre sinceri del Popolo,
e sempre fausti quando posson giungere al Trono. Se essi, dico, lascian sussistere le
antiche Leggi, ciò nasce dalla difficoltà infinita di togliere dagli errori la venerata ruggine
di molti secoli; ciò è un motivo per i Cittadini illuminati di desiderare con maggior ardore
il continuo accrescimento della loro autorità. Cfr. ob. cit., pp. 74-75.
(2) Cfr. M arc A ncel, ob. cit., p. 10. A Instrução (Nakaz) de Sua Imperiai
Majestade para a Comissão encarregada de organizar um projecto dum novo Código foi
publicada em M oscovo, em 1767, em texto bilingue (russo e alemão), e seguida duma
edição em texto francês, impressa em S. Petersburgo em 1770 (Cfr. M anuppella, ob. cit.,
pp. 210 a 212).
Toda a Instrução é largamente decalcada nas obras de M ontesquieu e de Beccaria.
Há nela tantos passos literalmente transcritos do tratado Dos delitos e das penas, saído
a lume em Itália apenas 3 anos antes, que o Prof. G iacinto M anuppella não hesita em
afirmar que, verdadeiramente, «ci troviamo di fronte alla prima traduzione russa dell’opera
che c’interessa» (cfr. ob. cit., p. 212). E, no entanto, como o mesmo ilustre professor
salienta, Catarina II silencia em absoluto o nome de B eccaria: — Num a conhecida

450
monarca iluminado, Leopoldo II da Toscana, num código preparado por urna
comissão a que presidira o próprio Beccaria, bania em 1786 a aplicação da
pena de morte nos seus domínios; e o mesmo faria, no ano imediato (1787),
no novo Código austríaco, o paradigmático déspota esclarecido José II (4).
Foi de duração efémera, porém, este primeiro impulso: a Toscana
restauraria a pena capital em 1790, passados quatro anos apenas de a
ter abolido; e a Áustria restabelecê-la-ia também cinco anos depois, em 1795,
para os crimes de alta traição, alargando-a a vários outros casos no Código
penal de 1803 (2).
8. O fracasso destas primeiras tentativas de abolição da pena de
morte e as enormes convulsões sociais trazidas pela Revolução Francesa,
criando em toda a Europa um clima de insegurança e de temor, provocaram,
como é natural, um recuo sensível na marcha do movimento abolicionista;
e não deve, por isso, causar-nos espanto que o séc. xix tenha, a este respeito,
nascido sombrio, sob o signo do Código Penal francês, de 1810, que previa
a aplicação da pena máxima em nada menos de 36 casos, e do Código da
Baviera, de 1813, que lhe dava também larga representação, ao mesmo
tempo que a Inglaterra se mantinha inabalàvelmente fiel — como, aliás,
se manteria até 1860 — aos seus duzentos e tantos casos de aplicação da
pena capital. (3)
É necessário aguardar a década de 30 para assistirmos a um novo surto
de simpatia pelo movimento abolicionista, ìntimamente relacionado agora
com o prestígio crescente da escola penitenciária, lançada pelo francês
Charles Lucas e pelo belga Ducpétiaux (4). A França dá um passo em frente,
com a reforma penal de 1832, ao riscar a moeda falsa e o furto qualificado
da lista dos crimes capitais e ao alargar generosamente o benefício das
circunstâncias atenuantes, nos casos de condenação à pena última; e, noutros
carta que dirigiu a J ean -B aptiste d ’A lembert , a Imperatriz de todas as Rússias refere
quanto o seu Nakaz de 1767 é tributário ao pensamento de M ontesquieu ; mas não diz
uma só palavra sobre a muito mais ampla inspiração do mesmo documento na obra do
pensador italiano, que traduz largamente e literalmente em numerosos passos, sem a citar
uma só vez. Ver, na referida obra de M anuppella , de pp. 212 a 219, a exemplificação
do decalque, através da comparação de vários passos do Nakaz com o tratado Dos delitos
e das penas.
0 ) Cfr. M arc A ncel , ob. e p. cits.. V ide Allgemeines Gesetz über Verbrechen,
und derselben Bestrafung (W ien, M D C C L X X X V II), citada por M anuppella , ob. cit.>
p. 209.
(2) Cfr. M arc A ncel, ob. e p. cits.
(3) Cfr. M arc A ncel, ob. cit.> p. 10 e p. 11 in fine.
(4) Cfr. M arc A ncel , ob. cit., p. 11; e H élie , ob. cit.> pp. I l i e 112.
451
países, vão surgindo limitações congéneres por via legislativa, quase sempre
ligadas à construção das primeiras cadeias penitenciárias!1).
É aindaa França quem dá, em 1848, por influência das ideias liberais,
um nobre exemplo ao mundo, com a abolição da pena de morte nos crimes
políticos — exemplo que há-de ter imediatos reflexos noutros países, como
no nosso, e que encoraja alguns governos locais à abolição total, como
sucede, ainda em 1848, no Cantão de Friburgo e na República de S. Marino
e, logo nos anos imediatos, em mais três cantões da Suíça (2).
Afora, porém, estes casos de abolição extremamente circunscritos,
a pena de morte persiste ainda, em meados do séc. xix, para os delitos
comuns, na generalidade dos grandes países do mundo; e só nas reformas
penais da segunda metade do século, sob a influência de novas obras
doutrinais em que a pena de morte era duramente atacada (como o famoso
estudo de Mittermaier, saído em 1862) (3), começam as grandes nações a
lançar-se no caminho da abolição total (4), não sem avanços e recuos hesi
tantes, pelo peso dum preconceito de séculos, que ainda hoje prende nações
como a França, a Espanha e os Estados Unidos.
Portugal toma neste ponto uma posição de vanguarda, porque é a pri
meira grande nação de velha cepa europeia a enfrentar sem medo o problema
da abolição, na Reforma Penal de 1867, permanecendo indefectlvelmente
fiel, ao cabo dum século, à corajosa medida que o Governo de então propôs
e que as Cortes aprovaram quase por unanimidade, o que fez vibrar de
entusiasmo e de admiração pelo nosso país figuras de renome europeu,
C1) Cfr. M arc A ncel, ob. e p. cits.
(2) M arc A ncel, ob. cit., pp. 11 e 16; e H élie, ob. cit., pp. 112-113.
(3) Carl Joseph Anton von M ittermaier, Die Todesstrafe nach den Ergebnissen
der wissenschaftlichen Forschungen, der Fortschritte der Gesetzgebung und der Erfahrungen
(Heidelberg, 1862). Esta obra de M ittermaier teve uma enorme repercussão em todos
os meios cultos europeus, pela seriedade científica em que se alicerça. O autor apoia-se
nos resultados de 50 anos de trabalho, passados na análise das estatísticas e dos efeitos
das inovações legislativas dos vários países, para afirmar a sua convicção de que a pena
de morte não é eficaz e deixou de ser necessária. Cfr. H élie, ob. cit., p. 111. Talvez através
da sua tradução francesa (De la peine de mort d'après les travaux de la science, les progrès
de la législation et des résultats de l'expérience (traduit par N . L even. Paris, 1865), o livro
foi cedo conhecido em Portugal, onde se vivia, no m om ento, em piena euforia do m ovi
mento abolicionista; e deve ter contribuído para a vitória do movimento. Como se verá
na altura pròpria, a obra de M ittermaier aparece respeitosamente citada, não só no rela
tório da proposta de Barjona de F reitas apresentada às Câmaras em 1867 (que levou
à abolição da pena de morte entre nós), como no parecer da «Comissão de legislação penal»
da Câmara dos Deputados acerca dessa proposta, de que foi relator o deputado A ntónio
P equito Seixas de A ndrade.
(4) Cfr. M arc A ncel, ob. cit., pp. 12 e 13.

452
como o grande Vítor Hugo, que se refere com entusiasmo ao aconteci
mento, em duas cartas que na altura escreveu a Eduardo Coelho e a
Brito Aranha í1).

0 ) V ítor H ugo foi um dos grandes paladinos da abolição da pena de morte*


tendo chegado a apresentar no Parlamento francês, quando foi deputado (1848-1851)
um projecto de lei nesse sentido, que não vingou. Além do seu conhecido escrito Le
dernier jour d'un condamné (1829) (Cfr. Oeuvres complètes de Victor Hugo, tom e II,
Bruxelles, 1837, pp. 495 a 532), deixou ainda algumas outras páginas expressamente
consagradas ao tema (Fragment sur la peine de mort, na oh. e vol. cits., pp. 535 a 543);
e, através destes dois trabalhos, influenciou não pouco a intelectualidade portuguesa em
favor do movimento abolicionista.
Quando foi votada no Parlamento português a abolição da pena de morte, o jornal
Diário de Notícias, depois de ter referido o acontecimento em notícia de primeira página
(número de 22 de Junho de 1867), publicou, alguns dias após, um folhetim da autoria de
E duardo Coelho, sobre O último carrasco em Portugal, onde o ilustre jornalista punha em
destaque a influência do escrito de V ítor H ugo sobre a pena de morte para a rotunda
vitória que o movimento abolicionista acabava de alcançar entre nós.
V ítor H ugo escreveu em 2 de Julho uma carta a Eduardo C oelho, de que só
se conhece, em tradução portuguesa, o seguinte trecho: «Está, pois, a pena de morte
abolida nesse nobre Portugal, pequeno povo que tem uma grande História. Penhora-me
a recordação da honra que me cabe nessa vitória. Humilde operário do Progresso, cada novo
passo que ele avança me faz pulsar o coração. Este é o sublime. Abolir a morte legal,
deixando à morte divina todo o seu direito e todo o seu mistério, é um progresso augusto
entre todos. Felicito o vosso Parlamento, os vossos pensadores, os vossos filósofos!
Felicito a Nação. Portugal dá o exemplo à Europa. Desfruta, de antemão, essa imensa
glória. A Europa imitará Portugal. M orte à morte! Guerra à guerra! Ódio ao ódio!
Vida à vida! A liberdade é cidade imensa, da qual todos somos cidadãos. Aperto-vos
a mão como meu companheiro na humanidade». Trecho transcrito no «Editorial» do
jornal O Século de 1 de Julho de 1967 (dia centenário da abolição da pena de morte em
Portugal).
Tam bém Pedro de Brito A ranha — que foi sócio correspondente da Academia
Real das Ciências — se apressou a comunicar a V ítor H ugo a retumbante vitória parla
mentar do movimento abolicionista, tendo recebido dele a seguinte carta, que se encontra
publicada na íntegra no livro do mesmo B rito A ranha, Factos e Homens do meu tempo,
vol. II (1908), pp. 199-200:
«À M . Pedro de Brito Aranha. H auteville-H ouse, 15 juillet: Votre noble lettre
m e fait battre le coeur. Je savais la grande nouvelle; il m ’est doux d’en recevoir par vous
l’écho sympathique. N on, il n ’y a pas de petits peuples. Il y a de petits hom m es, hélas!
Et quelquefois ce sont ceux qui mènent les grands peuples. Les peuples qui ont des
despotes ressemblent à des lions qui auraient des muselières. J’aime et je glorifie
votre beau et cher Portugal. Il est libre, donc il est grand. Le Portugal vient d’abolir
la peine de mort. Accomplir ce progrès, c’est faire le grand pas de la civilisation.
D ès aujourd’hui le Portugal est à la tête de l’Europe. Vous n ’avez pas cessé d’être, vous
portugais, des navigateurs intrépides. Vous allez en avant, autrefois dans l’océan,
aujourd’hui dans la vérité. Proclamer des principes, c’est plus beau encore que de décou-

453
Como se processaram os acontecimentos que nos conduziram a essa
posição de vanguarda? Eis o que procuraremos ver agora, com a brevidade
possível.
9. As doutrinas humanitaristas lançadas em Itália por Beccaria e
e Filangieri cedo começaram a ter éco em Portugal, tanto na legislação
e na doutrina como na actividade dos tribunais, traduzindo-se desde logo
numa atitude de moderação na aplicação das penas, de reacção contra a
tortura e contra as penas cruéis, e de cerceamento do âmbito de aplicação
da pena capital (x).
vrir des mondes. Je crie: Gloire au Portugal, et à vous: Bonheur! Je presse votre cordiale
main. Victor Hugo».
Foi o Courrier de l'Europe, de 10 de Agosto de 1867, que pela primeira vez deu
publicidade à troca de cartas entre Brito A ranha e V ítor H ugo, nos termos seguintes:
«On sait que le jeune roi dom Luiz de Portugal, avant de quitter son pays pour aller
visiter PExposition universelle, a eu l’honneur de signer une loi votée par les deux
chambres du parlement, qui abolit la peine de mort. Cet événement considérable
dans l’histoire de la civilisation a donné lieu, entre un noble portugais et Victor H ugo
à la correspondance qu’on va lire». Seguem -se a carta de Brito A ranha a V ítor H ugo,
datada de Lisboa, em 27 de Junho de 1867, e a resposta de V ítor H ugo, que já atrás
transcrevemos. Cfr. V ictor H ugo, Pendant l'exil (1852-1870), 1867; V I — La peine de
mort abolie en Portugal (ed. da Collection Nelson, Paris, s. d.), pp. 387-389.
Sobre as posições ideológicas de V ítor H ugo em matéria de pena de morte e,
dum modo geral, sobre os problemas do crime e das penas, foi publicada há poucos anos
uma excelente tese de doutoramento em Letras, na Universidade de Paris: Paul Savey-
-C asard, Le crime et la peine dans l'oeuvre de Victor Hugo (Paris. Presses Universitaires de
France, 1956). V ., particularmente, o capítulo consagrado à pena de morte na obra do
imortal escritor (pp. 247 a 265 da ob. cit.).
0) D eve dizer-se que as ideias de B eccaria acerca da pena de morte tiveram eco
em Espanha mais cedo ainda do que em Portugal, embora não tenham nesse país fruti
ficado tão depressa como entre nós.
É de 1774 — dez anos exactos sobre o aparecimento da obra de B eccaria — a pri
meira tradução espanhola do trabalho do erudito italiano, da autoria de Juan Antonio
de las Casas: Tratado de los delitos y de las penas, traducido del italiano por... M adrid,
M D C C L X X IV , por D . Joachin Ibarra, Impresor de Cámara de S. M . Con las licencias
necesarias (Cfr. M anuppella, ob. cit., p. 128). E , pela mesma altura, escrevera G aspar
de Jovellanos a sua peça teatral El delincuente honrado (escrita em 1774, representada
em 1775, e impressa em 1787), onde se tomava posição contra a excessiva dureza das
leis criminais espanholas e, concretamente, contra uma recente lei de Carlos III sobre
o duelo. A influência das ideias de Beccaria neste trabalho é manifesta; e tanto assim
que o texto impresso da peça de Jovellanos termina pela transcrição da frase final da
Introdução do livro Dos delitos e das penas. Cfr. M annuppella, ob. cit., pp. 226 e 230.
N a mesma ordem de ideias, surge em Espanha, pouco anos mais tarde (1782),
um trabalho que muito haveria de contribuir para a difusão do pensamento de Beccaria.
Queremos referir-nos ao famoso Discurso sobre las penas, contrdhido a las leyes criminales

454
É de justiça citar à cabeça deste movimento — embora muito longe
ainda de ser um abolicionista — o nome de Pascoal José de Mello Freire,
que foi brilhante ornamento da Universidade de Coimbra e da Academia
Real das Ciências de Lisboa í1).
São duas as obras através das quais podemos hoje fazer ideia do seu
pensamento em matéria de direito criminal — obras que são simultánea
mente o reflexo dum ambiente e duma tendência que vinha tomando
corpo e a linha de rumo duma nova orientação que em breve conquistaria
a aceitação generalizada da doutrina, da jurisprudência e da própria legis
lação: o seu projecto de Novo Código, terminado em 1788, embora só
publicado postumamente em 1823 (2) ; e as suas «Institutiones Iuris Criminalis
de España para facilitar su reforma, de M anuel de L ardizádal y U ribe (Madrid, Joachín
Ibarra, 1782). D eve dizer-se, no entanto, que, em matéria de pena de morte, tanto Jaun
A ntonio de las Casas (autor da citada tradução espanhola da obra de B eccaria) como
L ardizábal fazem as suas reservas à tese extremista do pensador italiano. Cfr. M annuppela,
ob. cit., pp. 226 e 229; e o trabalho já citado — e já hoje clássico — de Sarrailh,
VEspagne éclairée, pp. 536 a 539.
(}) P ascoal José de M ello F reire (n. 1738; m. 1798) foi eleito sócio supra
numerário da Academia Real das Ciências de Lisboa em 16 de Janeiro de 1780, precisa-
mente quando a Academia começou a trabalhar; e sócio efectivo, em 1 de Abril de 1791.
Devem os esta informação, bem como as referentes ao «curriculum» académico dos demais
membros da Academia das Ciências citados neste trabalho, ao nosso ilustre Amigo e
eminente Secretário-Geral da Academia Prof. Doutor D om A ntónio P ereira F orjaz, a
quem deixamos aqui consignado o nosso vivo reconhecimento.
Da íntima colaboração de M ello F reire com a Academia das Ciências ficou patente
memória no facto de as suas famosas lições universitárias («Historia Iuris Civilis Lusi
tani» e «Institutiones Iuris Civilis Lusitani») terem sido editadas por iniciativa da Acade
mia (1778), só mais tarde tendo sido adoptadas como livro de texto obrigatório na U n i
versidade (1805).
(2) Servimo-nos da 3.a edição: Codigo Criminal intentado pela Rainha D. Maria I.,
com as provas. Auctor Paschoal José de Mello Freire (Coimbra: N a Imprensa da Univer
sidade, 1844). A 1.a edição foi impressa em Lisboa, em 1823 (in 8.°) pelos cuidados de
M iguel S etáro; e a 2.a (in 4.°), no mesmo ano e na mesma cidade, pelos cuidados de
F rancisco F reire de M ello, sobrinho do autor, a quem adiante nos referiremos (infra,
nota 1 de pp. 473-474).
A história do «Novo Código» (com o ficou conhecido o projecto de M ello F reire)
vem relatada na «prefação do editor (da primeira edição)», que a 3.a ed. reproduz a pp. V II
a X II; no Panegyricus Historiens in laudem Paschalis Iosephi Mellii, que precede a edição
conimbricense (1815) da Historia Iuris Civilis Lusitani; e num apêndice acrescentado por
F rancisco F reire de M ello ao seu Discurso sobre delietos e penas (Lisboa, 1822 ; pp. 95 a 104),
obra a que adiante nos referiremos. O relato de F reire de M ello, conquanto manifes
tamente faccioso e expressão bem vincada do feitio irreverente e conflituoso do seu autor,
levanta uma ponta do véu que encobre as razões do insucesso prático da tentativa de reforma
das Ordenações então levada a cabo — razões que não podem confinar-se, como se tem
dito, a dissidências ideológicas entre M ello F reire e R ibeiro dos S antos a propósito

455
Lusitani», publicadas em 1794 por in icia tiva da Academia das Ciências,

da revisão do projecto de Código de Direito Público (reforma do livro 2.° das Ordenações).
São páginas que, embora com os devidos descontos, merecem ser lidas e reflectidas.
Foi um Decreto de D . M aria I, de 31 de Março de 1778 (transcrito na íntegra
por F reire de M ello na ob. cit.> pp. 95 a 98), que nom eou uma «Junta de Ministros»,
com a «obrigação de se ajuntarem ao menos huma vez em cada semana», para proceder
à reforma geral do direito vigente. Essa Junta era presidida pelo V isconde de V ila N ova
de Cerveira (M inistro e Secretário de Estado dos Negócios do Reino) e tinha como vogais
os Doutores José R icalde P ereira de Castro (Desembargador do Paço), M anuel G omes
F erreira (Desembargador dos agravos da Casa da Suplicação), B artolomeu José N unes
G iraldes de A ndrade (Procurador da Fazenda do Ultramar) e João Pereira R amos de
A zeredo Coutinho (Procurador da Coroa). M as à Comissão ficavam agregados vários
colaboradores, com a missão de «pôr em ordem, compilar, e examinar o que deve entrar»
em cada um dos 5 livros das Ordenações, para efeitos da projectada reforma, e que deve
riam ir dando conta à referida Comissão dos resultados das suas pesquisas. Eram nada
menos de 10 esses colaboradores: 1 para o estudo da reforma do Livro I das Ordenações;
2 para o livro II; 2 para o livro III; 2 para o livro IV , até ao título 79; 1 para os restantes
títulos do livro IV ; e 2 para o livro V.
D iz F reire de M ello (ob. cit.> p. 98) — e parece ser verdade — que os 15 juris
consultos a quem assim foi cometida tão delicada tarefa «nada fizerão». E , ao cabo de 5 anos,
em 22 de M arço de 1873, foi então «chamado da Universidade de Coimbra para esta
Obra o Sr. Pascoal de M ello», o qual — continua o sobrinho — «concimo não ensaios,
mas um verdadeiro Codigo de Direito Publico, e Criminal Portuguez> o qual foi mandado
rever por Decreto de 3 de Fevereiro de 1789, o que atégora (o autor escreve em 1822)
inda se não fez».
O Decreto de 3 de Fevereiro de 1789, que manda proceder à revisão dos dois
projectos de M ello F reire e do pouco mais que se fizera (alguns títulos de «direito
testamentàrio» redigidos por D uarte A lexandre H olbeche) era da autoria do Secre
tário de Estado José de S eabra e S ilva, a quem F reire de M ello mimoseia, em
nota (nota 46, a pp. 98 da ob. cit.) , com estas carinhosas palavras: «Este Decreto foi
obra do famoso José de Seabra da S ilva, rabula, sycophanta, chocarreiro que tendo
sido degradado para o presidio das pedras de Pungo-andongo no reino de Angola pelo
rei D . José pelos seus enormes crimes, voltou inda dahi, e pelas suas más manhas,
baixezas e sorrabações industriosas foi nomeado pela reinha D . M aria I Secretario de
Estado dos negocios do reino, onde commetteo tão inauditos despotismos que foi
deposto do logar e mandado sair da Córte. Este monstro era inimigo gratuito e capital
do Autor do Codigo de Direito Publico e Criminal que se mandou censurar, e para lhe
tirar a gloria na posteridade até o seu nome calou no D ecreto, e nom eou para censores os
maiores inimigos que tinha o Autor, dos quaes a maior parte erão ignorantes, e não servião
para censores de uma tão importante obra».
Reduzidas as coisas às suas devidas proporções, parece fora de dúvida que José
de S eabra e S ilva não morria de amores por M ello F reire e que devia ter todo o inte
resse, no seu íntim o, em evitar que o nome deste ficasse ligado à glória da autoria duma
grande reforma legislativa. Impressiona, de facto, que, no extenso Decreto em que se
manda proceder à «revisão, exame e censura» dos dois projectos de M ello F reire, o nome
deste não seja referido uma só vez, chegando-se ao ponto de, ao ter de referir o seu direito

456
e mais tarde adoptadas, no conjunto das suas «Institutiones Iuris Civilis»,
como livro de texto obrigatório na Universidade de Coimbra (x).
Na introdução ao projecto de Código Criminal — por ele elaborado
por ordem de D. Maria I —, Mello Freire reflecte ampiamente a sua
de tomar parte nas sessões de trabalhos da Comissão Revisora, se dizer apenas que «o Autor
da pane offerecida á revisão e exame será presente». Isto, em contraste com a adjectivação
que se acrescenta ao nome de João Pereira R amos de A zeredo Coutinho, ao encarregá-lo
de dirigir os trabalhos da Comissão Revisora, «assim em razão do seu officio e principal
mente pelas luzes claras e superiores, que tem nesta materia, as quaes elle com zelo,
e discrição, depois de ser o primeiro, que nestes tempos as cultivou, foi também o primeiro
que procurou influillas e derramallas» — o que leva F reire de M ello a dirigir-lhe, em
nota (nota 48, de pp. 100-101), algumas palavras amáveis, do género das que usou,
duas páginas antes, para retratar S eabra e S ilva.
T udo isto, aliado ao facto de se mandar começar a revisão só «pela parte do
Direito Publico» e de se instituir para a mesma revisão um m étodo de trabalho inacre
ditável (revisão por uma Comissão de 5 membros, cujos resultados seriam levados à
aprovação duma «conferencia superior», constituída por nada menos de 10 membros,
recrutados em grande parte da Comissão de 1788, que nada tinha feito), revela à sacie
dade que o verdadeiro propósito de Seabra e S ilva era fazer protelar indefinidamente
a tarefa e fazer gorar a projectada reforma.
D a revisão ordenada pelo Decreto de 3 de Fevereiro de 1789, apenas ficaram
duas «censuras»: uma, da autoria de A ntónio R ibeiro dos Santos e outra da autoria
de F rancisco P ires de Carvalho, ambos eles lentes de Cânones da Universidade de
Coimbra e membros da Comissão de Censura e Revisão nomeada por aquele decreto;
e ambos eles membros do mesmo Colégio dos Frades Militares, de Coimbra, a que per
tencia M ello F reire. F reire de M ello (ob. cit., p. 99, em nota) não se atreve
a denegrir R ibeiro dos Santos, que considera «egregio e de boa eschola»; mas diz que
o segundo, «brasileiro ingrato aos beneficios recebidos do Autor da obra censurada pouco
tem po depois que as coisas políticas de Portugal mudárão de circumstancia», «escreveo
a sua censura em estilo académico, e ocupou-se principalmente sobre a collocação dos
titulos; queria que o primeiro titulo fosse o ultim o, e o ultimo o primeiro; queria que
o § tal e tal estivesse antes collocado debaixo do titulo tal e tal, &c.».
M ello F reire respondeu às objecções dos seus dois censores. E assim «acabou
a Obra do Codigo numa demanda, e o publico foi quem perdeo» (F reire de M ello,
ob. cit., p. 100, em nota).
0) Servimo-nos da l .a edição: Paschalis Josephi M ellii F reirii Acad. Reg.
Scient. Olisip. socii, in Regio Equestrium Ordinum Collegio collegae, et Publici apud
Conimbricensem Academiam Juris Patrii professons emeriti Ord. Institutionum Juris
Criminalis Lusitani jussu Acad. Reg. Scientiarum in lucem editus, Liber singularis. Olisi-
pone. Ex Typographia Regalis Academiae Scientiarum Olisiponensis. Ano M D C C X C IV .
Foi em sessões de 13 de Março e de 10 de Novem bro de 1788 que a Academia
resolveu editar, respectivamente, a Historia e as Institutiones de M ello F reire; mas,
como as Institutiones Iuris Criminalis são o últim o volum e das Institutiones Iuris Civilis
só em 1794 chegou a vez da sua impressão. Foi por Aviso Régio de 7 de M aio de 1805
que as obras de M ello F reire foram mandadas adoptar como livros de texto na Univer
sidade de Coimbra.

457
*
simpatia pelas novas doutrinas humanitaristas, louvando os príncipes
e as sociedades literárias e científicas que ùltimamente têm propugnado
por «leis menos severas, e ao mesmo tempo as mais promptas e capazes
para conterem e evitar os malfeitores»; e esclarece que esta nova orientação
«se deve ao estado e perfeição da moral politica, que ensina que o criminoso
ainda é cidadão, e que pelo seu interesse e da mesma sociedade deve por
ella ser tractado como um doente ou ignorante, que é necessario curar,
instruir e cauterizar segundo a enfermidade» (x). Cita, logo de seguida,
o Marquês de Beccaria como aquele a quem se deve, inspirado nas obras de
Locke e de Montesquieu, a paternidade desta nova moral política (2), à luz
da qual critica as nossas velhas Ordenações, onde descobre vários defeitos
principais, que demoradamente analisa e exemplifica: «os delictos não se
distinguem [nelas], nem se separão entre si pela sua ordem e classes»;
«as doutrinas e regras geraes sobre os delictos, os delinquentes e as penas,
e sobre as provas, indicios e presumpções são absolutamente omissas»;
«a mesma legislação, no seu fundo, pela maior parte, é inconsequente,
injusta e cruel»; «as penas não tem proporção com os delictos»; permite-se
«a denunciação em segredo»; aceita-se «a famosa e escandalosa differença
entre o fidalgo, desembargador, e os outros homens, como se todos não
tivessem o mesmo e igual direito á sua honra»; «os tormentos se approvão,
e se mandão dar»; «admitte-se indistinctamente o processo accusatorio
e o inquisitorio»; etc (3).
Ainda que Mello Freire o não citasse expressamente, saltaria à vista
a influência de Beccaria na apresentação destas críticas e na formulação
das medidas que, em resposta a elas, seguidamente faz incluir no articulado
do seu projecto. Mas, quando chega ao problema da pena de morte,
o vigoroso mestre conimbricense mostra-se algo receoso e comedido,
parecendo-lhe excessiva — pelo menos para execução imediata, num país
como o nosso, ainda mergulhado no fanatismo do direito penal clássico —
a posição extrema do seu mentor italiano. «Sei muito bem — declara
ele — os argumentos do Marquez de Beccaria no seu tractado Delictos
e das Penas, tirados já da natureza do contracto ou pacto social, já da
razão e exemplo do suicidio, já da experiencia»; mas «eu tenho para mim
que em Portugal não póde por ora haver segurança pública sem penas
capitaes: e todos sabem que o genio e character da nação é a principal
medida do augmento ou diminuição das penas» (4).
C1) Cfr. ob. e ed. cits., p. XVII.
(2) Cfr. ibidem, p. XVIII.
(3) Cfr. ibidem, pp. XVIII a XXI.
(4) Cfr. ibidem, p. XXIV.
458
Como se vê, Mello Freire não repudia a lição de Cesar Bonesana,
antes parece aceitá-la quando coloca o problema em termos de oportu
nidade, limitando-se a afirmar que não pode «por ora» haver segurança
sem penas capitais, o que implica a ideia de que a evolução da legislação
penal se deve operar progressivamente no sentido da abolição, que terá
chegada a sua hora no dia em que já com isso não corra risco a segurança
pública; e como discípulo de Beccaria se manifesta nitidamente na frase
imediata, ao perfilhar a tese utilitarista de que a medida das penas está
no «génio e carácter da nação» ou, o que vale o mesmo, na forma como
servem a utilidade comum i1).
Nesta ordem de ideias — e sempre colocado num plano militarista —,
refere-se à pena capital, no articulado do seu Projecto, nestes expressivos
termos : «Para estes fins julgamos ainda util e necessaria — o sublinhado
é nosso — a pena de morte natural: prohibimos porém os castigos e penas
cruéis em todos os delictos e crimes por mais graves que sejão». «E taes
são a pena de fogo em vida, de laceração ou cortamento de membro
util e necessario para a vida natural e social do homem; e geralmente todo
o genero de morte lenta e vagarosa, e à força de repetidos golpes e
tormentos». «Será por tanto a morte do criminoso feita em todo o caso de
um só golpe e em um só momento» (2). E, ao mesmo tempo que proíbe
qualquer forma de crueldade na execução da pena última, suprime-a num
grande número de casos, servindo-se dela apenas para punir o que chama
os «crimes gravíssimos» (3) e que são, em seu entender, o crime de alta
C1) Em idêntico sentido, além do passo citado, lê-se a pp. X X X I da mesma
Introdução : «No juizo das penas necessariamente hei de consultar as nossas leis e as visi-
nhas, e a practica das nações: mas protesto desde já não me embaraçar m uito com o que
ellas dizem; porque tendo o livro quinto das nossas Ordenações poucas regras, que se
aproveitem, as leis ciminaes estrangeiras ainda tem m uito menos. Com este protesto,
e usando da liberdade, que me é propria, sem transgredir os seus justos e verdadeiros
lim ites, em tudo o que disser, consultarei principalmente a razão natural e civil das penas,
o fim das sociedades, a segurança pública, o estado, genio>indole, e character singular da nação
portugueza, e sobre tudo a lei da humanidade, entendida e combinada sempre com a lei da
justiça e da segurança pública» (o sublinhado é nosso).
(2) Cfr. ibidem, p. 6. Trata-se do T ítulo IV (Das penas)y §§ l.°, 2.° e 3.°,
do articulado proposto. N o «proèmio» deste mesmo título, toma-se posição acerca do
problema do fim das penas: «O castigo necessario, que a lei faz soffrer ao criminoso, tem
por fim não só a reparação do damno já feito, mas obstar e impedir que elle continue a
fazer mal, e que os outros o fação com o exemplo da sua impunidade».
(3) Cfr. ibidem, p. X X III da Introducção : «Em quanto á primeira [parte], em
que se tracta dos delictos, dos delinquentes e das penas, digo que não admitto em caso
algum as penas cruéis; que quasi nenhum uso faço das fiscaes: porém admitto e me sirvo
das capitaes em todos os crimes gravíssimos» (o sublinhado é nosso).
459
traição (*), o crime de lesa-majestade e equiparados (2), o crime de homi
cídio qualificado (3), o de fogo posto com intenção de matar e resultado
positivo (4), o de furto qualificado colectivo (mas limitada a pena capital ao
C1) Cfr. Título X III (Do crime de alta traição), § 16: «Os abomináveis réos deste
crime serão enforcados, e morreráõ de morte vil e affrontosa; e antes de a padecerem,
descalços e nús, e com o baraço ao pescoço, e a cabeça rapada, serão publicamente
açoutados pelas ruas da cidade, e apregoados por infames e traidores. § 17: Depois
de mortos, seus corpos no mesmo logar e occasião do supplicio serão logo despedaçados
em quatro partes, e postos nas praças da cidade até o tem po os consumir: o coração e
fígados lhes serão ahi mesmo arrancados pelo algoz, e lançados ao fogo, e depois ao mar.
§ 18: As suas casas principaes de residencia na cidade e no campo serão arrazadas e
salgadas, e no sitio se levantará um padrão com a inscripção do caso: as suas estatuas,
armas e pinturas, demolidas, rôtas e picadas: a sua memoria proscripta, e o seu nome
tirado de nossos livros, e de nossas relações, Conselhos e Tribunaes, em que tiverem
servido: não poderá jámais nomear-se, nem escrever-se em tempo algum o seu proprio
nom e, sem que se lhe chame infame e traidor: e por tres annos succesivos, no m esmo
dia da execução, se fará outra similhante em uma estatua, e com o m esm o apparato»
(ibidem, pp. 29-30). Seguem -se, ainda, disposições referentes à confiscação dos res
pectivos bens, etc.
(2) Cfr. T ítulo X IV (Do crime de lesa majestade), § 12: «Os criminosos de
lesa majestade depois de açoutados pelas ruas públicas com baraço e pregão, serão enfor
cados: o seu corpo dividido em quatro partes se porá nas praças da cidade, até o tem po
o consumir: o seu coração e fígados se lançaráõ ao fogo, e as cinzas ao mar: e os seus
bens se tomaráõ para o nosso fisco, posto que filhos tenhão» (ibidem, p. 33). Equi
parados aos criminosos de lesa-majestade ficam, no projecto de M ello F reire, os que
resistirem ou desobedecerem a ordens reais, «dadas immediatamente por nós ou pelos
ministros do nosso Conselho de Estado» (tít. X V III, § l.°, ibidem, p. 42); e «o que tirar
por força o preso do logar do supplicio ou do caminho, quando for a padecer» (título X IX ,
pr., ibidem, p. 45).
(3) Cfr. T ítulo X X X I (Do homicidio qualificado), pr.: «É qualificado o hom i
cidio voluntario, concebido e premeditado, e o que se commetteo aleivosamente, ou por
dinheiro, ou por outra paixão vil e baixa, ou com crueldade desusada, e geralmente o que
for acompanhado de circumstancias aggravantes em razão da pessoa do morto ou do matador,
do logar, instrumento, modo e maneira, com que foi disposto e perpetrado. § l.°: O hom i
cidio doloso, premeditado com plena vontade e conhecim ento, e deliberado com inter
vallo de tempo a commetter-se todas as vezes que se offerecer occasião e logar opportuno,
será castigado com pena capitai» (ibidem, p. 73). Esta pena seria agravada com a pena
prévia de açoutes pelas ruas públicas e perda dos bens para os herdeiros do m orto, não
tendo filhos, «e tendo-os, a metade», nos crimes de envenenamento (§ 5.°, ibidem, p. 74),
assassinato «sob mostrança de amizade, simulando e fingindo ser amigo de outrem, ser-
vindo-se e abusando infiel e aleivosamente da mesma amizade para o matar» (§ 17.°,
ibidem, p. 75) e o assassinato de amos por criados ou domésticos (§ 18.°, ibidem, pp. 75-76).
(4) Cfr. T ítulo X X X II (Dos incendiarios), § 3.°: «Sendo o fogo lançado, assim
na cidade como no campo, com animo de matar, e seguindo-se a morte, se castigará
o incendiario como homicida qualificado com todas as penas impostas no §. 5.° do
T it. 31.;...» (ibidem, p. 79).

460
chefe da quadrilha) (1)3 o de chefia de sedição, assuada, tumulto ou mero
ajuntamento secreto com fins de subversão religiosa (2), e, finalmente, o
crime de chefia de sedição ou tumulto contra o governador ou ministro da
terra, se for acompanhado de violência contra as pessoas ou contra a
sua dignidade (3).
Com razão se tem dito já que o Projecto de Mello Freire, em vários
pontos do seu articulado, ficava bastante aquém das generosas ideias huma-
nistaristas expendidas na respectiva «Introdução», por demasiado apego
do autor, malgré lui, à tradição das Ordenações, em que fora educado e
formara inicialmente o seu espírito (4). Como quer que seja, o projecto
representava um avanço tão grande em relação ao statu quo, que pode
considerar-se verdadeiramente revolucionário para a sua época; e, embora
não tenha sido convertido em lei, reveste-se dum valor excepcional, como
expressão dum anseio generalizado de profunda renovação das nossas
leis penais — anseio que se traduzia, dentro do campo limitado que nos

C1) Cfr. Título X X X V I (Dos furtos), § 19.°: «Havendo sociedade e ajuntamento


de dez pessoas unidas com o fim de furtar ou roubar, serão castigados todos os furtos,
que fizerem, sem respeito ao seu numero ou quantidade, como se fossem feitos com
violencia; e o chefe ou capitão da quadrilha morrerá de morte affrontosa» (ibidem, p. 91).
(2) Cfr. T ítulo V (Dos hereges e apostatas), § 6.°: «O que por causa de religião
excitar alguma sedição, assuada, ou tum ulto, ou pela mesma causa houver a si sectarios
e partidistas, e com elles com o pretexto de religião fizer occultos ajuntamentos e conven
tículos, perderá todos os seus bens para a Corôa de nossos reinos, e servirá para sempre
nas galés. E sendo auctor principal do delicto, morrerá de morte affrontosa» (ibidem,
pp. 11-12).
(3) Cfr. Título XV I (Das sedições, tumultos e outros ajuntamentos) , § 5.°:
«O sobredito ajuntamento intentado e praticado contra o governador ou ministro da
terra, de qualquer ordem e graduação que elle seja, será castigado nos cabeças, auctores
e motores com pena capital nos casos de arrombamento de porta, de se lhe entrar em
casa com violencia, de ferimento na sua pessoa, ou na de seus familiares, e de se obrigar
a assignar, ou a passar alguma ordem ou mandado em materia da sua jurisdicção, a qual
não passára se não fosse violentado e constrangido» (ibidem, pp. 36-37).
(4) N esse sentido, designadamente, B asílio A lberto de S ousa P into, Lições
de direito criminal portuguez (Coimbra, 1861), p. 31; e Eduardo Correia, Sobre as
penas e sua graduação, cit., pp. 65 a 67. Que o articulado proposto por M ello
F reire deixa muito a desejar, depois de tão ardorosa manifestação de fé humanitarista
feita na Introdução ao seu projecto de Código Criminal, mostram-no sobejamente as
transcrições feitas nas notas anteriores. H á, sobretudo, um ponto que não se entende:
como foi possível um espírito aberto — como o de M ello F reire — dar aceitação ao
esquartejamento post mortem, incineração das vísceras do executado e toda a restante
sorte de barbaridades (salgamento das terras, repetição do suplício em estátua durante
três anos, etc.) preconizados para a punição capital dos crimes de alta traição (e, em parte
também, para os de lesa-majestade). Cfr. supra, notas 1 e 2 da p. 460).

461
interessa aqui considerar, num cerceamento considerável do âmbito de
aplicação da pena capital e na supressão ou redução ao mínimo dos requin
tes de crueldade com que, até aí, era frequentemente executada.
10. Ao lado do projecto de novo Código Criminal de Mello Freire,
não têm menos interesse as suas «Institutiones Iuris Criminalis Lusitani»,
porque, se aquele projecto é apenas a expressão dum anseio generalizado
de r e fo rm a que não chegou a concretizar-se, as «Institutiones» são a expressão
do direito vivo e já praticado e vêm revelar-nos que, a essa data (1794),
as formas cruéis de execução da pena de morte previstas nas Ordenações
para certos casos tinham, pura e simplesmente, caído em desuso, perante
a reprovação unânime da opinião pública.
Com efeito, Mello Freire, falando no seu manual acerca da pena de
morte, diz que ela pode ser de três espécies: simples, atrós e cruel, dando
o nome de atroz à que é agravada, mas dentro dos limites da humanidade
e da justiça (intra limites humanitatis et — como, por exemplo,
quando é acompanhada de confiscação, flagelação, incineração ou esquar-
tejamento post mortem, proscrição da memória do executado, etc. — e cha
mando cruel à que é provocada lentamente, à custa de suplícios ou golpes
vários (J). Alude ao debate sobre a pena de morte, citando, ao lado de Beccaria,
os principais autores que a condenam e que a defendem; e pronuncia-se
pessoalmente pela necessidade e justiça da pena de morte simples e, até,
para os casos mais graves, da pena de morte atroz (2) ; mas repudia enèrgica
mente a pena de morte cruel e dá-nos a informação, sobre todas preciosa,
de que, a essa data, tinham já caído em desuso todas as formas de execução
cruel estipuladas nas Ordenações, devendo a morte pelo fogo — prevista
para vários delitos graves no código filipino — ser entendida simplesmente
como incineração post mortem (3).
C) Cfr. ob.cit., T it. I, § X V (p. 11).
(«) Cfr. ob., tit e § cits.,p. 12: « plexve l a tro x justa est, et in
Sim
necessaria, eaque pro criminis qualitate, et atrocitate, infligenda, et augenda: crudelis
injusta, et vix ac nec vix quidem admittenda». A o admitir com o legítima a pena de m o n e
a tro z , M ello F reire segue aqui a mesma linha de orientação que se vê por ele adoptada
no «Novo Código».
(«) Cfr. ob. e loes. cits. : «Quae hic dicuntur de poenis plus quam atrocibus, id est,
crudelibus abolendis, una hodie Philosophorum omnium vox est. Easdem tarnen crimi
nales Europae Codices admittunt, et nostrae quoque Ordinationes criminales, utut hum a-
niores, in gravioribus quibusdam maleficiis, veluti vivicom burium in crimine monetae
adulterinae, Ord. lib. 5. tit. 12. in fin. princip. sodom iae, Ord. tit. 13. in princ. et §. 1. 2.,
coitionis cum bestia, ead. Ord., cum ascendentibus, vel descendentibus, Ord. tit. 17. in princ.
Sed, praeterquam quod hae Ordinationes in usu non sunt, de corporis post mortem

462
11. Ao lado de Mello Freire, há outro nome que não pode ser esque
cido nesta época e dentro do mesmo movimento de ideias, a quem se ficou
devendo igualmente um depoimento notável acerca de pena de morte:
o nome de António Ribeiro dos Santos, colega de Mello Freire na cátedra,
seu confrade na Academia e seu irmão professo no Colégio das Três Ordens
Militares, mas seu rival e antagonista na ideologia política e nas lides
literárias (1).
Por decreto de 3 de Fevereiro de 1789, Ribeiro dos Santos fez parte
da Junta de Censura e Revisão encarregada de rever o projecto de Novo
Código de Mello Freire; e reza a tradição — talvez carecida de ser revista
e objecto de estudo mais atento — que foram as discussões surgidas entre
os dois mestres, a propósito do projecto de Código de Direito Público que
Mello Freire também elaborara e por cuja revisão a Junta começou os
seus trabalhos, que fez gorar todos os planos de reforma auspiciosa
mente encetados, inclusivamente na parte que respeitava ao direito
criminal (2).
Como quer que seja, devemos ao talento de Ribeiro dos Santos um
precioso e extenso estudo sobre a pena de morte, saído a lume no «Jornal
de Coimbra» em 1815 (3). São dois os pontos que o canonista conimbricense
procura analisar em profundidade, na sua notável dissertação : «se he licita,

combustione intelligendae videntur». E acrescenta ainda: «In crimine leasae majestatis


poena mortis crudelis speciatim decernitur Ord. lib. 5. tit. 6. §. 9. ibi: Morra morte natural
cruelmente. Adverbium tarnen crudeliter pro atrociter scriptum videtur
D o mesmo m odo, no tit. X X , § IV (p. 213), depois de ter referido os principais
ritos da execução capital, acrescenta: «Alia exsecutionis sollemnia a majoribus adinventa,
et excogitata, ut populo terrori essent, hodie ferme negliguntur».
0 ) A ntónio R ibeiro dos Santos (n. 1745; m. 1818), lente de Cânones na Univer
sidade de Coimbra, foi eleito sócio supranumerário da Academia Real das Ciências em
19 de Janeiro de 1780; sócio correspondente, em 7 de Fevereiro de 1788; sócio efectivo,
em 1 de Abril de 1791 (precisamente na mesma sessão que elegeu M ello F reire); e vete
rano, em 1 de Dezembro de 1791. Foi um dos mais fecundos e operosos colaboradores
da Academia. M uitos dos seus trabalhos são comunicações por ele apresentadas à Academia.
Contam-se por dezenas os seus trabalhos impressos ; mas há ainda m uitos que se conservam
inéditos na Biblioteca Nacional de Lisboa e na Biblioteca da Academia das Ciências.
(2) V. o que sobre o assunto expusemos supra, nota 2 de pp. 455 a 457.
(3) O trabalho intitula-se Discurso sobre a pena de morte, e reflexões sobre alguns
crimes. Pelo Dr. A. R. S. e vem no Jornal de Coimbra, voi. V II, N um . X X X III, Parte II
(Lisboa: N a Impressão Régia. 1815.), pp. 101 a 147. Cada número do Jornal de Coimbra
era publicado em duas partes: uma parte I, «dedicada a objectos de Sciencias Naturaes»;
e uma parte II, «dedicada a todos os objectos que não são de Sciencias Naturaes».
O volume V II reporta-se, na folha de rosto, ao ano de 1814; mas o número em que vem
o Discurso de R ibeiro dos Santos tem a indicação de ter sido impresso em 1815.

463
e até que ponto a pena capital» i1) e «se ella convêm no estado ordinario da
Republica» (2). Estes dois aspectos, como logo salta à vista, são exactamente
os mesmos que Beccaria, desde a primeira hora, procurou distinguir dentro
do problema (3) ; mas Ribeiro dos Santos não se enfeuda ao pensador italiano
senão nesta «razão de ordem», de carácter formal, logo tomando posições
bastante originais, a respeito de um e outro tema.
Sobre a questão de saber, em plano puramente filosófico, «se é licita»
a pena capital, coloca-se numa posição bastante diversa da de Beccaria,
pois sustenta a sua licitude. Não o convencem, nesse sentido, várias razões
por outros invocadas e que cuidadosamente analisa e critica; convence-o
apenas o argumento de que «assim como o Homem no Estado Natural
póde matar o aggressor da sua vida, quando de outro modo a não póde
salvar, assim também a Sociedade Civil, na qual os Homens depositárão
seus Direitos n’ésta parte, póde dar morte ao Cidadão Criminoso, que
a-ataca, quando por outro modo não póde conservar ou a sua existencia
política, ou a sua geral tranquillidade»(4).
Dentro desta licitude de base, considera Ribeiro dos Santos que a
pena de morte «póde praticar-se nos casos de uma sedição perigosa para
o Estado, que se não póde aquietar ou desfazer sem a morte d’alguns
sediciosos, ou dos seus cabeças» e «nos casos em que periga a Patria, ou
mesmo o cidadão» — casos que minuciosamente procura em seguida exem
plificar (5). Em tais hipóteses, segundo entende, a morte justifica-se, «porque
o bem de todos demanda à Natureza este duro sacrificio do sangue humano».
«A morte — são ainda palavras suas — não he já então verdadeiramente
Pena, he defeza» (6).
Em compensação, quando passado ao segundo aspecto do problema
— o de saber se a pena capital é conveniente — sustenta com afinco e
com larga cópia de argumentos que «no estado ordinario da Republica,
nem he necessaria, nem he util a Pena de Morte» (7). Neste ponto, o pensamento(*)
C1) Ob. cit., pp. 102 a 109.
(*) Ob. cit., pp. 109 e ss.
(3) Cf. supra, n.os 5 e 6.
(4) Cfr. ob. cit., p. 102.
(5) Cfr. ibidem, p. 107.
(6) Cfr. ibidem, p. 108.
(7) Cfr. ibidem, p. 109. Desdobra a sua argumentação em dois capítulos,
procurando demonstrar separadamente que «A pena de morte não he necessaria»
(pp. 109 a 115) e que «A pena de morte não he util» (pp. 115 a 121).
Para demonstrar a desnecessidade da pena de morte, invoca R ibeiro dos S antos
sucessivamente — numa sistemática que dá bem a medida da sua grande craveira de
jurista: I — A «Pròva deduzida de factos (l.°: Da História antiga; 2.°: Da História

464
de Ribeiro dos Santos aproxima-se muito mais de Beccaria do que a propó
sito do primeiro aspecto do problema, sendo manifestamente inspirada
na obra do aristocrata italiano a ideia de discutir toda a questão da utilidade
moderna> , para concluir que «este supplicio no estado ordinario das Nações devêo a sua
origem e os seus primeiros progressos á superstição, á vingança, á barbaridade, e ao
despotismo» (pp. 109 a 112); I I — A «Pròva tirada dos effeitos da Pena de Morte nos
Estados antigos e... nos Estados modernos» (pp. 112 e 113); e, finalmente, III — A «Pròva
pela razão deduzida dos fins das Penas» (pp. 113 a 115).
Este últim o parágrafo é o mais interessante de toda a dissertação de R ibeiro
dos S antos, pelos profundos conhecimentos que revela a respeito das mais recentes
teorías sobre os fins das penas. O autor começa por pôr o problema: «Qual he o firn, ou
fins que se-propõem as Leis penaes? Ajuntemos todos os que se-costumão assignalar:
l.° Castigar o delinquente. 2.° Reparar o damno, que elle fez. 3.° Emendallo e corrigillo.
4.° Procurar a Segurança Pública no presente e no futuro. 5.° Desviar os outros Cida
dãos do máo exemplo pelo terror do supplicio». E seguidamente acrescenta: «Com tudo
a Pena Capital não he necessaria para nenhum d’estes fins». E entra na demonstração:
«l.° — A Pena de M orte não he necessaria para punir simplesmente o criminoso;
porque elle pode ser castigado com penas menos fortes que as de sangue, as quaes
lhe-sejão assas pezadas e afflictivas, e até susceptíveis de mais e de menos para se-accom m o-
darem pelos seus diversos gráos ou gravidade de um m esm o crime ; vantagem, que se não
póde achar nas penas de sangue, pois que a morte he sempre a mesma, e não póde ser
variada em diversos gráos, como o são todas as outras penas ordinarias; a menos de se
recorrer aos acessórios da crueldade, que tanto ultrajárão e atropellárão a humanidade;
differença e inconveniente bem sensivel, e que só elle bastára para a-excluir da classe
ordinaria das penas.
2.° — A Pena Capital não serve para a reparação do damno, porque a morte de um
réo nem repara, nem compensa o mal, que elle fez ou á Cidade ou ao Cidadão.
3.° — N ão he necessaria para corrigir e emendar o réo para que não persista em
suas inclinações prever sas, pois que elle morre.
4.° — N ão he também para garantir a Sociedade de novos males e attentados,
que elle possa commetter para o futuro; porque em uma M onarchia bem regulada...
em que ha forças para prender os Réos, e cárceres para os-reter; em que ha todos os
meios prontos e fáceis de pôr o criminoso em estado d ’im potencia de mais nos-fazer
mal: não há necessidade alguma de passar á sua destruição total...». A este propósito
enfrenta a «objecção» de saber se «deverá o Estado carregar-se de despezas, que demanda
a encarceração d’estes Réos». E responde: «Os que põem ésta objecção querem dizer que
o Estado por poupar as despezas da Fazenda póde deixar de poupar o sangue hum ano;
póde matar um Réo por motivo d’economia: mas d’isto m e farei cargo quando fallar da
pena de trabalhos públicos, que substituo á Pena Capital».
O problema referente ao 5.° fim das penas apontado anteriormente (a pena de
morte como exemplo) é tratado pelo autor no capítulo imediato («A pena de morte não
he util»). Procura aí demonstrar que «o espectáculo do supplicio capital de ordinario não
faz a impressão forte, que a Lei espera, antes produz effeitos contrarios ao mesmo fim
das penas». E , com esse objectivo, analisa separadamente — e com particular argúcia
— os efeitos que a execução da pena capital produz em 3 classes de espectadores :
«I — ...uns, e he o maior número, que se-com m ovem de piedade para com o R éo, e isto

465
30 - II Voi.
e necessidade da pena de morte exclusivamente dentro dum pressuposto basi
lar: o duma sociedade em paz interna e externa, ou seja, na expressiva frase
de Beccaria já atrás citada, duma sociedade «sob o reino tranquilo das leis»0.
Defendendo em termos absolutos, num quadro destes, a desnecessidade
e inconveniência da pena de morte, Ribeiro dos Santos pode com razão
considerar-se o primeiro abolicionista, plenamente convicto, do pensamento
criminalístico português.
12. O movimento de opinião tendente à humanização das penas
e ao cerceamento do âmbito da pena de morte não se confinou, porém,
nesta época, a dissertações literárias (2) e a bem-intencionados mas falhados
projectos de reforma.
está na natureza do homem. II. Outros que são indifferentes a este acto. III. (E, final
m ente, os) «que se comprazem com elle».
O estudo de R ibeiro dos S antos sobre a pena capital term ina com três excursos
a que dá o nom e de Reflexões : «Sobre a illegitimidade da Pena Capital, ainda supposta a
insuficiencia ou inefficacia das penas menos fortes» (pp. 119-120); «Sobre a inefficacia de
urnas e de outras penas para conter todos os deliciosa (pp. 120); e «Sobre o effeito irreparavel
da Pena Capital no caso da innocencia do Justiçado» (p. 121).
A segunda parte da dissertação de R ibeiro dos S antos (pp. 122 a 147) é consa
grada ao estudo de vários outros problem as de direito penal.
0 ) A influência de B eccaria n o trabalho de R ibeiro dos S antos está, sobretudo,
nos pontos acabados de assinalar, pois há-de reconhecer-se que, do ponto de vista jurídico,
o estudo do nosso canonista supera em m uito o tratado Dos delitos e das penas. R ibeiro
dos S antos , num a palavra, era um grande jurisconsulto — o que B eccaria nunca foi.
(2) Entre os autores que neste período receberam o influxo benéfico das ideias de
B eccaria, deve ainda citar-se J oaquim J osé C aetano P ereira e S ousa , no seu trabalho
Classes dos crimes, por ordem systematica, com as penas correspondentes, segundo a legislação
actual. P or..., Advogado na Casa da Supplicação (Lisboa. M D C C C III. N a Regia
Officina Typographica. Por ordem de S. A. R.).
Referindo-se à pena de morte, P ereira e S ousa cita B eccaria e outros autores
que se manifestaram contra ela e refere aqueles que a defendem, para, em seguida, mani
festar a sua opinião: «Parece poder seguir-se a opinião media, de que esta pena não he
illicita, mas que deve ser applicada raras vezes». N o plano filosòfico, coloca-se numa
posição muito diferente de B eccaria , ao afirmar: «A sociedade deve immolar o culpado,
quando não pode conservallo sem perigo da tranquillidade publica. Ella realiza assim
o direito virtual que no estado naturai tinha o hom em de matar para não ser morto».
Legitimando a pena de morte para os casos extremos, P ereira e S ousa entende,
no entanto, que eia se deve limitar tanto quanto possível: «Deve porém a boa Legis
lação Criminal economizar muito o sangue humano. A pena de morte he nociva á socie
dade, porque a priva dos seus Cidadãos; porque dá exemplos da crueldade; porque não
remedeia o damno causado pelo crime; porque não enche o principal fim das penas, que
he melhorar, e não vingar. ...A sociedade tirando a vida a hum Cidadão, commette a
acção que ella pune. Em quanto se póde corrigir o culpado, e prohibillo de fazer mal,
a pena de morte he inútil, e consequentemente injusta». Cfr. ob. cit., pp. 22-23 (em nota).

466
Além da queda em desuso das formas cruéis de execução da pena
de morte previstas nas Ordenações — a que Mello Freire faz alusão (*) —
e além do silencioso trabalho dos tribunais na edificação duma jurispru
dência penal mais humana e mais equitativa, cedo começamos a encontrar
também na legislação avulsa reflexos importantes do movimento humani-
tarista, que seriam outros tantos passos em frente no caminho dum futuro
banimento total da pena de morte e de toda a desnecessária dureza na
aplicação das penas herdada do direito antigo.
Merecem ser postos em relevo, a este respeito, os Decretos de
D. Maria I de 1777 e de 1790, que exigem a presença dum certo número
de juízes togados nos Conselhos de Guerra e no Conselho de Justiça para
a aplicação das penas, e especialmente da pena de morte, aos militares (2);
C1) Cfr. supra:, n.° 10 e nota 3 de pp. 462-463.
(2) Decreto de 20 de Agosto de 1777. Referindo-se aos «Conselhos de Guerra»,
a soberana (D . M aria I) declara: «...sendo minha Real Intenção que nenhum Réo haja
de ser condemnado á morte, sem que os Vogaes sejão pelo menos no numero de oito,
em que entrarão quatro Togados:...». Cfr. Collecção da Legislação Portugueza desde a
ultima compilação das Ordenações, redigida pelo Desembargador A ntonio D elgado da
S ilva, Voi. III. Legislação de 1775 a 1790 (Lisboa, na Typografia M aigrense, anno de 1828),
p. 154.
Decreto de 13 de Agosto de 1790 : «...Sou Servida Ordenar, que todos os Conce
lhos de Guerra, que subirem a Superior Instancia do m eu Conselho de Justiça, sejão
nelle sentenciados a final por seis Juizes a saber, tres Togados, e tres Concelheiros de
Guerra, ou quatro Togados, e dois dos referidos Conselheiros de Guerra, conforme as
circumstancias o permittirem, isto ainda no caso em que os crimes dos Réos, nos ditos
Conselhos processados, forem Capitaes, e devão por isso merecer a ultima pena; com
a differença sómente, que nos casos de empate sobre crimes ordinarios, o Conselho convo
cará hum séptimo Juiz Togado, que haja de decidir, a fim de se proferir sentença final;
porém occorrendo este empate a respeito de crimes Capitaes então serão dous os Convo
cados, para que da mesma maneira se decida, e prosiga a final Sentença: E outro sim
Ordeno que succedendo faltar por im pedimento, ou molestia o numero competente de
Juizes na Classe dos Togados, o mesmo Conselho possa eleger extraordinariamente outro
em seu lugar, e o haja de convocar para o dito effeito. O Conselho de Guerra o tenha assim
entendido, e faça executar, não obstante quaes quer Leis, Decretos, ou Ordens em contrario.
Palacio de Lisboa 13 de Agosto de 1790 — Com a rubrica de Sua Magestade». Cfr.
ibidemy p. 616.
Decreto de 13 de Novembro de 1790 (que completa, e interpreta os dois anteriores):
«Sendo-M e presente, que sobre a intelligencia, e execução dos M eus Reaes Decretos de
vinte de Agosto de m il setecentos setenta e sete; e treze de Agosto de mil setecentos e
noventa, se poderão mover algumas dúvidas: Sou Servida Ordenar, e declarar o seguinte:
Primó : Que o Conselho de Justiça tenha todo o arbitrio, e faculdade para confirmar, revo
gar, alterar, e modificar as Sentenças dos Conselhos de Guerra, tanto de condannar, como
de absolver os Réos, nos casos em que o Direito o permittir, podendo minorar ainda as
penas impostas pelo Regulamento Militar, parecendo justo e tendo as ditas Sentenças

467
o alvará com força de lei de 5 de Março de 1790, que proibe manter os
réus mais de 5 dias em regime de segredo, «por ser uma espécie de tormento,
que já não tem lugan> — frase que tem um interesse muito especial, pois
constitui um reconhecimento legal do desuso da tortura e implica, assim,
uma revogação da mesma 0 ; o decreto do Príncipe Regente de 27 de Janeiro
de 1797, que manda perdoar a pena de morte ao condenado que se oferecer
para executor de alta justiça — medida legislativa que é o reflexo mais
expressivo da generalizada repulsa pelo cargo de carrasco e pela execução
da pena última (2); e ainda o Decreto de 11 de Março do mesmo ano, que
manda comutar a pena de morte em degredo perpétuo para Moçambique
a todos os presos de menos de 40 anos que se encontravam no Limoeiro
do Conselho de Justiça huma prompta execução, regulada pela fórma do primeiro
Decreto de vinte de Agosto de m il setecentos setenta e sete; Secundo : Que para os Casos
de crimes ordinarios, e não de pena de morte natural, bastarão dous Juizes Togados e
dous Conselheiros de Guerra, pondo-se a Sentença pelo voto de tres, ainda que o quarto
discorde; e havendo empate entre os quatro, se decidirá pelo voto de mais hum , ou Togado,
ou Conselheiro.......... Tertiò: Que os casos de pena de morte natural se decidirão por tres
Juizes Togados, e tres Conselheiros de Guerra; ou quatro Togados e dous Conselheiros;
se houver empate, convocar-se-hão mais dous Juizes Togados, de sorte que sempre se
ponha a Sentença por voto de mais dous, na fórma da Ordenação do R eino,...........».
Cfr. ibidem, pp. 623-624.
Sobre estes diplomas legais, vide A ntonio L uiz de S ousa H ensiques S ecco, Da
historia do Direito Criminal Português, desde os mais remotos tempos, in Revista de Legis
lação e de Jurisprudencia, vol. IV (1871-1872), p. 580; e H enriques da S ilva, Elementos
de Sociologia Criminal e Direito Penal, Fascículo II (Apontamentos) (Coimbra, Imprensa
da Universidade, 1906), p. 53.
O Alvará com força de lei de 5 de Aíarço de 1790 : — N o § 2.°, a propósito
da brevidade que devia respeitar-se na instrução dos processos crimes, determina:
«Pelo que toca aos segredos, ainda se requer maior brevidade nas perguntas; porque
devendo-se estas fazer para bem da Justiça, e melhor indagação da verdade, em quanto
os Réos se conservarem na quelles lugares separados da communicação dos outros Prezos,
não podem elles estar fechados mais de cinco dias, na forma do Decreto de sete de Agosto
de m il setecentos e dous, sem que o Regedor, com mais dous Desembargadores,
convenhão em lhe prorogar mais tem po, conforme a necessidade o pedir, que nunca pode
ser com excesso, por ser huma especie de tormento, que já não tem lugar...». Cfr. Collecção
e voi cits., pp. 589-590; S ecco, ob. e loe. cits.; e H enriques da S ilva, ob. e loe. cits.
(2) Decreto de de 27 Janeiro de 1797 : «Hei por bem ordenar, que offerecendo-se
daqui em diente (sic) alguns Réos dos Sentenciados á morte para serem executores da
Alta Justiça, os Juizes que os sentenciarem possão logo sem que seja necessario nova
ordem, ou Resolução M inha, attender aos requerimentos que elles para o dito fim lhe
fizerem declarando a sua Sentença para que não tenha lugar excepto se os mesmos por
sua culpa deixarem algum tempo de servir como ficão obrigados...» Cfr. Collecção cit.,
vol. IV (Legislação de 1791 a 1801), p. 370; S ecco ob. e loe. cits.; e H enriques da S ilva,
ob. e vol. cits., p. 54.
468
a aguardar execução, excepto se estivessem condenados por «crimes atro
císsimos» (1).
De muito maior relevo que quaisquer destes são, porém, os Decretos
de D. João VI, ainda Príncipe Regente, de 12 de Dezembro de 1801 e
de 11 de Janeiro de 1802. No primeiro desses decretos — depois dum
preâmbulo justificativo em que é manifesta a influência das ideias de
Beccaria —, mandam-se rever na Casa da Suplicação os processos de todos
os presos que se encontram nas cadeias públicas a aguardar execução,
ordenando-se que a pena capital lhes seja comutada — salvo sendo «Réos
de crimes enormíssimos nos quaes deve sempre ter lugar a execução da
pena ultima» — na pena de «Galés perpetuas, ou temporarias (segundo a
grandeza dos Crimes) para os trabalhos públicos da Cidade de Lisboa» (2).
0 ) Decreto de 11 de Março de 1797 : «Attendendo a que nas Cadêas do Limoeiro
se achão detidos muitos Prezos, cujos Livramentos se não podem abreviar pelos meios
ordinarios da Justiça, e querendo usar com elles da M inha Real Piedade, e soccorrer ao
M esm o tempo os Estados da índia, e de M ossambique com as Recrutas que ali são
precisas para a Tropa,* Sou Servida que a todos aquelles Prezos que tiverem até quarenta
annos de idade se lhes commute em Relação apena de morte em que estiverem incursos
da immediata de M ossambique (sic) por toda a vida exceptuando porém os Crimes atro
císsimos que não são susceptiveis desta Commutação. Aos outros Réos de crimes menos
graves se lhes commutará as penas em que tiverem incorrido nos dos referidos degredos
da India, ou M ossambique pelos annos que parecer aos Juizes que houverem de Senten
ciar...» Cfr. Collecção e voi. cits., pp. 382-383; Secco, ob. e loe. cits.; e H enriques da
S ilva, ob.y vol. e pág. cits.
(2) Decreto de 12 de Dezembro de 1801 : «Achando-se nas Cadêas públicas m uitos
Réos condemnados por Setenças definitivas, a pena de morte, e a outras que podem
commutar se em Galés prepetuas, ou temporarias, sem que por huma parte se offenda
com esta Commutação a gravidade dos delictos; antes com taes castigos continuadamente
presentes aos Olhos do Público, se consiga o fim principal do exemplo, a que são destinados;
e por outra parte podendo tirar-se partido da mesma lastimável condição dos D eli quentes,
empregando-os nos trabalhos públicos mais peniveis, quaes o de limpar e desentupir de
lamas, e lixos os Canos da Cidade, que o necessitem; o devarrer e de limpar diariamente
as Ruas; e outros semelhantes, a que destinem com vantagem da Sociedade: Sou Servido,
que na Casa da Supplicação revendo-se os Prosseços de todos os Prezos, que se acharem
nas indicadas circumstancias sejão commutadas em Galés perpetuas, ou temporarias
(segundo a grandeza dos Crimes) para os trabalhos públicos da Cidade de Lisboa, as
penas em que estiverem condemnados por Sentenças definitivas: Mando outrosimy que
nesta conformidade se sentencêem os Prosseços daquelles Réos que ainda não estiverem julgados
a final; e todos os ditos Réos serão remettidos às Galés da Ribeira das Náos á disposição
do Intendente Geral da Policia para os indicados trabalhos na fórma das Providencias
que lhe tenho ordenado; Exceptuó porém desta generalidade os Réos de crimes enormíssimos
nos quaes deve sempre ter lugar a execução da pena ultima; assim como também não he da
M inha Real intenção, que deixe de embarcar-se o número necessario dos condemnados
a Galés para a Náo da India que deve sahir no proximo anno: O Conde Regedor o tenha

469
Mais importante é, porém, notar que não estamos em face duma medida
de clemência ocasional, mas duma verdadeira e profundíssima reforma
legislativa, pois o decreto ordena que o mesmo se observe daí em diante
quanto aos reus que vierem a ser julgados; e o segundo decreto, um mês
depois, em complemento deste, vem explicar quais os crimes que, para
este efeito, se devem englobar na categoria de enormíssimos, ficando assim
— e sem grandes alaridos — abolida a pena de morte em Portugal, em 1802,
para todos os demais crimes dela passíveis em face das Ordenações C1)*

assim entendido, e faça executar, não obstantes quaesquer Leis, e Ordenações que esta
belecem penas differentes, ou de outras Disposições que possão intender-se contrarias,
que todas H ei por derogadas para este effeito. Palacio de Queluz em 12 de Dezembro
de 1801. — Com a Rubrica do Principe Regente N osso Senhor». Cfr. Collecção e voi.
cits., pp. 766-767; Basilio Alberto de S ousa P into, Lições de Direito Criminal Portu
gués (Coimbra, 1861), p. 31; S ecco, ob. e loe. cits.; e H enriques da S ilva, ob., vol.
e p. cits.
O favorável acolhimento que este diploma legislativo teve na opinião pública da
sua época ressalta bem nítido dos termos com que se lhe refere, em 1803, o prestigioso
P ereira e S ousa, qualificando-o de «hum exemplo de moderação, que honra a humani
dade sem desar da Justiça, e immortaliza a memoria da actual Regencia». (Cfr. Joaquim
José Caetano Pereira e S ousa, ob. cit., p. 24 (em nota).
Tam bém Borges Carneiro, já em plena época liberal, depois de dizer que «a pena
de morte deve ser empregada pelo Legislador e pelo Juiz com grandissima moderação»,
louva neste diploma de 1801 e nos que se seguiram referentes à mesma matéria «a clemencia
que tem immortalisado o reinado do Senhor D . João VI». Cfr. M anuel B orges Carneiro,
Direito Civil de Portugal (Lisboa. N a Typografia de Eugenio Augusto: 1836), tom o I,
pp. 105 e 106 ( = L iv.° I, t. III, § 37, fr. 6 a 14).
(!) Decreto de 11 de Janeiro de 1802 : «Podendo entrar em dúvida a verdadeira
intelligencia do Decreto de 12 de Dezem bro de 1801, pelo qual Fui Servido commutar
em Galés perpétuas ou temporarias o castigo dos réos, que devem ser julgados a final
pelos M inistros da Casa da Supplicação, visto que nelle se não declarou, quaes são os
crimes enormissimos, que M andei exceptuar da generalidade daquella disposição, para
ficarem sempre sujeitos á imposição da pena de morte; e não sendo da M inha Real
Intenção, que por huma piedade mal entendida se julguem comprehendidos naquella
ampla commutação todos os crimes, cuja atrocidade exige huma pena proporcionada
á sua gravidade, que servindo de castigo aos delinquentes, possão cohibir a multipli
cidade dos malfeitores, que continuão a perturbar a segurança e tranquillidade dos M eus
fieis Vassallos: Sou Servido declarar, que a sobredita commutação não terá lugar nos crimes
dos roubos feitos nas ruas desta Capital, e seus suburbios e estradas de Meus Reinos, nas mortes,
efurtos em casas praticados com violencia, e disparando-se armas de fogo, ou contra Carruagens,
ou outros quaesquer delictos, cuja qualidade aggravante os fez sujeitos às saudaveis e provi
dentes disposições das mesmas Leis, a fim de que em todos elles se imponha a pena de morte,
que nellas se acha ordenada, visto que a atrocidade destes crimes exige hum castigo severo,
e absolutamente necessario, para conservar illesa a tranquillidade pública, e a segurança
dos M eus fieis Vassalos. Para effeito de fazer mais attendiveis estas provideniasc, e que

470
Não há-de ficar esquecida também neste momento — e antes de
passarmos adiante — uma referência a um facto deveras significativo:
em 1 de Julho de 1772, reinando ainda D. José I e governando o Reino
o seu omnipotente ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, era executada
pela última vez uma mulher em Portugal — e..., para despedida, executada
com todos os requintes de crueldade ao tempo ainda em uso: atenazada
com ferro em brasa, cortadas as mãos, garrotada e queimada (x). Desde o
produzão hum saudavel temor nos máos, e preversos perturbadores da tranquillidade
pública, Ordeno que se proceda logo a julgar todos os réos detidos nas Cadêas, e que se
fação promptamente executar as penas, que segundo as Leis lhes forem applicadas pelas
sentenças que se pronunciarem. O Marquez Regedor o tenha assim entendido, e faça
executar, não obstante quaes quer Leis, e Ordens em contrario, que todas Hei por derogadas
para este effeito. Palacio de Queluz em 11 de Janeiro de 1802. Com a Rubrica do Principe
Regente». Cfr. Collecção c it., vol. V (Legislação de 1802 a 1810), p. 9; B orges Carneiro,
ob. e loc. cits. ; S ousa P into, ob. e loc. cits. ; S ecco, ob. e loe. cits . ; e H enriques da S ilva,
ob. e voi. cits., pp. 54-55.
Durante a regência do Príncipe D . João, continuaram a publicar-se, quase todos
os anos, decretos de «comutação» da pena de morte em degredo para a India ou outras
Provincias Ultramarinas. Citaremos, a título de exem plo, o D ecreto de 1 7 de O utubro
de 1803 : «Querendo uzar da M inha Real Clemencia a favor dos Prezos que se achão
nas Cadêas de Lisboa com crimes pelos quaes mereção a pena ultima, ou outra menor,
que possa ser commutada na dos degredos da India e M oçambique: H ei por bem , que
exceptuados os Réos de crimes atrozes, que não possão ser compatíveis com esta graça,
a todos os outros criminozos, que pela sua idade e robustez, forem capazes do Serviço
M ilitar, lhes sejão commutadas em Relação as penas em que estiverem incursos nos
ditos Degredos da India e M oçambique, e que o m esmo se pratique com os Réos que
forem apparecendo e que estejão no mesmo caso, e todos os Réos assim Sentenciados
serão logo remettidos para o Presidio da Trafaria para embarcarem na primeira N au
de viagem da índia, que deve sahir no primeiro de M arço proximo futuro. O M arquez
Regedor assim o tenha entendido e faça executar, não obstante quaes quer Leis, ou Ordens
em contrario. Mafra, 17 de Outubro de 1803. Com a Rubrica do Principe Regente».
Cfr. Collecção e voi. cits., pp. 246-247.
D e redacção quase idêntica é o D ecreto de 10 de O utubro de 1804 (no mesmo voi.
da mesma Collecção, p. 283). N o mesmo sentido, os Decretos de 11 de Janeiro de 1806,
de 7 de Janeiro de 1807 e de 19 de Dezem bro de 1908, referidos por B orges Carneiro
na ob. e loc. cits.
O Chamava-se L u iza de Jesus, tinha 22 anos e foi condenada «por matar com
suas proprias mãos trinta e tres expostos que ha mezes ía buscar á roda de Coimbra, uns
em seu nom e, outros em nomes suppostos, para se utilisar do enxoval e de 600 réis em
dinheiro, respectivos a cada um d’elles». Cfr. a N oticia de algum as execuções anteriores
a 1 83 4, fornecida pelo S r. A . J . M o reira, O fficial m aior da academ ia real das sciencias,
que figura em apenso (Docum ento n.° 4-A) ao projecto de Codigo P en al P ortu gu ez,
tom o I , R elatorio da Com m issão (Lisboa, Imprensa Nacional, 1861), p. 228.
H ouve ainda, posteriormente a essa data, uma condenação duma mulher à pena
última, por motivos políticos (sentença de 16 de Março de 1811). M as conseguiu escapar

471
reinado de D. Maria I, portanto, que a pena de morte deixou de ter execução
em relação às mulheres, o que não é índice despiciendo no quadro da
difusão das ideias humanitárias em Portugal nem pequeno título de orgulho
para um povo, como o nosso, que se louva dos seus sentimentos cristãos.

13. O advento da época liberal veio dar entre nós novo impulso
ao movimento abolicionista e aos anseios de reforma da legislação
penal.
No domínio da literatura jurídica, a primeira e mais importante mani
festação desta premente necessidade de reforma, é a que consta do curioso
ensaio de Francisco Freire de Mello, sobrinho de Mello Freire, intitulado
Discurso sobre delictos e penas,publicado em Londres, em 1816, p
tiva do exilado José Liberato Freire de Carvalho, por não ter obtido então
as necessárias licenças para se publicar em Portugal, e reeditado em Lisboa,
por iniciativa do seu autor, no «II armo da liberdade civil» (1822), como
se lê no seu frontispício 0 .

à justiça, assim como os demais arguidos que haviam sido condenados conjuntamente
com ela (incluindo o marido). Cfr. a mesma N oticia i na ob. c it., p. 231.
O facto de ter tido lugar em 1772 a última execução capital duma mulher levou à
generalizada opinião errónea de que a pena de morte fo i abolida em Portugal, em relação
às mulheres, em 1772. O erro aparece já no discurso que A yres de G ouveia proferiu na
Câmara dos Deputados, durante a discussão do projecto de lei de Barjona de F reitas
para a abolição da pena de m orte em todos os crimes civis: «N’este assumpto da pena
de morte, ainda bem póde Portugal gloriar-se de ser o primeiro que a aboliu em relação
às mulheres. N ote isto a camara. Antes de em paiz nenhum , antes de na propria
Toscana se abolir a pena de morte, o que teve logar em 1774, abolimo-la nós em relação
às mulheres. D esde 1772, quer dizer, ha noventa e cinco annos que em Portugal não
morre justiçada uma mulher. Pergunto á camara se as mulheres com não serem assas
sinadas ha tanto tempo e com terem a certeza de o não ser se tornaram perversas,
assassinas?» (cfr. sessão da «Camara dos Senhores Deputados» de 21 de Junho, no
D iario de L isboa n.° 144, de 2 de Julho de 1867, p. 2075, 3.a col.).
Foi manifestamente esta afirmação — que, aliás, pode ter querido referir-se apenas
a uma abolição de fa cto , sendo então exacta — que levou depois outros autores a afirmar
que, «em 1772, uma lei determinou que a pena de morte não se aplicaria às mulheres»
e que «a última mulher que subira ao cadafalso fora a marquesa de Távora, em 1759»
(cfr. A pena de m orte fo i abolida há cem anos . E dito rial do jornal O Século de 1 de Julho
de 1967). A mesma errónea afirmação é reproduzida, com bastante relevo, por M anuel
de A zevedo, no artigo intitulado A abolição da pena de m orte em Portugaly publicado na
revista E va y número de Natal de 1967, pp. 16 ( l.a col.), 17 (2.a col.) e 18 (1.a col.; com
expressa citação de A yres de G ouveia).
O Discurso sobre delictos e penas , e qual fo i a sua proporção nas differentes épocas
da tiossa jurisprudencia , principalm ente nos tres séculos prim eiros da M onarchia P ortu gu eza .
Freire de Mello, que foi sócio da Academia Real das Ciências e
dela foi expulso por virtude das questões surgidas a respeito da edi
ção das obras de seu tio 0 , louva-se largamente nas opiniões de Mello

Por F rancisco F reire de M ello. Segunda Edição correcta e annotada pelo seu Autor.
Lisboa M .D .C C C X X II. N a Typographia de Simão Thaddeo Ferreira. II anno da
Liberdade Civil.
Esta segunda edição (primeira feita em Portugal) transcreve (pp. V a V ili) a «adver
tencia do editor»* que José L iberato escreveu para a edição de Londres* de 1816. Em
«nota» a essa «advertencia», F reire de M ello faz alusão expressa ao pensamento de José
L iberato sobre a pena de morte, transcrevendo palavras suas saídas a lume no n.° L X
de O Investigador P ortu guês (jornal dos emigrados políticos portugueses, que se publicava
em Londres, sob a direcção do mesmo José L iberato F reire de Carvalho): «Esta pena
deve ser rarissima: nós não achamos senão um caso, em que seja licita, e é no assassino
(sic) deliberado e voluntario. Quando um homem mata deliberadamente outro, este tinha
o direito de tirar a vida ao aggressor, e este direito passou para a sociedade».
(*) F rancisco Freire de M ello (n. 1762; m. 1838) era sobrinho de Pascoal de
M ello F reire; foi editor de alguns dos seus trabalhos e autor do P anegírico H istórico
do imortal professor conimbricense (P an igyr. H isto r . in laudem P asch . Jos. de M ello,
Lisboa, na Oficina Regia, 1802).
Foi eleito sócio correspondente da Academia Real das Ciências em 11 de M aio
de 1811 e uma das suas memórias chegou a ser premiada pela Academia; mas foi dela
irradiado em sessão de 4 de Abril de 1816, em consequência dum grave diferendo, susci
tado pela publicação da 5.a edição das obras didácticas de seu tio (H istoria e Institutiones
Iuris C ivilis L u sita n i) . Como é sabido, estas duas obras de M ello F reire foram publi
cadas por iniciativa da Academia, que delas chegou a fazer 4 edições* cuja revisão tipo
gráfica não primou pelo esmero. A adopção daqueles dois manuais como livros de texto
das respectivas cadeiras na Universidade de Coimbra (Aviso Régio de 7 de M aio de 1805)
levou a Universidade a tomar a iniciativa duma nova edição, já por escassearem os exem
plares das edições anteriores* já pela necessidade de fornecer à juventude académica um
texto dessas obras mais apurado e isento de erros.
O Reitor, D . F rancisco de L emos, deu a incumbência da edição ao revisor da
Imprensa da Universidade Joaquim I gnacio de F reitas, que para ela trabalhou esm e
radamente, socorrendo-se da colaboração de F rancisco F reire de M ello. A obra
estava pronta em 1815; e para ela escreveu Joaquim I gnacio de F reitas uma «prefação»)
em português, onde acusou violentamente a Academia pela falta de cuidado havida nas
edições anteriores. M uitas das expressões contundentes utilizadas na «prefação» eram
directamente da autoria de F reire de M ello — que era homem de feitio impulsivo e
irreverente, como o mostram outros escritos seu s— ; e outras tinham, pelo menos, a sua
concordância. E isso levou, evidentemente, a Academia a reagir, não apenas contra a
«prefação» como contra o seu sócio F reire de M ello.
Era Presidente da Academia o Infante D om M iguel e seu Vice-presidente
F ernando M aria José de S ouza Coutinho Castello-B ranco e M enezes, M arquês
de B orba e um dos governadores do Reino. Em sessão de 4 de Abril de 1816, resol
veu-se irradiar F reire de M ello e representar ao Governo no sentido de ser mandada
rasgar a «prefação» caluniosa. O Governo assim o fez, por portaria de 13 de Abril de 1816,

473
Freire Q),mas vai já muito mais longe do que este na amplitude das reformas
que propõe. No capítulo que consagra à pena de morte, mostra-se plena
mente conhecedor da argumentação de Beccaria (2) e de outros que antes e

a que D . F rancisco de L emos deu cumprimento* embora tentando desculpar o seu fiel
funcionário* em carta que dirigiu ao Governo em 21 do mesmo m ês.
F reire de M ello reagiu violentamente* dirigindo ao M arquês de B orba uma
carta a pedir a devolução das duas «memórias» que apresentara à Academia e prome
tendo* em troca, restituir a medalha que tinha recebido como prémio por uma delas.
A Academia* em sessão de 2 de Julho, tom ou conhecimento dessa carta* recusando-se a
restituir a «memória» premiada e a receber a medalha que a premiou* mas prontificando-se
a devolver a outra. F reire de M ello acabou por escrever um violento D iscurso a n ti-
-.académ ico , que* embora de 1816* só foi publicado em 1821.
O relato e a publicação das peças essenciais desta questão foram objecto dum artigo
de A ntónio José T eixeira* U m a questão de im prensa no prin cipio do século actual * publi
cado na revista O Institu to , vol. X X X V I (Coimbra* 1888-1889), pp. 39 a 45* 159 a 163*
380 a 384* 523 a 528 e 776 a 781. D o assunto se ocupou também extensamente* numa
comunicação à Classe de Letras da Academia (em 19 de Julho de 1962) o seu ilustre
Secretário-Geral D om A ntónio P ereira F orjaz. Vide A lguns «quadros históricos » na
v id a da A cadem ia das C iências de L isboa * no B oletim da A cadem ia das Ciencias de L isboa *
nova série* vol. X X X IV (1962), pp. 285 ss.
0 «...e terei como guia o que diz o Jurisconsulto portuguez meu tio o Sr. P ascoal
José de M ello F reire, que nos deu o primeiro* o melhor* e o mais completo Compendio
de Jurisprudencia Criminal* que podíamos receber no anno de 1794». Cfr. ob. cit.y pp. 2-3.
(2) « . .. O s que negão o direito de impor esta pena* dizem, que se (sic) todo o
poder civil nasce originariamente de um imaginario e philosophico contracto social que
em parte nenhuma existe (B oehmero de lu r. P ub. U n iv . tit. I cap. I § 22): mas como
poderião os povos consentir na destruição de si mesmos? N inguém tem direito de se
matar a si mesmo* logo dizem* não podião transferillo para a sociedade* que (segundo
dizem os escritores de direito natural) se compõe do direito que compete a cadaum no
estado selvatico* que é o da natureza. Eis-aqui os mais fortes argumentos* a que M ably
abaixo citado responde muito bem». Cfr. ibidem * pp. 83-84.
Além da passagem acabada de transcrever* que reproduz ideias de Beccaria
(bebidas, ao que parece* através de B öhmer), há logo mais abaixo outra passagem em
que F reire de M ello revela ter conhecimento directo da obra do mestre italiano:
«O grande M arquez de Beccaria (que no seu pequeno tratado dei D e lliti e delle P ene
disse mais que todos os outros criminalistas em grossos volumes) negou no § 28 o
poder de impôr esta pena* exceptuando sómente: l.° o caso de perturbação* quando
uma nação procura alcançar a liberdade; 2.a o extremo de perder a liberdade para
sempre. Afóra estes dous casos não admite a pena de morte; diz que ella é uma guerra
declarada pela nação contra o cidadão; que esta pena não é necessaria, nem útil; que
as leis* que a ordenão* são ellas mesmas hom icidas; que a historia dos tem pos é um mar
immenso de erros* onde sobrenadão aqui e alli pouquíssimas verdades mal conhecidas;
que não ha prescripção contra a verdade; que a sua voz chegará aos soberanos* e que estes
prohibindo a pena de morte ficaráõ acima dos maiores conquistadores, e que seus pacificos
troféos os farão superiores aos Titos* Antoninos e Trajanos». Cfr. ibidem * p. 86.

474
depois deste escreveram sobre o mesmo tema^) e insurge-se contra a perda
prepétua da liberdade, que o pensador italiano propôs como pena sucedânea
da capital, por entender que essa pena é pior do que a da morte (2). Quando
chega a vez de emitir a sua opinião, declara que lhe fazem «grande peso a
força dos argumentos do Marquez de Beccaria», mas que não se atreve a
negar ao legislador o direito de impor essa pena, que no entanto restringe,
na esteira de Mably, «a dois únicos casos: l.° No assassinio voluntario:
2.° Na traição da patria para estabelecer ahi tun poder arbitrario... ou
para submeter a patria a tun poder estrangeiro» (3).
A obra é acrescentada aqui duma nota cómica, que não resistimos à
tentação de transcrever, pelo que traduz do feitio bizarro e conflituoso
de Freire de Mello, aliás patente noutros passos deste e de outros traba
lhos seus : — Depois de dizer que não admite a pena de morte senão
naqueles dois casos, acrescenta que «por crime de furto inda o violento,
não havendo morte, nunqua se deve impôr pena capital, excepto quando
for feito em juizo por desembargadores, ou magistrados, entre nós peiores
do que ladrões de estradas (não todos) prevaricão, saltêão, estirão, e atro-
pelão as leis para negar a cadaum o que é seu»(4).(*)

(*) Além de citar B öhmer e M ably (cfr. nota anterior), F reire de M ello refere
também, com conhecimento dos autores — e transcrevendo, por vezes, passos das suas
obras — , as opiniões emitidas acerca do problema da pena de morte por H ugo G rócio,
H enrique de Cocceio, H einécio, H obbes, Renazzi, B rissot, G enovesi e Bernardi.
Cfr. ibidem , pp. 84 a 87.
(2) «A perda perpétua da liberdade, pena peior do que a da morte, que o M arquez
de B eccaria quer substituir á pena de morte, não é proporcionada, e é mais forte para os
nobres que para os plebeos, inda que para todos gravissima e superior á morte». Cfr.
ibidem , p. 86.
(3) Cfr. ibidem , pp. 87-88 (texto e nota 38).
Em reforço da sua posição de princípio contra a pena de morte, invoca ainda
F reire de M ello, mais adiante, duas poderosas razões: «A pena de morte mal applicada
dá causa a muitos assassinos (sic) ; porque castigando com o mesmo rigor os assassínios
(sic) e os ladrões, é o mesmo que dar occasião e convidar estes últim os a commetter o
assasino (s ic ) , julgando ser este o modo de occultar melhor o seu crime, onde nada mais
vai na pena» (Cfr. ibidem , p. 90); e, noutro passo: «O povo se costuma pouco a pouco á
dureza das penas, e costumado elle às brandas, estas lhe fazem tanta impressão como as
fortes, como adverte o Cl. M ontesquieu, liv. V I, cap. 12». (Cfr., ibidem , pp. 90-91).
(4) Cfr. ibidem , p. 88 (nota 38). Já atrás, ao emitir a sua opinião sobre a admissi
bilidade da pena de morte nos casos de homicídio voluntário e de «traição da patria para
estabelecer ahi um poder arbitrario », o autor aproveita o ensejo para deixar extravasar a
sua animadversão à magistratura. N a verdade, para exemplificar o que é isso de «poder
arbitrario» limita-se a acrescentar entre parêntesis: «qual é o dos nossos m agistrados ».
Cfr. nota citada.

475
14. No domínio legislativo, a época liberal abre logo com uma tenta
tiva de reforma das leis penais que não teve melhor sorte que a tentada
no reinado de D. Maria I, mas que oferece particular interesse para o
nosso tema, por ser a propósito dela que surgiu pela primeira vez entre
nós uma proposta para abolição total da pena de morte.
As Cortes Constituintes 0 , em 23 de Novembro de 1821, nomeiam uma
comissão, com sede em Coimbra, à qual cometem o encargo de elaborar
um projecto de Codigo de delictos e ,penas e da ordem do p
Tem-se afirmado que esta comissão «nem chegou a funcionar» (3), ou que,
pelo menos, «não chegou ao cabo da sua tarefa» (4), o que não é exacto, pois
conhece-se o projecto que chegou a elaborar (5) e onde a pena de morte,
C1) Segundo refere H enriques da S ilva (ob. e voi. cits., p. 59), neste mesmo ano
de 1821 tinha sido oferecido às Cortes Constituintes, por Jeremias Bentham, um Projecto
de Código P en al, assim como um P rojecto de C ódigo C iv il e outro de C ódigo C onstitucional,
«offerecimento que o Congresso agradeceu com reconhecimento, mas que não foi apro
veitado». V. igualmente S ilva F errão, Theoria do direito p en al applicada ao Codigo P en al
portu gu ez , voi. I (Lisboa, 1856), p. L U I.
(2) A Comissão nomeada era constituída por 5 destacados jurisconsultos da época:
G uilherme H enrique de Carvalho, opositor da Faculdade de Cânones; João F ortunato
R amos dos S antos, lente substituto da Faculdade de Leis; José M aria P ereira F orjaz,
desembargador da Relação e Casa do Porto; Pedro Paulo de F igueiredo da Cunha e
M ello, lente substituto da Faculdade de Cânones ; e João da Cunha N eves de Carvalho,
conservador da Universidade de Coimbra. A Comissão recebia o encargo de «organizar,
e propor às Cortes, com a possivel brevidade, um projecto de codigo de processo criminal,
e outro de codigo separado de delitos, e penas». Cfr. D ia rio das C ortes G eraes e E xtra o rd i
narias da N ação P ortu gueza (Lisboa; na Imprensa Nacional), n.° 233 (sessão de 23 de
Novem bro de 1821), p. 3204.
(8) Cfr. H enriques da S ilva, ob. e vo i. cits., p. 60.
(4) A%sim se exprime, mais prudentemente, H enriques S ecco, no já repetidas
vezes aqui citado estudo sobre a H istoria do D ireito C rim in al P ortu gu ez, saído a lum e
no vol. IV da R evista de Legislação e de Jurisprudência, ao dizer que esta Comissão
«não chegou ao cabo da sua tarefa» (cfr. loc. cit., p. 581). V ê-se, no entanto, que H enri
ques S ecco não conhecia ainda, ao tem po, os manuscritos do projecto parcelar de Código
elaborado pela Comissão, que ele próprio publicaria em 1880 e 1889 (vide nota imediata).
(5) Os primeiros 109 artigos do P rojecto de Codigo C rim in al foram publicados
por A ntonio L uiz de S ousa H enriques S ecco no vol. I das suas M em orias do tem po
passado e presente p a ra lição dos vindouros (Coimbra, Imprensa da Universidade, 1880),
pp. 149 a 180. O manuscrito de que H enriques Secco se serviu fora pertença do Cardeal
Arcebispo de Braga D . Pedro Paulo de F igueiredo da Cunha e M ello (um dos cinco
membros da Comissão; cfr. supra, n. 2 desta página); e foi-lhe facultado, para publicação,
por uma sobrinha-neta daquele (cfr. ibidem , p. 149).
N o vol. II da mesma obra (Coimbra, 1889), de pp. 1 a 40, publica H enriques
S ecco mais 118 artigos do mesmo Projecto, servindo-se dum manuscrito que fora per
tença do Desembargador José M aria P ereira F orjaz de S ampaio (membro da Comissão)

476
aliás, aparece ampiamente admitida e minuciosamente regulamentada na
sua execução (*).
Não é esse projecto da Comissão, porém, que importa aqui considerar,
mas sim o facto de um dos membros dessa Comissão, o emérito Desem
bargador José Maria Pereira Forjaz de Sampaio, pouco satisfeito com
a morosidade dos trabalhos da Junta a que pertencia — e dissentindo
confessadamente da opinião dos seus colegas em pontos fundamentais —,
se ter abalançado a publicar, em seu nome individual e sob sua exclusiva
responsabilidade, logo em 1823, um Extracto de Projecto de Codigo de
delictos e penas (2).
Este trabalho — que não é um projecto acabado e devidamente arti
culado de Código das penas, mas sim, como o seu título indica, tun sumário
ou esquema para servir de base à elaboração do Código — oferece, como
já atrás salientámos, o relevantíssimo mérito de prescindir em absoluto
da pena de morte no sistema repressivo que preconiza. E as razões,
directamente bebidas em Beccaria, dá-as o seu autor em breves palavras
na «prefação» que abre o seu precioso e arrojado ensaio : «O auctor — diz —
...omitte a pena de morte natural, já por lhe parecer que não satisfaz a
um dos principaes fins das penas, que he a emenda do culpado; já porque
muitos escapados á pena por Graça do Monarcha, ou por algum outro
meio, chegaráõ a mudar de vida, e fazer-se bons Cidadãos (e a isso deveráõ
encaminhar-se, quanto ser possa, as nossas instituições); e já porque se
não póde convencer de que os homens, quando entrão em pacto
social, transmittão a outro o direito sobre a sua vida, que elles mesmos
não tem»(3).

e que lhe fora facultado, para o efeito, por um neto seu. Este manuscrito contém os
mesmos 109 artigos do manuscrito anterior (sem variantes) e os 118 artigos que imediata
mente se lhes seguiam, num total, portanto, de 227 artigos. Cfr. as observações feitas
ibidem , a pp. 2 e 39.
C1) São consagrados à pena de morte e ao «ritual» da sua execução, no P rojecto
em causa, nada menos de 18 artigos (artigos 3.° a 20.° do Capítulo V I, ou, na enumeração
seguida que lhes deu H enriques S ecco, artigos 72.° a 89.°). Cfr. ob . cir., vol. I, pp. 171 a 175.
(2) E xtracto de Projecto de Codigo de delictos e penas , e da ordem do processo crim inal ,
offerecido á censura da opinião publica p a ra em enda e redacção do original , e em particu lar
á de seus com panheiros na Com issão especial do projecto commum , por José M aria P ereira
F orjaz de Sampaio (Coimbra, Imprensa da Universidade, 1823).
N a «prefação», o autor justifica a sua iniciativa com a morosidade dos trabalhos da
Comissão, devida «á grande difficuldade do objecto, e às notorias occupações de seus
Collegas n ’outros serviços públicos» (p. 3), e com o facto de «estar dissidente por força
invencivel de seu entendimento em alguns pontos de doutrina e methodo» (p. 4).
(3) Cfr. ibidem , pp. 4-5.

477
Infelizmente, as generosas ideias de Forjaz de Sampaio não tiveram
qualquer eco no seio da Comissão e muito menos fora dela; e o incipiente
novo regime teve de contentar-se, de momento, no domínio legislativo,
com uns escassos três artigos da Constituição de 1822, que representavam,
aliás, um grande passo em frente na evolução do nosso direito penal.
Estabelecia um desses artigos a igualdade de todos perante a lei (artigo 9.°),
acabando-se, assim, com a flagrante injustiça consagrada nas Ordenações
de atender à classe social do réu para efeitos de graduação da pena. Procla
mava outro artigo o princípio, de manifesta inspiração utilitarista — à maneira
de Beccaria —, de que «nenhuma lei e muito menos a penal será estabelecida
sem absoluta necessidade» (artigo 10.°). E consargava o terceiro os dois
grandes princípios de que «a pena deve ser proporcionada ao delieto» e de
que «nenhuma [pena] passará da pessoa do delinquente», ao mesmo tempo
que abolia «a tortura, a confiscação de bens, a infamia, os açoites, o baraço
e pregão, a marca de ferro quente e todas as mais penas cruéis ou infa
mantes» (artigo 11.°) 0 .
15. Sobre a pena de morte, nem uma palavra de esperança no texto
do novo credo constitucional! Tudo ficava— à parte a supressão legal dos
requintes cruéis da execução, de há muito já caídos em desuso — como o
deixara o Príncipe Regente D. João, com os seus Decretos de 1801e 1802 (2).
Tudo ficava como estava; e, verdadeiramente, tudo continuaria da
mesma maneira, sob o ponto de vista legal, até meados do século (3).
C1) Cfr. Constituição P olitica da M onarchia P ortu gu esa . E dição nacional e official
(Lisboa. N a Imprensa Nacional. Anno 1822), p. 8. V. igualmente H enriques S ecco,
D a H istoria do D ireito C rim in al P ortu guês desde os m ais rem otos tem pos , na R ev. de L eg.
e de J p r., ano IV, p. 581; H enriques da S ilva, oh. e voi. cits., p. 60; e E duardo C orreia,
Sobre as penas e sua graduação no direito crim inal português, cit., p. 68.
(2) V. supra, n.° 12 e nota 2 de pp. 469-470 e nota 1 de pp. 470-471.
(8) T udo continuaria da mesma maneira, inisistim os, «do ponto de vista legai».
M as, no campo doutrinal, o m ovimento abolicionista vai tornando crescente vulto, ao
longo deste período, especialmente após o termo da guerra civil e a consolidação do
regime liberal.
N ão é possível fazer a qui uma enumeração dos escritos saídos a lum e nas décadas
de 30 e de 40 em favor da abolição da pena de morte; nem a nossa investigação se orientou
nesse sentido. M as é bem conhecido o peso que teve, em favor do m ovimento aboli
cionista, a figura prestigiosa de A lexandre H erculano, com o seu breve mas incisivo
artigo D a pena de m orte, saído a público no D ià rio do G overno, em 1838, e depois inserto
no tomo V ili dos Opúsculos (tomo V da série Q uestões públicas) (na 2.a edição, Lisboa,
s/d, pp. 3 a 11).
Como se sabe, o D iário do G overno era, ao tem po, um jornal particular, proprie
dade dos oficiais das Secretarias de Estado; e H erculano colaborou assiduamente nessa

478
Sucedem-se as tentativas, sem êxito, para a elaboração dum Código
Penal, ora pelo sistema da nomeação de comissões, que nada chegam a
fazer, ora pela instituição de prémios pecuniários, por que ninguém se
deixa tentar (1). Há um momento em que o sucesso parece finalmente estar

folha periódica, de Janeiro a Maio de 1838, a convite dos respectivos responsáveis, sendo
aí que fez publicar, entre outros ensaios, o que consagrou à pena de m orte — ensaio que
lhe valeu não poucas críticas e o apodo de «protector de malfeitores» por parte dos setem -
bristas (cfr. a «advertência» que precede o cit. vol dos Opúsculos , pp. V II e V III).
H á-de reconhecer-se objectivamente que o escrito de H erculano sobre a pena
de m orte está longe de ser brilhante: — N o plano teórico, limita-se a reproduzir os dois
estafados argumentos de Beccaria, tirados da condenação do suicídio e da celebração
do pacto social (sem , aliás, citar aquele autor); e, no plano prático, limita-se a umas
brevíssimas considerações sobre a desnecessidade da pena capital e sobre a oposição entre
ela e os princípios liberais. M as é inconstetável que o simples facto de um nome do pres
tígio de H erculano ter vindo a terreiro, a marcar posição sobre o problema da pena de
morte, teve um peso decisivo na marcha do movimento abolicionista.
Não deve esquecer-se também que é este crescente m ovim ento de opinião contra
a pena capital, operado a partir do termo da guerra civil, que está na base da prim eira
proposta oficial de abolição da pena de m orte — aliás, totalmente fracassada — feita perante
o Parlamento.
Foi na sessão de 23 de Fevereiro de 1835 que o deputado F rancisco A ntónio
de A lmeida de M orais P essanha apresentou à Câmara dos Deputados um projecto de
lei para a abolição da pena de m orte 3 que propunha fosse substituída pela pena de
prisão, degredo ou trabalhos públicos por toda a vida. Exceptuava-se a aplicação da
pena capital em caso de guerra e nos demais casos previstos no domínio da justiça militar,
bem como no caso de assassinato de guardas pelos indivíduos confiados à sua custódia
e ainda os casos previstos no Decreto especial contra El-Rei D . M iguel e seus sequazes.
Que saibamos, o projecto não teve qualquer seguimento (Devem os a gentileza desta infor
mação ao Desembargador A bel de Campos, a quem queremos deixar aqui o nosso vivo
reconhecimento. M as não nos foi possível haver à mão o D iário das Câmaras, do ano
de 1835).
0 ) Em face da lentidão dos trabalhos da Comissão nomeada em 1821 (vide supra3
n.° 14 e notas 2 e ss., de pp. 476-477), enveredou-se, logo em 1823, para a solução de ins
tituir um prémio em favor do melhor Projecto de C ódigo C rim in al «que seja conforme às
luzes do século, e aos principios estabelecidos na Constituição Politica da Monarchia».
Foi a Lei n.° 284, de 14 de Fevereiro de 1823, que instituiu esse prémio, ao qual
devia concorrer o próprio projecto da Comissão nomeada em 1821, se fosse concluído
dentro do prazo agora estabelecido : — Os projectos deveriam ser apresentados às Cortes
até ao último dia do m ês de Fevereiro de 1824, sob forma anónima (inclusive o da
Comissão), sendo as respectivas epígrafes e nomes dos autores indicados em carta
fechada. O prémio seria de m etade do que havia sido estabelecido por Lei de 16 de
Setembro de 1822 (Lei n.° 226) em favor dos projectos de Código Civil e de Código
de Processo Civil; e seria o mesmo o regulamento da sua atribuição. Cfr. Collecção
de Legislação das C ortes de 1821 a 1823 (Lisboa. N a Imprensa Nacional. 1843), p. 202.
V. igualmente F. A. F. da S ilva F errÄo, ob . e vol. cits.3 p. L U I; Basilio A lberto de

479
à vista, quando José Manuel da Veiga oferece ao Governo um Projecto
de Código Penal, em 1833, que chega a ser revisto por ordem ministerial

S o usa P in t o , L ições cit., p. 32; H e nr iq u e s S e c c o , ob. e loe. cits., pp. 581-582; e H e n r i


q ue s d a S il v a , ob. e voi. cits., p. 60.
Esclareça-se que o prémio estabelecido pela Lei de 16 de Setembro de 1822 para
os Códigos Civil e de Processo Civil consistia «na quantia de trinta mil cruzados, pagos
no espaço de vinte annos, em huma pensão annual de seiscentos mil réis, pelo Thesouro
Publico, e em huma medalha de ouro do valor de cincoenta mil réis, a qual terá de hum
lado a imagem da Lusitania, coroando com huma cor a de louro, e rama de oliveira ao
Author do Projecto, cuja effigie será alli gravada, e no reverso a seguinte legenda = A o
A u th or do P rojecto do Codigo C iv il P ortu guez a P a tria agradecida =». Estabelecia-se,
ainda, que o premiado poderia «trazer esta medalha pendente ao collo nos dias de Festi
vidade Nacional»; e que o júri poderia atribuir accessit aos dois projectos classificados
imediatamente a seguir — se entendesse que o mereciam — , devendo então atribuir-se
ao autor de cada projecto assim valorado um prémio pecuniário, equivalente a m etade
do estabelecido para o primeiro classificado. Cfr. citada Collecção, pp. 153-154.
O prémio agora estabelecido para o Projecto de C ódigo C rim in al só diferiria no
quantiativo (metade), nos dizeres da medalha («Criminal» em vez de «Civil», e no
pormenor curioso de a medalha poder ser usada, não apenas — como aquela — em
«dias de Festividade Nacional», mas... «em quaesquer dias, pendente de fita de cores
nacionaes».
Outro pormenor interessante: se o projecto prem iado fosse o da Comissão, em vez
de «huma medalha de ouro no valor de cincoenta mil réis», seriam feitas cinco medalhas
«do valor de dez mil réis» (uma para cada um dos membros), com a legenda «Ao C ola
borador, etc.». Cfr. ob. e loc. cits.
Além destas duas tentativas falhadas (a da Comissão, de 1821, e a do prémio, de 1823)
para a elaboração dum P rojecto de C ódigo C rim in al, houve ainda mais as seguintes, ao longo
da primeira metade do séc. xix:
1) U m D ecreto de 18 de A gosto de 1 83 2 (M ouzinho da Silveira), declarando
«incompatível com o regimen da Carta Constitucional, e com as luzes do século actual
aquelle monstruoso Codigo Criminal da Ord. do Liv. 5. aonde foram a esmo copiadas
as Leis de Caligula, e Néro, e aonde á força de se repetir constantemente =» morra de
morte naturalpara sempre = ficam os delictos impunes, ou são conduzidos a graves penas
os infelizes, a quem se quer imp r uma pena por acç es inteiramente differentes das que
figuram no processo», nomeia uma Comissão de cinco membros para a elaboração dum
projecto de C ódigo C rim inal.
A Comissão, a quem é dada também a incumbência de redigir um projecto de Código
C om ercial, fica constituída pelas seguintes individualidades: «O Conselheiro Jo a q u im
An t ó n io de M a g a l h ã e s — Procurador Geral da Cor a — O D outor Jo a q u im A n t ó n io
d e A g uia r , Lente substituto da Faculdade de Leis na Universidade de Coimbra
— o Bacharel Jo ã o Ba pt is t a d a S il v a L e it ã o d e Al me id a G a r r e t t , Official, servindo
de Official Maior da Secretaria d’Estado dos N egocios do Reino — o Desembargador
da Relação e Casa do Porto M a n o e l A n t o n io V e l l e z Ca l d e ir a Ca st e l -B r a n c o — e o
Bacharel F e l ix P e r e ir a d e M a g a l h ã e s , Advogado da mesma Relação». Cfr. Collecção
de D ecretos e Regulam entos m andados publicar p o r S u a M agestade Im perial o R egente do

480
e que um decreto de 1837 ordena que seja adoptado como lei «em quanto
as Côrtes Geraes, em sua Sabedoria, não approvam um melhor Projecto
Reino desde que assumiu a Regencia em 3 de Março de 1832 até á sua entrada em Lisboa
em 28 de Julho de 1833, Segunda série (Lisboa. N a Imprensa Nacional, 1836), p. 219.
V. igualmente S ilva F errão, ob. e vol. cits., p. L IV ; Basilio A lberto de S ousa P into,
ob. cit.y p. 32; H enriques S ecco, ob. e loe. cits.; e H enriques da S ilva, ob. e vol. cits.y
pp. 61-62.
2) Um a Carta de Lei de 25 de Abril de 1835y além de estabelecer (artigo l.°)
«uma gratificação de dezasseis contos de réis por uma vez sómente ao Auctor de um
Projecto de Codigo Civil», determina (artigo 3.°) que «será paga pelo Thesouro Publico
uma gratificação de oito contos de réis por uma vez sómente ao Auctor de um Projecto
de Codigo Criminal que até ao dia dez de Janeiro de mil oitocentos trinta e sete o
apresentar a alguma das Camaras Legislativas, sendo por estas ambas julgado digno
de ser admittido para entrar em discussão». Este projecto deveria abranger tanto o
«Codigo Criminal propriamente dito» como o de «processo respectivo». Cfr. Collecção
de Leis e outros Documentos Officiaes publicados desde 15 de Agosto de 1834 até 31 de
Dezembro de 1835. Quarta série. Edição official (Lisboa. N a Imprensa Nacional. 1837),
pp. 137-138. V. igualmente, S ilva F errão, ob. e voi. cits.y p. L V ; Basilio S ousa P into,
ob. e loe. cits.; H enriques S ecco, ob. e loe. cits.; e H enriques da S ilva, ob. e vol.
cits.y p. 63.
3) U m Decreto de 4 de Janeiro de 1837 (ditadura de Passos M anuel) ordena,
a título precário — «emquanto as Cortes Geraes em sua sabedoria não approvam um
melhor projecto de Codigo Penai para o qual se acha aberto concurso», e sem prejuízo,
portanto, do concurso pendente — , «que seja adoptado como lei destes reinos» o Projecto
apresentado ao Governo em 1833 por José M anuel da V eiga (ver nota imediata).
4) U m Decreto de 10 de Dezembro de 1845y fracassado totalmente o sistema dos
prémios, volta — pela terceira vez — à ideia de incumbir uma Comissão de redigir tanto
o projecto de Código Civil como o projecto de Código Penal, determinando, contudo,
que a referida Comissão «dará preferencia em seus trabalhos ao Codigo Penal, como
absolutamente indispensável, para que se possa quanto antes propôr às Cortes a appro-
vação delle» (artigo 3.°).
A Comissão designada (artigo l.°) é «presidida pelo M inistro e Secretario d’Estado
dos Negocios Ecclesiasticos e de Justiça, e composta do Conselheiro do Supremo Tribunal
de Justiça M anoel D uarte L eitão, M inistro e Secretario d’Estado Honorario; do
Conselheiro da Relação Commercial José Jacintho V alente F arinho ; dos Juizes da
Relação de Lisboa o Conselheiro D iogo A ntónio C orrêa de Sequeira P into, e João
M aria A lves de S á ; do Procurador Regio da mesma Relação o Conselheiro José M aximo
de Castro N etto L eite e V asconcellos; e do advogado José M aria da Costa S ilveira
da M otta». Cfr. Collecção officiai da Legislação Portuguesa redigida pelo Desembargador
A ntonio D elgado da S ilva. Anno de 1844-1845 (Lisboa. N a Imprensa Nacional. 1845),
p. 834. V. igualmente S ilva F errão, ob. e vol. cits.y p. L IX ; B asilio A lberto de S ousa
P into, ob. e loc. cits.; H enriques S ecco, ob. e vol. cits.y p. 583; e H enriques da S ilva,
ob. e vol. cits.y p. 65.
5) U m Decreto de 8 de Agosto de 1850y finalmente, encarrega o juiz da Relação
do Porto A ntónio L uís de S eabra de redigir o projecto do novo Código Civil portu
guês (artigo l.°), nomeando desde logo uma comissão para rever e examinar o referido

481
31 - II Yol.
de Codigo Penal, para o qual se acha aberto o concurso» (1). Mas o decreto,
projecto (artigo 2.°); e, no seu artigo 3.°, declara que «A Commissâo creada por Decreto
de 10 de Dezem bro de 1845 fica alliviada da redacção do Projecto do Codigo Civil».
N o relatório, declara-se que a Comissão nomeada em 1845 para redigir os pro
vectos de Código Civil e de Código Penal «effectivamente se tem occupado de redigir
este ultim o Codigo; trabalho que já se acha muito adiantado»; e acrescenta-se que a
medida agora tomada, além de se justificar pela urgência que há dum Código Civil
tem igualmente em vista «que a dita Comissão, alliviada do Projecto do Codigo Civil,
possa exclusivamente continuar a occupar-se do do Codigo Penal». Cfr. Collecção official
da Legislação Portuguesa redigida por José M aximo de C astro N etto L eite e V ascon -
cellos. Anno de 1850 (Lisboa, Imprensa Nacional, 1851), p. 571. V. igualmente S ilva
F errão, ob. e loe. cits. ; B asilio S ousa P into , ob. e loc. cits. ; H enriques S ecco, ob. e loe.
c its .; e H enriques da S ilva , ob. e vol. cits., pp. 65-66.
Como se sabe, os trabalhos da Comissão de 1845, agora limitada ao encargo da
elaboração do Código Penal, chegaram ao seu termo em 1852, dando lugar, por Decreto
de 10 de Dezembro desse ano, à promulgação do primeiro Código P en al Português.
V. in fra , n.° 17 e nota 2 de pp. 500-501.
0) À margem das «comissões» e dos «prémios» com que em vão se tentou — desde
o advento da época liberal e durante quase 30 anos — conseguir um projecto de C ódigo
P en al , aparece, em 1833, um projecto completo de Código, oferecido ao Governo pelo
jurisconsulto José M anuel da V eiga .
Comenta H enriques S ecco (ob. c it ., p. 582) que «certa negligencia por parte deste
(isto é, do Governo), favorecida pelas vicissitudes do tempo, quiçá menor conceito que
se lhe attribuisse, ou talvez ainda causa desconhecida, fez que somente muito tarde o mesmo
governo se lembrasse da offerta». Efectivamente, o próprio facto de em 1835, por Carta
de Lei de 25 de Abril, se ter instituído um prémio para o melhor projecto de Código Penal
que fosse apresentado às Câmaras até 10 de Janeiro de 1837 e considerado por estas digno
de ser submetido à discussão (v. nota anterior) revela de sobejo que o projecto apresentado
dois anos antes por José M anuel da V eiga, ou se encontrava esquecido, ou não era consi
derado de nível suficiente.
Como quer que seja, só em fins de 1836 o Governo sai do seu mutism o a respeito
do projecto de Código que tinha em seu poder havia 3 anos ; e determina, por Portaria
da «Secretaria de Estado dos Negocios Ecclesiasticos e da Justiça» de 29 de Novem bro,
«que o Bacharel José M anoel da V eiga, examinando o Codigo Criminal que offereceu
ao Governo em 23 de Novem bro de 1833, e fazendo-lhe as alterações que entender neces
sárias, apresente n’esta Secretaria d’Estado um novo Projecto de Codigo Criminal como
é disperar de suas reconhecidas luzes, patriotismo e zèlo» (Cfr. D iario do G overno ,
anno 1836, n.° 284, de 30 de Novem bro, p. 1328, l . a coluna).
José M anuel da V eiga solicitou então ao Governo que fosse nomeada uma Comissão
para o coadjuvar na tarefa da revisão, de que era agora incum bido, do seu projecto inicial.
E o Governo acedeu a essa instância, nomeando para o efeito, por Portaria de 19 de
Dezembro imediato, «uma Commissão composta do Sub-Secretario d’Estado desta Repar
tição ( = Repartição da Justiça), A ntonio F ernandes C oelho ; do Juiz da Relação de
Lisboa, F rancisco de P aula A guiar O ttoloni ; e do Ajudante do Procurador da Fazenda,
F ilippe A rnaut de M edeiros». (Cfr. D iario do G overno , anno 1836, n.° 302, de 21 de
Dezem bro, p. 1417, 2.a coluna).
Os trabalhos de revisão processaram-se de forma extraordinàriamente rápida, «já

482
assim redigido em tom tão céptico e hesitante, é considerado como não
abrangido pela Carta de Lei com que as Cortes Constituintes ratificaram
os diplomas saídos da ditadura de Passos Manuel (*); e o chamado Código
nas Sessões feitas, todos os dias, na Secretaria d’Estado da Justiça, desde as dez horas
da manhã, até às quatro da tarde; já nas Sessões extraordinarias, tidas em minha casa,
desde as sete até às onze da noite», conforme declara o próprio José M anuel da V eiga
no R elatório y datado de 31 de Dezembro do mesmo ano, com que faz remessa do texto
já revisto ao M inistro e Secretário de Estado dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça
A ntónio M anuel L opes V ieira de C astro. (Esse breve relatório , bem como outro
relatório mais breve ainda, da mesma data, assinado pelos três membros da Comissão
revisora, encontram-se publicados no D iario do G overno y n.° 9, de 11 de Janeiro de 1837,
p. 38, 3.a coluna, e 39, 1.a e 2.a colunas; e também na Introdução — pp. X III a X V — da
edição oficial que deste trabalho se fez sob o título de Codigo P en al da N ação P ortu gu eza.
Lisboa. N a Imprensa Nacional. 1837).
N o mesmo rápido ritmo em que se processou a revisão, o projecto é logo conver
tido em lei quatro dias apenas após a sua entrega ao Governo. Com efeito, por um
D ecreto de 4 de Janeiro de 1837y determina-se que, «em quanto as Cortes Geraes, na
sua Sabedoria, não approvam um melhor Projecto de Codigo Penal, para o qual se acha
aberto o concurso, pela Carta de Lei de vinte e cinco d’Abril de mil oitocentos trinta e
cinco, e não collocam, nesta parte, a Nação Portugueza a par das Nações mais esclare
cidas e policiadas», «seja adoptado como Lei destes Reinos o Projecto de Codigo Penal,
que baixa junto com este Decreto, sem prejuízo do Concurso aberto para os mais Projectos»;
e, ao mesmo tem po, manda-se que o novo Código «seja immediatamente impresso, a fim
de que possa ser executado desde a sua integral publicação». (Cfr. o citado D iario do
Governoy p. 39, 2.a e 3.a colunas; e a Introdução também citada, pp. X V e XV I).
Este processo-relâmpago da revisão e publicação do chamado Código P en al de 1837
encerra-se logo em seguida, com a dissolução, por Portaria de 7 de Janeiro, da Comissão
Revisora nomeada 19 dias antes (Cfr. os lugares cita do s ; e ver ainda, sobre todo o assunto
desta nota, S ilva F errão, ob. e voi. cits ., pp. L V II e L V III ; B asilio A lberto de S ousa
P into , ob. cit.y p. 32; H enriques S ecco, ob. cit.y pp. 582-583; e H enriques da S ilva,
.
ob. e voi. cits y p. 63).
(*) Não resulta bem clara, da análise dos textos e dos autores, a razão por que o
Código Penal de 1837 morreu ao nascer.
O Código fora promulgado na Ditadura de P assos M anuel, saída da Revolução
de Setembro de 1836. A pressa toda com que o projecto de José M anuel da V eiga
— esquecido desde 1833 nas mãos do Governo — foi revisto, em 11 escassos dias de
Dezembro de 1836, e logo transformado em lei nos primeiros dias de Janeiro de 1837,
mostra que se quis fazer a reforma antes de restabelecida a normalidade constitucional,
pois as C ortes C onstituintes achavam-se já convocadas desde 12 de Novem bro (na sequência
da solução de compromisso a que se tinha chegado, entre P assos e a Rainha após o malo
grado golpe de Estado palaciano de 3 de Novem bro, conhecido pela Belemzada) e come
çariam, de facto, a funcionar em 26 de Janeiro (Cfr. por todos, O liveira M artins , P ortu gal
Contem poraneo y 4.a ed., tomo II, Lisboa, 1906, pp. 58 a 86, especialmente p. 85). M as,
que se lucrou efectivamente com toda essa pressa?
Parece que nada, pois o Código não foi reconhecido pela nova ordem constitu-
donai; e tudo voltou à primeira forma. (Continua nas págs. seguintes)

483
Penal de 1837 — onde, aliás, a pena de morte continua presente quase com a

Como se processaram, porém, as coisas? Os autores dão explicações diversas:


a) B asílio A lberto de S ousa P into , que escreveu em 1861 (L ições cit.y p. 32),
limita-se a dizer que «ficando deferido o seu vigor (isto é, do Código), até á publicação
d’elle completa, não o chegou a ter, porque nunca esta se verificou» — o que não corres
ponde à verdade, pois o Código P en al da N ação P ortu gueza , como já frisámos na nota
anterior, foi integralmente publicado em edição oficial da Imprensa Nacional, no próprio
ano de 1837.
b) H enriques S ecco, escrevendo em 1872 na R evista de Legislação e de Ju ris
prudência (voi. cit.y p. 583), limita-se a dizer, com mais rigor — mas sem tentar qualquer
explicação — , que o C ódigo «foi com effeito impresso ainda em 1837, e todavia não se
chegou a executar!»
c) H enriques da S ilva, nas suas citadas L ições de 1906 (vol. II, p. 63), ensina,
muito diferentemente de tudo isto, que «o decreto que approvou o novo Codigo não
chegou a ter a sancção legislativa, porque a carta de lei de 27 de Abril de 1837, que
confirmou os actos dictatoriaes, não incluiu o Codigo penal, não obstante confirmar a
Reforma judiciaria».
Um a afirmação destas deixa no espírito do leitor a ideia de que a Carta de Lei
de 27 de Abril de 1837, saída já das Cortes Constituintes, teria aprovado de forma expressa
certos decretos do governo ditatorial (designadamente a chamada N o v a R eform a J u d i
ciária, aprovada pelos decretos ditatoriais de 29 de Novem bro de 1836 e 13 de Janeiro
de 1837) e teria recusado a aprovação a outros (designadamente o Decreto de 4 de Janeiro
de 1837, que aprovou o Código P en a l).
Ora isto não é exacto, porque a C arta de L ei de 27 de A b ril de 1837, prom ul
gada pela Rainha em execução do deliberado pelas «Cortes Geraes, Extraordinarias,
e Constituintes da Nação Portugueza», limita-se a dizer, num artigo único e sem
quaisquer discriminações — , que «os Decretos contendo disposições legislativas, pro
mulgados pelo Governo depois do dia nove de Setembro do anno proximo passado,
continuarão em vigor, em quanto pelas Côrtes não forem alterados». (Cfr. Collecção de
L eis e outros Docum entos officiaes publicados no l.° Sem estre de 1837. Edição official.
Lisboa. Na Imprensa Nacional. 1837. P. 262).
Não há, pois, no texto da Carta de Lei, nada de onde se possa inferir que ficam
ratificados os decretos que aprovaram a N o v a R eform a Judiciária e que é recusada
a ratificação ao que aprovou o Código P enal. N em se diga que a distinção está implícita
na referência feita a «Decretos contendo disposições legislativas », porque, num caso
e noutro, a situação dos diplomas legais em causa é rigorosamente a mesma: são decre
tos que dão valor legislativo aos projectos a que se reportam, o que é suficiente para se
poder afirmar que contêm disposições legislativas ; e, se é certo que o Decreto de 4 de
Janeiro de 1837 não vem acompanhado (nem no D iário do G overno , nem na Colecção
O ficial) do texto do Código P en al por ele aprovado — limitando-se a remeter para uma
publicação autónoma — , outro tanto sucede com a N o v a R eform a Judiciária : — O Decreto
de 29 de Novembro de 1836, que aprova os primeiros 63 artigos da Reforma, faz-se
acompanhar no D iário do G overno (n.° 292, de 9 de Dezem bro, pp. 1364 a 1366) da
publicação do texto respectivo; mas o Decreto de 13 de Janeiro de 1837, que aprova os
restantes artigos da mesma Reforma, aparece desacompanhado do texto aprovado, tanto
no D iário do G overno (n.° 15, de 18 de Janeiro, p. 88, l .a coluna) como na Colecção O ficial

484
mesma amplitude que até aí já tinha — fica relegado, ele também, para o
número dos projectos bem intencionados mas inúteis (1).

(p. 82) ; e esse texto por ele aprovado — tal qual sucedeu com o Código P en al — só veio
a lume em edição autónoma, saída dos prelos da Imprensa Nacional.
d) Finalmente, mais próximo em data dos acontecimentos — e possivelmente
mais próximo da verdade — , S ilva F errão afirma, em 1856 (ob. e voi. cits., p. L V III),
que «lamentamos, e muito, que o mesmo Cod., não chegasse a ser promulgado, e
que, por isso, não podesse ser comprehendido na sancção da Carta de lei de 27 de Abril
de 1837».
Não é exacto que o Código não tenha chegado «a ser prom ulgado », como diz S ilva
F errão; mas é certo que o Decreto de 4 de Janeiro de 1837 — que bem clara e expres-
samente o mandou «adoptar como Lei destes Reinos» — protelou a sua entrada em vigor
para o termo da sua «integral publicação » (cfr. nota anterior). Ora, ao que supomos — embora
não tenhamos dados concretos para o com provar— , o texto do novo C ódigo P en al não
estaria ainda impresso e, portanto, não teria entrado ain da em vigor , à data da C arta de
L e i de 27 de Abril, que ratificou, sem distinções, todos os decretos normativos («decretos
contendo disposições legislativas», como aí se diz) publicados durante a ditadura de P assos
M anuel ; e aí estaria a explicação de sempre se ter considerado como não ratificado por
aquela carta de lei.
C1) Tanto José M anuel da V eiga, autor do P rojecto , como a Comissão Revisora,
são os primeiros a lamentar, nos breves relatórios apresentados ao Governo em 31 de
Dezem bro de 1836 (cfr. supra , nota 1 de pp. 482-483), não ter sido possível prescindir da
pena de m orte no novo texto legislativo.
O autor do P rojecto afirma a esse respeito: «Bem contra os meus desejos, e os da
illustrada Commissam, foi introdusida a pena de morte na escala penitenciaria, posto
que fosse economisada e circunscripta a mui poucas e transcendentes especies: mas nem
todas as theorias do gabinete, por mais incontestáveis que sejam seus fundamentos,
prestam para governar os povos, se não forem modificadas pela veneranda mão da
experiencia, que nos descobre os effeitos do bem , escondendo-nos a causa delle. Permitía
o Ceo que a moral publica um dia cobre a sua pureza, a firn de que possa desapparecer
dos nossos Tribunaes uma pena, contra a qual se ergue a voz da sã filosofia» (cfr. Codigo
P en al da N açã o P ortu gu eza , cit.y pp. X III-X IV ).
Por seu turno, a Com issão R evisora dirige-se à Rainha nestes termos: «A Commissão
não póde deixar de expôr na Augusta Presença de Vossa Magestade que, com quanto
mui ardentemente desejasse vêr inteiramente eliminada da nossa Legislação, ou limitada
a casos raríssimos, a pena de morte, se achou na dura necessidade de concordar com as
idéas do illustre Auctor do Projecto, na applicação delia, nas actuaes circumstancias,
pelo modo e nos casos nelle designados, até que o nosso progressivo estado de civili-
sação, e a introducção de um systema penitenciario, facilitem á sabedoria do Corpo
Legislativo ou aboli-la ou restringi-la oas crimes vitaes da Sociedade» (cfr. ibidem ,
pp. X IV -X V ).
Não deixa de ser sintomático, como reflexo duma forte corrente de opinião pública
contra a pena de morte, esta necessidade sentida pelo autor do projecto e pela Com issão
R evisora do gorado Código Penal de 1837 de se desculparem, justificarem e lamentarem
de a ter ainda consagrado, mormente tendo em conta que os dois relatórios em causa não

485
De positivo fica, mutatis mutandis,deste periodo, a r
Constitucional de 1826 e na Constituição de 1838, dos preceitos básicos já
anteriormente incluídos na Constituição de 1822 (x). E de positivo fica tam-
tratam pràticamente de mais nada, parecendo ter sido escritos exclusivamente para dar
aquelas explicações.
O Código consagra à pena de m orte o Capítulo I do T ítulo II, constituído pelos
artigos X IV e X V , determinando que a execução se faça nas vinte e quatro horas imediatas
à intimação da sentença passada em julgado, «pelo modo mais rapido e menos doloroso
que possivel fôr», e abrindo apenas excepção para a mulher grávida, a quem a sentença
de morte não será intimada, nem nela executada, durante a gravidez (cfr. ibidem , p. 4).
A pena de morte é mandada aplicar a diversos «crimes e delictos contra a segu
rança exterior do Estado» (alta traição, espionagem, etc.) (artigos C V III, C IX , C X I,
C X IV , CXVII e C X X II — ibidem , pp. 27 a 33); a vários « crimes e delictos contra a
segurança interna do Estado» (lesa-majestade, sedição, incitamento à rebelião, etc.)
(artigos C X X V III, C X X IX e C X X X — ibidem , pp. 34-35); e ao «assassinato execrando»
(parricídio, conjugicídio, infanticídio, aborto e envenenamento premeditados — com
atenuantes para o infanticidio e o aborto quando praticados pelo «temor da ignominia»)
(artigo CCCI — ibidem , p. 79).
A apreciação crítica dos especialistas sobre o falhado Código P en al de 183 7 é fran
camente positiva.
S ilva F errão (ob. e voi. cits., p. L IX ), depois de lamentar o inêxito da reforma,
afirma que «esse Cod. era, sem duvida, muito preferível ao arbitrio desregrado, erigido
em principio e pratica de julgar, em materia de crimes e penas, e teria dado occasião a
que, como thema de discussão, como ensaio, e como experiencia de suas disposições, se
procedesse com mais criterio e acerto a uma nova codificação criminal, já aclimatados os
principios da theoria e da philosophia, conforme á civilisação moderna, e exemplos das
grandes nações». E E duardo C orreia, por seu turno, salienta que «este projecto repre
senta, relativamente ao de M ello F reire, um indiscutível avanço. N ão aparecem os
açoites, as mutilações, as execuções bárbaras, a transmissibilidade; e a própria pena de
morte era considerada no Relatório condenável pela sã filosofia e só mantida por razões
pragmáticas. Enuncia-se claramente o valor da prisão no sistema repressivo e na luta
contra a criminalidade e nota-se, por outro lado, uma grande atenuação do rigor punitivo
anterior» (cfr. citados A pontam entos sobre as penas e sua graduação , pp. 69-70).
Não deve omitir-se aqui, antes de passar adiante, uma referência ao facto de,
aproximadamente na mesma altura em que José M anuel da V eiga ofereceu ao Governo
o seu projecto de Código Penal, ter havido também uma oferta ao m esm o Governo de
alguns «trabalhos importantes» — segundo informa L evy M aria Jordão — por parte do
«celebre criminalista italiano C armignani». Esses trabalhos, segundo o m esmo informador
(em Codigo P en al P ortuguez , tomo I, R elatorio da Com m is são, Lisboa, Imprensa Nacional,
1861, p. 13, nota 2), vêm insertos nos S c ritti in editi del cav. C arm ignani , impressos em
Lucca, em 1852, tomo V, pp. 251 e ss. (Cfr. igualmente H enriques da S ilva, ob. e vo i.
cits., p. 64).
(!) É nos diferentes parágrafos do artigo 145.° da C arta C onstitucional que
vêm enumeradas as garantias da «inviolabilidade dos direitos civis, e politicos dos
cidadãos portuguezes», aí figurando entre outros, como na Constituição de 22, o prin
cípio da igualdade perante a lei (§ 12.°); a proclamação de que «desde já ficão abolidos

486
bém uma medida legislativa introduzida sem alardes na Reforma Judiciária
de 1832 — de onde passou para a Nova Reforma Judiciária, de 1837, e
para a Novíssima Reforma Judiciária, de 1834 — e que viria a ter efeitos
decisivos, dentro de pouco tempo, para o pleno êxito do movimento
abolicionista em Portugal: o recurso obrigatório à clemência régia, em
todos os casos de sentenças capitais proferidas por tribunais portugueses (1).
os açoutes, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis» (§ 18.°);
e a regra de que «nenhuma pena passará da pessoa do delinquente» e de que «portanto
não haverá em caso algum confiscação de Bens, nem a infamia do Rèo se transmittirá
aos Parentes em qualquer gráo, que seja» (§ 19.°). Dentro da matéria que nos inte
ressa, há apenas de novo na Carta, em relação à Constituição de 1822, a promessa de
que «organizar-se-ha, quanto antes, hum Codigo Civil, e Criminal, fundado nas solidas
bases da Justiça, e Equidade» (§ 17.°) e a promessa — mais difícil ainda de cumprir —
de que «as cadeias serão seguras, limpas, e bem arejadas, havendo diversas casas para
separação dos réos, conforme suas circumstancias, e natureza de seus crimes» (§ 20.°).
Cfr. C arta C onstitucional da M onarchia P ortu gueza decretada, e dada pelo R ei de P ortu gal
e A lgarves D. P edro, Im perador do B ra zil, aos 29 de A b ril de 1826 (Lisboa: Na Impressão
Regia. Anno 1827. Com Privilegio exclusivo, na forma do Decreto de 14 de Julho
de 1826), pp. 31 e 32. V. igualmente S ilva F errão, ob. e voi. cits., pp. L III-L IV ; B asilio
A lberto de S ousa P into , ob. c it ., p. 32; H enriques S ecco, ob. c it ., p. 582; H enriques
da S ilva, ob. e voi. cits., pp. 60-61; e E duardo C orreia, ob. cit., p. 68.
A C onstituição de 1838, por seu turno — mas em linguagem mais sòbria que a
da Carta da Constitucional — , repete no artigo 10.° que «a lei é igual para todos»;
no artigo 21.°, que «ficam prohibidos os açoutes, a tortura, a marca de ferro, e todas as
mais penas e tratos cruéis»; e, no artigo 22.°, que «nenhuma pena passará da pessoa do
delinquente: não haverá, em caso algum, confiscação de bens, nem a infamia dos reos
se transmittirá aos parentes». M as por outro lado, prudentemente, deixou de prometer
códigos; e, sobretudo... deixou de prometer cadeias «seguras, limpas e bem arejadas».
Cfr. Constituição P olitica da M onarchia P ortu gueza (Lisboa. N a Imprensa Nacional. 1838.
Edição official.), pp. 5 e 7. V. igualmente H enriques S ecco, ob. cit., p. 583; e E duardo
C orreia, ob. c it., p. 70.
O N o nosso antigo direito, o recurso obrigatório à clemência régia tinha lugar
apenas num reduzido número de casos taxativamente fixados na lei, que pormenoriza
damente analisámos supra, notas, 1 e 2 da p. 435 e notas 1 e 2 da p. 436.
— Com o advento da época liberal, nada se modificou nem alargou, de momento,
a esse respeito: — A Constituição de 1822 lim itou-se a incluir nos poderes do rei — o que
não representava novidade nenhuma em relação ao direito anterior — o de «perdoar ou
minorar as penas aos delinquentes na conformidade das leis» (artigo 123.°, n.° 11; na
ed. c it., p. 52); e o mesmo fez a Carta Constitucional, ao afirmar, no seu artigo 74.°, que
«O Rei exerce o Poder M oderador:... § 7.° Perdoando, e moderando as penas impostas
aos réus condemnados por sentença» (cfr. ed. cit., p. 19).
— Que saibamos, foi só a chamada R eform a Judiciária, promulgada em 16 de
M aio de 1832, durante a Regência estabelecida na Ilha Terceira, que pela primeira
vez estatuiu, em termos gerais, o recurso obrigatório à clemência do monarca, no seu
artigo 225.°: «As penas criminaes se executarão promptamente, uma vez exhaustos os

487
Ë manifestamente essa medida que está na base da sistemática comutação
da pena de morte concedida pelos nossos monarcas — D. Maria II,
recursos, menos a pena de morte, que se não executará sem resolução do Poder M ode
rador, enviando o Presidente do respectivo Tribunal de segunda instancia uma cópia
da sentença á Secretaria d’Estado dos Negocios de Justiça. O exercicio do Poder M ode
rador nunca póde affectar as acções civis por perdas e damnos» (cfr. Collecção de D ecretos
e Regulam entos m andados publicar por S ua M agestade Im perial o R egente do Reino desde
que assum iu a Regencia em 3 de M arço de 183 2 a té á sua en trada em L isboa em 2 8 de Julho
de 1833. Segunda Serie. Lisboa, N a Imprensa Nacional. 1836. P. 137).
As restantes disposições da R eform a Judiciária de 1832 relativas à pena de morte
não representam qualquer progresso em relação ao direito anterior, pois limitam-se a
reproduzir preceitos que já estavam consignados nas leis ou que a prática tinha consa
grado sem discrepâncias. Assim:
a ) O artigo 226.° dizia que «A pena de morte nunca se executará em pessoa que
se ache alienada das faculdades mentaes, ou em mulher grávida. Só passados sem e
lhantes accidentes se cumprirá a sentença» (cfr. Collecção c it ., p. 138). Era a doutrina
corrente já no séc. xvm , como se vê da P ra tica crim inal de M anoel L opes F erreira
(cfr. supra , nota 3 de pp. 436-437, alíneas d ) e g) das apontadas causas de adiam ento
da execução ; e alínea e) das causas de com utação ou de perdão da p e n a ).
b) O artigo 227.° dizia que «A pena de morte executar-se-ha quarenta e oito
horas depois da sentença, na forca, pelo Executor da justiça criminal, em logar publico,
com acompanhamento do costume, assistindo o Escrivão dos autos para dar fé nelles do
cumprimento da sentença. A assistência do Juiz não é precisa neste caso. N as quarenta
e oito horas marcadas neste Artigo se ministrarão ao condemnado todos os socorros da
Religião que professar, e os mais que por elle forem requeridos» (cfr. Collecção c it., ibidem ) .
À parte a novidade de se prever a assistência religiosa de um credo diferente do credo
católico, tudo coincide com o que se observava antes (cfr. supra, nota 1 de pp. 432-433).
c) O artigo 228.°, por seu turno, estabelecia que «Os corpos dos enforcados se
entregarão aos seus parentes, reclamando-os elles. Se o cadaver não fôr reclamado,
poderá ser mandado para qualquer theatro anatómico. É Juiz competente para isso
o do logar aonde se fez a execução» (cfr. Collecção cit., ib id em ). T odo este preceituado
era direito comum anterior (cfr. supra, nota 1 de pp. 432-433, alíneas d ) e e ) .)
d ) E o artigo 229.°, finalmente, determinava que «O logar do Executor da justiça
será exercido por um criminoso da pena ultima, commutada naquelle emprego» (cfr. Collecção
c it., ibidem ) — doutrina que, como se viu (supra, nota 2 da p. 468), vinha duma lei do tempo
de D . Maria I.
— A disposição referente ao recurso obrigatório à clemência régia transitou para
a chamada N o v a R eform a J u d iciá ria, de 1837 (artigo 338.° da Terceira Parte), apenas
com a diferença de se falar de P oder R ea l onde antes se falava de P oder M oderador e
de se transferir do P residente do Tribunal para o Procurador R égio a incumbência de
enviar ao M inistério da Justiça a cópia da sentença, que deveria ir acompanhada dos
necessários elementos de apreciação sobre a personalidade do criminoso e circunstâncias
do crime: «As penas criminaes se executaráõ promptamente, menos a pena de morte,
que se não executará sem resolução do Poder Real, enviando o Procurador Regio da
Relação, em que a Sentença passou em julgado, uma cópia delia á Secretaria d’Estado

488
D. Pedro V e D. Luís — a partir de 1846, ano em que teve lugar entre
nós, na cidade algarvia de Lagos, a última execução da pena máxima^).
dos Negocios de Justiça, acompanhada de particular informação sobre a natureza do
Crime, circumstancias delle, procedimento do condemnado, e mais qualidades pelas
quaes seja indigno, ou merecedor do perdão, ou minoração da pena. §. unico. O exer
cício do Poder Real nunca poderá offender as Acções Civis de perdas e damnos» (cfr. D ecretos
de 2 9 de N ovem bro de 1 8 3 6 , e 13 de Janeiro de 1 8 3 7 ; que contém a prim eira, segunda e ter -
ceira P arte da R eform a Ju diciaria . Coimbra: Na Imprensa da Universidade. 1837.P. 192).
As restantes disposições do diploma de 1832 acerca da execução da pena de morte
transitaram também para os artigos 339.°, 340.°, 341.° e 342.° da 3.a Parte da N o v a
R eform a Judiciária , com dois pequenos acrescentam entos que só por lapso não tinham
figurado no articulado anterior, pois constituíam prática de há muito tempo consagrada:
a proibição de se executar a pena de morte aos domingos, dias santos e dias de festividade
nacional [cfr., para o direito anterior, supra , nota 1 de pp. 432-433, alínea a) ] e a de dever ir no
acompanhamento a Confraria da Misericórdia «se a houver no logar» (cfr., para os tempos
anteriores, a descrição do ritu a l da execução feita por L opes F erreira, supra , mesma nota) ;
e com uma pequena supressão : a referência à entrega do cadáver do sentenciado aos teatros
anatómicos (o que aliás, segundo testemunhos de data posterior, nem por isso deixou de
continuar a observar-se; cfr. a ed. a seguir cit. da N ovíssim a R eform a Judiciária, p. 210,nota 3).
— A chamada N ovíssim a R eform a Judiciária , de 1841, transcreveu quase textual
mente, nos seus artigos 1201.°, 1202.°, 1203.°, 1204.° e 1205.°, o que dispunham respecti
vamente os artigos 338.°, 339.°, 340.°, 341.° e 342.° da lei anterior, continuando assim de
pé o que se achava estatuído quanto ao recurso obrigatório à clemência régia (Cfr. R eform a
Judicial N ovissim a, decretada em 21 de M a io de 1841 segundo a authorisação concedida ao
G overno pela C a rta de L e i de 28 de N ovem bro de 1840. Segunda edição. Lisboa. Na
Imprensa Nacional, 1845. Pp. 209-210).
0 ) Parece fora de dúvida que a última execução da pena capital por motivo de
delitos civis, em território m etropolitano, se verificou em Lagos, no Algarve, no m ês de
Abril de 1846. Assim o informa, correctamente, L evy M aria Jordão, no R elatorio da
Com m issão, que antecede o projecto de Código Penal de 1861 (ed. cit., p. 222; em nota
ao quadro que constitui o D ocum ento n.° 4 : M a p p a das execuções capitaes que tiveram logar
em P ortu gal desde 1833 a té 1 8 4 6 ).
H enriques S ecco, nas M em orias do tem po passado e presente p a ra lição dos vindouros
(de pp. 468 a 492 do tomo I — Coimbra, Imprensa da Universidade, 1880 — e a pp. 239-240
do tomo II — Coimbra, idem , 1889), aponta alguns outros casos de execução capital, poste
riores a 1846; mas, ou são casos de execução sum ária, no quadro de represálias políticas
ocasionais (como os que relata de pp. 468 a 485 do tomo I e o que menciona a pp. 239-240
do tomo II), ou de execução de sentença de tribunal m ilitar (como o que refere a pp. 486 ss.
do tom o I: fuzilamento do soldado António Pereira, em 4 de Maio de 1849, em Viseu,
por sentença do Conselho de Guerra, confirmada pelo Supremo Conselho de Justiça
M ilitar, cuja pena não foi comutada pelo Poder Moderador).
Em compensação, parece certo ter havido depois dessa data, em território u ltra
m arino, uma condenação à morte, por motivo de delito civil, seguida de execução.
É o caso relatado por H enriques S ecco, de pp. 480 a 492 do tom o I das suas citadas
M em orias : Narana Lalá (baptizado à hora da morte com o nome de João Agostinho de
M orais), condenado por sentença da Relação de G oa, de 25 de Janeiro de 1856, por

489
O número de execuções capitais tinha tido, em Portugal, um ligeiro
recrudescimento nos conturbados 6 anos da guerra civil, em que a média
anual de sentenciados, incluindo os condenados por crimes políticos, foi
de cerca de 20 (1). Mas esse número logo foi decrescendo sensivelmente
de ano para ano, uma vez restabelecida a paz interna (2). A última execução
por crimes políticos tivera lugar em 1834 (3); e, quanto aos crimes comuns,
crime de homicídio premeditado e roubo; e executado em D am ão Pequeno , por enforca
m ento, em 5 de M aio de 1857, em consequência de lhe ter sido recusada a comutação
da pena pelo Poder Moderador. O caso foi presente à reunião do Conselho de E stado
realizada em 8 de Janeiro de 1857, presidida por El-Rei D . Pedro V e a que assistiram
todos os ministros; e houve unanimidade de votos no sentido de se executar a sentença:
V ., sobre o assunto, o artigo de Joaquim M artins de C arvalho, Execução da pena de m orte ,
in O Conim bricense , n.° 5052, de 25 de Fevereiro de 1896, que destaca, com razão — a propó
sito deste caso — , não ser exacta a crença generalizada de que D . Pedro V comutou sistemà
ticamente, e sem uma única excepção, todas as sentenças de morte proferidas no seu reinado.
A título de curiosidade, apontaremos aqui que a última execução em Coimbra
teve lugar na manhã do dia 29 de Julho de 1839, no areal do Rio M ondego, na pessoa
do réu José da Costa Casimiro, que tinha assassinado Diogo Marques de Carvalho em
25 de Julho de 1835, no sítio das Almuinhas, próximo de Sernache. O réu havia sido
condenado à morte por sentença do tribunal de Coimbra, de 4 de Janeiro de 1837, con
firmada por sentença da Relação do Porto, de 30 de Junho de 1837, e por sentença do
Supremo Tribunal de Justiça, de 3 de Julho de 1838. A Rainha recusou a comutação
em 4 de Julho de 1839; e não tiveram êxito as diligências insistentemente feitas no
sentido de ser poupada a vida ao criminoso. V ., sobre o assunto, o artigo publicado
em O Conim bricense , n.° 2359, de 5 de Março de 1870.
Esta e outras execuções, em 1839 — contra a corrente, que já se vinha estabe
lecendo, duma sistemática concessão da graça real — , foram consequência do alarme
nessa altura suscitado pelo aumento da criminalidade. Informa a esse respeito M artins
de C arvalho, no artigo V erdades duras > m as verdades , publicado em O Conim bricense,
n.° 2844, de 27 de Outubro de 1874: «...Com o resultado das nossas discordias civis,
relaxaram-se depois de 1834 os vínculos sociaes; fraqueou o poder da auctoridade; e prati
caram-se por todo o reino numerosíssimos crimes de todo o genero. Em 1839 parecia
ter-se exacerbado o mal, sendo então mais frequentes os attentados; pelo que o ministerio,
presidido pelo barão de Ribeira de Sabrosa, reunido em conselho, deliberou, para aterrar
os criminosos, mandar proceder a algumas execuções. O Porto foi a primeira cidade onde
se executou um condemnado á morte, e seguiu-se logo outra execução nesta cidade de
Coimbra. N o D iario do G overno de 25 de julho de 1839 foi publicado por ordem do m iniste
rio um pequeno artigo, explicando as razões por que se havia tomado deliberação tão rigorosa».
C1) Cfr. L evy M aria Jordão, citado R elator io da Com m is são ( = C o d ig o P n eal
PortugueZy tomo I, Lisboa, Imprensa Nacional, 1861), pp. 233 ss. (no D ocum ento n.° 4 -A .
N oticia de algum as execuções anteriores a 1834, fornecida pelo S r. A . J . M oreira , O fficial
m aior da academ ia real das sciencias ) .
(2) Cfr. ibidem , D ocum ento n.° 4 (pp. 221-222).
(3) É duvidoso se a última execução da pena capital por crimes políticos teve
lugar em 1833 ou em 1834.
O que de seguro se pode dizer é que a pena de morte por crimes políticos não

490
no período de 10 anos que precede a última execução, a média anual
tinha-se fixado entre 3 e 4 subidas ao patíbulo (x). A partir de 1846,
a pena de morte... morreu por si, repudiada pelo sentimento unânime do
povo português, 21 anos antes de ser abolida legalmente.
Este facto, na sua singeleza, é duma importância transcendente, pois
é sabido — e sempre assim o acentuam os comparatistas do direito
criminal (2)—que a abolição legal da pena de morte, quando não é feita preci-
voltou a ser executada após a vitória liberal. Foi seguramente para exprimir essa realidade
que os autores começaram a afirmar que, «desde 1834», não voltou a haver execuções
da pena última por crimes políticos (V., por exem plo, as intervenções de M endes L eite
na Câmara dos Deputados, em 10 e em 29 de Março de 1852, referidas infra , nota 1 da
p. 494 e notas seguintes), e foi manifestamente por má interpretação daquela correcta
e prudente forma de expressão que certos autores mais modernos começaram a afirmar,
muito diferentemente, que a última execução por crimes políticos «teve lugar em 1834».
D e positivo sabe-se apenas que em 1833 ainda houve condenações e execuções
por crimes políticos. Dá conta delas H enriques Secco, a p. 448 do vol. I das suas citadas
M em orias do tem po passado e presente . N o m omento, H enriques Secco estava convencido
de que, em 1834, 1835 e 1836, não teria havido nenhuma subida ao patítulo em Portugal;
e, no seu referido trabalho, relaciona o facto com a vitória liberal, afirmando: «o esta
belecimento das instituições liberaes em Portugal não podia deixar de ter como conse
quência a modificação da crueldade na punição. Era a reacção da liberdade contra o
despotismo» (cfr. ob. e voi. cits., p. 449, nota a). M as, depois, deu conta de, pelo menos
duas condenações e execuções em 1834 — aliás, ambas anteriores a Évora-M onte — ,
que menciona a pp. 207 e 208 do volume II das mesmas M em orias : uma delas, em 26 de
Janeiro, em Santarém, respeitante a um crime puramente militar — a deserção dum
soldado; e a outra, em 23 de Abril, na praça e cidade de Eivas, respeitante a crime não
suficientemente esclarecido na única fonte conhecida que relata o facto. Pela data, pelo
local e pela natureza da sentença condenatoria — de origem militar — , é bem possível
que se tratasse de crim e político relacionado com os últimos dias da resistência miguelista
no Alentejo (cfr. ob. e loc. cits., nota b) de pp. 208-209). A ser assim, a última execução
por m otivos políticos teria sido, de facto, em 1834.
Além destas duas execuções, verificadas de certeza em 1834, há uma outra, que
se aponta como tendo tido lugar em Janeiro de 1833, em M ontem or-o-Novo, mas que,
com toda a probabilidade, está referida na fonte documental respectiva com o erro dum
ano, devendo antes ter-se verificado em Janeiro de 1834. O sentenciado era acusado dum
crime de natureza manifestamente política. V. ibidem , nota a) de pp. 204-205.
D e qualquer forma, é fora de dúvida que, após o termo das hostilidades, com a
convenção de Évora-M onte (26 de Maio de 1834), não voltou a haver execuções em 1834,
nem tão-pouco durante 1835 e 1836. As execuções por crimes comuns reiniciaram-se
em 1837 (cfr. o cit. Codigo P en al P ortuguez — Tom o I. R elatorio da Com m is são, pp. 221-222,
e H enriques S ecco, M em orias cit., vol. I, p. 449, nota a), e pp. 450 a 452, em nota).
M as as execuções por crimes políticos nunca mais foram retomadas.
O É o que se infere dos dados estatísticos fornecidos pelo R elatorio acabado de
citar na nota anterior (loc. cit.) e reproduzido por H enriques Secco no voi. e loc. cits.
(2) V., por todos, M arc A ncel, ob. c it., p. 14.

491
pitadamente e com risco duma restauração a curto prazo que mais difi
cultará depois uma abolição definitiva, é sempre precedida dum abolição
no domínio dos factos. Era isso o que sucedia em Portugal: a pena de
morte estava abolida, de facto, para os crimes políticos, desde 1834;
e estava igualmente abolida, de facto, para os crimes comuns, desde 1846.
O resto... viria por acréscimo.
16. E o resto veio, na verdade, como um fruto maduro, em dois momen
tos diferentes, embora distanciados entre si, mesmo assim, por um intervalo
de 15 anos: em 1852, pelo artigo 16.° do Acto Adicional à Carta, a abo
lição da pena de morte para os crimes políticos; e em 1867, pelo artigo l.°
da Reforma Penal e das Prisões, a abolição para todos os demais crimes
civis.
A abolição da pena capital para os crimes políticos, em 1852, proces-
sou-se entre nós dum modo curioso, que é possível hoje acompanhar
pari passu pelo «Diario da Camara dos Deputados» do mês de Março desse
ano da Graça.
Há-de ter-se em conta, antes de mais, para bem compreender o impulso
que levou a Câmara a tomar uma medida deste vulto, que a pena de morte
por crimes políticos já não se aplicava em Portugal desde 1834 (*); que o País
vivia nesse momento, depois do período a que Oliveira Martins chamou
da «anarquia liberal» e depois da guerra civil em que degenerara o cartismo,
a hora alta e esperançosa da «regeneração», dominada por um grande anseio
de concórdia, de paz interna e de progresso material^); e, finalmente, que
o exemplo da França, ao abolir em 1848 a pena de morte para os crimes
políticos, não podia deixar de reflectir-se num país como o nosso, cujo
movimento de ideias pagava forte tributo aos ventos que vinham de
além-Pirenéus (3).
Deve notar-se, porém, que a abolição da pena de morte para os crimes
políticos não fazia parte do texto da proposta de reforma constitucional
que o Governo enviou à Câmara em Janeiro de 1852(4). Mais do que isso:
(*) V. supra, nota 3 de pp. 490-491.
(2) V. O l iv e ir a M a r t in s , Portugal Contemporaneo (ed. cit.), vol. II, pp. 1 a 142
(«Livro quarto — A anarchia liberal»); pp. 143 a 282 («Livro quinto — O Cartismo», e espe
cialmente o § III desse livro: «A guerra civil»); e pp. 283 ss. («Livro sex to — A R egene
ração»),
(s) Foi o artigo 5.a da Constituição Política de 1848 que aboliu, em França,
a pena de morte nos crimes políticos. V ., por todos, M it t e r m e ie r , De la peine de mort>
cit. (Paris, 1865), p. 43.
(4) A proposta do Acto Adicional partiu do Governo e tem data de 23 de Janeiro
de 1852. A Câmara dos Deputados cometeu à Commissão Central o encargo de «reunir

492
o Governo fez tudo o que estava na sua mão para evitar que a Câmara
dos Deputados votasse a inclusão dessa medida no Acto Adicional; não
porque lhe fosse contrário, mas porque — ao que se pressente por detrás
da discussão parlamentar — tinha já a intenção de propor ele próprio
às Câmaras essa abolição numa lei ordinária (x) e via fugir-lhe das mãos,
sem contar, com o rumo que as coisas tomavam, um título de glória que
lhe era precioso para a política de apaziguamento e de progresso material
em que desejava lançar-se.
As coisas começaram com uma proposta de aditamento mandada para
a Mesa pelo deputado Mendes Leite e assinada também por Rodrigues
Cordeiro, na sessão de 10 de Março, quando a proposta governamental
acabava de ser aprovada na generalidade e ia iniciar-se a sua discussão
e harmonisar os diversos Pareceres e opiniões das Secções desta Camara«. Essa Comissão
«intendeu, segundo o voto geral de todas as Secções, que devia chamar o Governo a
tomar parte em suas discussões», e, de acordo com ele, apresentou um novo «projecto»,
com data de 26 de Fevereiro, que, segundo as suas próprias palavras, «em nada altera a
referida Proposta; mas parece á Commissão que a melhora muito sensivelmente».
Tanto a «Proposta do Governo« (que consta de 17 artigos) como o «Projecto da
Commissão» (que reduz a 15 artigos o texto inicialmente proposto), vêm publicados
no D iario da C am ara dos D eputados. l .a Sessão ordinaria da 4.a L egislatura depois da
R estauração da C a rta C on stitu cion al . P ublicado p ela E m preza dos E m pregados da
S ecretaria da m esm a C am ara. V ol. 3.° = M arço = 1852 (Lisboa. N a Imprensa Nacional
1852), pp. 48 a 51 (Sessão de 4 de Março»).
Foi o «Projecto da Commissão» que serviu de base à discussão das Câmaras e que
foi, com alterações, transformado em lei constitucional do País. Um a proposta de adia
mento da discussão, apresentada por Barjona na sessão de 4 de M arço, logo que o Presi
dente submeteu o projecto à «apreciação na generalidade» (cfr. D iario cit.> p. 52), acabou
por ser rejeitada, após demorado debate (cfr. ibidem , p. 87). Em consequência disso,
entrou-se logo na «discussão na generalidade», que ocupou as sessões de 6, 8 e 9 de Março
(cfr. ibidem^ pp. 87 a 130). N a sessão de 10 de M arço, foi votada — já sem mais discussão —
a aprovação do Acto Adicional «na sua generalidade»; e entrou-se logo na apreciação «na
especialidade», que abrangeu, no todo ou em parte, as sessões dos dias 10, 12, 13, 16, 17,
19, 20, 21, 22, 24, 27 e 29 de Março (cfr. ibidem , pp. 133 a 355). As sessões dos dias 11,
15, 18, 23 e 26, ou não puderam realizar-se por falta de «quorum» (como sucedeu
em 15 e em 23) ou tiveram a sua «ordem do dia» absorvida por assuntos inteiramente
diversos.
0) Assim o declarou A ntónio L uís de Seabra, M inistro da Justiça, no discurso
proferido na sessão parlamentar de 10 de M arço, logo no início da discussão «na espe
cialidade», a propósito do aditamento referente à abolição da pena de morte: «Quando
tive a honra de entrar para o M inisterio, devo confessal-o em attenção aos meus Collegas,
este desejo, este pensamento já existia nelle: o Governo tinha o desejo de propôr uma
Lei a este respeito, Lei que não era mais do que o eco da opinião do Paiz, e o eco desta
Camara verdadeiramente pronunciado pela voz do illustre Deputado que acaba de fallar
(A poiados)». Cfr. D iario cit., p. 149, 2.a coluna.

493
na especialidade (*). A proposta, logo bem recebida no discurso proferido
nessa mesma sessão pelo veterano Passos Manuel (2), encontrou pela frente
C1) A proposta de aditamento foi apresentada secamente, sem quaisquer justi
ficações de ordem doutrinal ou política; e o Deputado proponente, nas brevíssimas pala
vras que pronunciou de m om ento, lim itou-se a invocar a circunstância de a medida
proposta se encontrar «na cabeça e coração de todos». Eis como as coisas se passaram,
no relato fiel do D iario cit. (pp. 133, l .a coluna):
«O Sr. P residente : — N a fórma da resolução tomada hontem pela Camara, passa-se
á especialidade do Acto Addicional. Está em discussão o artigo l.° e parágrafos. (V em
a transcrição respectiva ) .
O Sr. M endes L eite : — M ando para a M esa um Additamento ao Acto Addicional.
Ê o seguinte
A D D IT A M E N T O . — «É abolida a pena de morte nos crimes Politicos.
Fica assim ampliado o § 18.° do artigo 145.° da Carta». — M endes L eite .
(C ontinuando) O princípio estabelecido neste Additamento tem sido felizmente
um facto entre nós desde 1834, mas eu desejo que o seja também de direito. Este prin
cipio está na cabeça e coração de todos, estou certo que a Camara o approvará, e por isso
não digo mais nada sobre elle.
O Sr. P residente : — Este Additamento deve ter cabida nos últim os artigos; e portanto
fica sobre a M esa para ser proposto á Camara em occasião competente».
A proposta aparece feita em nome pessoal e exclusivo do deputado M endes L eite;
mas o deputado R odrigues C ordeiro, ao usar da palavra na sessão de 29 de M arço,
declara que o aditamento mandado para a M esa foi assinado também por si. Cfr. D iario
cit., p. 351, l .a coluna.
(2) Passos M anuel já não vinha ao Parlamento desde 1844. O discurso que
profere na sessão de 10 de Março de 1852 — como logo começa por declarar — é o
primeiro discurso seu, depois dessa longa ausência da Câmara dos Deputados; e isso
leva-o a pedir à Câmara que tenha a paciência de o escutar não apenas sobre o artigo
em discussão (o artigo l.° do Acto Adicional), mas «considerando a questão de mais alto»
(cfr. D iario cit., p. 146, 1.a colima).
O homem da Revolução de Setembro tinha, de facto, prestígio político suficiente
para poder dar-se ao luxo de fazer — sem levantar objecções da presidência nem de
qualquer deputado — um discurso à margem de todas as praxes parlamentares: — Apesar
de se ter entrado na «apreciação na especialidade» e de estar em causa exclusivamente a
discussão do artigo l.° do Acto Adicional, Passos M anuel faz «apreciação na generalidade»
e emite opinião, «na especialidade», sobre diversos artigos da proposta de lei em discussão.
É essa a razão por que a proposta de aditamento do deputado M endes L eite sobre
a abolição da pena de morte nos crimes políticos, apesar de relegada pela presidência para
os «últimos artigos» do Acto Adicional em discussão (cfr. nota anterior), foi logo objecto
duma primeira apreciação na própria sessão de 10 de M arço, em que foi apresentada:
Passos M anuel referiu-a, nas últimas palavras do seu discurso, para lhe dar o seu apoio
(cfr. D iario cit., p. 149, l.a coluna); e Seabra, como M inistro da Justiça, viu-se obrigado
a intervir imediatamente — falando logo em seguida a M anuel da S ilva Passos para
formular a oposição do Governo e a respectiva justificação (cfr. ibidem , 2.a coluna).
Nas sessões imediatas, a Câmara foi mais obediente ao Regimento: seguiu-se
a «apreciação na especialidade» pela ordem dos artigos da proposta; e, desse m odo, só

494
uma dupla e curiosa oposição: a oposição dos legistas, chefiada pelo cate
drático Vicente Ferrer, que concordava com a oportunidade da abolição,
mas dissentia da sua inclusão num texto constitucional por não se tratar
dum «princípio orgânico»0;ea oposição do Governo, chefiada pelo Ministro
da Justiça António Luís de Seabra, que igualmente aplaudia a medida
da abolição, mas que invocava uma razão mais frouxa para dissentir da
sua aprovação imediata: a necessidade de encarar o problema em conjunto
com o da pena de morte para os crimes civis — cuja abolição não se consi
derava ainda oportuna—, carecendo-se portanto dum diploma, que o
Governo se comprometia a apresentar urgentemente à aprovação das
Câmaras, em que se definissem rigorosamente os crimes considerados
para o efeito como políticos, para evitar que o princípio fosse defraudado
na sua aplicação (2).
A tese de Vicente Ferrer apoiava-se num judicioso argumento de técnica
jurídica, pois é incontestável que no texto da Constituição e seus Adita-

na sessão de 29 de Março chegou a vez de ser discutido o último artigo (o artigo 16.°),
correspondente à proposta de aditamento do deputado M endes L eite .
C1) V icente F errer N eto P aiva foi o primeiro orador da «ordem do dia» da
sessão parlamentar de 29 de M arço, e formulou nestes termos o seu ponto de vista : — «Eu,
Sr. Presidente, approvo a doutrina da Proposta; ha muitos tempos (sic) sustento essa
doutrina, até já escrevi alguma cousa a esse respeito; portanto não podia deixar de dizer
aqui agora o mesmo que já escrevi; mas intendo que é necessário remetter a uma
Commissão essa Proposta, para redigir um Projecto de Lei. O Sr. D eputado... apre
sentou esse artigo em Additamento ao Acto Addicional : ora eu concedo em que a doutrina
desse Additamento se converta em um Projecto de Lei, e que seja appro vado e fique
sendo Lei vigente; e não concordo em que faça parte do Acto Addicional, e não concordo
por uma razão muito simples, porque esse principio não é um principio organico»
(cfr. Diario cit., p. 348, l .a coluna).
(2) Esta posição governamental acerca do problema em causa anunciou-a S eabra
logo na sessão em que o deputado M endes L eite mandou para a mesa a sua proposta
de aditamento (sessão de 10 de Março). Foi forçado a isso, como se viu (supra, nota 2 da
p. anterior), pelo facto de P assos M anuel — conquanto extem poráneam ente— , logo nessa
sessão ter abordado o assunto e ter dado o seu aplauso à medida que se pretendia intro
duzir. Eis como exprimiu o seu pensamento: «...a Camara deve advertir na razão porque
o Governo não pôde exprimir este voto, este seu desejo, dentro do Acto Addicional.
A pena de morte nas circumstancias em que nos achamos, de certo deve ser banida dos
crimes politicos, mas deveremos nós banil-a também dos crimes civis? É uma questão
muito grave. E se o é, basta esta simples consideração, para fazer vêr que se nós mettessemos
o princípio no Acto Addicional sem essa definição, nada teríamos feito: porque? Porque
o sofisma havia de encabeçar em Politica aquillo que o não era, e a quill o que o era como
não o sendo. Com estas poucas palavras penso ter satisfeito aos desejos do illustre Deputado.
O Governo solemnemente se compromette a reduzir a um acto legal este desejo do Paiz,
da Camara, e do illustre Deputado (Apoiados)» (Cfr. Diario cit., p. 149, 2.a coluna).

495
mentos não deveriam nunca figurar senão princípios de carácter orgânico;
mas tinha contra si duas razões de facto, logo invocadas em resposta por
vários deputados, e que não podiam deixar de impressionar os menos
legalistas: a circunstância de, em França, a abolição da pena de morte
para os crimes políticos ter sido introduzida, justamente, numa reforma
da Constituição 0 ; e o facto, que ninguém podia negar, de na nossa Carta
Constitucional e na própria proposta do Acto Adicional em discussão
figurarem princípios que de orgânico nada tinham (2).
C1) O facto foi logo invocado por M endes L eite ( o deputado proponente), que
falou em seguida a V icente F errer: «...E também tenho a m eu favor a Constituição
Franceza de 1848, que n ’um artigo diz unicamente — «Fica abolida a Pena de M orte
em Crimes Politicos» (Cfr. Diario cit., p. 348, 2.a col.). Em vão V icente F errer (ibidem,
p. 348, 2.a colima) e R odrigo da F onseca (ibidem, p. 350, 2.a coluna) procuraram, ao
longo do debate, ripostar que a introdução da abolição da pena de morte para os crimes
políticos, na Constituição Francesa, de 1848, obedecera a razões especiais, que não tinham
aplicação ao caso vertente. A realidade é que o argumento tinha peso e arrastava a opinião
da maioria da Câmara.
(2) Logo na sua intervenção inicial, V icente F errer ponderou a possibilidade
de lhe ser feita esta objecção e procurou responder-lhe de antemão: «...E Sr. Presidente,
ouço dizer que se consignaram no Acto Addicional outros (principios) que também o não
são (que também não são, entenda-se, «princípios orgânicos»); mas porque lá se metteram
outras doutrinas, não se segue que se deva lá metter esta; o que resta, é provar, se essas
outras que lá se metteram, se metteram lá bem ; essa é a questão. D esde Cairn até hoje
tem -se matado muita gente, e ninguém se atreverá a dizer por isso que o matar seja liçito.
É verdade que na Carta estão artigos que dizem, por exemplo — ficam abolidas as penas
infamantes — isto é verdade, mas não deviam lá estar, porque isto não são disposições
essenciaes que entrem na organisação da Constituição do Estado, em consequência não
deviam lá estar: portanto não se póde argumentar com esse exemplo» (cfr. Diario cit.,
p. 384, l .a coluna).
Ao intervir pela segunda vez no debate, V icente F errer volta à carga: «...daremos
um documento de intender pouco o que é uma Constituição, se nella consignarmos essa
doutrina; quero dizer, quem lêr o Acto Addicional, approvado em Portugal em 1852,
e vir nelle o artigo da abolição da Pena de M orte nos Crimes Politicos, mesmo approvando
essa doutrina, ha de dizer, que conhecíamos pouco o que são principios orgânicos, que
devem entrar em uma Constituição. A doutrina é santa e justa; mas não pertence para
aqui» (cfr. Diario cit., p. 348, 2.a coluna).
Apesar deste arrazoado, o argumento da existência de vários princípios «não-
-orgânicos» no Acto Adicional e na própria Carta Constitucional seria trazido à colação,
repetidas vezes, no decurso do debate, com o vigor suficiente para deitar por terra — numa
assembleia muito mais política do que jurídica — a posição, puramente formalista, de
V icente F errer N eto P aiva : — M endes L eite é o primeiro a vir à estacada, lembrando
que «não se tracta de um favor para um ou outro Partido, mas sim de uma garantia para
todos, e tractando o Acto Addicional de garantias..., esta também deve nelle ser consignada*
(cfr. Diario cit., p. 348, l .a col.), devendo ter-se em conta, além disso, que «uma Lei espe
cial não offerece as garantias que offerece um artigo incluído na Constituição» (cfr. ibidetny

496
Menos consistente ainda era a posição do Governo, que Seabra a
custo pretendia fazer vingar, em nova intervenção parlamentar 0 , com a
promessa formal duma proposta de lei sobre o mesmo assunto, e em cujo
apoio viria à liça também o velho Ministro do Reino Rodrigo da Fonseca 0 .
2.a col.); e mais adiante, em nova intervenção no debate, há-de pôr mais em evidência
ainda a contradição em que a Câmara cairia se aceitasse a argumentação de V ic e n t e F e r r e r ,
depois de ter aprovado no Acto Adicional outros princípios menos orgânicos ainda que do
este: «...A Camara póde rejeitar com a mesma facilidade com que tem approvado, que no
Acto Addicional sejam consignadas disposições de uma importancia muito e muito inferior
á da materia deste meu Additamento (Apoiados) (cfr. ibidemy p. 349, 2.a col.).
N o mesmo sentido se pronunciaram os deputados C a s a l R ib e ir o (ibidemy p. 350,
l .a col.) e R o d r ig u e s C o r d e ir o (ibidem, p. 351, l.a col.). É partuiclarmente impressiva
a argumentação do primeiro, como exemplo vivo do pouco peso que os argumentos de
puro formalismo jurídico têm num espírito essencialmente politico: «...Eu votaria por
que este princípio fosse consignado n’uma Lei ordinaria, se tivesse esta sido apresentada
primeiro; mas uma vez que foi trazido aqui por ocasião da discussão do Acto Addicional
não o posso rejeitar, nem oppor-me a que seja consignado na Constituição, tanto mais
quando é uma aspiração bella e grandiosa do Povo Portuguez, que lhe faz honra, e deve
honrar a Camara que o approvar...........Sr. Presidente não me faz peso algum o argumento
de que na Constituição só devem ser admittidas disposições que são orgánicas da sociedade,
porque tanto na Carta, como na Reforma da Carta vejo consignadas disposições que não
podem considerar-se como disposições orgánicas da Sociedade,............E ainda a respeito
de principios orgânicos direi por ultimo — que nós vemos na Carta a abolição das penas
infamantes e cruéis, que não é por certo um principio mais organico que este do Addita
mento». (Cfr. loc. cit. ) .
C o m o b e m s e c o m p r e e n d e , n ã o e ra fá c il a u m «clerc» d a c iê n c ia ju r íd ic a — como
V ic e n t e F er r er — d o m in a r e sta o s te n s iv a « m e n ta lid a d e p rofan a» q u e d o m in a v a a Câmara
e d e q u e a s p a la v r a s d o d e p u ta d o C a s a l R ib e ir o sã o e lo q u e n te e x p r e ssã o .
C1) Falando na sessão de 29 de M arço, A ntónio L uís de S eabra insiste na mesma
argumentação já produzida no discurso de 10 do mesmo m ês: «...Quando se apresentou
aqui este objecto (sic) , o M inisterio não o im pugnou; foi o primeiro a dizer que o adoptava,
mas achava conveniente o se não consignar na Constituição, e disse a rasão; porque esta
belecer a abolição da Pena de M orte por Crimes Politicos, sem definir quaes eram esses
Crimes, era querer embaraçar a questão. Declaro á Camara que em quanto á Lei Regu
lamentar, que m e comprometti a appresentar, já estou trabalhando nella, e já tractei de
resolver o problema, aquillo que previ á primeira vista e em que acho grande difficuldade
na practica, e convido os nobres Deputados a que me digam o que são Crimes Politicos?
Ora é preciso que os Srs. Deputados notem que ha ainda outra complicação maior, que
é a que resulta da mixtão dos factos. Eu não pude resolver o problema, senão pelo meio
indirecto, isto é, classificando os Crimes que não são Politicos, devendo ser considerados
taes os que não vierem nessa classificação. Consignar pois o principio é não consignar
nada, em quanto não estiver feita a Lei Regulamentar. E para que, Sr. Presidente, tanta
pressa?...» (cfr. Diario cit., p. 351, 2.a col., e 352, 1.a col.).
( 2) R o d r ig o d a F o n se c a falou duas vezes: a primeira, para expor, uma vez mais,
a posição do Governo (v. ibidem, pp. 348, 2.a col., e 349, 1.a col.); e a segunda, para
responder (em vão) aos argumentos pragmáticos do discurso do deputado Casal R ibeiro

497
32 - II Voi.
O argumento de que o princípio, sem uma adequada regulamentação,
correria o risco de ser desvirtuado, verdadeiramente, não convencia ninguém,
porque, no domínio dos factos, a pena de morte já não se executava, nem nos
crimes políticos nem nos crimes comuns, e o risco de confusões e de desvir
tuamentos não era nenhum. E a isso acrescia, como logo lembrou o depu
tado proponente, que a expressão «crimes políticos» era corrente, sem mais
explicações, nos decretos de amnistia, nunca se tendo suscitado grandes
dúvidas, apesar disso, na sua aplicação (*).
A discussão ocupou toda a ordem do dia da sessão de 29 de Março;
e as intervenções foram numerosas em favor das teses em debate. Mas,
no essencial, todos estavam de acordo. Nem uma só voz se ergueu contra
a abolição em si mesma; e tanto assim que não foi posta sequer à votação
a questão de princípio, limitando-se o Presidente a interrogar a Câmara
sobre se a abolição da pena de morte para os crimes políticos devia ou não
ser incluída no Acto Adicional (2). Houve votação nominal e a tese da inclusão
venceu por 50 votos contra 32 (3).
(ibidem , p. 350, 1.a e 2.a cols.). Em ambas as intervenções, repetem-se apenas, com diverso
aparato formal, os argumentos já apontados por S eabra e por V icente F errer; e insiste-se
na promessa governamental de, em curto prazo, apresentar às Câmaras uma lei especial
sobre o problema.
C1) M endes L eite ripostou certeiramente a S eabra nestes termos: «...O Sr. M inistro
da Justiça, quando fallou sobre a materia, oppoz-se á sua introducção no Acto Addicional
com o fundamento de que era necessario explicar o que eram Crimes Politicos; mas não
me parece que essa razão baste, porque os Decretos de Amnistia dizem simplesmente
— «Ficam amnistiados todos os Crimes Politicos» — e não se definem os casos em que
se ha de applicar essa Amnistia; a abolição da Pena de M orte é uma amnistia prévia para
todos os Crimes Politicos futuros» (Cfr. D iario cit., p. 348, 1.a e 2.a cols.).
(2) Quando se encerraram os debates, suscitou-se o problema de saber se deveria
haver duas votações — uma sobre o princípio em s i da abolição da pena de morte para os
crimes políticos, e outra sobre a sua inclusão no A cto A dicion a l — ou se devia proceder-se
a uma única votação, limitada a este último problema. Pronunciaram-se pela dupla
votação, em breves intervenções parlamentares, os deputados M endes L eite, L eonel
T avares e V az P reto G iraldes ; mas logo tomaram posição inversa os deputados B arjona,
S eabra (M inistro da Justiça), F errer e F erreira de C astro, com o fundamento de que,
não tendo havido uma única voz discordante sobre a abolição em si, desnecessário era
submetê-la à votação. O Presidente consultou a Câmara, que «resolveu que houvesse um a
unica votação , sobre se o principio deve ser consignado no A cto A ddicion al ; e que a votação
seja nom inal » (Cfr. D iario cit., p. 352, 1.a e 2.a cols.). Consoante se infere duma decla
ração feita adiante pelo Presidente, esta deliberação foi tomada por «toda a Camara, sem
excepção de um só Membro» (cfr. ibidem , p. 353, l .a col.), de onde se conclui que os próprios
deputados que tinham começado por defender a dupla votação aceitaram a desnecessi
dade de a Câmara se pronunciar sobre a abolição em si.
(3) Podem ler-se, no cit. D ia rio (p. 353, 1.a col.), os nomes dos deputados que
votaram num e noutro sentido. (Continua na pág. seguinte)

498
17. Assim ficou incluída no Acto Adicional de 1852 a abolição da
pena de morte para os crimes políticos, por iniciativa exclusiva da «Câmara
dos Senhores Deputados». O Governo via fugir-lhe, deste modo, a glória
da autoria duma medida que todos e mais do que ninguém Ele próprio
desejavam. Mas Seabra não desistiria de deixar de algum modo assinalada,
em matéria de tal monta, esta sua primeira — e, aliás, efémera — passagem
pelas cadeiras do poder (l). Fiel ao compromisso que assumira durante a
discussão parlamentar da proposta do deputado Mendes Leite, não quis
deixar de apresentar ao parlamento uma proposta de lei sobre a pena de
morte, antes ainda de o Acto Adicional ser convertido em lei (2).
Levou ele próprio essa proposta, num conjunto de mais nove, à sessão
da Câmara dos Deputados de 28 de Maio desse ano, onde a leu. Nela
regulamentava, como prometera, a abolição já votada para os crimes polí
ticos; mas quis ir mais longe, propondo que a abolição se alargasse também
a alguns, embora não todos, os crimes comuns ao tempo ainda punidos
com a pena capital (3). A proposta foi mandada imprimir e foi declarada
É de notar que a Com issão de R edacção acabou por incluir, depois, no texto do
artigo 16.° do Acto Adicional, a promessa duma lei regulamentar — como queria
S eabra — em que se definiriam quais os crimes considerados políticos para este efeito :
«É abolida a pena de morte nos crimes politicos, os quaes serão declarados por uma lei». Esta
prometida lei, porém, nunca chegou a ser promulgada (vide texto e notas que se seguem).
C1) A ntónio L uís de S eabra entrou para o Governo, nesta sua primeira passagem
pelo M inistério da Justiça, em 4 de Março de 1852. Não tinha, pois, sequer uma semana
de exercício do cargo quando foi obrigado a marcar a posição do Governo, no Parlamento,
perante a proposta de abolição da pena de morte para os crimes políticos (sessão de 10 de
M arço. Cfr. supra , n.° 16 e notas 1 da p. 493 e 2 da p. 494). Saiu do Governo em 19 de Agosto
do mesmo ano, depois de ter ocupado a cadeira ministerial, portanto, durante uns escassos
cinco meses e meio. Cfr. a cronologia publicada em apenso ao P ortu gal Contem porâneo
de O liveira M artins e também a obra, de grande utilidade prática para informações
deste género, do juiz desembargador A ntónio M anuel P ereira, G overnantes de P ortu gal
desde 1820 até ao D r. S a la za r (Porto, 1959), p. 33.
(2) A promulgação do Acto Adicional tem data de 5 de Julho de 1852.
(3) Sessão da Câmara dos Deputados de 28 de M aio de 1852:
«O Sr. M in istro da Justiça (S eabra) : — Venho hoje aqui apresentar á Camara o
relatorio da minha Repartição, acompanhado de differentes Propostas de Lei que me
pareceram...
As Propostas que neste momento tenho a honra de apresentar á Camara reduzem-se
às seguintes:
1.a... 2.a..., etc. 10.a: Um a Proposta sobre a abolição da pena de morte nos crimes
politicos, e alguns civis que tinha promettido nesta Camara. E esta permitta-me a Camara
que eu a leia, porque é o desempenho de uma promessa formal contraída (L eu)». Cfr.
D iario da C am ara dos D epu tados , cit., voi. 4.° = M aio = 1852 (Lisboa. N a Imprensa
Nacional. 1852), p. 66, l.a col.

499
urgente (x). Mas Seabra sairia do Governo em Agosto imediato, para ir
tranquilamente tratar do Código Civil; e a proposta não teria qualquer
seguimento, tanto mais que, entretanto, por Decreto ditatorial de 10 de
Dezembro desse mesmo ano de 1852, seria finalmente promulgado o primeiro
Código Penal Português, perante o qual a proposta de Seabra perdia quase
totalmente a sua oportunidade (2).
C1) Vide D ia rio cit., p. 66, 2.a col.
(2) O Código Penal de 1852 foi o resultado excluviso dos trabalhos levados a bom
termo pela Comissão para o efeito nomeada em 1845.
Conforme vimos (cfr. supra, nota 1 de pp. 479 a 482), depois de várias tentativas infru
tíferas para a elaboração dum Código Civil e dum Código Penal, foi para esse duplo fim
nomeada, por Decreto de 10 de Dezembro de 18 45, uma Comissão de 6 membros, presidida
pelo M inistro da Justiça.
O artigo 3.° do referido Decreto mandava que a Comissão, nos seus trabalhos,
desse preferência à elaboração do Código Penal, «como absolutamente indispensável, para
que se possa quanto antes propor às Cortes a approvação delle»; mas, ao cabo de quatro
anos e meio — mercê das precaríssimas condições em que foi obrigada a trabalhar,
sobretudo determinadas pela Revolução da M a ria da Fonte (15 de Abril de 1846) e pela
guerra c iv il que se lhe segu iu — , a Comissão nem sequer da primeira incumbência
(elaboração do Código Penal) tinha dado conta.
As coisas mudaram, a partir do Decreto de 8 de Agosto de 1850 (v. D iario do
G overno , n.° 186, de 9 de mesmo m ês, p. 971, 2.a e 3.a cols.), que encarregou o juiz da
Relação do Porto A ntónio L uís de S eabra «de redigir o Projecto do novo Codigo Civil
portuguez» e que, em consequência disso (artigo 3.°), determinou que «a Commissão creada
por Decreto de 10 de Dezembro de 1845» ficaria «alliviada da redacção do Projecto do
Codigo Civil».
«Aliviada» do encargo de redigir o projecto de Código Civil, era ponto de honra
para a Comissão de 1845 concluir, ao m enos, o Projecto de Código Penal, o que veio
efectivamente a fazer, apresentando o respectivo texto ao Governo em 30 de Setembro
de 1852, acompanhado dum pequeno relatório, assinado pelos únicos três membros
(dos 6 inicialmente nomeados) que acompanharam os trabalhos até ao fim: M anuel
D uarte L eitão, José M áximo V asconcelos e José M aria S ilveira da M ota .
N esse breve relatório (que foi publicado na folha oficial e vem transcrito em
S ilva F errão, ob. e voi. cits., p. L X V II a L X X ), os três signatários apontam como
causas da demora dos trabalhos da Comissão «os graves acontecimentos politicos do paiz
neste intervallo, o chamamento de dois de seus membros aos conselhos de Vossa M agestade,
e outros m otivos extraordinarios»; explicam que as reuniões da Comissão foram frequen
temente interrompidas, «sendo-o de uma vez por vinte e seis m ezes, de outra por dezenove,
e de outra por oito»; e elucidam que à maior parte das sessões não compareceram «senão
os tres vogaes signatarios do presente relatorio, e do projecto que o acompanha» (cfr. loc . cit.,
pp. L X V II-L X V III).
A urgência da publicação dum Código Penal era tão premente que o Governo não
cuidou de mandar fazer quaisquer revisões ou aperfeiçoamentos no projecto que acabava
de ser-lhe apresentado; pegou nele e transformou-o, sem mais, em lei geral do país, por
D ecreto ditatorial de 10 de Dezem bro de 1852, rubricado pela Rainha e assinado por

500
O Código Penal de 1852, apesar de todos os seus defeitos, represen
tava mais um passo importante dado no caminho da abolição total da pena
màxima. Dentro da orientação traçada pelo Acto Adicional — e apesar
de continuar sem regulamentação o que devia entender-se por «crimes
políticos» para os efeitos aí previstos—, o Código tomava a iniciativa de
rejeitar a pena de morte nos crimes de rebelião (x); e, quanto aos crimes civis,
S a l d a n h a , R o d r ig o d a F o n s e c a , F o n t e s P e r e ir a d e M e l o e A n t ó n i o Je r v is d e A t o u g u i a .
O Decreto vinha precedido dum brevíssimo relatório (que se encontra igualmente trans
crito na obra de S il v a F e r r ã o , voi. c it ., pp. L I-L III), no qual se prestava home
nagem aos respectivos autores, «Jurisconsultos tão eximios quão zelosos» e no qual se
declarava que no Código estava «consignado, com precisão e clareza, quanto pareceu
melhor, em vista não só das regras que a justiça universal tem prescripto para a quali
ficação dos crimes, e para a graduação das penas, senão também das doutrinas mais appli-
caveis á indole, tendencia e hábitos da nação; mais adequadas ao systema constitucional
da Monarchia; e mais seguidas nos differentes Códigos Penaes, até agora publicados»
(cfr. loe. c it., pp. L I-L II).
O Decreto de 10 de Dezembro de 1852, que promulgou o Código Penal, foi
publicado, conjuntamente com os já citados relatórios (da Comissão e do Governo),
no D iario do G overno , n. 304, de 24 do mesmo mês e ano (pp. 1369, 1.a, 2.a e 3.a cois.),
N o mesmo número do D iario do G overno se iniciou a publicação do texto do Código
(até ao artigo 129. ), que depois foi continuada no D iario do G overno dos dias 2
(artigos 130. a 32 .«), 28 (artigos 328.« a 420.«) e 29 (artigos (421.« a 48 .«).
As Cámaras legislativas, urna vez restabelecida a normalidade constitucional,
sancionaram o Decreto ditatorial de 10 de Dezembro de 1852 e o Código por ele aprovado
— não sem que o caso suscitasse viva discussão — pela Carta de Lei de 1 de Junho de 1853
(v. D iario do G overno , n. 128, de 3 do mesmo mês, p. 41, 1.a col. curioso que esta
Carta de Lei foi primeiro publicada com a data errada de 31 de M aio, no D iario do G overno ,
n. 12 , de 2 de Junho de 1853, p. 35, l.a e 2.a cols., tendo o erro sido rectificado logo
no D ia rio do G overno do dia imediato).
Sobre toda a matéria desta nota, v. F r a n c is c o A n t o n i o d a S il v a F e r r ã o , ob.
e voi. cits. , pp. L I e ss.; B a s il io A l be r t o d e S o u s a P i n t o , L ições cits., pp. 32-33;
H e n r iq u e s S e c c o , ob. cit. (na R ev. de L eg. e J p r.y ano IV) p. 583; e H e n r iq u e s d a S il v a ,
ob. e voi. cits. y pp. 65 a 68.
0 ) A fixação, por via legislativa, do elenco dos crimes que deviam considerar-se
«políticos» foi prometida, como vimos (cfr. supra , nota 3 da p. 498), pelo próprio A cto
A dicion al , ao dizer, no artigo 16.«, que «é abolida a pena de morte nos crimes politicos,
os quaes serão declarados por um a lei ». A verdade, porém, é que o assunto continuava por
regulamentar; e nem a Comissão elaboradora do Projecto de Código Penalnem o Governo
que o transformou em lei quiseram assumir a responsabilidade de se pronunciar, em
matéria tão delicada, limitando-se a suprimir a pena de morte para os crimes de rebelião.
Eis o que diz, a propósito, o relatório da Comissão: «O Acto addicional á Carta Consti
tucional, decretando a abolição da pena de morte nos crimes politicos, reservou para uma
lei a declaração de quaes são esses crimes; e em consequência a commissão, sim, se absteve
de fazer enumeração ou classificação de crimes politicos; mas pensou conformar-se com
o espirito da disposição do Acto addicional, rejeitando a pena de morte nos crimes de

501
depois de lamentar, no respectivo relatório, «não ser chegado ainda o
tempo, em que a pena de morte possa ser de todo eliminada nas nossas
leis penaes» 0 , limitava-se a consagrá-la para os casos extremos da
traição à pátria, crime de lesa-majestade, e homicídio voluntário quali
ficado 0 .
rebellião» (Cfr. S il v a F e r r ã o , oh. e voi. cits., p. L X X ). O mesmo diz, m u tatis m utandis,
o relatório do Governo, acrescentando que «também os M inistros de Vossa M agestade
intendem que este assumpto deverá ser tractado em Cortes, apresentando-se-lhes em sua
próxima reunião a competente proposta de L ei, a fim de que a generosa disposição do
artigo 16.° do Acto addicional se complete quanto antes como cumpre» (cfr. ibidem ,
p. L X X II).
C1) As palavras transcritas são do relatório da Comissão elaboradora do projecto
(cfr. S il v a F e r r ã o , ob. e voi. cits., p. L X X ). Em termos semelhantes se exprime o relatório
do Governo: «Forçoso é porém, como reconhecem os M inistros de Vossa M agestade com
os vogaes da commissão, que na escala das penas estabelecidas neste Codigo se conte ainda
a de m orte, posto que mui limitada e circunscripta. É comtudo de esperar, attento o
nosso progressivo estado de civilisação, que não virá longe o dia em que a pena capital
possa de todo ser abolida entre nós» (cfr. ibidem , p. L X X II).
(2) É no artigo 29.° do Código Penal de 1852 que a pena de morte aparece indi
cada logo à cabeça da lista hierárquica das penas aplicáveis: «As penas maiores são:
1. A pena de morte;...» E o artigo 32.°, logo em seguida, estabelece que «a pena de
morte consiste na simples privação da vida», excluindo, assim, toda a espécie de tormentos
e crueldades que no antigo direito acompanhava, por vezes, a execução.
Em compensação, o Código não prescinde ainda dos gravosos efeitos civis que o
velho direito fazia resultar da sentença capital. Assim: — N o artigo 52.°, estabelece que
«o condemnado á pena de morte perde todos os direitos politicos ; e bem assim a proprie
dade, posse e administração de todos os bens, que immediatamente passam aos seus
successores legitimos», acrescentando no § único que não «póde fazer testamento, sendo de
nenhum vigor o que já tiver feito». E, no artigo 53.°, declara que o condenado à morte
(assim como o condenado a qualquer das penas perpétuas de trabalhos públicos, prisão
ou degredo) «perde egualm ente... o direito á protecção das leis civis para exercer aucto-
ridade a respeito de sua mulher, e de seus filhos; e não póde ser testemunha, excepto
para dar simples informações á justiça; e nos negocios judiciaes é considerado como as
pessoas, que a lei declara incapazes de se regerem».
Entre as disposições gerais respeitantes à pena de morte no Código Penal de 1852,
merecem ainda especial referência as seguintes: o artigo 71.°, segundo o qual «a pena
de morte não poderá em caso algum ser applicada aos menores de dezassete annos»;
o artigo 78.°, § l.°, que, a propósito de circunstâncias agravan tes, estipula que «a pena
de morte não se aggrava em caso algum»; o artigo 81.°, que, a propósito de circunstân
cias atenuantes, declara que, se as houver, «a pena de morte será substituida por qualquer
das penas perpetuas de trabalhos públicos, prisão ou degredo»; e o artigo 91.°, que se
refere com suficiente pormenor à forma da execução: «A pena de morte será executada
na forca, em logar publico da cidade ou villa em que for proferida a sentença, ou da
comarca em que tiver sido commetido o crime, como a sentença declarar, precedendo
e concorrendo os actos e formalidades necessários para que haja a maior publicidade.
5 l.°: Não se executará a pena de morte nos domingos, dias sanctos, semana sancta, e dias

502
Era, assim, tudo quanto ficava restando, teoricamente, em matéria
de pena de morte, depois desta importante reforma legislativa; e dizemos
«teoricamente», porque, na prática, tendo já passado seis anos sobre a
última execução, a pena capital encontrava-se já realmente abolida.
18. Faltava vencer esta última tirada, na longa marcha vitoriosa
do movimento abolicionista. E não seria difícil.
O Código Penal de 1852, promulgado em ditadura na base dum
projecto concluído três meses antes e que nem sequer chegara a ser devi
damente revisto, não agradara a ninguém; e foi tal o clamor da opinião
pública e do próprio Parlamento contra os seus múltiplos defeitos 0 que,
menos de meio ano volvido, já o Governo nomeava uma comissão para
o rever e propor as alterações, emendas e substituições que nele devessem
fazer-se (2).
de gala. § 2.°: Os corpos dos suppliciados serão entregues aos seus parentes, se os recla
marem, para lhes fazerem o enterramento sem pompa alguma». Finalmente, também
o artigo 124.°, depois de estipular que «as penas perpetuas impostas por sentença passada
em julgado, não se prescrevem em tempo algum», acrescenta que, no entanto, «passados
20 annos, a pena de morte será substituida por qualquer das penas corporaes perpetuas».
Os crimes a que o Código Penal de 1852 manda aplicar a pena de morte são, como
se diz no texto, os de traição à pátria (artigos 141.° e 143.°, § único); atentado contra a
vida do rei ou rainha reinante (artigo 163.°); homicidio consumado ou frustrado do regente
ou regentes do reino (artigo 163.°, § 2.°) ou de qualquer membro da família do rei (artigo 166.°) ;
homicídio voluntário em que concorram determinadas circunstâncias agravantes (artigo 351.°);
envenenamento (artigo 353.°); parricídio (artigo 355.°); infanticídio (artigo 356.°); e fogo
posto que ocasione a morte de alguma pessoa que se encontrava no lugar incendiado
(artigo 469.°).
Servim o-nos, para as transcrições feitas atrás, da oitava edição do Código citado
(Coimbra, Imprensa da Universidade, 1905).
0 ) V. S ilva F errão, ob. e voi. cits., pp. L X ss.; S ousa P into, Lições cits., p. 33;
L evy M aria Jordão, Relatorio da Commissão cit., p. 13; Secco, ob. e vol. cits., p. 583;
e H enriques da S ilva, ob. e vol. cits., p. 72.
(2)Foi por Decreto de 6 de Junho de 1853 — cinco dias apenas, portanto, após
a ratificação do Código Penal pelas Cortes (cfr. supra, nota 1 de pp. 500-501, infine) que
foi nomeada uma Comissão para proceder «com brevidade e diligencia... ao escrupuloso
exame do dito Codigo». Determinava-se nesse Decreto que a referida Comissão, «reconhe
cendo que ha nelle artigos em que devam fazer-se alterações, emendas, ou substituições,
formará de tudo uma proposta de lei, para ser apresentada às Cortes». A Comissão era
«presidida pelo M inistro e Secretario de Estado dos negocios Ecclesiasticos e de Justiça,
e composta dos Pares do Reino, Joaquim A ntonio de A guiar, e F rancisco de Paula
de A guiar O ttolini, dos Conselheiros Basilio A lberto de S ousa P into, e R odrigo
N ogueira S oares, do lente da faculdade de direito, Justino A ntonio de F reitas, e do
advogado G aspar Joaquim T elles da S ilva, que servirá de secretario». Esta Comissão
de 7 membros deveria reunir, segundo o mesmo Decreto, «com os tres collaboradores

503
O ambiente era propício, portanto, a urna nova campanha em favor
da abolição total; e nela vão sobressair, na década 50-60 — enquanto a
Comissão de reforma, eia pròpria várias vezes «reformada», protelava deses-
perançosamente os seus trabalhos Q) —, dois grandes nomes das letras jurí-
do Codigo penal, M anoel D uarte L eitão, Par do Reino; José M aximo de Castro
N etto L eite e V asconcellos, do M eu Conselho; e José M aria da Costa S ilveira da
M otta, advogado» (Cfr. Diario do Governo, n.° 136, de 13 de Junho de 1853, p. 797,
2.a e 3.a cols.).
A instâncias desta Comissão de reforma do Código Penaly foi expedida pelo M inis
tério dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça uma Portaria, com data de 10 de Julho de 1854,
a ordenar «que o conselheiro presidente do Supremo Tribunal de Justiça... comprehenda
no relatorio annual, que até trinta de Dezembro deve apresentar no M inisterio da Justiça,
as ponderações ou observações, que se lhe offerecerem sobre cada um dos pontos que
ficam indicados». E esses «pontos indicados» eram os de «saber quaes... os inconvenientes
ou estorvos que se encontram na execução do Cod. Pen. Portug., se elles provém da falta
do Cod. de processo criminal, ou de outros motivos; e se importa fazer alterações, emendas
ou substituições em alguns artigos do referido Cod. Pen.». Esta Portaria foi expedida depois,
como «circular», a todos os tribunais do R eino, segundo informam S ilva F errão (ob. e
voi. cits., p. L X III, de onde copiámos os passos a qui transcritos), Basilio de S ousa
P into (ob. cit., p. 33) e H enriques da S ilva (ob. e vol. cits., pp. 72-73).
C1) Que em 1856, três anos volvidos sobre a sua nomeação, ainda a Comissão de
reforma nada tinha feito testemunha-o S ilva F errão, no citado vol. I da sua Theoria do
Direito Penal, nesse ano vindo a público (p. L X I).
Por Decreto de 30 de Dezem bro de 1857 — cinco anos exactos sobre a promul
gação do Código — , era a Comissão de reforma profundamente remodelada, depois de
se reconhecer não ter «a referida commissão chegado a apresentar seus últimos traba
lhos, em consequência de que a maior parte dos vogaes ou falleceram, ou se ausentaram
ha muito da capital por m otivo justificado». A nova Comissão nomeada tinha «por
Presidente o Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, Joaquim A ntonio de A guiar,
Par do Reino; e por vogaes o Conselheiro do mesmo Supremo Tribunal, F rancisco
A ntonio F ernandes da S ilva F errão, Par do Reino; o Conselheiro José M aximo de
Castro N etto L eite e V asconcellos, Juiz da Relação de Lisboa; o Conselheiro
R odrigo N ogueira S oares, Ajudante do Procurador Geral da Corôa junto ao M inisterio
das Obras Publicas; e o Doutor L evy M aria Jordão, Advogado, o qual será o Secre
tario» (Cfr. Diario do Governo, n.° 3, de 4 de Janeiro de 1858, p. 9, 2.a e 3.a cols.).
Em vez dos 10 membros iniciais (cfr. supra, nota 2 de pp. 503-504), a Comissão de
reforma ficava, assim, reduzida a 5: três da Comissão primitiva (A guiar, L eite e
V asconcellos e N ogueira S oares); e dois novos (S ilva F errão e L evy M aria Jordão).
Finalmente, um Decreto de 3 de Fevereiro de 1858 aceitou o pedido de exone
ração de Joaquim A ntónio de A guiar, L eite e Vasconcelos e N ogueira S oares de
membros da Comissão (justamente os 3 que tinham transitado da velha para a nova
Comissão) e nomeou, em sua substituição «para Presidente, o Conselheiro do Supremo
Tribunal de Justiça A ntonio de A zevedo M ello e Carvalho, e para Vogaes, o Juiz
da Relação de Lisboa José A ntonio F erreira de L ima, e o Ajudante do Procurador
geral da Corôa Joaquim Pereira G uimarães» (cfr. Diario do Governo, n.° 33, de 8 de
Fevereiro de 1858, p. 161, 2.a col.).

504
dicas portuguesas: o Conselheiro Francisco Antonio Fernandes da Silva
Ferrão, juiz do Supremo Tribunal de Justiça e sócio efectivo da Academia
Real das Ciências 0 , e o Doutor Antonio Ayres de Gouveia, ao tempo ainda
jovem e esperançoso candidato ao professorado da Faculdade de Direiro
de Coimbra, de que viria a ser, mais tarde, brilhante ornamento (2).
Silva Ferrão publica em 1856 os dois primeiros volumes da sua extensa
obra «Theoria do direito penal, applicada ao Codigo Penal Portuguez»,
em cuja introdução se faz eco dos clamores gerais contra o Código de 1852,
para depois, em comentário artigo por artigo, desenvolver as suas críticas
e apresentar as suas sugestões, com vista a uma reforma mais aceitável
da nossa lei penal. É nessa obra, em comentário ao artigo 29.° do Código
— onde a pena de morte figura à cabeça da lista hierárquica das penas
aplicáveis —, que Silva Ferrão disserta largamente sobre o tema da pena
capital, tomando contra ela posição intransigente e implacável. As 37 paginas
que consagra ao tema constituem, sem favor, a dissertação mais completa
e mais séria que até então se publicara em Portugal a respeito da pena
última, onde todos os argumentos de ordem filosófica e criminalística
acerca da pena de morte são passados em revista, para se concluir firme
mente que tal pena não se justifica nem é já necesásria (3). E o peso da opinião

0 ) F rancisco A ntónio F ernandes da S ilva F errão (n. 1798; m. 1874) apre


sentou à Academia Real das Ciências de Lisboa, o seu conhecido comentário ao Código
Penal de 1852 (Theoria do direito penal, applicada ao Codigo Penal Portuguez), cuja
publicação iniciara em 1856; e foi eleito sócio efectivo da Academia em sessão de 1 de
Abril de 1862.
(2) Sobre a personalidade de A yres de G ouveia, veja-se a notícia necrológica que
veio publicada no Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, ano IV
(1917-1918), pp. 579-580.
(3) É de pp. 17 a 53 do vol. II da ob. cit. que S ilva F errão trata do problema
da pena de morte, começando logo por se manifestar frontalmente contra ela : — «A morte
do cidadão não deveria ser admittida, como elemento de penalidade, em Cod. algum
criminal de paiz livre e civilisado. Esta é a nossa firme opinião, estes os nossos votos.
Confiámos, que tanto a philosophia, como os bem entendidos interesses da sociedade, hão
de proscrever, para sempre, um dia, o assassinato legal» (cfr. ibid., p. 17).
Nas páginas imediatas, depois de reproduzir os argumentos clássicos (desde B eccaria)
contra a pena de morte, S ilva F errão insiste num ponto pouco focado pelos outros
autores, que é o da lição que se tira, para a desnecessidade da pena capital, da abolição
de facto resultante da sistemática comutação da pena máxima pelo poder real: «Em quasi
toda a parte do mundo civilisado, em que ainda se conserva a pena de morte, é consi
derável o numero dos condemnados, a quem o Poder Real commuta essa pena, e, com
tudo, se as sociedades tem corrido algum risco da commutação, é porque, longe de se
verificarem outras penas, que tornem inoffensivos os criminosos, os habilitam á perpe-
tração de novos crimes. Entre nós, são tão poucos os casos de execução á pena ultima,

505
do velho e prestigioso conselheiro havia, por certo, de contribuir não pouco
para a abolição piena que se avizinhava (x).
Era diferente a natureza da achega literária trazida ao debate em 1860 por
Ayres de Gouveia, com o seu conhecido estudo «A reforma das cadeias em
Portugal», que havia de servir-lhe de dissertação inaugural para o acto
de conclusões magnas na Universidade de Coimbra (2). Mais literato e retó
rico do que jurista, mais emotivo e idealista do que seco intérprete e crítico
das leis (3), Ayres de Gouveia perde pouco tempo a analisar argumentos a
que quasi se pode dizer abolida de facto, e com tudo sabem todos, que é não d’ahi, que vem
as desgraças da nossa situação, quanto á segurança dos cidadãos» (cfr. ibidem, p. 20). E mais
adiante: «E, em verdade, se o poder M oderador póde, se de facto tem podido, exercer,
em tão larga escala, as suas attribuições na commutação da pena de morte, é m uito
evidente, que essa chamada pena não é necessaria. O que é de necessidade não se dispensa,
não póde ser dispensado; quando ella bate à porta, foge a virtude pela janella; ou, antes,
a necessidade social, quando é real, converte-se em virtude; e, se a pena de morte não era
necessaria em todos os casos, attendidos pelo Rei, a lei, e os tribunaes, teriam concorrido
para um assassinato jurídico, se a execução da Justiça não ficasse frustrada pela clemencia
do Rei. Ou o exercicio actual do Poder Real é um abuso, ou a pena, que não é legitima,
se não em tanto, quanto é necessaria, é injusta. A primeira parte do dilemma é inadmis
sível, resta, pois, a segunda» (cfr. ibidem, p. 21).
Outro ponto importante da sua exposição é aquele em que procura demonstrar
que à pena de morte lhe faltam «os caracteres essenciaes da penalidade; porque: l.° N ão
é divisível... 2.° N ão é exemplar... 3.° Não é moralisadora nem instructiva... 4.° N ão é
reparavel, nem remissivel... 5.° N ão é reformadora... 6.° Finalmente, é anti-religiosa...»
(cfr. ibidem, pp. 39-40). Depois de desenvolver cada um desses aspectos e de concluir,
mais uma vez, pela inadmissibilidade da pena capital, S ilva F errão consagra as restantes
páginas do seu comentário ao n.° l.° do artigo 29.° do Código ao estudo do problema da
pena sucedânea (ibidem, pp. 40 a 53), pronunciando-se em favor da pena de prisão, cumprida
em cadeias penitenciárias.
0 ) S ilva F errão, conforme vimos (supra, nota 1 da p. 504), foi um dos 5 membros
da Comissão nomeada por Decreto de 30 de Dezem bro de 1857 para proceder à revisão
do Código Penal de 1852, o que é expressão viva do seu prestígio e do peso das suas
opiniões em matéria de direito criminal. D eve notar-se, no entanto, que não acompa
nhou os trabalhos da Comissão até ao fim, pois o relatório que a mesma Comissão
apresentou ao Governo com data de 4 de Julho de 1859 foi assinado apenas por 4
dos 5 membros inicialmente nomeados: M ello e Carvalho (presidente), F erreira
L ima, P ereira G uimarães e L evy M aria Jordão (secretário e relator) (cfr. o cit. Codigo
Penal Portuguez, tomo I — Relatorio da Commissão, Lisboa, 1861, p. 212). Ignoramos
quando e por que motivos abandonou S ilva F errão os trabalhos da Comissão de Reforma
a que pertencia.
(2) A reforma das cadeias em Portugal. Resposta ao ponto proposto pela Faculdade
de Direito da Universidade de Coimbra «Como devem ser entre nós reformadas as cadeias?»
por A. A yres de G ouvêa. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1860.
(3) Confirmam-no logo estas palavras do prefácio, que constituem um verdadeiro
auto-retrato do autor: «Eu fui sempre de pôs (sic) o coração e a cabeça. Não segui os

506
respeito da pena de morte e procura antes impressionar o leitor com uma
vigorosa e quase panfletária diatribe contra a pena última 0 , tirando partido
dos erros funestos a que a sua aplicação pode dar lugar a da descrição em
cores vivas e quase melodramáticas da figura, do papel e da personalidade
do carrasco, a que consagra um capítulo inteiro da sua dissertação, sob a
epígrafe, já de si excitante, de «acessórios do homicidio legal» 0 .
Embora assim muito diferente do estudo sereno, objectivo e bem
informado de Silva Ferrão, o vibrante contributo de Ayres de Gouveia
para o movimento abolicionista não seria, porém, menos eficiente. Pelo
contrário, dado o feitio sentimental e emotivo do povo português, as pala
vras que Ayres de Gouveia consagrava à pena de morte na sua dissertação
tractadistas, nem lhes vindimei as suas vinhas. Antes de principiar, fechei-lhes as obras...»
.
(cfr. ob cit.y p. 7).
C1) É no Capítulo V da sua dissertação (Penas actuaes. — Projecto de lei contra
devedores extrangeiros) que Ayres de G ouveia toma frontalmente posição contra a pena
de morte. Para confirmação do que dizemos no texto sobre o estilo retórico e quase
panfletário do autor, vale a pena transcrever aqui as primeiras frases do referido capítulo:
«A pena de m orte... horror! O hom em usurpando a D eus as suas attribuições,
á natureza os seus direitos, ao progresso o seu curso, e fríamente, conscienciosamente,
covardemente.
Despotas, legisladores, juizes, carrascos, fuziladores, prosegui na vossa obra de
destruição, de exterminio, que não extinguireis o assassinato, o roubo, o crime, sem
anniquilardes a natureza humana, a humanidade. O vicio está n ’ella, e revelae-lo vós
mesmos. Que outra coisa sois vós, se não assassinos? Que outra coisa evidenceia a vossa
ferocidade no pedir o sangue e a cabeça do criminoso, se não o vicio sanguinario da
vossa organisação?
Hypocritas! sois como o pae que tem prazer em lacerar as carnes do filho a titulo
de castigo. Decepae, decepae cabeças e cabeças de delinquentes; hão de pulular-vos,
como as da hydra de Lerne.
E daes a esse pasto, que vos delicia os instinctos, o sancto nom e de pena!*
.
(Cfr. ob cit.y p. 59).
O autor procura seguidamente, em sucessivas alíneas — aliás, sem grandes desen
)
volvimentos — , demonstrar que a pena de morte: «a) Não é divisível... b Não é correc
)
cional... c Não é apreciável... d) Não é exemplar... e) Não é duradoura... / ) Não
é popular... g) N ão é reparavel... h) Não é rem issivel... i) Não é egual... j) Não
é moralisadora... I) Não é analoga... m) Não é proporcional...» (cfr. ibideniy pp. 60-61).
É de notar que, no mesmo capítulo da sua obra, logo após ter tratado da pena de
morte, A yres de G ouveia toma também posição intransigente contra a pena de trabalhos
perpétuosy assim como contra qualquer pena vitalícia (v. ibidemy p. 62).
(2) É o capítulo VI da ob. cit. (pp. 73 a 83). Outro contributo importante de A yres
de G ouveia para o movimento abolicionista foi a publicação, em apéndice a este seu
trabalho, duma tradução — por eie pròprio feita — duma Memoria em favor da abolição
da pena-de-mortCy endereçada pelo Dr. Felix Voisin, medico geral do hospicio de alienados
de Bicêtrey aos representantes do povo3 em 1848 (ob. cit.y pp. 183 a 202).
507
doutoral, logo lidas e apreciadas por quantos neste país tinham algum
peso na marcha dos sucessos políticos, não podiam deixar de ter uma
influência decisiva na marcha dos acontecimentos. E tiveram. Elas foram,
verdadeiramente, a sentença de morte... da pena de morte em Portugal 0 .

C1) H á-de notar-se, porém, que o m ovim ento abolicionista suscitava ainda, a essa
data, importantes reservas da parte de elementos destacados do pensamento jurídico
português. T al é o caso, designadamente, do professor de direito penal da Faculdade
de Direito da Universidade de Coimbra B asílio A lberto de S ousa P into, que, nas suas
Lições de Direito Criminal Portuguez (Coimbra. Imprensa da Universidade, 1861), toma
uma posição bastante original sobre o problema.
Abordando a questão da pena de morte, S ousa P into começa por repudiar os
argumentos extraídos da ideia de contrato social, quer contra a legitimidade da pena
máxima (Beccaria), quer em seu favor (R ousseau e M ably): «Nós porém, nem appro-
veitâm os este argumento do pacto social para impugnar a legitimidade da pena de
morte, como fez B eccaria, nem tão pouco o approveitâmos com as subtilesas de
M ably e R ousseau, para defender essa legitimidade. Negám os a existencia d’esse
pacto, e assim derribámos a uns e outros, sem nos importar outras respostas, que aliás
teriam logar. N ós entendemos que a sociedade não é filha de convenção, não é obra
que estivesse na mão do hom em fazer ou deixar de fazer; é um producto da natureza,
e uma consequência necessaria da natureza social do hom em ; e por conseguinte a
auctoridade pública é exercida, não em virtude d’alguma convenção, mas porque
deriva da mesma natureza da sociedade» (cfr. ob. cit. p. 105). E seguidamente
passando à análise de outras razões de ordem teórica invocadas pelos abolicionistas — com o,
por exemplo, a inviolabilidade da vida humana, a irreparabilidade da pena capital, a sua
inadequação à ideia de correcção do delinquente, etc. — , procura do mesmo modo desem
baraçar-se delas e afastá-las do seu caminho (aliás, sem uma análise em profundidade
(v. ob. cit., pp. 105-106 e 108-109).
Concluindo pela legitimidade da pena de morte no plano teórico, B asílio A lberto
de S ousa P into vai enfrentar depois o problema — e nisto coincide com a generalidade
dos criminalistas anteriores, desde B eccaria — no plano pragmático e utilitarista, apre
ciando se ela é eficaz e se ela é necessária :
— Quanto à questão de saber se a pena capital é eficaz, toma franca e firme posição
contra a sua aplicação nos crimes políticos, espraiando-se em considerações para dem ons
trar que ela, nesse domínio, «é inefficaz» e louvando a lei francesa de 25 de Fevereiro
de 1848, que a aboliu para esses crimes (sem no entanto se referir — o que causa bastante
estranheza — à abolição já verificada a esse respeito, também em Portugal, desde 1852);
mas diz, logo de seguida, que «para os outros criminosos não é assim», sustentando, pois,
a eficácia da pena no que toca à repressão dos crimes comuns (v. ob. cit., pp. 107-108).
— Quanto à questão de saber se a mesma pena é necessária, toma S ousa P into
uma posição subordinada às contingências do progresso dos tempos e da civilização,
entendendo que há-de chegar a ocasião em que possa ser abolida sem inconveniente,
mas que, de m om ento, entre nós, ainda não deve sê-lo: «Porisso entendemos que será
melhor ir andando com os tempos. Assim como nós hoje reprovámos já a pena de
morte cruel, assim também confiámos em que ha de vir tempo em que seja reprovada
por desnecessária a pena de morte simples. M as em quanto esse tempo não chega, não a

508
19. Para começar, tiveram logo as palavras de Ayres de Gouveia
este efeito importante: levar os homens da comissão de reforma do Código
Penal, que entretanto tinham conduzido a bom termo a sua tarefa, a riscar
inteiramente do seu projecto a pena de morte.
O projecto, na sua primeira versão, saíra a lume em 1859, precedido
dum notabilíssimo relatório de Levy Maria Jordão — ao tempo já doutor
em Direito pela Universidade de Coimbra e sócio efectivo da Academia
das Ciências e, mais tarde, agraciado com o título de Visconde de Paiva
Manso (1). Contra toda a expectativa, porém, ainda consagrava a pena de(*)
devemos riscar da legislação; devemos só ir fazendo experiencias: e é isto o que na reali
dade fazem os governos» (cfr. ibidem, pp. 110-111).
Aquilo a que Basílio A lberto de S ousa P into aqui chama «ir fazendo expe
riencias» consistiria em admitir a pena de morte na lei e fazer dela um escasso ou nulo
uso prático, quer através duma ampla atribuição de poderes ao júri para prescindir
dela (como se vinha então fazendo em França), quer através dum recurso obrigatório
à clemência régia, quase sistemàticamente deferido pelo monarca (como vinha sucedendo
na Bélgica e como acontecia também, a esse tem po, entre nós, conforme vimos supra,
nota 1 de pp. 487-489 e notas ss.) (v. ibidem, pp. 111-112).
(*) a) Logo que terminou a l . a parte do seu Projecto de Códig oPenal, apressou-se
a Comissão a enviar o trabalho ao Governo, com um Relatório datado de 4 de Julho
de 1859 (cfr. a informação dada nesse sentido por A yres de G ouveia, Theses ex universo
jure selectae... pro laurea doctorali obtinenda, Conimbricae, M D C C C L X , p. V III; Basilio
Alberto de S ousa P into, ob. cit., p. 33; e H enriques Secco, ob. e vol. cits., p. 583).
T em data de 10 de Agosto de 1859 o ofício do presidente da Comissão (Conse
lheiro A ntónio de A zevedo de M ello e Carvalho) a enviar ao Governo aquela
i . a parte do Projecto do Código e o referido Relatório de 4 de Julho. Está publicado
esse ofício em apêndice (Docum ento n.° 2) à edição de 1861, repetidas vezes aqui citada,
do Projecto a que nos referimos (Codigo Penal Portuguez. Tomo I. Relatorio da Commissão,
Lisboa, Imprensa Nacional, 1861, pp. 210 a 212).
Por Portaria de 21 de Setembro de 1859, foi dado público louvor aos membros
da Comissão elaboradora do Projecto e signatários do respectivo Relatório: Conselheiro
M ello e Carvalho (presidente) ; F erreira L ima e Pereira G uimarães (vogais) ; e dr. L evy
M aria Jordão (secretário e relator) (publicada ibidem, p. 212).
b) Foi feita uma larga divulgação desse Projecto da La parte do Código e do Rela
tório de 4 de Julho de 1859, não só no país como no estrangeiro, tendo-se recolhido sobre
ele importantes depoimentos (designadamente de B onneville, Ortolan, M ittermaier,
H aus, B osellini, Carlos L evita, etc.), (publicados ibidem, pp. 183 a 209). Com as
sugestões recebidas e com o fruto das suas próprias reflexões, elaborou a Comissão — agora
já reduzida apenas a três dos seus cinco membros iniciais (M ello Carvalho, F erreira
L ima e L evy M aria Jordão) — uma nova edição, quer da La parte do Projecto quer do
respectivo Relatório, agora datado de 3 de Março de 1860 (cfr. H enriques S ecco, ob.,
vol. e p. cits.), de tudo fazendo entrega ao Governo em 18 de Junho do mesmo ano
(cfr. o respectivo ofício de remessa, assinado pelo presidente da Comissão, na cit. ed.
de 1861, a pp. 212-215).
Tam bém esta segunda versão da i . a parte do Projecto e do respectivo Relatório

509
morte e mandava executá-la públicamente, à maneira tradicional, para inti
midação e exemplo de todos 0 .
Ayres de Gouveia, no seu livro já citado, lamenta que uma obra que
qualifica de «tão prima e irrivalisada em tantos pontos» se mostre a este
respeito tão obsoleta (*2). E que a sua voz foi ouvida revela-o a circunstância
de a edição definitiva do projecto, saída no ano imediato (1861) (3), suprimir
a execução pública (4) — embora sem coragem ainda para suprimir a própria
mereceu público louvor pela Portaria de 30 de Junho de 1860 (publicada ibidemy
pp. 215-216).
c) Finalmente, em 1861, estava concluído o Projecto completo; e dele se fez,
então também, uma edição completa, que é a que temos vindo a citar e que consta de
2 volumes: Tom o I — Relatorio da Commissão ; e Tom o II — Projecto da Commissão.
O Relatório tem data de 20 de Outubro de 1961; e é assinado pelos já referidos três
membros a que a Comissão se achava reduzida (cfr. ob. cit.y p. 176).
Tal como as duas anteriores versões parcelares, também esta versão completa foi
remetida ao Governo com um ofício do presidente (de 7 de Dezembro imediato) e mereceu
ser louvada públicamente por Portaria de 18 de Dezem bro de 1861 (cit. por H enriques
S ecco, ob.y vol. e p. cits.).
(!) Referimo-nos ao texto da primeira e segunda versões parcelares do Projecto,
de 1859 e 1860 (que são as versões citadas nas alíneas a) e b) da nota anterior).
N ão pudemos haver à mão esse texto; mas o artigo que se refere à execução pública
da pena de morte (artigo 117.°) vem transcrito por A yres de G ouveia, a pp. 83 da sua
cit. dissertação sobre A reforma das cadeias : «A pena de morte será executada em logar
público da cidade ou villa em que tiver sido proferida a sentença de l .a instancia, ou do
logar em que tiver sido commetido o crime, como a sentença designar».
(2) É contra a publicidade da execução que Ayres de G ouveia fundamentalmente
se insurge, no referido passo da sua dissertação: «Com que intuito a execução na praça
pública, e o carrasco exposto às olhadas de todos ? — Entre as máculas da nossa citada
R evisão do Codigo Penal, apresentada em 4 de Julho de 1859 ao governo de
S, Magestade, tão prima e irrivalisada em tantos pontos, não é por certo das de menor
monta a contida no artigo 117.° ordenando... ¿Por desgraça vigora ainda no ânimo dos
illustrados revisores, que a publicidade da execução aproveita para a moralisação dos
espectadores? ou foi unicamente a rotina que os levou a consingar tal disposição? Não
podemos acabar comnosco, que acceitemos a primeira: seria quasi insulto, collocando-os
muito abaixo das suas reconhecidas capacidades. Em nosso ajuizar, houve simplesmente
mão n ’isso, além do execrando costume patrio, o exemplo de França e de Inglaterra; mas
não vista nenhuma de intimidar, de civilisar, de moralisar. É impossível, absolutamente
impossível, que mirassem similhante fim...» (cfr. ob. cit.y pp. 82-83).
(3) Cfr. supra, nota 1 de pp. 509-510, alínea c).
(4) Codigo Penal Portuguezy Tom o II — Projecto da Commissão (Lisboa, 1861),
artigo 120.° (p. 47): «A pena de morte consiste na privação da vida por meio de garrote,
sem aggravação alguma. Será executada no pateo ou recinto da prisão designada na sentença,
ou em logar apropriado, e só na presença do ministerio publico, de dois escrivães, do medico
da prisãoy do sacerdote que acompanhar o condemnadoy e de doze testemunhas. U m dos
escrivães lavrará o auto, que assignará com os outros funccionarios e testemunhas,

510
pena capitai (*) —, declarando-se no relatório que «as execuções na praça
publica, longe de produzirem o effeito a que tendem, exercem sobre a
multidão a mais perniciosa influencia» (2).
e remetterá ao respectivo procurador regio. § l.° A execução não terá logar em dias
santificados, de gala ou de luto nacional. § 2.° O corpo do suppliciado será entregue aos
seus parentes, se o reclamarem».
C1) Além da disposição transcrita na nota anterior, o Projecto de 1861, na sua parte
geral, refere-se à pena de morte no artigo 85.° (enumeração das «penas dos crimes»), no
artigo 105.° (para dizer que «as penas de morte e de prisão e degredo de l .a classe não se
aggravami), no artigo 115.° (onde estabelece que tal pena «não será imposta a menores
de vinte e um annos completos»), no artigo 148.° (a fim de estabelecer que «A execução
da pena de morte suspender-se-ha: l.° Até que o poder moderador resolva a concessão
ou negação do perdão. 2.° Nas mulheres gravidas, até 60 dias depois de terminada a
gravidez») e no artigo 151.° (onde fixa as limitações de personalidade jurídica que afectam
os condenados à pena capital ou às penas de prisão ou degredo de l .a classe.)
Os crimes que o m esmo Projecto de 1861, na sua parte especial, manda punir com
a pena de m orte são apenas o homicídio qualificado (artigo 188.°) e outros que possam
indirectamente ser considerados como tais, v. g. o fogo posto com intenção de matar
(artigo 305.°).
L evy M aria Jordão, no Relatorio da Commissão que antecede o Projecto, justi
fica-se dizendo que «a comissão não ignora o que se tem dito contra a pena de m orte...
mas apesar d’isso ainda admitte em limitadissimo caso a pena capital, sem atacar, lhe
parece, os principios da philosophia penal». Em seu entender, a pena de morte pode
justificar-se quando há colisão irremovível entre a ideia de melhoramento do criminoso
e a ideia de intimidação : «n’esse caso, e só rfesse caso> e na impossibilidade de harmonia dos
dois principios, deve o primeiro, que representa o interesse do individuo, ceder ao segundo,
que representa o da sociedade» (cfr. ob. cit.3 pp. 57-58). Por outro lado, a inviolabilidade
da vida humana não é, em seu entender, argumento decisivo contra a pena de morte:
«A vida é tão inviolável aos olhos da consciencia, como os outros dons e faculdades com
que o Creador enriqueceu o hom em ; assim como a sociedade ataca, por exem plo, a liber
dade na pena de prisão, sem violar a justiça, poderá na pena de morte fazer expiar o crime
com a vida sem violar a mesma justiça, com não menos direito do que no campo da batalha
exige como meio supremo para a sua conservação o sacrifício de seus filhos, sem a accusarem
de um acto illegitimo» (cfr. ibidem, p. 58).
L evy M aria Jordão pensa, no entanto, como outros, que tudo se deve enca
minhar para um estado de maior perfeição social, em que os códigos possam prescindir
da pena de morte: «Feliz da sociedade se chegar bem depressa a epocha em que, ao dia
da dor e de luto em que ella seja forçada a exercer esse terrível direito, succeda aquelle
em que tenha de ser publicada a abolição d’esta pena, mas sem apressar a obra do tempo,
e sem obedecer sómente às emoções do coração» (cfr. ibidem, p. 59).
(2) Cfr. o citado Relatorio da Commissão, p. 59. Não oferece dúvida que foi a
«estocada» dada por A yres de G ouveia à Comissão elaboradora do Projecto, a propósito
da execução pública (referida supra, nota 2 da p. 510), que levou L evy M aria Jordão e os
seus pares a eliminá-la na versão completa do Projecto (1861), depois de a terem consa
grado nas versões parcelares do mesmo Projecto (de 1859 e 1860), pois é o próprio Jordão
quem confessa (nota 1 de p. 209 do Relatorio da Commissão) «que o nosso amigo e distincto

511
Mas as coisas não ficariam por aqui: — Numa segunda edição do
projecto definitivo, trazido a público em 1864 Q, a Comissão que Levy Maria
professor apresentou n’um trabalho, publicado no mesmo anno (A reforma das cadeias
em Portugal)> algumas judiciosas observações sobre a primeira parte do projecto, que
foram attendidas n’esta revisão final».
(*) Foi publicada esta edição, como a anterior de 1861, em dois volum es: Codigo
Penal Portuguez. Tom o I — Relatorio (Lisboa, Imprensa Nacional, 1864). T om o II
— Projecto (Lisboa, Imprensa Nacional, 1864).
O Relatorioy com data de 20 de Dezembro de 1864, embora se apresente redigido
— como anteriormente — em nome da Comissãoy é agora assinado exclusivamente por
L evy M aria Jordão (cfr. p. 181), que, aliás, desde o começo fora o grande entusiasta
e o grande fautor da obra.
Jordão explica (a p. 18 do Relatorio) que o Projecto apresentado pela Comissão
ao Governo em 1861 foi por este remetido às Cortes com data de 14 de Janeiro de 1962 e
por estas recebido em sessão de 17 de mesmo m ês e ano ; e acrescenta : «Não tendo o poder
legislativo podido discuti-lo na legislatura que findou em 1864, e tendo por isso caducado
a proposta, que deve ser renovada na próxima legislatura, aproveitou a comissão o
intervallo para ainda melhorar o seu trabalho, que agora submette á approvação de Vossa
M agestade depois de novamente revisto».
O que Jordão não diz é por que motivos o Projecto de 1861, tão auspiciosamente
recebido pelo Governo e pela opinião pública nacional e estrangeira, encravou nas casas
do Parlamento desde Janeiro de 1862 até ao termo da legislatura (1864). M as não é dilícil
de conjecturar que todo o embaraço advinha do receio dos responsáveis pelas conse
quências da transformação em lei dum Projecto tão arrojado e tão inovador, pois esse
embaraço confessa-o expressamente o Governo, numa Portaria de 23 de Outubro de 1865,
assinada pelo M inistro da Justiça B arjona de F reitas.
Dessa portaria infere-se que o Governo, a essa data, ainda não renovara a proposta
do Projecto Jordão à nova legislatura das Câmaras e que estava receoso de o fazer, por ele
conter «doutrinas que, convertidas em lei, fariam na legislação criminal do reino graves
e profundas alterações». E por isso pareceu «de muita conveniencia que o referido projecto,
não obstante a harmonia e conformidade de taes doutrinas com os progressos do direito
penal e com o estado actual d’esta sciencia, em que os membros da sobredita commissão
se mostram tão versados, sejay antes de convertido em proposta de lei pelo governoy visto e
examinado não só pelos tribunaes mais graduados da hierarchia judicialy mas pelas mais
auctorisadas corporações scientificasy que no reino se dedicam ao estudo da jurisprudencia...».
O Governo esperava, assim, colher «uteis e aproveitáveis indicações que o habilitem a
conhecer os inconvenientes que, convertidas em lei, taes doutrinas possam offerecer na
sua applicação, bem como as rasões de preferencia que possa haver para as disposições
do projecto com relação ao actual codigo» (cfr. Diario de Lisboay n.° 241, de 24 de Outubro
de 1865, p. 2385, 2.a col.).
As entidades solicitadas a emitir o seu parecer são o Supremo Tribunal de Justiça,
os Tribunais das Relações de Lisboa, Porto e Açores, a Universidade de Coimbra,
a Academia Real das Ciências e a Associação dos Advogados de Lisboa. É de notar,
pelo que toca à Universidade de Coimbra, que a Faculdade de Direito, em congregação
de 6 de Novem bro seguinte, tom ou conhecimento da portaria e nom eou uma Comissão,
composta por H enriques S ecco (lente da cadeira de direito penal), B ernardo de

512
Jordão secretariava tomaria a decisão de riscar completamente a pena
de morte da lista hierárquica das penas aplicáveis 0 . E, onde antes o relatório
de Jordão se lamentava de ainda não ser possível abolir a pena de morte,
dando a indicação das razões por que a Comissão se via forçada ainda a
consagrá-la (2), passava agora a dizer-se que a Comissão resolvera eliminá-la
do projecto, para o colocar «em harmonia com o principio do direito de
punir e com a natureza e fim das penas» e para satisfazer «ao voto do paiz que
significativamente se tem pronunciado contra a pena capital» (3).

A l b u q u e r q u e e F e r n a n d e s V a z para elaborar o parecer solicitado — incumbência de


que os referidos professores nunca chegaram a desempenhar-se (V. P a u l o M e r ê a ,
Esboço duma história da Faculdade de Direito de Coimbra, fase.0 II, 1865-1902, Parte
Geral, Coimbra, 1954, p. 5 ).
Que em 186 o Governo continuava na intenção de apresentar brevemente s
Câmaras o Projecto Jordão revela-o o relatório do projecto de Reforma Penal e das Prisões,
que o Governo apresentou ao Parlamento em 28 de Fevereiro desse ano e que havia de
converter-se na Lei de 1 de Julho de 186 (em cujo artigo l. se abolia a pena de morte).
O M inistro da Justiça B a r j o n a d e F r e it a s dá nesse relatório várias explicaç es «porque
não pareça estranho que, na mesma occasião em que o governo se propõe sujeitar ao exame
do parlamento o projecto de codigo penal, venha submetter separadamente á vossa consi
deração uma proposta de lei que naturalmente cabe e pertence ao plano d’aquelle
projecto» (cfr. Diario de Lisboa, n. 49, de 1 de Março de 186 , p. 594, 2.a col.).
A partir de 1869, parece ter-se posto definitivamente de parte a ideia de apro
veitar o Projecto Jordão como base duma reforma do nosso direito penal. D e facto, uma
Portaria de 21 de Agosto desse ano (Diario do Governo, n. 189, de 23 de Agosto,
p. 1011, 2.a col.) já se limita a mandar ouvir os magistrados judiciais e do M inistério
Público para que «apresentem, por escripto, quaesquer observaç es que ácerca da reforma
e melhoramento da lei penal, hoje em vigor, e do respectivo processo, lhes suggerirem a
sua illustração e consummada experiencia». E essa ideia duma simples «reforma e melho
ramento da lei penal hoje em vigor» foi a que prevaleceu em todas as promessas públicas
ou tentativas de reforma da lei penal, feitas daí em diante (Discurso da Coroa, de 2 de
Janeiro de 18 0; Portaria de 13 de Janeiro de 18 0, publicada no Diario do Governo,
n. 1 , de 24 do mesmo mês; Proposta de lei de Jo s é L u c i a n o d e C a s t r o , de 13 de M aio
de 18 0, com várias alteraç es parcelares da lei penal que não obtiveram seguimento; etc.).
V ., sobre estas tentativas e promessas de reforma, H e n r iq u e s d a S il v a , Lições cit.,
vol. II, pp. 99 ss.
0 Ob. cit., tomo II, p. 34; Artigo 82. : «As penas dos crimes são as seguintes:
Prisão (de 1.a, 2.a ou 3.a classe); Degredo (de 1.a, 2.a ou 3.a classe)».
A pena sucedânea da pena de morte ficava a ser a prisão de l.a classe, que o artigo
imediato definia como sendo a prisão perpétua ou por tempo indeterminado.
(2) Cfr. supra, nota 1 da p. 511.
(3) Ob. cit., tomo I, p. 64: «N’esta edição vem supprimida essa pena, que figurava
nas anteriores ediç es, e contra a qual já então me pronunciára. Fica assim o projecto
em harmonia com o principio do direito de punir e com a natureza e fim das penas;
satisfaz ao voto ao paiz, que significativamente se tem pronunciado contra a pena capital;

513
33 — II ol.
20. A verdadeira razão por que a pena de morte tinha entre nós os
seus dias contados era esta última e não quaisquer razões de ordem teórica
ou especulativa: <<o voto do paiz» pronunciava-se contra ela; e Silva
Ferrão* e Ayres de Gouveia* e agora* finalmente* Levy Maria Jordão eram
apenas porta-vozes desse anseio que estava no espírito e no sentimento
de todos os portugueses.
Os anos* porém* iam passando* sem que o projecto de novo Código
Penal de Levy Maria Jordão — aliás bem aceite pela opinião pública e
considerado muito mais perfeito do que o Código vigente — fosse dado
como definitivamente revisto para ser convertido em lei 0 . E o movimento
de opinião que exigia a abolição da pena de morte não se compadecia com
delongas. Tinha de ser tentada outra via* que não a de aguardar indefi
nidamente um novo Código Penal que nunca mais chegava.
Novamente nos surge Ayres de Gouveia como chefe de fila* nesse
buscar duma nova via para a abolição da pena capital: — Corria o ano
de 1863 e discutia-se no Parlamento este assunto prosaico mas de ordem
vital para o dia-a-dia da nação : a aprovação do orçamento. Abria a «ordem
do dia» da sessão de 3 de Junho a apreciação do Capítulo 7.° do Orçamento
do Ministério da Justiça, que o Presidente acabava de anunciar: «Sustento
de presos e policia das cadeias: 38443$200 réis» (2). Sobe à tribuna Ayres
de Gouveia* que começa por justificar-se de só raramente usar da palavra
naquela Casa* por se lembrar que cada hora de discussão ali «custa perto
de 200$000 réis à nação; e que portanto deve ser muito boa a doutrina*
e muito util o fim duella* para que valha a pena do tempo que se gasta»;
e* na sequência de tal tese* rompe com um longo* primoroso e entusiástico

e presta conjunctamente homenagem á memória do Augusto Irmão de Vossa Magestade,


q u e..., se não chegou a fazer consignar na lei a abolição da pena capital, pôde todavia,
deixando essa gloria a Vossa M agestade, abolir de facto o homicidio legal, usando do direito
de agraciar, unico meio ao seu alcance para conciliar a barbaridade da lei com as tenden
cias do seu coração, e com os sentim entos humanitarios do povo portuguez».
Sobre esta mudança de atitude da Comissão que L evy M aria Jordão secretariava,
perante o problema da pena de morte, no Projecto de 1864 e respectivo Relatório, vide
H enriques da S ilva, Lições cit.s vol. II, pp. 81-82; e a Informação n.° 20/61 da Procuradoria-
- Geral da República, de 15 de M aio de 1961 (relatada pelo Ajudante do Procurador-Geral
L uís A ugusto de Andrade A lbuquerque Bettencourt), fl. 2. Dessa bem elaborada
Informaçãoy que se encontra inédita e de que tivemos notícia pelo antigo Procurador-Geral
A ntónio F urtado dos Santos, foi-nos gentilmente cedida uma fotocópia pelo actual
Procurador-Geral José Alfredo S oares M anso-P reto. A ambos queremos deixar aqui
consignado o nosso reconhecimento.
C1) V. o que deixámos dito supra, nota 1 de pp. 512-513.
(2) Cfr. Diario de Lisboa, n.° 125, de 6 de Junho de 1863, p. 1748, l .a col.

514
discurso, a pedir que se suprima do orçamento o ofício e o salário do
carrasco, por vexatório e indigno duma sociedade civilizada 0 . Usa nesse
discurso de todo o seu notável poder verbal, repetindo considerações já
expendidas anteriormente no livro sobre «A reforma das cadeias» e produ
zindo outras novas, adequadas ao ambiente emotivo que pretendia gerar (2),
C1) O discurso de A yres de G ouveia ocupa nada menos de cinco colunas do
referido número do Diario de Lisboa (pp. 1748 e 1749).
(2) Eis alguns passos do discurso, que constituem eloquente expressão do que
dizemos no texto:
«Vou 1er a minha proposta, cumprindo assim o regimento que v. ex.a tanto á risca
deseja satisfeito: Proponho que se elimine do orçamento o officio e o salario do executor.
Pela simples leitura d’esta minha singela proposta bem claro se revela o alvo a que
m iro, o fim a que me dirijo. Combater esse acto deshumano, essa selvajaria, chamada
pena de morte, combatendo o executor d’ella. Oppugnar a existencia do verdugo é repellir
a pena de morte.
Sr. presidente, o carrasco é urna arma, é um instrum ento, e eu tento quebrar a arma
para que nenhum tyranno se possa jamais servir d’ella, e eu busco despedaçar o instrumento
para não ter de chorar nunca mais os seus sanguinarios productos!» (cfr. loe. cit., p. 1748,
1.a col.).
E, mais adiante:
«Diz o orçamento: O cura vence annualmente a quantia de 48$000 réis. O executor
vence annualmente a quantia de 49$200 réis.
Os olhos lêem isto e não o acreditam! A rasão refoge aterrada e o coração com
prime-se de magua! Será possivel?... É esta a idèa que nós fazemos da morte e do
carrasco! Que é isto? M eu D eus? O sacerdote, o hom em da religião, o homem da luz,
o hom em da fé, da esperança e da caridade, o hom em que nos mostra o caminho da
vida eterna, que nos eleva a alma para D eus, elle o ungido do Senhor, elle o eleito entre
os chamados, posto em estipendio abaixo do homem das trevas, abaixo do homem
da vingança social, abaixo do homem da desesperação perpetua, abaixo do hom em da
morte violenta!... Que é isto? M eu D eus! O sayão melhor compensado do que o sacer
dote! O ministro do patíbulo levantado em consideração acima do ministro do altar.
Isto é opprobrioso. Julgar e respeitar em mais as funeções do homem que aguça a lamina
da guilhotina ou que entrança a corda da forca, do que as do homem que interpreta a
pagina do Evangelho, que ensina os meios de conseguir a vida futura, que trata da rege
neração do malditoso, que nos eleva a altura para D eus!!...» (cfr. ibidem, 2.a col.).
Ou ainda, em tom igualmente patético:
«Ora, pergunto eu, quem é o carrasco? O carrasco é o homem que enforca? É o
hom em que guilhotina? É o jurado que declara o réu, o malfeitor? É o juiz que lavra
a sentença? N ão, senhores. O carrasco, digamo-lo com franqueza, somos nós. O carrasco
não é a corda que enforca, não é a pagina em que está lançada a sentença, não é a folha
de papel em que está escripta a lei. O carrasco é o nosso coração e a nossa cabeça : cabeça
e coração de todos nós que estamos aqui. Entre o nosso coração e o pescoço do pade
cente ha um fatal e abominável sorites.
D o nosso coração, illuminado pela nossa intelligencia, sáe o nosso voto, do nosso
voto nasce a lei, da lei dimana a sentença, da sentença vem o carrasco, diante do carrasco
levanta se a forca e da forca pende a corda que esgana o pescoço do justiçado; portanto

515
para terminar mandando para a mesa duas proposta de lei, logo assinadas
também por algumas dezenas de deputados: uma, a eliminar do orça
mento «o officio e o salario do executou) 0 ; e outra a abolir, pura e simples
mente, a pena de morte (2).
O discurso de Ayres de Gouveia suscitou tanto entusiasmo, que o
orador, como se lê no relato da sessão, «foi cumprimentado por quasi todos
os srs. deputados», aparecendo logo na mesa uma outra proposta sobre o
mesmo assunto, do deputado Gavicho, que vinha completar as de Gouveia
fundindo-as numa só e acrescentando uma autorização ao Governo para
mandar imediatamente construir «uma cadeia cellular, systema de isolamento,
para quinhentas celias» (3).
entre o nosso coração e o pescoço do padecente ha um fatal e abominável sorites. Logica
homicida !
Sim , somos o carrasco, mas um carrasco cobarde, porque não querendo que o
sangue do malditoso nos manche as mãos entrepomos entre nós e a quelle um hom em ,
que ali está involuntariamente, constrangido e coagido, para matar em nosso nom e e em
nom e da sociedade» (cfr. ibidem, pp. 1748, 3.a col. e 1749, 1.a col.).
E, abertamente contra a pena de morte:
«Importa destruir o fatal preconceito da conveniencia do assassinato legai, e cumpre
que onde as nossas leis estampam a realisação da vingança social ponhamos o processo
da regeneração do delinquente, onde pedem a victima ponhamos os meios do arrepen
dim ento, onde querem a morte proclamemos a vida, onde têem a mancha do sangue
introduzamos o raio de luz, e finalmente onde o orçamento assalaria o executor substi
tuamos o professor» (cfr. ibidem, p. 1749, l .a col.).
C1) É a proposta que lera no discurso parcialmente transcrito na nota anterior e
que logo foi subscrita conjuntamente por mais 24 deputados (v. ibidem, p. 1749, 3.a col.).
(2) «Proposta: Proponho que se discuta de preferencia a tudo o seguinte:
Artigo l.° É abolida a pena de morte. Art. 2.° É revogada a legislação em contrario.
== A yres de G ouveia (seguindo-se as assinaturas de mais 44 deputados)» (cfr. ibidem,
p. e col. cits.).
(3) O Projecto de lei do deputado F rancisco G avicho, que ele próprio declara
ter escrito «agora sobre o joelho», dizendo «esperar, ou antes ter a certeza, de que elle será
approvado por acclamação» (nada menos !), é expressão bem viva do ambiente de exaltação
e emotividade que o discurso de A yres de G ouveia tinha gerado:
«Senhores. — A inviolabilidade da vida humana é um grande principio, um social
e divino principio, um dogma eterno. A pena de morte, assassinio legal, é uma nodoa
ensanguentada manchando o codigo de nação civilisada.
O criminoso é um enfermo social, que deve ser curado, um animo pervertido que
deve ser moralisado, uma natureza complexa desharmonisada, que é preciso harmonisar,
regenerando-se e tornando-se o criminoso um homem para a sociedade.
A cadeia não deve ser uma injustiça, um insulto á civilisação, uma immundice
asquerosa, um inferno enfim, como essas que ahi ha.
A cadeia deve ser o hospital d’esse enfermo social — o criminoso.
(Continua na pág. seguinte)

516
Passada, porém, a maré alta do entusiasmo dos primeiros momentos
e metido de permeio um pequeno discurso de José Luciano de Castro
sobre assunto inteiramente diverso (*), fez-se ouvir a voz do bom senso, que,
no caso concreto, era a voz do Governo, pelo Ministro da Justiça Gaspar
Pereira: — Lembra que «o governo não tem ideas menos humanitarias
do que aquellas de que a camara acaba de dar uma prova tão evidente»;
mas acrescenta que «esta questão que se agita é tuna questão grave que
deve ser resolvida, não de um modo precipitado e como por incidente, mas
sim reflectidamente, tanto mais que nenhum perigo ha na demora, devendo
realizar-se a resolução da camara sobre um parecer da comissão»; emite
a opinião de que «o logar mais proprio para se tratar da abolição da pena
de morte era quando se discutisse o projecto do codigo penal», a essa data ja
apresentado às Câmaras; e termina por propor que, de momento, os projec-
tos apresentados fossem simplesmente remetidos às comissões, para estudo (2).
Ainda houve quem protestasse, declarando que o assunto estava
«discutido até à saciedade» (3); mas os projectos, depois de várias interven-
Term inou o debate entre o systema de Auburn e de Pensylvania.
A sciencia e a experiencia reconhecem hoje o systema de isolamento cellular* o unico
a adoptar.
É uma vergonha que não tenhamos já uma cadeia cellular.
Construi-la é um dever* é o pagamento de uma divida á civilisação. Paguemos essa
divida* cumpramos esse dever* e proclamemos bem alto o dogma da inviolabilidade da
vida humana.
Offereço á vossa consideração o seguinte projecto de lei:
Artigo l.° Fica abolida a pena de morte.
Art. 2.° Extincto o hediondo officio de carrasco.
Art. 3.° É riscada do orçamento do estado a verba de 49$200 réis para o executor.
Art. 4.° É o governo auctorisado a mandar construir* com as condições exigidas
pela sciencia* uma cadeia cellular* systema de isolamento, para quinhentas celias.
Art. 5.° É o governo auctorisado a despender 200:000^000 réis n ’esta obra.
Art. 6.° O governo dará conta às cortes da auctorisação concedida.
Sala das sessões* em 3 de junho de 1863. = Francisco Gavicho = José de Moraes
Pinto de Almeida = Antonino José Rodrigues Vidal = José Maria Rojão» (cfr. ibidem,
pp. 1749* 3.a col., e 1750, 1.a col.).
C1) Que o discurso de José L uciano de Castro foi um verdadeiro expediente
dilatorio* revela-o a circunstância de este ter pedido ao presidente que consultasse a
Cámara sobre se lhe concedia a palavra «para um negocio urgente»; e* obtida da Cámara
a necessária autorização* ter-se limitado a tratar do «negocio urgente» (?!!) de esclarecer
um incidente pessoal que tinha tido com outro deputado* e* ao mesmo tempo* rectificar
uma informação por ele anteriormente prestada à Câmara (V. ibidem* p. 1750, l .a col.).
(2) Cfr. ibidem* p. 1750* l .a col.
(3) V. ibidem,, p. e col. cits.

517
ções dc menos interesse por parte de vários deputados presentes (**), acabaram
efectivamente por baixar à Comissão de Legislação, «para dar o seu parecer
com urgencia» (2).
O parecer da Comissão de Legislação sobre o projecto de abolição da
pena de morte foi presente à Câmara duas semanas depois (17 de Junho)
e a discussão respectiva foi marcada para a «ordem do dia» da sessão do
dia 20 imediato (s). Mas a verdade é que tudo ficou por aqui; e nem o parecer
foi publicado no relato das sessões — como era de uso —, nem o projecto
chegou a ser submetido em dia algum à apreciação da Câmara dos
Deputados, que ocupou o seu tempo com assuntos muito diversos nos
escassos dias que lhe restavam de sessão legislativa (encerrada em 3o do
mesmo mês, já em regime de prorrogação) (4).
C1) Falaram sucessivamente, sobre o assunto, os deputados F rancisco G avicho,
M ártens F errão, C yrillo M achado, A ntónio de S erpa e, de novo, a fechar, o M inistro
da Justiça G aspar P ereira (vide ibidem, pp. 1750, 2.a e 3.a cols., 1751, 1.a, 2.a e 3.a cols.,
e 1752, 1.a col.).
Sobre a abolição, em si, ninguém levantava objecções. F rancisco G avicho, designa-
damente, podia afirmar com razão : «Não discuto a pena de morte — o assassinio legal.
A pena de morte está discutida (apoiados). A pena de morte pertence á história. Em
breve será abolida entre nós por a camara, que abolida está ella por a opinião publica.
Agora o que é necessario é habilitar o governo a crear a penitenciaria» (cfr. ibidem,
p. 1750, 2.a col.).
Por seu turno, o M inistro da Justiça, na sua segunda intervenção, não deixava de
se vincular mais uma vez (e ao Governo que representava) ao princípio abolicionista:
«Felizmente a pena de morte está entre nós abolida de facto; e é justo e conveniente
que venha a ser abolida de direito (apoiados)*. O problema que punha reconduzia-se
exclusivamente ao modus faciendi: «Mas eu entendo que não se deve proceder com
precipitação em objecto tão importante; embora o assumpto seja tal que todos se achem
habilitados para emittir o seu voto a respeito d’elle, é conveniente que a decisão da
camara recàia sobre um parecer da commissão, que não se fará esperar, se a camara assim
o determinar, para que se não diga que precipitadamente se resolveu um objecto d’esta
ordern» (cfr. ibidem, p. 1751, 3.a col.).
(*) V. ibidem, p. 1752, 2.a col. O primeiro projecto de A yres de G ouveia (extinção
do salário e do cargo do carrasco) e o projecto de G avicho foram enviados também à
Comissão de Fazenda.
(3) Vem notícia disso no Diario de Lisboa, n.° 135, de 20 de Junho de 1863 (relato
da sessão da Câmara dos Deputados do dia 17 anterior): «O sr. Ayres de Gouveia (sobre
a ordem) : — M ando para a mesa o parecer da commissão de legislação sobre a abolição
da pena de morte» (de onde parece inferir-se ter sido A yres de G ouveia o relator desse
parecer). E logo mais abaixo: «ordem do dia para 20 de junho ............Projecto n.° 152
— sobre a abolição da pena de morte» (cfr. loc. cit.y p. 1918, 2.a col.).
(4) A sessão legislativa das Cortes (Câmara dos Pares e Câmara dos Deputados),
segundo a Carta Constitucional, inaugurava-se com uma Sessão Real no dia 2 de Janeiro
(artigo 18.°) e tinha a duração de 3 m eses (artigo 17.°), que podiam ser prorrogados.

518
Ficou de positivo, de tudo isto, a supressão, no orçamento, do salário
do carrasco, embora não do ofício. Na verdade, o projecto de Ayres de
Gouveia a este respeito não teve a mesma triste sorte do outro, que propunha
a abolição da pena de morte. A Comissão de Fazenda — ou não se tratasse
de poupar dinheiro — deu-lhe parecer favorável na parte que respeitava
à supressão orçamental do salário do executor, entendendo, quanto à parte
da supressão do ofício, que era necessário aguardar a resolução da Câmara
sobre a abolição da pena (1). E foi isso, afinal, o que se votou, na sessão de 18 de
Junho (2), enquanto se ficou aguardando uma discussão de fundo sobre os
dois problemas pendentes — abolição da pena e extinção do cargo de
executor — que nunca mais chegou (3).
Em 1863, ao abrigo do artigo 74.°, § 4.°, do mesmo texto constitucional, o termo da sessão
legislativa foi fixado para 30 de Junho (Decreto régio de 19 de Junho, publicado no Diario
de Lisboa, n.° 137, de 23 do m esmo m ês, p. 1960, 3.a col.). A sessão solene de encerramento
teve lugar exactamente nesse dia, com a presença do Rei, de acordo com o preceituado
no artigo 19.° da Carta (V. o relato da sessão e o texto integral do discurso do trono no
Diario de Lisboa, n.° 142, de 1 de Julho de 1863, p. 2029, 1.a e 2.a cols).
C1) Publicado no Diario de Lisboay n.° 136, de 22 de Junho de 1863 (relato da
sessão nocturna da Câmara dos Deputados do dia 18 anterior): «A commissão, concor
dando com o pensamento da proposta, entende comtudo, quanto á primeira parte da
proposta, que cumpre aguardar a resolução da camara sobre o projecto de lei que tem por
fim a extincção da pena de morte; e, quanto á segunda parte, entende que deve ser elim i
nado do orçamento o ordenado do executor» (cfr. loc. cit.y p. 1938, 2.a col.).
(2) N ão sem o enérgico protesto do deputado S ilveira da M ota:
«...não diria cousa alguma se não entendesse do meu dever, embora penoso dever,
protestar contra o parecer da illustre commissão, na parte em que se refere á emenda
mandada para a mesa pelo nobre deputado sr. A yres de G ouveia.
Extinguir o ordenado do carrasco e conservar o officio! Pois isto é sério? Pois foi
porventura isto o que os dignos membros d’esta camara quizeram conseguir, quando
applaudir am energicamente a proposta do sr. A yres de G ouveia?...
Não quero tomar mais tempo á camara. M uitas considerações desejava fazer a
este respeito; não as faço, mas peço, e supplico até, que se não vote o parecer no sentido
em que está formulado. N ós não tivemos em vista economizar a insignificante quantia
de 49$200 réis; o que quizemos foi mostrar a nossa aversão ao carrasco, representante
da sociedade n’esse nefando mister, ao carrasco que exerce um officio que felizm ente não
é preciso em Portugal (apoiados)...» (cfr. loc ,cit.y p. 1939, l.a col.).
Apesar da absoluta coerência desta atitude, a verdade é que não vingou. E o relato
da sessão limita-se a dizer, logo após o discurso de S ilveira da M ota: «Como não houvesse
mais ninguém inscripto passou a votar-se sobre cada uma das propostas sendo a final approvado
o parecer da commissão» (cfr. ibidem, p. e cols. cits.).
(3) Parece que este escasso resultado, depois de tanto barulho feito, não deixou,
ao tem po, de cobrir de certo ridículo a Câmara dos Deputados. O «editorial» do jornal
O Século, de 1 de Julho de 1967, sob a epígrafe A pena de morte foi abolida há cem anos
em Portugal, relata que a extinção do salário e manutenção do cargo do carrasco «levou um
519
21. Assim corria o pano sobre mais um episódio da já longa história
do movimento abolicionista em Portugal. Por uma destas enigmáticas
voltas que as assembleias políticas e os seus mentores costumam saber dar
aos assuntos, sem deixar vestígios que elucidem os vindouros, caía no
silêncio um projecto que correspondia à mais generosa das ideias e que a
Câmara em peso recebera com entusiasmo.
O Governo ia vendo fugir-lhe das mãos — como 11 anos antes, com
a introdução da abolição da pena de morte para os crimes políticos no
Acto Adicional — a glória, que manifestamente queria para si, de ser ele
a propor a abolição da pena capital para os crimes comuns; e tomava cons
ciência de que, se não queria perder essa glória, tinha de agir com certa
brevidade e sem aguardar a promulgação, que tendia a eternizar-se, dum
novo Código Penal 0 .
E, de facto, não se fez demorar muito uma iniciativa governamental
nesse sentido.
Aberta em 2 de Janeiro de 1864 uma nova sessão legislativa (a última
da legislatura de 1861-1864), depois de seis meses de interrupção dos
trabalhos parlamentares, logo no «discurso da Coroa» nesse dia proferido
por El-Rei Dom Luís perante as Cortes foi anunciado que em breve
seriam submetidas à apreciação do poder legislativo «pelos ministros das
diversas repartições», «entre outras importantes providencias, as propostas
para abolição e substituição da pena de morte, e correspondente modifi
cação no codigo penal» (2). E, na sequência desta promessa formal, logo
na sessão do dia 11 imediato era apresentada pessoalmente pelo Ministro
da Justiça Gaspar Pereira, na Câmara dos Deputados, uma proposta de
lei sobre o assunto (3).
jornal da época a motejar : fica o carrasco por ora> e mate de graça». N ão tivemos possibi
lidade de comprovar a exactidão do informe.
C1) Sobre o «impasse» a que se tinha chegado, por estes anos, a respeito do Projecto
de Código Penal subscrito por L evy M aria Jordão, v. o que dissemso supra,
nota 1 de pp. 512-513.
(a) Cfr. Diario de Lisboa, n.° 2, de 4 de Janeiro de 1864, p. 9, 3.a col.
(3) G aspar P ereira da S ilva (que era deputado na legislatura então em curso
e que aparece sempre mencionado apenas por G aspar Pereira nos relatos das sessões
da Câmara) era juiz do Tribunal da Relação de Lisboa e ocupou a pasta da Justiça do
Governo presidido pelo D uque de L oulé desde 21 de Fevereiro de 1862 até 5 de M arço
de 1865.
Este governo do D uque de L oulé, que esteve no poder quase 5 anos (desde 4 de
Julho de 1860 a 17 de Abril de 1865), teve como M inistros da Justiça, sucessivamente,
A lberto A ntónio de M orais Carvalho, juiz do Tribunal de Contas (de 4 de Julho
de 1860 a 21 de Fevereiro de 1862), G aspar P ereira (dentro das datas já indicadas)

520
A proposta era precedida dum excelente relatório da autoria do
próprio Ministro da Justiçai1); e era assinada também pelos Ministros
e A ntónio A yres de G ouveia (durante pouco mais dum mês* de 5 de Março a 17 de
Abril de 1865). (Cfr. A ntónio M anuel P ereira, Governantes de Portugal desde 1820
até ao Dr. Salazar, Porto, 1959, p. 35).
Fora já G aspar P ereira, como M inistro da Justiça — conforme vimos (supra, p. 517
e nota 1 da p. 518) — , quem em 1863 torpedeara hábilmente o projecto de lei de A yres
de G ouveia para a abolição da pena de m orte; e isso criava-lhe agora especiais respon
sabilidades, acorrendo pressuroso — mal ainda iniciada a nova sessão legislativa — a apre
sentar às Câmaras, em nom e do Governo, uma proposta de lei no mesmo sentido.
Ao apresentar à Câmara dos Deputados, na sessão de 11 de Janeiro de 1864,
a proposta governamental para a abolição da pena de morte, G aspar P ereira começa
justamente as suas considerações por um relato circunstanciado dos antecedentes que
levaram o Governo a tomar aquela iniciativa:
«Senhores. — Quando entrava em discussão o capitulo 7.° do orçamento do minis
terio a meu cargo, pouco dias antes do encerramento da passada sessão legislativa, um
illustre deputado, pronunciando um eloquente discurso contra a conservação da pena
de morte no nosso codigo penal, apresentou incidentemente um projecto de lei para a
sua completa suppressão.
Ouvido n’essa occasião sobre este assumpto, declarei que concordava com o pensa
mento do projecto, porém que tinha duvidas ácerca da sua opportunidade. Parecia-me
com effeito que a occasião e modo como elle vos fora submettido não tinham sido talvez
os mais opportunos para que, sendo preparado com o cuidado e meditação, que eram
necessários, fosse discutido com a placidez que uma questão d’esta ordem exige, e que
difficilmente se póde obter nos últimos dias de uma sessão legislativa.
O projecto apresentado obteve parecer da respectiva commissão de legislação,
mas apesar da boa vontade e reconhecida illustração d’esta, foi tal a precipitação com
que ella teve de proceder ao seu exame, que approvando o principio proposto da suppressão
da pena de morte, nem uma só regra chegou a formular quanto ao modo de substituição
da pena supprimida, nos varios casos em que ainda a admitte a nossa legislação penal
actualmente em vigor.
Foi encerrada a sessão antes que o referido projecto chegasse a ser discutido,
e o governo vendo tanto em harmonia com os seus proprios sentimentos o desejo eviden
temente manifestado pela camara, não hesitou um instante em adoptar tão generoso pensa
mento. Desde logo eu me propuz a dar ao estudo d’esta questão, mais da minha competencia,
todo o cuidado de que elle é merecedor, em rasão dos elevadíssimos interesses que na
solução d’ella se acham empenhados............Prestei pois a este objecto a devida attenção
no intervallo dos trabalhos parlamentares, e é um curtíssimo resumo do estudo que fiz,
o que vae servir de relatorio á proposta de lei que tenho a honra de vos apresentar...
(cfr. Diario de Lisboa, n.° 9, de 13 de Janeiro de 1864, p. 93, 1.a e 2.a cols.).
0 ) N o extenso relatório da proposta, que ocupa nada menos de 3 colunas e meia
da folha oficial (loc. cit., p. 93, 2.a e 3.a cols.; e p. 94, 1.a e 2.a cols.), o M inistro da Justiça
começa por algumas considerações teóricas acerca da pena de morte, centrando funda
mentalmente a sua condenação em duas ordens de razões : a inviolabilidade da vida humana
e o carácter irreparável do homicídio legal. N esse sentido afirma: «Eu não levantarei de
novo aqui uma questão já terminada em toda a parte — a da legitimidade da pena de

521
da Guerra (Visconde de Sá da Bandeira) e da Marinha e Ultramar (Mendes
Leal), porque, além de consagrar a abolição da pena de morte «em todos
os crimes civis» (artigo l.°), mandava igualmente suprimi-la «nos crimes
morte. A esse respeito bastará dizer que esta pena ataca um direito absoluto, e como tal
inviolável. Porém quando tal pena de per si mesma não fosse illegitima, uma só con
sideração bastaria para a condemnar: é absolutamente irreparável» (cfr. ibidem, p. 93,
2. a col.).
Passando depois à análise do problema da oportunidade da extinção da pena capital
no nosso País, o M inistro G aspar P ereira diz que tudo consiste em apreciar separada
mente estes dois pontos fundamentais: «indagar se a suppressão da pena de morte em
Portugal: l.° Será adoptada pelos costumes»; e se «2.° Será perigosa para a segurança
publica».
a) Sobre o primeiro problema, o relatório ministerial regista o facto incontroverso
de a pena de morte ter deixado de executar-se em Portugal desde 22 de Abril de 1846,
data da última execução, efectuada na cidade algarvia de Lagos; e fornece o interessante
dado estatístico de que «nos treze annos que decorreram desde 1833 até 1846 em 99 réus
condemnados á morte houve apenas 32 execuções, sendo commutada a pena aos 67 restantes».
D á o relatório também, a este respeito, uma informação preciosa para a compreensão
do estado psicológico que se gerara no espírito do povo e no espírito dos governantes contra
a execução capital: «Ainda outra observação. Em uma das sobreditas execuções, que
teve logar no Porto em 23 de Julho de 1838, a impressão que o apparato da execução fez
sobre o povo, que tinha affluido ao logar d’ella, foi tal que a multidão por duas vezes fugiu
espavorida ! N a execução que teve logar em Lisboa em 26 de Abril de 1842 o sacerdote
que acompanhava o padecente caiu fulminado por uma apoplexia, ao chegar com elle aos
degraus do patíbulo. Estes e outros factos, que ainda depois tiveram logar em outras
execuções, foram pouco e pouco produzindo tal impressão no espirito publico, que os
differentes governos, que desde 1846 têem gerido os negocios do paiz, têem preferido
auxiliar com seus conselhos a disposição natural do animo dos monarchas portuguezes,
sempre inclinado á clemencia, a renovar aquelles espectáculos não menos repulsivos para
o governo que os ordena, do que para a sociedade que os presenceia» (cfr. ibidem, p. 93,
3. a col.).
E o relatório termina a primeira parte das suas considerações com esta conclusão
inteiramente pertinente e realista: «É pois o nosso paiz o unico da Europa em que a pena
de morte está ha dezoito annos supprimida de facto. O costume precedeu a lei; e esta,
expungindo de suas disposições aquella pena, longe de se antecipar á sociedade, não fará
mais do que sanccionar um facto ha muito aceito pelos costumes públicos, que hoje seria
diffidi contrariar. Se a pena de morte continuasse inscripta na nossa legislação penal, eu
creio poder affirmar que não seria possível encontrar um ministro da justiça, que ousasse acon
selhar a El-Rei a denegação do uso do poder moderador, e tivesse coragem para novamente
cravar as escoras de um patíbulo no solo de Portugal» (cfr. ibidem, p. e col. cits.).
b) Sobre o segundo problema — se correrá perigo a segurança pública com a abolição
da pena de morte — , o relatório é uma peça de valor excepcional, pois baseia-se em dados
estatísticos rigorosos, do decénio 1851-1860 (dada a escassez e insegurança dos anteriores
àquela data), para mostrar que a criminalidade, com a pena de morte já suprimida de facto,
não só não aumentou, como até diminuiu: «É pois incontestável que nos dez annos, que
os ditos mappas abrangem, a criminalidade não augmentou, e até nos crimes a que, quasi

522
militares; excepto para aquelles que forem commettidos em tempo ou
acto de guerra entre Portugal e alguma nação estrangeira, por individuos
que façam parte do exercito ou da armada» (artigo 2.°)(1).
«Enviada á comissão de legislação, ouvidas as de guerra e de marinha»
— como se lê no relato da mesma sessão —, a proposta do Governo era
dada pronta para a discussão parlamentar, acompanhada do parecer da
Comissão, na sessão da Câmara dos Deputados do dia 13 de Abril (2);*()

exclusivamente, é applicavel a pena de morte pela legislação actual, tem diminuido.


E com tudo, como já tive occasião de ponderar, a suppressão da pena de morte é um facto
ha dezoito annos adquirido pelos costumes ; e o povo tem a certeza moral de que o triangulo
da forca não tornará mais a projectar a sua sombra sinistra sobre o solo d’este paiz. O medo
da pena de morte já hoje não serve para conter aquelles que as más paixões impellent
ao crime. O legislador pois supprimindo esta pena não supprimirá elemento algum de
repressão que de facto exista ; porá a lei de accordo com os costumes, e nada mais» (cfr.
ibidem, p. 94, l . a col.).
E não deixa igualmente o primoroso relatório do M inistro G aspar P ereira de
pôr em destaque a necessidade premente de acabar com a situação anómala em que se
vivia e por virtude da qual «o poder moderador, applicando a sua acção aos réus
condemnados á pena de morte, e commutando-a na immediata, colloca-os forçada-
m ente em uma posição mais favoravel do que fica sendo a de outros réus cuja crimi
nalidade, tal qual foi reconhecida pelos tribunaes, era realmente menor» (cfr. ibidem,
p. e col. cits.).
Quase a terminar, o relatório faz referência ao facto de a proposta abranger a abolição
da pena de morte, não apenas para os crimes civis, mas ainda para os crimes militares, em
cujo domínio, aliás, também havia já 15 anos que não era executada: «Os meus collegas,
ministros e secretarios d’estado dos negocios da guerra e da marinha e ultramar, por
quem a presente proposta, vem também assignada, concordam na suppressão da dita
pena nos crimes militares, com uma pequena modificação: a dos crimes susceptiveis
d’ella, que forem commettidos em tempo ou acto de guerra com potencia estrangeira»
(cfr. ibidem, p. 94, 2.a col.).
(*) Sobre as razões desta restrição, v. infra, nota 1, da p. 547.
A proposta constava ao todo de 10 artigos; e tinha o cuidado de estabelecer, para
todas as demais penas previstas no Código Penal, um abrandamento condizente com o
que resultava da substituição da pena de morte pela de «trabalhos públicos por toda a vida
na Africa oriental» (v. ibidem, p. 94, 2.a e 3.a cols.).
(2) Tem os notícia disso pela intervenção do deputado S ant ’A nna e V asconcellos
e requerimento que apresentou na sessão de 13 de Abril de 1864.
«O sr. Sant’Anna e Vasconcellos (para um requerimento) : — Foi distribuido ha pouco
o parecer da commissão de legislação, abolindo a pena de morte; como tenho o vehemente
desejo de ver sair da legislação do paiz este grande aleijão moral, por isso peço a v. ex.a
que consulte a camara sobre se quer que este projecto entre em discussão na segunda feira
próxima. M ando a proposta (leu).
O sr. Presidente : — Este requerimento fica para segunda feira.
(Continua na pág. seguinte)

523
e chegou a estar marcado o início da respectiva apreciação para a sessão
de 18 do mesmo mês (1). Mas veio a repetir-se com eia, mutatis mutandis,
o que no ano anterior se verificara com o projecto de Ayres de Gouveia:
— Com a fácil desculpa de não estar presente na sala o Ministro da Justiça,
por estar «empenhado na discussão de outro negocio na camara dos dignos
pares», o presidente evitou que a discussão se iniciasse no dia para que
estava marcada (2); e, dessa data em diante — com Ministro ausente ou com
Ministro presente (3) —, não se vislumbra o menor interesse, nem parte da
O Orador : — N ão comprehendo adiamentos em uma questão d’estas, e por isso
peço a urgencia.
Leu-se logo na mesa o seguinte requerimento
Requeiro que o projecto de lei abolindo a pena de morte entre em discussão na
segunda feira da próxima semana. = O deputado, J. A . de San?Anna e Vasconcellos»
(cfr. Diario de Lisboa, n.° 83, de 15 de Abril de 1864, p. 1138, 2.a col.).
(!) O relato da sessão de 13 de Abril, citado na nota anterior, não diz se o requeri
mento do deputado S ant’A nna e V asconcellos foi ou não submetido à votação. Mas
não há dúvida de que foi votado e aprovado pela Câmara, pois é o próprio presidente
quem declara, na sessão da tal «segunda feira da próxima semana» (18 de Abril), que a
discussão devia iniciar-se nesse dia, porque a Câmara assim o votou (cfr. nota imediata).
(2) Foi ao terminar a primeira parte da «ordem do dia» da sessão de 18 de Abril que
o presidente declarou: «A camara votou que se entrasse na discussão do projecto sobre
a abolição da pena de morte; mas a discussão d’este projecto exige a presença do sr. ministro
da justiça, e s. ex.a não póde comparecer hoje, porque está empenhado na discussão de
outro negocio na camara dos dignos pares» (cfr. Diario de Lisboa, n.° 87, de 20 de Abril
de 1864, p. 1197, 3.a col.).
O M inistro da Justiça G aspar P ereira esteve, de facto, presente na sessão da Câmara
dos Pares desse dia 18 de Abril; e até usou da palavra nessa sessão (cfr. Diario de Lisboa,
n.° 102, de 9 de M aio, p. 1433, l .a col.); mas não esteve em nenhuma das sessões imediatas
da mesma Câmara, que tiverem lugar em 20, 21, 22, 23, 25, 26, 27, 28 e 30 de Abril.
(3) Perante a razão invocada pelo presidente para não iniciar na data marcada
(18 de Abril) a discussão da proposta governamental — a ausência, nessa sessão, do
M inistro da Justiça — , seria de esperar, lògicamente, que a Câmara exigisse o começo
da discussão, em cumprimento daquilo que votara, tão depressa o ministro voltasse a
participar nas sessões. Pois a verdade é que o M inistro esteve presente logo nas duas
sessões imediatas (que tiveram lugar em 19 e em 20 de Abril), bem como na generalidade
das sessões que se efectuaram até ao termo dos trabalhos parlamentares; e, por estranho
que pareça, nem um só deputado tom ou a iniciativa de chamar a atenção do presidente
para o facto de estar afastada, com a presença do M inistro, a única razão invocada para
o adiamento da apreciação do projecto sobre a pena de morte!!
Tivem os o cuidado de analisar, sessão por sessão, a assiduidade parlamentar do
M inistro da Justiça G aspar P ereira (que também era deputado), desde a sessão de
18 de Abril — em que a sua ausência serviu de pretexto para se adiar a discussão do
projecto em causa — até ao encerramento dos trabalhos parlamentares, em 18 de Junho:
— A Câmara dos Deputados teve, ao todo, nesse período, 45 sessões de trabalho; e G aspar
P ereira só faltou a 7 dessas sessões (as dos dias 21 e 28 de Abril, 7 e 10 de M aio; e 4, 9 e

524
do Governo nem da parte da própria Câmara, em levar por diante a apre
ciação do projectado diploma legislativo (x).
22. Ainda se ergueu, no meio desta enigmática indiferença, a voz
de Ayres de Gouveia e a do deputado Aragão de Mascarenhas; mas as suas
intervenções não tiveram eco suficiente para quebrar a resistência passiva
que se tinha gerado — e de que o Governo era, manifestamente, o princi-
cipal responsável — contra a discussão e aprovação do projecto.
Ayres de Gouveia interveio, em tom de protesto, na sessão de 3 de
Maio, acusando o Governo de ter torpedeado o seu projecto do ano ante
rior, e observando, quanto ao projecto governamental pendente, estar a
desvanecer-se de dia para dia a esperança de poder ser ainda discutido
naquela sessão legislativa, o que considerava «de lamentar» (2). Mas a
15 de Junho). Esteve presente em todas as restantes 38 sessões e usou da palavra em não
poucas delas (designadamente nas dos dias 2, 16, 20, 28 e 30 de M aio; e nas de 6, 14,
16 e 17 de Junho).
H á-de registar-se também, por mera curiosidade, que só numa das 38 sessões
em que participou teve o M inistro o cuidado de comparecer logo no início dos trabalhos:
a sessão de 16 de M aio de 1864, em que teve de usar longamente da palavra para responder
aos deputados que tinham intervindo na discussão do orçamento do M inistério da Justiça.
Em todas as restantes 37 sessões, o nome de G aspar Pereira figura sempre na lista dos
deputados que «entraram durante a sessão».
C1) V. nota anterior. D os factos apontados, resulta bem nítida esta indiferença,
não apenas da parte do Governo, mas da parte da própria Câmara.
(2) Discutia-se nessa sessão de 3 de M aio o orçamento do M inistério das Obras
Públicas; e a intervenção parlamentar de A yres de G ouveia deu-se a propósito da apre
sentação dum projecto de lei a autorizar o Governo a contrair um empréstimo — cuja
amortização e juro de 6% durante 10 anos não excedesse o encargo anual de lOO.OOOftOOO r é is
— para mandar construir, com a possível brevidade, duas cadeias celulares de 400 a 500 celas:
«O sr. Ayres de Gouveia : — Vou mandar para a mesa uma proposta singela, e desde
já devo declarar que não é de campanario, é de utilidade geral, porque é relativa a cadeias.
N o anno passado, quando se discutiu o orçamento, apresentei a proposito de um
funccionario publico, o carrasco, um projecto para a abolição da pena de morte.
A camara com um alvoroço e impulso de humanidade, digno de melhor resultado,
apoiou immediatamente este projecto; foi á commissão que elaborou o seu parecer de
prom pte, mas quando veio para se discutir responderam por parte do governo — é tarde.
O sr. M inistro da Justiça apresentou também no principio d’esta sessão outro
projecto sobre o mesmo ponto. A commissão cuidou d’elle, e trouxe com a indispensável
demora o seu parecer a esta camara; mas tal projecto está sem discutir-se, e vai-nos
fugindo de dia para dia a esperança de que possa ainda ser considerado n ’esta sessão.
Creio que quando esta camara votou, e já por duas vezes, que se discutisse immedia
tamente similhante projecto, não tinha por fim realmente o discuti-lo ou se illudia no
seu proprio desejo. Isto é de lamentar» (cfr. Diario de Lisboa, n.° 100, de 6 de M aio
de 1864, p. 1402, 3.a col.).

525
verdade é que nem ele próprio, com todo o seu ardor combativo, se abalan
çou a ir além deste desabafo, tão certo devia estar de ser inútil fazê-lo.
Não apresentou, na sequência do seu protesto, nenhum requerimento nem
nenhuma proposta para se entrar na imediata discussão do projecto de lei
que andava sub-repticiamente afastado da «ordem do dia», contra expressa
deliberação da Câmara, desde a sessão de 18 de Abril anterior (x); e, nem
o Ministro da Justiça, presente à sessão, se dignou dar qualquer explicação
sobre o assunto (2), nem a Câmara esboçou a menor reacção, favorável ou
desfavorável, perante o protesto formulado, continuando absorvida com
outro assunto que parecia interessar bastante mais, de momento, aos «nobres
deputados», por se tratar do campo próprio para a valorização política de
cada um perante o respectivo eleitorado: o orçamento do Ministério das
Obra Públicas (3).
Não foi mais feliz, alguns dias mais tarde (14 de Maio), a intervenção
do deputado Aragão de Mascarenhas, a «instar com o sr. ministro da justiça
e com a camara pela discussão da lei de abolição da pena de morte», acres
centando ser «vergonhoso que esta assemblèa termine os seus trabalhos
sem dar este grande passo no progresso moral» (4). Ë certo que, desta

C1) V. supra, notas 1 e 2 da p. 524.


(2) Pode objectar-se — e é verdade — que, tendo o M inistro da Justiça, como
era seu hábito (v. supra> nota 3 de pp. 524-525), entrado durante a sessão (cfr. Diario deLisboa9
p. 1400, 3.a col.), não é possível saber-se se já estava presente quando Ayres de G ouveia
usou da palavra. É provável que já estivesse, pois a intervenção de G ouveia não foi logo
no começo da sessão; mas, de qualquer maneira, logo deve ter sido informado do que se
passara e... nem por isso acusou o toque.
(3) A entrega da discussão do Orçamento, verba por verba, à Câmara dos D epu
tados — como era de norma nesta época — dava ensejo à apresentação dos mais variados
projectos de lei, pois todos os deputados queriam dar provas de saberem defender os inte
resses dos seus círculos eleitorais, valorizando-se, assim, perante o respectivo eleitorado.
M uitos desses projectos ficavam pelo caminho, como é natural; e não poucos eram já
apresentados na certeza antecipada dum insucesso, servindo tão-só como manifestação
exterior de defesa dos interesses representados.
É perante essa realidade que A yres de G ouveia , ao apresentar o seu projecto de
lei para um empréstimo destinado à construção de duas cadeias penitenciárias, de que
falámos atrás, começa por declarar que tal projecto «não é de campanario» (cfr. supra,
nota 2, da p. 525). Eram, de facto, de campanário, na sua maior parte, os projectos de lei
suscitados pela discussão do orçamento, mormente — como era natural — neste sector
das Obras Públicas.
(4) Foi na sessão de 14 de M aio, a propósito da discussão do orçamento do
M inistério da Justiça, que o deputado A ragão de M ascarenhas aproveitou o ensejo
para se referir ao projecto de lei pendente; «...mas não posso deixar de instar com o
sr. ministro da justiça e com a camara pela discussão da lei de abolição da pena de morte,

526
vez, o Ministro da Justiça viu-se forçado a vir à estacada; e, na sessão imediata
(16 de Maio), ao responder em conjunto aos vários deputados que tinham
usado da palavra na discussão do orçamento do seu Ministério, fez profissão
de fé abolicionista, rebatendo a opinião dos que não consideravam urgente
que o parlamento se ocupasse de tal assunto e terminando por afirmar
que se encontrava «ao lado d’aquelles que sustentam a conveniencia e a
vantagem da prompta suppressão da pena de morte» (*1). Mas a verdade
é que, apesar de tão confiantes palavras — e apesar dos «apoiados» e das
«vozes: muito bem» que as sublinharam—, nem um passo foi dado no
sentido de levar por diante a discussão do projecto antes do encerramento
da sessão legislativa (2), o que, aliás, teria sido bem fácil ao Governo conse-
porque é até vergonhoso que esta assemblèa termine os seus trabalhos sem dar este grande
passo no progresso moral.
Quando esta discussão chegar, eu mostrarei á camara que a permanencia da pena
de morte no nosso codigo não tem outra consequência senão difficultar a repressão dos
crimes, e apresentarei como exemplo um julgamento a que presidi e no qual um grande
criminoso ficou impune unicamente por se achar escripia no codigo a pena de morte.
Não nos separemos pois sem votarmos esta grande medida, porque quando mais
nada tivéssemos feito, ainda nos retirávamos com consciencia de ter bem servido o paiz
e a humanidade» (cfr. Diario de Lisboa, n.° 109, de 17 de M aio de 1864, p. 1568,
l . a col.).
C1) Foi na sessão imediata (em 16 de M aio, segunda-feira) que o M inistro da
Justiça G aspar P ereira respondeu, em conjunto, às várias intervenções parlamentares
suscitadas pela discussão do orçamento do M inistério que geria. Quase no final do seu
extenso discurso, responde ao deputado A ragÃo de M ascarenhas nos seguintes termos:
«Ponderou também s. ex.a que o governo se devia occupar quanto antes de promover
a discussão da proposta apresentada para a abolição da pena de morte. Relativamente
á abolição da pena de morte o m otivo por que alguém diz que não é necessario que o
parlamento se occupe d’este assumpto com urgencia, visto que ha dezoito annos que entre
nós felizmente se não executa uma sentença de morte, é o mesmo que m e faz acreditar
que essa pena póde desde já ser abolida sem inconveniente, e que não devemos perder
a occasião de nos occuparmos d’este objecto (apoiados) . Pois se os factos têem mostrado
que a suppressão da pena de morte não influe de maneira alguma nas condições da exis
tencia social, se a suppressão de facto da pena de morte, que tem existido de facto, mostra
que a sociedade portugueza póde existir nas suas condições de segurança, de tranquillidade
e de ordem sem ser necessario o apparato horroroso do patibulo e do cadafalso, para que
devemos nós perder a occasião de dar um passo importante no caminho da civilisação?
(Apoiados) .
Não m e demorarei mais n ’este assumpto, mas concluirei dizendo que estou ao lado
d ’aquelles que sustentam a conveniencia e a vantagem da prompta suppressão da pena
de morte (apoiados. — V o zes:— M uito bem). (Cfr. Diario de Lisboay n.° 110, de 18 de
M aio de 1864, p. 1587, 2.a col.).
(2) A yres de G ouveia ainda se referiu mais uma vez, embora incidentalmente,
antes do encerramento dos trabalhos legislativos, à proposta governamental pendente,

527
guir, se assim tivesse querido, pois era de norma, nas últimas sessões de
cada ano, dar-se preferência absoluta aos projectos e propostas de lei cuja
urgência fosse invocada pelos ministros respectivos; e o próprio Ministro
da Justiça Gaspar Pereira usou várias vezes desse expediente, até ao fim
da sessão legislativa, conseguindo a imediata discussão e aprovação de
outras propostas de lei da sua autoria, a pretexto de urgência (*).

chamando a atenção para a prioridade de discussão que ela devia ter, em face de outras
reformas.
Foi o caso de que, a requerimento do M inistro da Marinha (M endes L eal), foi
dada urgência, na sessão de 11 de Junho, à discussão do projecto de lei n.° 58, que continha
o Código Penal e Disciplinar da Marinha Mercante Portugueza (Diario de Lisboa, n.° 131,
de 15 de Junho de 1864, pp. 1950 a 1952). Ora o artigo 14.° do projectado diploma dizia
que «as penas applicaveis aos crimes são as declaradas nas leis ordinarias, salvos os casos
previstos no presente Codigo», o que equivalia indirectamente a uma nova consagração
legislativa da pena de morte, num momento em que estava pendente na mesma Câmara
dos Deputados uma proposta de lei a aboli-la. E isto, como era de esperar, não podia
passar sem os reparos do abolicionista intransigente que era A yres de G ouveia .
Perante algumas objecções de L uciano de C astro — de natureza, aliás, bastante
diversa— , a proposta não chegou a começar a discutir-se nessa sessão de 11 de Junho.
M as estava para sê-lo na sessão imediata (14 de Junho), quando A yres de G ouveia
saiu a terreiro, a requerer o adiamento da discussão, até que fosse ouvida a Comissão
de Legislação: «Esta lei, se passasse assim, era um retrocesso e não um progresso de
civilidade. T em os affecto á camara um projecto importante que deveria ser discutido
previamente a este, porque este vae sanccionar as leis que ha até hoje, e a camara já se
pronunciou contra as leis actuaes em um outro ponto, bem como a commissão de legis
lação, e eu não hei de sanccionar com o meu voto o estado da nossa legislação penal actual»
(cfr. Diario de Lisboa, n.° 133, de 17 de Junho de 1864, p. 1976, l .a col.).
Vários deputados vieram logo à estacada, considerando excessiva a intransigência
de A yres de G ouveia, a começar pelo próprio M inistro da Marinha (M endes L eal)
que, além de interessado na rápida aprovação do projectado Código Penal e Disciplinar
da Marinha Mercante, tinha o seu nom e ligado ao projecto de abolição da pena de morte :
«O illustre deputado, o sr. dr. A yres de G ouveia, com louvável escrúpulo receia auctorisar
com o seu voto penalidades existentes, às quaes a consciencia não o deixa acquiescer?
Respeito o melindre; mas creio poder asseverar-lhe que lhe falta o fundamento...»
(cfr. ibidem, 2.a col.). E também o M inistro da Justiça — apesar de mais ligado ainda
do que o seu colega da Marinha ao projecto de abolição afecto à Câmara desde Janeiro
— sustentava não haver razão para atender o pedido de adiamento formulado por A yres
de G ouveia ( ibidem, 2.a e 3 .a cols.).
O assunto não pôde ficar arrumado nessa sessão. M as, logo na sessão imediata
(15 de Junho), a Câmara rejeitou a proposta de adiamento e o projecto foi imediatamente
aprovado em bloco, e sem qualquer discussão (V. Diario de Lisboay n.° 134, de 18 de
Junho de 1864, p. 1988, 2.a col.).
(!) N a sessão de 30 de M aio, por exem plo, pediu o M inistro da Justiça a palavra
«para renovar o pedido que já por vezes tenho feito a v. ex.a para que se entre na discussão

528
E assim morria ingloriamente mais uma tentativa — agora, do próprio
Governo — para abolir legalmente a pena de morte em Portugal:
— A Câmara encerraria os seus trabalhos em 18 de Junho seguinte, sem
ter entrado na apreciação do problema, o que não deixa de ser referido
discretamente no «discurso do Trono», proferido por El-Rei Dom Luís
na sessão solene desse dia, perante as duas Casas do Parlamento (x); e, com
o encerramento da sessão legislativa, dava-se por encerrada também a
legislatura de 1861-1864, com automática caducidade de todos os projectos
e propostas de lei pendentes (2).
do projecto n.° 102, cuja urgencia é reconhecida» (cfr. Diario de Lisboa, p. 1764, 2.a col.).
Tratava-se da autorização duma despesa. O pedido foi atendido; e a lei foi discutida e apro
vada nesse mesmo dia.
Na mesma sessão, mais adiante, pediu ainda o M inistro que se entrasse na imediata
discussão e votação do projecto n.° 121 (actualização dum vencimento de funcionários)
e foi atendido (ibidem, p. 1765, 2.a col.).
E na sessão de 6 de Junho, finalmente, pediu G aspar P ereira que fossem dados
para a ordem do dia da sessão imediata, o que lhe foi concedido, os projectos de lei
n.° 136 e 137, referentes à lei hipotecária (ibidem, p. 1876, l .a col.).
Pode bem dizer-se, em face disto, que a proposta de lei sobre a abolição da pena
de morte só não entrou em discussão... porque o M inistro da Justiça não quis.
C1) Conforme já dissemos (supra, nota 4 de pp. 518-519), o encerramento dos traba
lhos legislativos devia verificar-se, pelo artigo 17.° da Carta Constitucional, em fins do
m ês de M arço; mas o funcionamento das Câmaras era habitualmente prorrogado por
Decreto régio.
Em 1864, a sessão legislativa foi prorrogada quatro vezes: a) U m Decreto de 31 de
M arço prorrogou-a até 14 de M aio; b) U m segundo Decreto, de 12 de M aio, prorrogou-a
até 31 desse m ês; c) U m terceiro Decreto, de 30 de M aio, prorrogou-a até 11 de Junho;
d) E, finalmente, um quarto D ecreto, de 9 de Junho, prorrogou-a até 18 do mesmo m ês,
data em que efectivamente veio a ser encerrada.
Parece ter sido à proposta de lei sobre a pena de morte que o «discurso do Trono»,
proferido na sessão solene de encerramento das Cortes, em 18 de Junho de 1864, quis
referir-se, na seguinte passagem: «...Se não permittiu o tempo consummar outras graves
reformas que o publico interesse e a opinião esclarecida com instancia solicitam, se ainda
ficaram pendentes importantes propostas, é já a indicação das respectivas necessidades
um serviço realisado, e a instrucção preparatoria que sobre taes assumptos dispozestes
constitue um legado valioso, que facilitará a sua próxima solução. São as reformas neces
sariamente successivas, e não ha edifício que surja completo de um jacto» (cfr. Diario de
Lisboa, n.° 135, de 20 de Junho de 1864, p. 2007, 3.° col.).
(2) Era regra de direito constitucional ao tempo vigente — tal como ainda hoje
sucede — que os projectos e propostas de lei pendentes caducavam no fim da legislatura,
carecendo de ser renovados para poderem ser considerados pelas novas Câmaras. Cfr., por
todos, L evy M aria Jordão, na passagem do seu Relatório de 20 de Dezembro de 1864,
transcrita supra, nota 1 da p. 512. Como aí se diz, foi o facto de ter caducado a proposta do
seu Projecto de Código Penal, de 1861, no encerramento da legislatura (18 de Junho de 1864),
que levou a Comissão do Código (que era, finalmente, apenas Jordão) a «melhorar o seu

529
34 — II Voi.
23. O Governo saía mal-ferido deste novo insucesso. Se já lhe
cabia a responsabilidade de ter feito soçobrar — embora da forma política
mais hábil e em manifesto entendimento de bastidores com a presidência
da Câmara — o projecto de abolição da pena de morte de 1863, da inicia
tiva de Ayres de Gouveia (x), agora as coisas assumiam proporções mais
graves, pois a proposta torpedeada — e que a Câmara se mostrara dese
josa e pressurosa de discutir e aprovar (2) — era da sua própria iniciativa.
E tudo isto, com a agravante de não fazer jogo franco, pois que, em vez
de explicar claramente os motivos das suas hesitações e de ter a coragem
moral de retirar ou substituir por outra a proposta de lei pendente, preferia
a linba sinuosa e ambígua — tão corrente em política, mas sempre tão
desprestigiante — de se afirmar públicamente interessado na rápida solução
do problema, mas fazendo tudo, por detrás da cortina, para protelar inde
finidamente essa solução (3).
Não se apalpam com segurança as razões desta política ambígua do
Governo de 1864, ao recuar timidamente duma proposta de lei lançada
sob os melhores auspícios, depois de anunciada em grande estilo pelo
próprio rei no «discurso da Coroa» (4). Mas não devemos andar longe da
verdade ao conjecturar que todo o problema girasse em torno da abolição
da pena de morte para os crimes ,miltares prevista no artigo 2
de lei governamental (5).
Com efeito, o Ministro da Guerra Visconde de Sá da Bandeira, que
dera a sua concordância a essa inovação legislativa e que nesse sentido
subscrevera a proposta de lei apresentada ao Parlamento pelo Ministro
da Justiça Gaspar Pereira em 11 de Janeiro de 1864, tinha saído do Governo
logo três dias depois (14 de Janeiro), cedendo a pasta ao Major-General
José Gerardo Ferreira de Passos (6); e a abolição da pena de morte para os
trabalho», a fim de a respectiva proposta poder ser renovada «na próxima legislatura»
(o que nunca chegou a acontecer).
C1) V. supra, n.° 20, nota 1 da p. 517 e notas ss.
(2) V. supra, n.° 21, nota 2 da p. 523 e nota 1 da p.524.
(3) V. supra, n.° 22, nota 1 da p. 527 e nota 1 de pp. 528-529.
(4) V. supra, n.° 21 e nota 2 da p. 520.
(8) V. supra, n.° 21 e nota 1 de pp. 521-523, in fine.
(6) O Tenente-G eneral V isconde de S á da B andeira (mais tarde M arquês de
SÁ da Bandeira) não fazia parte, inicialmente, do Governo do D uque de L oulé, que
subiu ao poder em 4 de Julho de 1860. Entrou para o elenco ministerial apenas em 3 de
Dezem bro desse ano, para substituir na pasta da Guerra o General de Engenharia Belchior
José G arcez Penha.
Conservou-se SÁ da B andeira na pasta da Guerra durante 3 anos, cedendo o lugar,
em 14 de Janeiro de 1864, ao M ajor-General de Artilharia José G erardo F erreira de

530
crimes militares deve ter suscitado reservas ao novo Ministro, se não ao
próprio Exército no seu conjunto, pois só assim se compreende que essa
abolição tenha deixado de ser prevista, depois, na proposta de lei governa
mental de 1867, de que resultou a abolição da pena máxima para os crimes
civis(*). E, a confirmar esta hipótese da falta de ambiente, no seio do
Exército, para estender aos crimes militares a abolição legal unánimemente
propugnada para os crimescivis, podem invocar-se ainda, não só o fracasso
estrondoso da tentativa de Ayres de Gouveia, em 1867, para alargar nesse
sentido a proposta governamental que acabamos de referir (2), mas ainda
a larguíssima consagração que a pena de morte conseguiu obter no Código
de Justiça Militar de 1875 (3).
Se esta nossa conjectura corresponde à realidade, compreende-se
bem a situação delicada em que se encontrava o Ministro da Justiça Gaspar
Pereira, em Abril e Maio de 1864, ao ter de enfrentar a impaciência do
Parlamento (4) e as instâncias concretas de Ayres de Gouveia e de Aragão
de Mascarenhas (5) pela imediata discussão e aprovação da proposta de
lei governamental apresentada em Janeiro desse ano: — Mal lhe ficava,
como Ministro da Justiça, retirar ostensivamente da Câmara uma proposta
que ele próprio apresentara com tanto entusiasmo (6) e que o Governo
induzira o Rei a anunciar, uns dias antes, com toda a solenidade, no «discurso
da Coroa» (7); mas não podia deixar que ela fosse aprovada nos precisos
termos em que fora apresentada, por não dispor já, nesse momento, da
concordância do Ministro da Guerra — e, muito menos, do Exército, como
corpo colectivo — para a abolição da pena de morte nos crimes militares.
Isto pode desculpá-lo, em certa medida, do feio jogo duplo que foi obrigado*V.l

P a sso s (por Decreto publicado no Diario de Lisboa, n. 11, de 15 do mesmo mês* p. 109,
l. a col.).
Em 4 de Março de 1865, SÁ d a Ba n d e ir a voltou a substituir F e r r e ir a de Pa sso s
na pasta da Guerra. M as, passado pouco mais dum mês (1 de Abril), cairia o Governo,
instalando-se no poder (até 4 de Setembro) um ministério de emergência, chefiado pelo
próprio SÁ d a B a n d e ir a , que ocupava também as pastas da Guerra e da Marinha.
V. A n t ó n io M a n u e l P e r e ir a , Governantes de Portugal, cit., pp. 35 e 36.
O V. infra, n. 25.
(2) V. infra, n. 2 .
(3) V. infra, n. 30 ; e E l ia n a G e r s ÃO, Acerca da abolição da pena de morte nos
crimes militares (separata das «Actas» do Colóquio comemorativo do centenário da abolição
da pena de morte em Portugal), pp. 9 a 11.
(4) V. supra, nota 2 da p.523 eas duas notasque se lhe seguem.
(5) V. supra, n. 22, nota 2 dap. 525 enota 4 depp. 526-52 .
( ) V. supra, n. 21, nota 3 de pp. 520-521 e as duas notas que se lhe seguem.
( ) V. supra, n. 21 e nota 2 da p. 520.

531
a fazer nessa fase final dos trabalhos parlamentares de 1864 e a que atrás
devidamente nos referimos (x).
24. Como quer que seja, encerrada a legislatura de 1861-1864 com
a sessão de 18 de Junho desse ano, desceu sobre a mal-sinada proposta de
Gaspar Pereira, Sá da Bandeira e Mendes Leal um supulcral e enigmático
silêncio.
Feitas novas eleições e inaugurados os trabalhos parlamentares da
nova legislatura em 2 de Janeiro de 1865, nem o Rei no «discurso da Coroa,
voltou a fazer qualquer referência ao assunto (2), nem o Governo — que»
aliás, era exactamente o mesmo de antes das eleições — se apressou a
renovar perante as Câmaras, com idêntica ou remodelada estrutura, a pro
posta de lei que apresentara no ano anterior e que ficara por discutir.
E as coisas nem por isso mudaram de figura quando, em começos de
Março, numa reforma parcelar do Ministério, Sá da Bandeira voltou a
ocupar a pasta da Guerra e Gaspar Pereira cedeu a pasta da Justiça, justa
mente,... ao grande paladino da abolição, Ayres de Gouveia (3). Com efeito,
o escasso mês e meio em que este se manteve no Governo não foi suficiente
para levar por diante qualquer bem intencionado propósito de concretizar,
como ministro, uma reforma que o apaixonava e que não tinha conseguido
fazer vingar como simples deputado.
C1) A quem leia atentamente a resposta dada pelo M inistro da Justiça G aspar
P ereira ao deputado A ragão de M ascarenhas na sessão parlamentar de 16 de M aio
de 1864 (transcrita supra, nota 1 da p. 527) não há-de, por certo, passar despercebido que o
M inistro, tendo sido instado, clara e concretamente, pela imediata discussão e votação
da proposta de lei sobre a pena de morte pendente no Parlamento, foge habilm ente à
questão, pois afirma, insiste e repisa que é necessário e que é urgente que a Câmara se
ocupe «d’este assumpto», que os deputados se ocupem «d’este objecto», que não se deve
«perder a occasião de dar um passo importante no caminho da civilisação» e que está
pessoalmente «ao lado d’aquelles que sustentam a conveniencia e a vantagem da prompta
suppressão da pena de morte» (o sublinhado é nosso). Mas o que ele não diz é que a Câmara
se deva ocupar concretamente da proposta pendente, porque a «prompta suppressão da
pena de morte» que o Governo continuava a pretender já não era, por certo, a da proposta
apresentada em 11 de Janeiro desse ano.
(2) V. Diario de Lisboa, n.° 2, de 3 de Janeiro de 1865, p. 13, 1.a, 2.a e
3.a cols.
(3) Conforme vimos (supra, nota 6 da p. 530), foi por Decreto de 4 de M arço que
F erreira de P assos foi substituído na pasta da Guerra por SÁ da B andeira . A yres
de G ouveia substituiria G aspar P ereira da S ilva na pasta da Justiça por D ecreto
do dia imediato (5 de Março de 1864). Esteve no poder apenas um m ês e 13 dias,
saindo em 17 de Abril, com a queda do Governo do D uque de L oulé. V. A ntónio
M anuel P ereira, ob. cit., p. 35.

532
O Governo da chefia do Duque de Loulé cairia em 17 de Abril de 1865,
substituído por um Ministério de emergência, em que quatro homens
apenas sobraçavam todas as pastas (*); e só em 4 de Setembro do mesmo
ano, sob a chefia de Joaquim António de Aguiar, se constituiria um Minis
tério mais estável, que ficaria conhecido pelo nome de «governo da fusão»,
por assentar na colaboração do partido regenerador com o partido histó
rico (2). E seria a esse Governo — em que a pasta da Justiça foi sempre
ocupada pelo Doutor Augusto César Barjona de Freitas — que caberia
o mérito e a honra de levar até ao fim tuna proposta parlamentar para a
abolição da pena de morte em Portugal.
Não andou muito depressa o novo Governo na iniciativa que se
impunha, porque o pensamento do ministro Barjona de Freitas, no começo
da sua gerência governativa, foi manifestamente o de levar por diante a
reforma do Código Penal, utilizando como base dessa reforma o Proiecto
de Levy Maria Jordão, na sua versão de 1864, onde a pena de morte
— conforme vimos (3) — aparecia riscada da lista das penas aplicáveis (4).
C1) O Governo que esteve no poder de 17 de Abril a 4 de Setembro de 1865 era
chefiado por SÁ da Bandeira, que ocupava também os cargos de M inistro da Guerra
e interino da Marinha. Tinha como M inistro do Reino e interino da Justiça Júlio G omes
da S ilva S anches (presidente do Tribunal da Relação de Lisboa); como M inistro da
Fazenda e dos Negócios Estrangeiros, o C onde de Á vila; e, como M inistro das Obras
Públicas, Carlos B ento da S ilva. Cfr. ob. cit.3 p. 36.
(2) O «Governo da fusão« esteve no poder de 4 de Setembro de 1865 a 4 de Janeiro
de 1868, tendo caído em consequência do chamado «movimento da Janeirinha». Era
presidido por Joaquim A ntónio de A guiar, que ocupava também a pasta do Reino;
e tinha na pasta da Justiça o Doutor Barjona de F reitas ; na da Fazenda, o então Coronel
de Engenharia A ntónio M aria F ontes Pereira de M ello; na da Marinha, o Contra-
- Almirante I sidoro Francisco G uimarães (V isconde da P raia G rande de M acau);
nas dos Negócios Estrangeiros e Obras Públicas, o Juiz do Supremo Tribunal Adminis
trativo José Joaquim G omes de Castro (C onde de Castro); e, na da Guerra, o Conde
de T orres N ovas (cfr. ob. e loc. cits.).
O Governo foi remodelado em 9 de M aio de 1866, com a entrega da pasta do
Reino a M ártens F errão e as dos Negócios Estrangeiros e Obras Públicas a José M aria
do Cazal-R ibeiro ; e estas duas últimas pastas passaram ainda, depois disso, e sempre
em conjunto, pelas mãos de A ndrade Corvo (14 de Dezembro de 1866), de novo Cazal-
-R ibeiro (24 do mesmo m ês e ano) e de novo A ndrade Corvo (19 de Junho de 1867).
M as nas pastas da Justiça, Fazenda, Guerra e Marinha, estiveram sempre, até final, os
mesmos titulares (cfr. ob. e loc. cits.).
(3) V. supra, n.° 19 e notas 1 e 3 da p. 513.
(4) A ir ràpidamente por diante a reforma do Código Penal, nos termos preco
nizados pelo Projecto de L evy M aria Jordão de 1864, ficaria resolvido, sem mais, o problema
da abolição da pena de morte.
Que era essa a intenção inicial do M inistro Barjona de F reitas, está patente no
facto de, tendo este subido ao poder em 4 de Setembro de 1865, logo no m ês imediato

533
Mas as dificuldades de concretizar essa reforma a curto prazo devem tê-lo
decidido a voltar à ideia duma proposta de lei independente, no estilo
da que o Governo apresentara às Câmaras em Janeiro de 1864, mas expur
gada do controverso preceito da abolição da pena capital para os crimes
militares (1).

25. O pretexto foi a Reforma das Prisões.


Corria agora o ano de 1867; e era tempo de começar a pensar-se
sèriamente em Portugal numa ampla reforma das cadeias e na construção
das primeiras penitenciárias. Alguns projectos de lei anteriormente apre
sentados no Parlamento por deputados conhecedores do problema e dese
josos de resolvê-lo tinham ficado sem qualquer seguimento (2); e era quase
um ponto de honra para o Governo fazer alguma coisa no sentido de melhorar
o estado deplorável das nossas prisões e de dar concretização às ideias do
chamado «movimento penitenciário» — ideias que tinham tido entre nós,
até aí, uma projecção... puramente teórica.
Ao projectar uma Reforma das Prisões, o Governo entendia — e com
razão — que o momento era asado para se introduzirem também, através
dela, algumas medidas mais urgentes de correcção do direito penal vigente
e que não se compadeciam com uma mais demorada espera pelo novo
Código Penal. À frente dessas medidas estava, justamente, a abolição da
pena de morte para os crimes civis.
A proposta foi apresentada pessoalmente por Barjona na sessão de
28 de Fevereiro da Câmara dos Deputados (3) e veio publicada no Diário

(23 de Outubro) ter feito expedir uma portaria onde, conforme vimos (supra, nota 1 de
pp. 512-513), manda que o Projecto Jordão «seja, antes de convertido em proposta de lei
pelo governo, visto e examinado não só pelos tribunaes mais graduados da hierarquia
judicial, mas pelasmais auctorisadas corporações cientificas').
C1) A ideia de apresentar às Câmaras o Projecto de Código Penal de 1864 não
estava posta de parte, pois já vimos (supra, nota 1 de pp. 512-513) que aparece expressamente
referida no próprio Relatório do projecto de Reforma Penal e das Prisões agora enviado ao
Parlamento pelo Ministro B arjona. M as o simples facto de se aproveitar esta Reforma
para introduzir no direito penal vigente algumas importantes alterações de fundo mostra
que o Governo não estava já na intenção de apresentar ao Parlamento, em curto prazo,
a proposta de lei para a reforma do Código.
(2) H ouve, pelo menos, dois projectos de lei nesse sentido, de que dá demos
notícia: o do deputado F rancisco G avicho , apresentado na sessão de 3 de Junho de 1863
(cfr. supra, nota 3 de pp. 516-517); e o do deputado A yres de G ouveia^ apresentado
na sessão de 3 de Maio de 1864 (cfr. supra, nota 2 da p. 525).
(8) V. Diario de Lisboa, n.° 50, de 2 de Março de 1867, p. 606, l .a col.

534
de Lisboa do dia imediato (1 de Março) (*). O Ministro fazia-a preceder
dum bem elaborado relatório, em que qualifica a pena de morte, num tom
retórico muito ao gosto da época, como «a pena que paga o sangue com o
sangue, que mata mas não corrige, que vinga mas não melhora, e que usur
pando a Deus as prerogativas na vida e fechando a porta ao arrependimento,
apaga no coração do condemnado toda a esperança de redempção, e oppõe
á fallibilidade da justiça humana as trevas duma punição irreparável» (2).
E, depois de referir toda a evolução sofrida pelo problema em apreço desde
Beccaria até Mittermaier, termina proclamando no mesmo estilo: «Está
instruido o processo. Resta sentencea-lo. Toca aos governos a inicia
tiva» (3).
A pena de morte era substituída, na proposta de lei, pela de prisão
celular perpétua, que, aliás, de momento, era uma pena de todo inexequível,
por não existirem ainda entre nós cadeias penitenciárias adequadas (4).

C1) V. D iario de L isboa , n.° 49, de 1 de Março de 1867, p. 594 (R elatório da


proposta) e pp. 596 a 598 (A rticu lad o ).
(2) Cfr. D iario de L isboa , cit., p. 594, 2.a col. Antes do passo citado, Barjona de
F reitas justifica-se, no seu relatório, do facto de ter aproveitado a R eform a das P risões
para introduzir também alterações de fundo no sistema penal vigente:
«...Fôra incompleto o meu trabalho, se reformando as prisões mantivesse inalte
ráveis as penas. E porque não pareça estranho que, na mesma occasião em que o governo
se propõe sujeitar ao exame do parlamento o projecto de codigo penal, venha submetter
separadamente á vossa consideração uma proposta de lei que naturalmente cabe e pertence
ao plano d’aquelle projecto, direi apenas que não só as providencias contidas n ’esta
proposta foram subordinadas ao pensamento e systema do projecto de reforma do codigo
penal, que brevemente vos será presente, senão que na mesma urgencia dos males que
intento atalhar, e na natural detença e morosidade que requer o exame e approvação de
trabalhos d’aquella ordem, estão sobejamente indicadas as rasões que me inclinaram a
propor-vos a reforma parcial e immediata da legislação penal».
(3) Cfr. ibidem , p. e col. cits. O relatório acrescenta ainda, contra a aplicação da
pena de morte, várias razões de ordem teórica, com especial destaque para a falta de
proporcionalidade entre essa pena e o delito; e invoca os dados estatísticos da crimina
lidade em Portugal, nos últimos anos, para demonstrar que, apesar de abolida já de fa cto
a pena de morte desde 1846, nem por isso a criminalidade aumentou. E, por últim o,
não deixa de invocar também a razão que, mais do que nenhuma outra, exigia a abolição
da pena máxima entre nós, ou seja, o sentimento unânime do povo português contra
ela: — «Pelo que deixo dito, vê-se que está abolida, pelos costumes, pela sua inutilidade,
pela prescripção de longos annos a pena de morte. Convém pôr as leis de accordo com
os factos. Se se não executa, se contra a sua execução se insurgeria o sentimento e a
consciencia publica, para que manter essa antinomia entre as leis e os costumes, buscando
intimidar com phantasmas o espirito dos povos?» (cfr. ibidem , 3 .a col.).
(4) A última parte do relatório de Barjona de F reitas, relativamente ao tema
da pena de morte, é consagrada à justificação da pena de prisão celular perpétu a como

535
A proposta de Barjona de Freitas promovia justamente a construção das
primeiras penitenciárias em Portugal, dentro duma ampla reforma de
todo o nosso sistema prisional; e, nas disposições transitórias (artigo 64.°),
para suprir a deficiência acabada de notar, ordenava que a prisão celular
perpétua} fixada como sucedânea da pena capital, fosse sempre convertida,
em alternativa, na de trabalhos públicos perpétuos, «emquanto não for compe
tentemente declarado em inteira execução o systema de prisão cellular» (1).
Havia nisto uma certa incongruência, pois a proposta de lei,assim como
abolia no artigo l.° a pena de morte em todos os crimes civis, abolia também,
logo no artigo imediato, a pena de trabalhos públicos; e Barjona, no rela-

pena sucedânea: «...Levam -m e estas considerações a concluir pela desnecessidade da


pena de morte no estado actual do paiz. Substituo-lhe a prisão perpetua cellular, e ahi
julgo eu ver a melhor garantia de que não padecerá a administração da justiça, nem soffrerá
a sociedade com a suppressão d’aquella pena...
Senhores, notae que fallei em prisão cellular perpetua. Estranho parece que na
occasião em que intento expungir da legislação criminal a mais severa e odiosa de todas
as penas, deixe ainda no seu rasto a perpetuidade da prisão cellular. A perpetuidade das
penas suppõe a incorrigibilidade dos delinquentes. É a condemnação irrevogável. E á
luz dos principios que hoje dominam a penalidade, as penas devem tender não só a punir
o mal perpetrado, senão também a corrigir e reformar o criminoso.
Assim é; mas ao eliminar da legislação a pena de morte importava assegurar a
sociedade contra os crimes de mais levantada gravidade, e oppor na perpetuidade da
pena invencivel obstáculo á repetição d’elles.
A natureza dos crimes a que era applicada aquella pena e a necessidade de garan
tias sociaes explicam e defendem esta excepção aos indicados principios. E demais n ’um
paiz constitucionalmente regido, póde sempre o alvedrio da prerogativa real temperar
o rigor da punição e modificar a severidade das leis...........Assim a perpetuidade do castigo
perde no uso do direito de agraciar grande parte dos inconvenientes que se lhe attribuent»
(cfr. ibidem, 3.a col..)
É evidente que esta justificação da prisão celular perpétua, dada por Barjona, não
satisfaz. Salientou-o argutamente, na Câmara dos Pares — mas sem o menor eco no
seio da Câmara— , o digno par M ello e Carvalho (cfr. infra, nota 1 da p. 548); e outros
autores puseram em destaque, depois disso, a «incoherencia da admissão de uma tal pena
num systema que tem por fim a correcção dos condemnados» (cfr. H enriques da S ilva,
Elementos cit., vol. II, p. 95).
O Dispunha, com efeito, o artigo 64.° do Projector «Depois da publicação da
presente lei, e emquanto não for competentemente declarado em inteira execução o systema
de prisão cellular n’ella estabelecido, serão applicadas aos réus nas respectivas sentenças
condemnatorias as penas estabelecidas na mesma lei; mas nas ditas sentenças serão
também condemnados em alternativa os mesmos réus nas penas que pelo codigo penal
forem applicaveis a esses crimes. § unico. Quando ao crime corresponder a pena de
morte pelo codigo penal, nunca esta será imposta, mas a do artigo 3.° desta lei ( =prisão
maior celular perpétua), e na alternativa a de trabalhos públicos perpetuos» (cfr. ibidem,
p. 598, 2.a col.).

536
torio, tinha-se alongado em considerações sobre os inconvenientes desta
pena (x).

26. A proposta de lei do Ministro Barjona de Freitas baixou à


Comissão de Legislação Penal, que não teve, aliás, grande pressa em dar
o seu parecer, pois só o apresentou com data de 17 de Maio desse ano,
vindo a ser publicado na acta da sessão de 18 de Junho, em que teve início
a respectiva discussão (2).
Esse parecer, de que foi relator o deputado António Pequito Seixas
de Andrade, pronuncia-se nos termos mais favoráveis — e, por vezes até,
entusiásticos — em favor de toda a projectada Reforma Penal e das Prisões
e particularmente em favor da abolição da pena de morte, preconizada no
seu artigo l.°. Depois de citar Beccaria e Jeremias Bentham, louva-se na
«obra magistral de Mittermaier, recentemente publicada sobre este impor
tante objecto», e refere ainda os escritos de Mably, de Filangieri, de Pastoret
e de Mancini, para apontar em seguida uma série de razões que justificam
a imediata supressão da pena de morte em Portugal. Refere, entre essas
razões, «a experiência de mais de vinte annos, em que se acha [essa pena]
entre nós abolida de facto», «a sua abolição também de direito nos crimes
politicos», «a brandura e suavidade dos nossos costumes», «a repugnancia
que em geral têem os jurados, juizes e tribunaes, na sua applicação», «os
graves inconvenientes resultantes d’este antagonismo das leis que a conser
vam e dos costumes e opinião publica que a querem abolida» e, finalmente,
«a consideração de que, adoptado o systema de prisão cellular que se propõe,
e accommodadas a elle as nossas cadeias, a sociedade não fica privada dos

C1) Sobre a pena de trabalhos públicos, que o artigo 2.° do Projecto abolia*
afirmava o Relatório de Barjona de F reitas: «Também pela proposta de lei* a que estou
alludindo* fica supprimida a pena de trabalhos públicos. Não reúne esta as condições
requeridas hoje pela sciencia para conseguir o duplo fim da intimidação e moralisação
do culpado. Sujeitando-o ao desprezo publico e abatendo-o a seus proprios olhos* extingue
n ’elle todos os sentimentos de pudor e tolhe completamente a sua regeneração. Não se
aproveitam os seus bons instinctos. Fom enta-se-lhe a reacção contra a pena, e privando-o
do incentivo de reforma* como que se lhe imprime e radica no espirito o amor do crime
e o odio á sociedade.
Tam bém se não póde argumentar com as qualidades económicas d’esta pena* porque
ensina a experiencia qual a esterilidade do trabalho forçado* que abatendo a dignidade
do homem extingue n ’elle a expontaneidade das faculdades individuaes e nivela com o
do escravo o seu trabalho...» (cfr. ibidem* p. 594* 3.a col.).
(2) Diario de Lisboa* n.° 141, de 26 de Junho de 1867* pp. 2018 (2.a e 3.a cols.)
e 2019 (1.a* 2.a e 3.a col.s).

537
meios necessários de repressão, ainda que do numero d’elles seja riscada
aquella pena» (*).
Perante o peso de tão poderosas razões, o relatório podia acertadamente
concluir que «tudo nos leva a crer que é chegada a hora feliz em que, sem
perigo, podemos com inteira confiança introduzir na nossa legislação penal
esta humanitaria reforma» (2).
27. A hora tinha, de facto, chegado; e bastaram duas sessões incom
pletas da Câmara dos Deputados para a proposta ser aprovada — e apro
vada quase por unanimidade.
C1) Cfr. ibidem , p. 2018, 3.a col. Um a curiosa passagem do relatório da Com issão
de Legislação P en al y a que estamos a referir-nos, é aquela em que o relator, para defender
a tese de que o abrandamento das penas não faz aumentar a criminalidade, se louva num
«escripto recentemente publicado» «de um dos nossos mais illustrados concidadãos,
o sr. marquez de Sá da Bandeira», transcrevendo desse escrito a seguinte passagem: «De
se achar de facto abolida ha tantos annos a pena de morte no exercito portuguez, resultou
que, sem que a ella haja recurso, póde em tempo de paz conservar-se um exercito disci
plinado, quando commandantes dignos e officiaes zelosos cumprirem com os seus deveres.
Este facto é honroso para o nosso paiz; elle ha de ainda seguramente servir de forte argumento
áquelles que em outras nações trabalham para que a pena capital seja eliminada dos codigos».
O interesse deste texto está em demonstrar que SÁ da Bandeira, fora do Governo,
continuava partidário da abolição da pena de morte para os crimes m ilitares (o que, aliás,
é confirmado por um outro escrito seu, citado por H enriques S ecco, nas M em orias do
tem po passado e presente cit., vol. I, p. 660), como quando, no Governo, subscrevera a
proposta de lei de 11 de Janeiro de 1864, atrás largamente referida (su pra, n.° 21, 22, 23
e 24 e respectivas notas). E tudo isto parece confirmar a nossa suspeita de que a substitui
ção de SÁ da Bandeira na pasta da Guerra, ocorrida em 14 de Janeiro de 1864, esteja na base
do fracasso a que foi votada aquela proopsta legislativa (v. supra , n.° 23 e notas respectivas).
(2) Cfr. D iario de Lisboa cit., p. 2018, 3.a col.. Sobre o problema da pena sucedânea
indicada para substituir a pena de morte (prisão celular perpétu a ), o relatório da Com issão
de Legislação P en al da Câmara dos Deputados repete, m u tatis m utandis, para as aceitar,
as considerações do relatório de B arjona (que trasncervemos supra, nota 4 de pp. 535-536).
Eis o que diz o relator:
«Abolida porém a pena de morte era mister determinar qual deveria applicar-se
aos crimes, a que pelo codigo penal aquella era applicavei. A proposta providenciou
a tal respeito, e substituiu-lhe no artigo 3.° a pena de prisão maior cellular perpetua.
Poderá dizer-se contra tal substituição que ella é contraria aos melhores principios do
direito penal, que exigindo, principalmente nas penas o elemento reformador, se oppõe
á perpetuidade d’ellas por acabar com o incentivo de emenda, tornando a inútil. A gravi
dade porém dos crimes de que se trata, o dever de assegurar a sociedade do temor de os
ver repetir pelo mesmo individuo, o que difficilmente se poderia obter sem a perpetuidade
da pena, persuadiram a commissão a approvar aquella substituição, confiando que o poder
moderador, sabiamente exercido, commutará, quando o aconselhem os principios de
justiça e equidade, a pena substituida, fazendo assim que se não extinga nos criminosos
a que for imposta o estimulo da sua reforma moral» (cfr. ibidem , p. e col. cits.).

538
Ainda se ergueu uma ou outra voz discordante; mas sem qualquer
reflexo sensível na discussão e votação da lei: — Logo na sessão de 18 de
Junho, em que o debate se iniciou, pediu a palavra o deputado Faria de
Barbosa 0 , para impugnar a oportunidade da abolição radical da pena de
morte, considerando essa abolição um grave risco para a segurança e
garantia da vida e da propriedade dos cidadãos e defendendo a sua manu
tenção nos casos de assassinato, fogo posto e moeda falsa (2). Mas esta
voz isolada logo teve resposta pronta, no discurso seguidamente proferido

C1) A ntónio do R ego F aria Barbosa, deputado pelo círculo eleitoral de Barcelos
(cfr. infra , nota 2 de pp. 540-541). Aparece designado nos relatos das sessões ora por
F aria Barbosa ora por F aria R ego.
(2) O debate iniciou-se com uma breve intervenção do deputado S ant’A nna
E V asconcellos, que, a pretexto de mandar um requerim ento para a mesa (para que
se dividisse a discussão do projecto em duas partes: reform a pen al e reform a das cadeias
— o que foi aprovado), exprimiu logo a sua adesão entusiástica à abolição da pena de
morte, dizendo que Portugal, ao dar este passo, «colloca-se á frente da civilisação europèa,
e é n ’este momento solemne uma das primeiras nações do mundo» (cfr. D iario de Lisboa
cit., p. 2021, 3.a col.).
Depois duma breve intervenção do relator da Com issão (o deputado P equito
S eixas de A ndrade ) sobre a ordem dos trabalhos, usou da palavra J osé D ias F erreira
(que era membro da Com issão de Legislação P en al e tinha, como tal, subscrito também
o respectivo parecer). Mas o seu discurso, infelizmente, não vem publicado no relato da
sessão porque, como aí se diz, «O sr. deputado não restituiu o seu discurso a tem po de ser
publicado rìeste logan (cfr. loe. c it.). Era costume, quando assim sucedia, os discursos
serem publicados num dos números imediatos do D iário de L isbo a ; mas foi em vão que
o procurámos. Pelo menos até 30 de Setembro, não chegou a ser publicado ; e não cremos
que o tenha sido depois dessa data. Ao que se infere, porém, do discurso seguidamente
proferido pelo deputado P equito (relator do parecer da Comissão) em resposta a D ias
F erreira e a F aria R ego (vide in fra , nota 1 da p. 540), D ias F erreira não se referiu, no
seu discurso, ao problema da pena de morte; falou exclusivamente para manifestar a sua
discordância em relação ao excessivo isolamento dos presos, no sistema penitenciário
preconizado pelo projecto.
Foi em seguida a D ias F erreira que falou o deputado F aria Barbosa ou F aria
R ego, a quem se há-de louvar, ao menos, a coragem moral de expor o seu pensamento
sem rodeios, perante um ambiente nada receptivo à tese que sustentava:
«...Não posso concordar de maneira alguma que, no estado em que nos achámos,
com uma desmoralisação espantosa que se não tem tratado de reprimir... (O sr. G avicho :
— Peço a palavra.) Com uma desmoralisação espantosa, torno a repetir, com os crimes
que todos os dias vemos e presenciámos, com os assassínios horrorosos que de dia e de
noite se praticam por toda a parte, não posso concordar, digo, em que a pena de morte
seja abolida absolutamente. Em os crimes de assassino (sic)> de incendiario, de moedeiro
falso não voto pela sua abolição.
D e facto a pena de morte está abolida e não se tem applicado ha muitos annos.
Que rasão, que receios, que temor ha de que este estado continue? Emquanto não

539
pelo relator do parecer da Comissão (o deputado Pequito) (x); e, sobretudo,
logo foi ofuscada perante o brilho e o fogo da palavra de Ayres de Gouveia
que foi o último orador desse dia e que ficou com a palavra guardada para
a sessão imediata, por ter soado a hora regimental antes de poder expender
todas as considerações que desejava (2).

podérmos moralisai mais o paiz; em quanto as prisões se não fazem e se não estabelece
todo o necessario, ha de ficar abolida desde já a pena de m orte?..........
Este desejo de destruir sem preparar, sem dispor primeiro o que é indispensável
para o que ha de vir; quem acredita que podemos marchar na vanguarda de todas essas
grandes nações na distancia a que nos achám os? Elias ainda não aboliram a pena de
m orte...........
Eu estremeço quando vejo o enthusiasmo com que se defende, com que se procura
dar mais garantias aos criminosos, deixando em risco os que o não são.
Termino votando contra a abolição em todos os crimes». (Cfr. D iario de L isboa
cit., pp. 2021, 3.a col., e 2022, 1.a col.
C1) Tam bém este senhor deputado m ão restituiu o seu discurso a tem po de ser
publicado ri*este logar» (cfr. loe. c it,) ; mas veio o referido discurso a ser publicado mais
tarde, no D iario de L isboa , n.° 164, de 25 de Julho imediato, pp. 2347 (3.a col.) a 2349 (1.a col.).
P equito S eixas de A ndrade responde primeiro às objecções de D ias F erreira
acerca do excessivo isolamento dos presos, no sistema penitenciário preconizado pelo
projecto (v. nota anterior); e responde depois, e mais extensamente, à anterior inter
venção de F aria R ego em defesa da pena de morte:
Faz uma breve alusão à ilegitim idade da pena de morte, para logo se colocar — como
a generalidade dos abolicionistas — no plano puramente pragmático, dizendo: «Mas não
tratemos a questão agora por esse lado; vejamos se, attendendo aos interesses geraes da
sociedade, seria uma innovação perigosa a abolição da pena de morte» (cfr. loc. c it.,
p. 2348, l .a col.).
Nessa ordem de ideias, invoca os dados estatísticos constantes do relatório da
proposta governamental de 1864 para a abolição da pena de morte (v. supra , n.° 21 e
nota 1 de pp. 521-523) e os fornecidos agora pelo relatório de Barjona de F reitas, para
demonstrar que a abolição de fa cto , em que se vivia desde 1846, não fez aumentar a crimi
nalidade (loe. cit. y p. 2348, 1.a e 2.a cols.). E espraia-se depois em longas considerações
sobre os progressos recentemente feitos pelo movimento abolicionista na Inglaterra, na
França e noutras nações, a fim de afastar os receios manifestados pelo deputado F aria
R ego quanto ao facto de Portugal se propor dar um passo que as outras nações não tinham
dado ainda (loc. c it., p. 2348, 2.a e 3.a cols.). E termina por invocar, mais uma vez — como
já o tinha feito no parecer da Comissão, de que fora relator (v. supra nota 1 da p. 538) — ,
o testemunho do M arquês de S á da Bandeira quanto ao melhoramento da disciplina
militar após a extinção de fa cto da pena capital no seio do exército (loc. c it., p. 2349, l .a col.).
(2) Foi breve — por falta de tempo — esta primeira intervenção parlamentar de
A yres de G ouveia no debate sobre a abolição da pena de morte, na sessão de 18 de Junho
de 1867.
Começou por ripostar, em termos enérgicos, ao deputado F aria Barbosa ou F aria
R ego: «Veiu enfim. Veiu trazida ao debate parlamentar esta questão, a mais grave de
quantas questões sociaes podem occupar a attenção de uma assemblèa illustrada. Custou

540
Ao retomar a palavra, na sessão de 21 de Junho, Ayres de Gouveia
não se limita a louvar a proposta e a fazer a defesa calorosa da abolição (’).
a apparecer; e porque custou a apparecer, por isso mesmo fez se mais desejada; por isso
m esm o ha de ser resolvida mais conscienciosamente.
Veiu, e veiu conjunctamente com ella, e folgo com isso, a voz do illustre deputado
representante do circulo eleitoral de Barcellos, advogando ainda a idèa velha, ainda
tremendo pela abolição, ainda querendo a forca de pé, ainda dizendo que emquanto
a sociedade não estiver bastante moralisada, deve continuar a existir a pena de morte.
Quer dizer que emquanto um individuo tiver bastante immoralidade que o leve a assas
sinar, a nação deve contribuir para essa immoralidade, matando também. Ha desmo-
ralisação; receiam-se assassinios; pois a um assassinio particular responde se por outro
assassinio official!..............» (cfr. Diario de Lisboa, n.° 141, de 26 de Junho de 1867,
p. 2022, 1.» col.).
N a segunda parte do seu discurso — e após algumas frases de puro efeito retò
rico — , A yres de G ouveia congratula-se com o facto de Barjona de Freitas, que
ainda anos antes duvidava da oportunidade da abolição, vir agora propô-la, como
m inistro; mas critica-o duramente por, no seu relatório, dizer que «a pena de morte
seria legitima se a justificasse a lei da proporcionalidade da pena ao delicto e indubita
velmente o reclamasse a necessidade social». Comenta: «...Proporcionalidade? Pois
D eus que não permittiu que houvesse duas areias iguaes no mar, duas folhas iguaes
nas arvores, havia de permittir que houvesse dois homens, assassino e assassinado, iguaes ?
Imaginaes o impossivel para imaginar a pena legitma». E, mais adiante: «...Necessidade
de que? A sociedade poderá nunca ter necessidade de assassinar um homem?» (cfr. loc.
cit.y 2.a col.). E à afirmação de Barjona de que «o primeiro direito da sociedade é o da
sua conservação», contesta energicamente: «Pois que! Estamos perfeitamente na doutrina
socialista? O primeiro direito é do individuo, porque a sociedade não é senão a collecção
de individuos, e não há direito de todos contra o direito de um , não direito forte contra
direito fraco; o direito é todo um , e um só..........» (cfr. ibidem).
Finalmente, A yres de G ouveia cita e comenta — neste seu primeiro discurso —
algumas afirmações saídas a lume na imprensa periódica da capital, a propósito do projecto
de lei em discussão.
(x) Apesar de G ouveia ter ficado com a palavra «reservada» para a sessão imediata,
só na sessão de 21 de Junho ela lhe foi de novo concedida. D e permeio, houve duas sessões
(diurna e nocturna) em 19 de Junho, em que se trataram outros assuntos muito diversos.
Ao retomar a palavra em 21 de Junho, A yres de G ouveia começa por lamentar, com pala
vras particularmente duras, esta inesperada interrupção:
«O sr. Ayres de Gouveia : — Tenho a palavra? Ainda bem , e mercê de Deus que
a tenho. Imaginava já não poder rehave-la outra vez n ’esta sessão annual! O facto que
se tem passado nestes últimos dias é novo, é singular e insolito.
Cortar-se a discussão dum projecto quando um sr. deputado tem acabado de
expor as suas observações, a fim de se tratar de preferencia de um projecto de elevado
alcance, isso tem se feito, e isso comprehende-se ; mas cortar a palavra a um deputado
que está tratando de um assumpto gravissimo, e que não pôde continuar porque a fata
lidade da hora o veiu estorvar, para intrometter na discussão tres, quatro e dez projecto-
sinhos, de duvidosa utilidade, é novo, é cousa nunca vista no parlamento. Não censuro;
não me cabe censurar. A presidencia dirige os trabalhos, a camara concorda com essa

541
Quer iríais^ pois a proposta limita-se a abolir a pena de morte para os crimes
civis e deixa em aberto o problema da aplicação da pena capitai no foro
militar. Em seu entender, o projecto em discussão «propõe apenas meia
direcção, e a mim cabe-me curvar a cabeça humildemente. O governo deseja-o e ordena-o
assim, ninguém rompe o silencio para protestar, faça-se como ordena.
Lim ito-m e a registar apenas o facto por dignidade propria, porque fui preterido
uns poucos de dias, e por dignidade do systema parlamentar» (cfr. D iario de L isboa ,
n.° 144, de 2 de Julho de 1867, p. 2074, 2.a col.).
Retomando o fio da sua interrompida exposição, A yres de G ouveia começa por
fazer uma breve recapitulação histórica acerca dos antecedentes próximos do projecto
em discussão. Conta que foi o facto de a pena de m orte aparecer consagrada em vários
projectos apresentados à Câmara em fins de 1862 e em 1863 (o projecto de reforma do
C ódigo P enal , de L evy M aria Jordão; e os projectos de Código P en al M ilita r , C ódigo
P en al da M arin h a M ercante e Código P en al da M arinh a de G u erra) que o levou a formular
o propósito de aproveitar a primeira ocasião para trazer ao debate do Parlamento este
problema.
Essa primeira ocasião — acrescenta — foi a discussão do orçamento, nesse ano
de 1863. E explica: «Lográmos então abolir uma entidade fatal que vinha inscripta no
nosso orçamento, e que na relação nominal dos empregados do estado vinha inscripta ao
lado dos srs. ministros (riso ). ... Não obtivemos mais, mas alcançámos que o assumpto
ficasse desde então como em continua ordem do dia» (loc. cit ., 3.a col.).
Depois disso, o discurso de A yres de G ouveia passa a apreciar e a criticar longa
mente a posição assumida pelo projecto de C ódigo P en al de L evy M aria Jordão em
matéria de pena de morte (loe. cit.y pp. 2074, 3.a col., e 2075, 1.a col.). Tudo quanto
a este respeito cita, transcreve e critica refere-se ao P rojecto de 1861 e respectivo R ela
tó rio, parecendo ignorar — o que causa não pouco espanto a quem lê, pois está-se então
em 1867 — que o mesmo L evy M aria Jordão, na nova versão do P rojecto e do R ela
tó rio, de 1864, modificara inteiramente a sua posição, preconizando a abolição da pena
de morte e dando larga justificação do seu novo ponto de vista (v. supra , n.° 19 e notas 1,
2 e 3 de pp. 513-514). Mais estranho é que não se levantou uma única voz no Parla
mento a desfazer este equívoco ! L evy M aria Jordão — que era o directamente visado
— não estava presente (cfr. a lista dos deputados que não compareceram à sessão de
21 de Junho, no D iario de L isboa , cit., p. 2071, l .a col.); e parece que, entre os demais
deputados — a julgar pela forma como passaram em claro as diatribes de G ouveia
contra um texto ultrapassado — , ninguém conhecia a nova versão (de 1864) do P rojecto
e do R elatório daquele distinto criminalista! Isso, aliás, encontra a sua explicação no
facto de que o P rojecto conhecido do Parlamento era o de 1861. O de 1864 foi elaborado
para ser presente ao Governo, depois de a proposta de lei baseada no Projecto de 1861 ter
caducado, com o termo da legislatura de 1861-1864; e, à data em que estas coisas se
passavam (21 de Junho de 1867), o Governo continuava com o P rojecto de 1864 na mão,
sem o enviar à Câmara dos Deputados.
Depois desta infeliz passagem do seu discurso, A yres de G ouveia alonga-se em
várias considerações de menos interesse, para depois invocar o valioso argumento de a
pena de morte estar já abolida de fa cto de há m uito, em Portugal. A este propósito, refere
a circunstância de a pena capital já não se executar em relação às mulheres desde 1772;
e alude nos seguintes termos à abolição de fa cto também já verificada quanto aos hom ens,

542
abolição» e importa ir até ao fim5 banindo a pena máxima para todos e
quaisquer crimes, sejam eles civis ou militares; e termina o seu discurso
mandando para a mesa uma proposta de emenda nesse sentido 0 .
Não foi difícil a Barjona de Freitas ladear a dificuldade desta intem
pestiva proposta de emenda, que corria o risco de comprometer as inten
ções do Governo e fazer soçobrar o projecto em discussão : — Em breve e
cordata intervenção, o Ministro da Justiça explicou que o projecto era da
exclusiva iniciativa do seu Ministério, não tendo o Ministro da Guerra
sido ouvido a seu respeito; que, devendo este apresentar às Câmaras um
projecto de reforma do Código Penal Militar, aí teria o seu lugar próprio
a substituição da pena de morte por outra pena, no foro militar; e que a
Câmara não quereria, por certo, «prejudicar o andamento regular» do
projecto em discussão por causa duma proposta de emenda que podia
perfeitamente «ter o seu seguimento á parte» (2).

desde 1846: «...Em relação aos homens faz ámanhã dois mezes sobre vinte e um annos
que Lagos assistiu á ultima execução; temos portanto a maioridade da abolição da pena
de morte. Estão completos vinte e um annos, podemos dar-lhe o fòro de cidade. Chegou
á maioridade; está emancipada a abolição, consignemo-la portanto na lei. N ós hoje quasi
que se quizessemos não podíamos fazer uma execução, porque a opinião publica reagia
energicamente contra isso (apoiados), e até porque tivemos o bom senso de destruir o
local onde se levantava a forca em Lisboa, e fazer-lhe em cima a gare do caminho de ferro.
Substituimos a barbaria pela civilisação. Onde se ouvia o gemido e se via a agonia do
moribundo, estrabuchando na forca, ouve-se hoje o silvo da locomotiva, vê-se a vida e
o progresso. É assim que nós fazemos; é pois necessario aboli-la, porque não temos já
local sequer para a praticar. Não temos algoz, queimou-se a forca, desappareceu o local...»
(cfr. loc. c it ., p. 2075, 3.a col.).
C1) É só na parte final do seu discurso que A yres de G ouveia põe o problema
da abolição da pena de m orte p a ra os crimes m ilitares. Faz referência à posição assumida
pelos sucessivos projectos, a este respeito (o seu, de 1863; o projecto governamental, de 1864;
e o projecto em apreciação); e dá-nos a curiosa informação de que, em 1864, a abolição
da pena de morte para os crimes militares teve o voto favorável de 4 membros da Com issão
de G uerra da Câmara dos Deputados e o voto contrário de 3, cujos nomes cita, monstrado-se
contundente para com estes: «...É natural que fossem os militares de maior graduação,
os que queriam a conservação da pena de morte para manter inquebrantável a disciplina,
do exercito; emquanto que os de menor graduação e que estão sempre mais em contacto
com os soldados, a não queriam! E é mais notável ainda que os quatro cavalheiros que
entenderam que a pena de morte não era necessaria para a disciplina do exercito, nunca
tiveram a mais pequena idèa de revolta politica ou de revolta militar; emquanto que dos
que entenderam que era necessaria, me parece, a não me falhar a memoria, que algum
ou alguns não seguiram sempre a mesma bandeira...» (cfr. ibidem , p. e col. cits.).
(2) V. ibidem , p. 2076, 1.a col.. B arjona de F reitas term ina a sua intervenção
pedindo à presidência «que dê o devido destino á proposta apresentada pelo [seu] collega
e am igo, o sr. A yres de G ouveia , sem prejuizo do seguim ento d’este projecto que vam os

543
As palavras de Barjona receberam os apoiados da Câmara e Ayres
de Gouveia, desta vez, ficou sozinho na sua proposta 0 , tendo-se passado
imediatamente à votação (2), que o deputado Gavicho requereu que fosse
nominal. Votaram 90 deputados a favor; e houve apenas 2 votos contra,
dos deputados Cunha Salgado e Belchior Garcez, que imediatamente pediram
a palavra para explicar o seu voto, já que ela lhes não tinha sido dada antes
da votação (3). Ambos sustentaram a tese de que a abolição da pena de morte
não deveria resultar duma proibição legal a respeito da sua aplicação, mas
antes ser imposta naturalmente «pela civilização, pela illustração e pela
morigeração dos povos» (4).
Cunha Salgado acrescentava a isto não reconhecer virtude «em não
ser o criminoso condemnado á morte, se a lei veda que elle o seja», prefe
rindo o «statu quo» de a pena capitai ser prevista na lei e não a aplicarem
os tribunais (5); e Belchior Garcez, exprimindo iguais sentimentos, chamava
no entanto a atenção para o caso das províncias ultramarinas portuguesas;
cujo estado atrasado de civilização exigiria talvez ainda por muito tempo
a aplicação da pena de morte (6).
votar, para sobre ella serem ouvidos a commissão de guerra e o illustre ministro». Idêntico
pedido formulou, na mesma ocasião, o deputado B ivar (ibidem , 2.a col.).
C1) Não só ficou sòzinho como teve de ouvir um reparo pertinente do deputado
Pequito de S eixas (relator do parecer da Comissão). M anifestou este a sua estranheza
pela atitude de A yres de G ouveia ao reclamar com tanto calor a abolição to ta l , dado que,
em 1863, depois de apresentar um projecto de lei que previa a abolição da pena de morte sem
distinção entre crimes civis e militares, subscreveu, como relator da Com issão de Legislação , o
parecer em que esta se pronunciava pela m era abolição p ara os crimes civis (V. ibidem , 2.a col.).
(2) Estavam inscritos para falar, desde a sessão de 18 de Junho, os deputados
G avicho, Cunha S algado, C osta e S ilva, C unha de Barbosa e Costa L emos; e já a
tinham pedido também, nessa sessão de 21, os deputados F aria R ego ( = F aria Barbosa),
Barros e S á e, de novo, Cunha de B arbosa.
M as... não falou mais ninguém: — O Deputado T eixeira de V asconcellos soli
citou à presidência que consultasse a Câmara sobre se considerava «esta materia suffi
cientemente discutida». A Câmara pronunciou-se em sentido afirmativo; e o debate foi
logo dado por encerrado.
(3) Com o debate já encerrado e a votação concluída, a concessão da palavra já
só se justificava «para explicações». Foi nesse sentido que os interessados a solicitaram.
M as o presidente, mesmo assim, só lhes concedeu essa faculdade depois de consultar
a Câmara (v. ibidem , 3.a col.).
(4) A s palavras citadas são do discurso de C unh a S algado (ibidem , 3.a col.);
mas a m esm a ideia aparece tam bém focada no discurso de B elchior G arcez (loc. c it.,
p. 2077, l . a col.)..
(5) Cfr. loc. c it ., p. 2076, 3.a col.
(6) «...Não me parece — afirma — que a lei que se votou hoje exprima bem as
idéas e as necessidades do povo portuguez, e corresponda às exigencias de um paiz que

544
Além dos dois aludidos votos expressos contra a aprovação da proposta
governamental, houve na Câmara dos Deputados também, nesta conjun
tura, algumas abstenções. O relato da sessão dá conta de duas : do deputado
Faria de Barbosa (ou Faria Rego) e do deputado Cunha de Barbosa.
O primeiro é o deputado que, logo na primeira sessão, levantou a sua voz
contra a oportunidade da abolição da pena capital, sustentando a sua
necessidade nos crimes de assassinato, fogo posto e moeda falsa. Não se
percebe por que motivo se absteve, pois estava presente à sessão e corajo
samente voltou a usar da palavra em sustento dos seus pontos de vista, já
depois da votação concluída (1). O segundo justificou a sua abstenção com

tem algumas provindas no ultramar principalmente mais perto do estado selvagem do


que do de uma adiantada civilisação ; provincias onde talvez tenha ainda por m uito tempo
de se applicar a pena de morte por necessidade extrema» (cfr. ibidem , p. e col. cits.).
A encerrar o seu discurso, B elchior G arcez escalpeliza a pena sucedânea (a prisão
celular perpétua), que considera uma pena de m orte lenta> muito pior que a verdadeira
pena de morte: «...Sr. presidente, a verdade é que entre mim e os meus nobres adversarios
não ha tão profunda divergencia como á primeira vista parece. T odos nós queremos
resguardar a sociedade e pô-la a abrigo da ferocidade de certos instinctos. Eu e m uitos
outros vamos direitos ao fim pelos processos mais humanos e mais summarios. Rarís
simas vezes propomos a pena ultima. Os meus illustres adversarios fazem a mesma cousa
com a seguinte differença. N ão querem matar depressa. Pegam n’um criminoso e
m ettem -no por toda a vida n ’uma jaula de ferro, a que chamam prisão maior; o criminoso
morre ali infallivelmente dentro em pouco na mais horrível das torturas. É rigorosa
m ente a pena de morte; está apenas a differença no m odo de a applicar: emquanto eu
quero enterrar mortos, os meus nobres contendores querem enterrar vivos» (cfr. loc . cit.y
p. 2077, 2 .a col.).
C1) Pode tratar-se de mero lapso do relato das sessões; mas não é provável.
É evidente que não votou pela abolição , pois m anifestou-se abertamente contra ela antes
e depois da votação; nem , aliás, o seu nom e figura entre os 90 que aprovaram o artigo l.°
do projecto governamental. M as também parece claro que não votou contra a abolição ,
pois os dois únicos nomes referidos como tendo rejeitado o artigo abolicionista são os de
Cunha Salgado e Belchior G arcez; e não é crível que, numa tão escassa enumeração,
tivesse escapado o nome dum terceiro votante. T em de concluir-se, assim, que esteve
presente, mas não votou; embora tenha algo de enigmático tal atitude.
Nesta sua segunda intervenção, F aria B arbosa volta a afirmar que não se conforma
com a abolição da pena de morte «nos crimes de assassinio, incendiario e moedeiro falso»;
mostra-se preocupado com a estatística dos crimes dos últimos anos, que, longe de demons
trar — como pretende o relatório de B arjona — uma diminuição do índice de crimina
lidade, demonstra, em seu entender, um agravamento da situação anterior; invoca mais
uma vez — como na sua primeira intervenção (vide supra , nota 2 de pp. 539-540) — o facto
de «as nações mais adiantadas e mais moralisadas, a França, a Inglaterra, a Italia, a Belgica
que tantas vezes aqui se apresenta para modelo» ainda não terem abolido a pena capital;
e termina por lamentar que não se tivesse aguardado, para uma reforma de tal vulto, a cons
trução das prisões e o exemplo das dem ais nações (cfr. loc . cit.y p. 2077, 2.a col.).

545
35- II Vol.
o facto de o presidente ter posto precipitadamente o projecto à votação,
sem dar a palavra a vários deputados que a tinham pedido, entre os quais
se contava 0 (2).
28. Cinco dias depois, em 26 de Junho, a proposta estava em discussão
na Câmara dos Pares, com parecer favorável, datado da véspera, da respectiva
Comissão de Legislação (3). Usaram da palavra os dignos pares do Reino
Costa Lobo, Marquês de Sá da Bandeira, Morais Carvalho e Melo Carvalho.
Só o primeiro tomou a posição de velho do Restelo, insurgindo-se não
propriamente contra a abolição da pena de morte em si, mas contra a preci
pitação do Governo e das Câmaras, que assim se atreviam «a reformar a
legislação penal, sem estudo e sem ter que substituir-lhe» (4). Os demais
0) Embora declarando que se absteve e por que razões se absteve, Cunha de
Barbosa não oculta que, ao ter solicitado a palavra antes da votação — no que não foi
atendido (v. supra , nota 2 da p. 544) — , «queria provar a legitimidade da pena de morte,
e por certo o podeiia fazer, porque cada um vê as cousas conforme as suas idéas»
(cfr. loc. c it., p. 2077, 3.a col.).
Foram 4, portanto — como se vê — , e não apenas 2, os deputados que se mani
festaram contra a abolição: os dois que votaram contra (C unha Salgado e Belchior
G arcez) e os dois que se abstiveram mas que exprimiram no mesmo sentido o seu pensa
mento após a votação (F aria B arbosa e Cunha de Barbosa).
(2) Ainda falaram também — neste final da sessão e com a lei já votada — ,
a pretexto de «explicações», os deputados M endes L eal e G avicho: o primeiro, para
explicar que o ter votado esta lei, em que a abolição era prevista apenas para os crimes
civis , não implicava ter-se afastado da posição que assumira em 1864, ao subscrever,
como M inistro da Marinha, a proposta governamental que previa a mesma abolição
também para os crimes m ilitares praticados fora do tempo de guerra; e o segundo, para,
em brevíssimas palavras, dizer porque requereu a votação nominal e porque votou em
favor da abolição (v. ibidem , 2.a e 3.a cols.).
(3) V. D iario de L isboa , n.° 147, de 5 de Julho, p. 2121, 1.a, 2.a e 3.a cois.
O parecer da Comissão, onde se afirma que «a pena de morte, nem é necessaria (e a expe
riencia o tem mostrado), nem satisfaz os fins da penalidade», é assinado pelos dignos pares
do Reino José Bernardo da S ilva Cabral, F élix Pereira de M agalhães, Conde de
F ornos de A lgodres, F rancisco A ntónio F ernandes da S ilva F errão e A lberto
A ntónio de M orais Carvalho. Não se diz aí quem foi o relator; mas é manifesto que
foi M orais Carvalho, dada a natureza e o teor da sua intervenção no debate (cfr. in fra ,
nota 1 de pp. 547-548).
(4) «O sr. C osta Lobo : — Eu não m e disponho a discutir o projecto, porque
é impossível faze-lo n ’estas circumstancias ; mas confesso que não póde o meu espirito
soffer que deixe passar esta occasião sem protestar (permitta-se-me a expressão) contra
o systema que se está seguindo. Tocados de uma especie de vertigem, como se diz, que
sentem os viajantes que visitam as cataractas do Niagara que, vendo cair a agua aos
turbilhões, se lhes perturba a vista, e quasi perdem a cabeça, tendo a tentação de se
lançarem á agua; assim vejo a camara a lançar-se n ’esta cataracta de leis que corre

546
louvaram calorosamente a abolição (L); e o último foi mesmo mais longe,
insurgindo-se contra a pena sucedânea (a prisão celular perpétua), que consi-
em turbilhões. Vendo isto não me atrevo a mandar para a mesa qualquer proposta
que possa parecer que offerece algum obstáculo ao empenho de correr a passos preci
pitados, como se se tratasse de salvar o m undo, por modo que não se admitte nada que
possa demorar essa obra, e desarranjar os planos salvadores, estabelecendo agora de novo
a questão do pauperismo. Parece que se trata, que sei eu? de propor o decretamento da
paz universal ou a pacificação immediata do Oriente... E tudo póde ser, porque na verdade
parece que estamos todos inspirados, que não estamos discutindo n ’um parlamento, mas
formando um concilio ecumenico.
Eu vejo, sr. presidente, que se approva o orçamento em poucos minutos, que se
faz o mesmo com a reforma das secretarias, com o decretamento dos codigos, com
a reforma do systema penal, e com tudo que ha de mais importante. Já estou vendo
propor dispensas de regimento para impressão, e até para nem se lerem os pareceres!
Por certo ninguém deixará de dizer que o parlamento portuguez está inspirado! Isto
sim , que é progresso; onde está ou onde fica o systema inglez? Pois no meio d’estes
calores tropicaes hão de seguir-se as formulas inglezas tão frias?! Havemos de estar
aqui dez e doze horas a discutir, como ali se faz? N ós para discutirmos uma reforma
eleitoral ou qualquer assumpto importante gastámos só uma sessão, e até, sendo neces
sario, uma pequeníssima parte d’ella. Atrevemo-nos a reformar a legislação penal, sem
estudo e sem ter que substituir-lhe...»
E, a terminar: «...Não digo mais nada, sr. presidente, e peço desculpa á camara
por lhe ter occupado o tempo apresentando estas considerações e imagens. N o entanto
sempre direi que, quanto a mim, tomaria a resolução de adiar todos estes projectos até
que houvesse o tempo necessario para serem estudados e discutidos como merecem e
devem se-lo ; a camara porém fará o que quizer. Pela minha parte fiz o que devia, porque
me pesaria sobre a consciencia deixar de apresentar aqui a minha opinião sobre o systema
que vejo a camara seguir» (cfr. loc. cit., p. 2121, 3.a col.).
C1) O M arquês de S á da Bandeira foi breve no que disse acerca da abolição da
pena de morte, limitando-se a recordar — para fundamentar a sua concordância com
a medida — que assinara em 1864, conjuntamente com G aspar P ereira e M endes
L eal, um projecto de lei a aboli-la, não apenas para os crimes civis, mas também para
os crimes militares (v. supra, n.° 21, notas 1 de pp. 521-523 e imediata). A esse propósito,
dá uma explicação — que não vimos em parte alguma dada antes — sobre as razões que
então o levaram, quanto à abolição para os crimes militares, a exceptuar os «commettidos
em tempo ou acto de guerra entre Portugal e alguma nação estrangeira, por individuos
que façam parte do exercito ou da armada» (artigo 2.° do referido projecto): «...porque
quando esta ( = a guerra) tivesse logar poderia acontecer estar um exercito portuguez unido
ao de outra nação em que a pena de morte não estivesse abolida para certos crimes m ili
tares, e n ’este caso conviria que não houvesse differença de legislações sobre o mesmo
crime praticado pelos soldados de uma e outra nação» (cfr. loc. cit., p. 2122, l.a col.).
N o resto do seu discurso, SÁ da Bandeira manifesta dúvidas sobre as vantagens
de substituir a pena de trabalhos públicos por penas penitenciárias, porque «a sociedade
tira mais proveito dos trabalhos públicos do que das prisões cellulares» ; e enaltece a impor
tância e valor do degredo para o Ultramar, como meio de reabilitação dos condenados.
E termina por dar razão ao digno par Costa L obo «emquanto ao modo como a questão

547
derava — e há-de reconhecer-se que com certa razão — contrária ao espírito
geral da reforma em apreço (1).
Passou-se logo à votação, que, ao contrário do que sucedera na Câmara
dos Pares, não foi nominal. E o relato da sessão, que consta da folha oficial,
não explica sequer se houve algum voto contra, dizendo tão-só que «posto
o parecer á votação foi approvado» (2).
Assim passava nas Câmaras, quase sem oposição, a Reforma Penal e
tem sido tratada», «porque o modo de proceder adoptado presentemente pela camara não é
outra cousa senão annullar completamente as vantagens do governo representativo, que
consistem em que as leis sejam discutidas detidamente, consideradas e discutidas as
questões debaixo dos seus differentes pontos de vista, porque de outro m odo o systema
constitucional que nos rege não serve senão para fazer uma grande despeza ao estado;
e então era melhor o antigo regimen, porque o governo absoluto escolhia hom ens eminentes
no conhecimento das leis, a quem encarregava a redacção dos decretos, alvarás e outros
diplomas, não havendo tanta despeza como hoje se faz............. » (cfr. ibidem , p. e col. cits.).
A intervenção de M orais Carvalho (ibidem , 1.a e 2.a cols.) tem menos interesse.
D efende a Câmara e a Comissão das acusações feitas pelo digno par Costa L obo, porque,
embora os assuntos devam sempre ser discutidos e tratados detidamente, «ha certos
projectos porém que todos têem interesse em que sejam approvados de prompto, para
que não fique para mais tarde a resolução d’elles»; e o projecto em causa é um delles,
«mostrando o relatorio que a commissão não o tratou de leve«. Faz só uma breve referência
à abolição da pena de morte, que é «um objecto em que presentemente quasi todos
concordam em Portugal»; e ocupa-se, sobretudo, de responder às dúvidas de SÁ da
Bandeira sobre a eficiência do sistema penitenciário.
C1) «O sr. M ello e C a rva lh o : — ...encontro no artigo 3.° uma disposição com a
qual m e não posso conformar.
Approvo os artigos l.° e 2.°, mas no 3.° vejo que aos crimes a que era applicada a
pena de morte, será applicada a pena de prisão cellular pepetua.
Ora, parece-me que houve no projecto o pensamento de acabar com a perpetui
dade das penas, mas vejo n’este artigo consignada uma disposição que ainda conserva
essa perpetuidade. Supponhamos que um preso depois de ter estado na cadeia para expiar
os seus crimes, tem reformado os seus costumes, tem -se regenerado, e por consequência
está no caso de se lhe poder dar a liberdade. (Interrupção do sr . m inistro da ju stiça , que
não se o u viu ).
M as no artigo diz-se que a prisão será perpétua. (Interrupção do sr. m inistro da
ju stiça , que não se o u viu ).
Eu não queria que fosse como graça, mas sim como um direito, porque de contrario
o hom em que por ventura reformar os seus costumes póde ainda assim ficar preso toda
a vida, porque da graça póde o poder moderador nem sempre querer usar.
O que desejo é que fique bem consignada a declaração do sr. ministro, porque não
sendo assim, pelo modo por que está redigido o artigo, tenho alguma repugnancia em
lhe dar o meu voto, quando nenhuma teria, se em vez da palavra «perpetua» estivesse
«indefinida».
V o ze s: — Votos, votos.» (cfr. ibidem , p. 2122, 2.a col.).
(2) Cfr. ibidem , p. e col. cits.

548
das Prisões, que El-Rei Dom Luís sancionaria com a Carta de Lei de 1 de
Julho imediato, saída a lume no «Diário de Lisboa» de 12 do mesmo m ês0;
e assim ficava abolida para sempre, pelo artigo l.° da referida reforma,
a pena de morte em Portugal para os crimes civis.
29. Dois problemas apenas ficavam ainda de pé, em matéria de apli
cação da pena última: o de saber se esta pena, assim abolida para todos
os crimes civis pela Lei de 1 de Julho de 1867, podia ou não continuar a
considerar-se aplicável nas Províncias Ultramarinas; e o problema da sua
aplicação no foro militar, tanto do Exército como da Marinha.
O primeiro problema foi resolvido ràpidamente: — Logo em 1869,
a propósito duma portaria do Governador-Geral de Moçambique, de 10 de
Maio desse ano, que considerava aplicável em vários casos a pena de morte
nessa Província, a Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar
fazia expedir uma portaria em nome de El-Rei Dom Luís, com data de 9 de
Agosto do mesmo ano, a lembrar que a pena de morte estava abolida em
Portugal para os crimes políticos pelo artigo 16.° do Acto Adicional e para
os demais crimes pelo artigo l.° da Carta de Lei de 1 de Julho de 1867,
mandando por isso «declarar ao sobredito governador que a mencionada
disposição não póde ser approvada, e que elle, governador geral, a deve
considerar sem effeito»(2).
C1) D iario de L isboa , n.° 153, de 12 de Julho de 1867, pp. 2218 e 2219.
(2) «Sendo presente a Sua Magestade El-Rei o officio de 13 de maio ultim o, n.° 69,
em que o governador geral da provincia de M oçambique dá conta de haver nomeado
commandante da expedição da Zambezia ao major Antonio Tavares de A lm e id a ,...........
e juntamente participa quaes instrucções havia dado ao mesmo commandante, e as
medidas que havia tomado para a pacificação d’a quelle territorio; e vendo-se que um a
d 9ellas é a sua porta ria de 10 de m aio , pela qualy entre outras determ inações , m anda vigorar
o decreto de 2 2 de agosto de 1833 quanto á pena de m orte , fazendo-a applicavel em varios
casos, julgados por um conselho militar: o mesmo augusto senhor, considerando que a
pena de morte foi abolida para os crimes politicos pelo artigo 16.° do acto addicional á
carta constitucional da monarchia e para as outras especies de crimes pelo artigo l.°
da carta de lei de 1 de julho de 1867, e que portan to quer o crim e ou crim es da guerra da
Z am bezia se considere politico , quer se lhe attribu a outra n atu reza , em caso nenhum póde ser
punido com a pena de m orte : m anda , pela secretaria d’estado dos negocios da marinha e
ultramar, declarar ao sobredito governador que a m encionada disposição não póde ser appro -
v a d a y e que elle governador geral a deve considerar sem effeitoy fazendo promptamente todas
as communicações que possam convir, na intelligencia de que os criminosos não deixarão
de ser devidamente punidos se forem apresentados no tribunal que a lei creou para a
punição dos crimes............. Paço, em 9 de Agosto de 1869. = José Maria Latino Coelho»
(os sublinhados são nossos). Cfr. D iario de L isboa , n.° 179, de 11 de Agosto de 1869,
p. 959, 3.a col.; e José R icardo da Costa S ilva A ntunes, Com pilação da legislação pen al

549
O caso da aplicabilidade da pena capital nas Províncias Ultramarinas
ficava, assim, suficientemente esclarecido; mas, para evitar futuras dúvidas,
não havia como cortar o problema pela raiz. E, nesse sentido, o Governo
tomou a iniciativa de publicar um decreto com força de lei, com data
de 9 de Junho de 1870, em cujo artigo l.° se declara expressamente «abolida
a pena de morte nos crimes civis em todas as provincias ultramarinas»,
ordenando-se no respectivo artigo 2.° que «aos crimes a que pela legis
lação penal correspondia pena de morte, deverá ser applicada a imme
diata» (1).
m ilitar portu gu eza desde 1446 até 3 0 de Junho de 1895 (Lisboa, Imprensa Nacional, 1895),
pp. 298-299.
O Decreto de 22 de Agosto de 1833, aqui referido, é um diploma saído da Ditadura
da Regência, pela Secretaria de Estado dos Negócios da Guerra, promulgado com carácter
nitidamente transitório, para uma situação de emergência. Determinava o seguinte:
«Tomando em consideração que nas presentes circumstancias convém essencial
mente consultar (sic) a segurança publica, e livrar quanto antes a nação portugueza dos
horrores da guerra civil, com que uma facção iniqua, no maior excesso da sua desesperação,
pretende aniquilal-a: hei por bem , em nome da Rainha, decretar o seguinte:
Artigo l.° Os ecclesiasticos e paisanos, que forem apprehendidos com as armas
na mão, e bem assim os officiaes militares que commandarem corpos irregulares de qual
quer denominação que sejam, ou que se acharem a elles reunidos, serão im m ediatam ente
arcabuzados ; para esse fim, o commandante da tropa que os aprisionar convocará um
conselho militar composto de tres membros, os quaes, tendo ouvido verbal e summaria-
mente os réus, proferirão sentença final, cuja execução dependerá sómente da approvação
do mesmo commandante, se este assim o julgar conveniente.
Artigo 2.° Fica suspensa provisoriamente toda a legislação que for opposta á dispo
sição do presente decreto» (cfr. S ilva A ntunes, ob. c it ., p. 159).
Ao que se vê, foi este decreto que o Governador-Geral de M oçambique tentou
repor em vigor, a pretexto da guerra da Zambézia, em 1869, suscitando a reacção do
Governo da M etrópole, que viu nele uma violação do artigo 16.° do Acto Adicional e do
artigo l.° da Carta de Lei de 1 de Julho de 1867.
C1) Decreto de 9 de Junho de 1870: «Attendendo ao que me representaram os
ministros e secretarios d’estado de todas as repartições : hei por bem decretar o
seguinte :
Artigo l.° É abolida a pena de morte nos crimes civis, em todas as provincias
ultramarinas.
Art. 2.° Aos crimes, a que pela legislação penal correspondia a pena de morte,
deverá ser applicada a pena immediata.
Art. 3.° Fica revogada toda a legislação em contrario.
O presidente do conselho de ministros e os ministros e secretarios d’estado de todas
as repartições assim o tenham entendido e façam executar. Paço da Ajuda, aos 9 de junho
de 1870. = REI. = Duque de Saldanha = José D ia s F erreira = D . A n tonio da C osta
de Sousa de M acedo = M a rq u ez de Angeja» (cfr. D iario de L isboa , n.° 133, de 17 de Junho
de 1870, p. 832, l.a col.; e S ilva A ntunes, ob. c it., p. 304).
O presente Decreto vem precedido dum interessante relatório, redigido sob a forma

550
30. Quanto aos crimes do foro militar, a pena de morte continuou
de pé até aos primórdios do regime republicano, embora nunca mais tenha
sido aplicada.
A proposta de emenda que Ayres de Gouveia tinha apresentado na
Câmara dos Deputados, em 21 de Junho de 1867, para tornar extensiva
a abolição aos crimes militares 0 não teve qualquer seguimento; e os Códigos
Militares, que Barjona referiu na mesma sessão como estando em prepa
ração e como sendo o lugar próprio para enfrentar o problema levantado
por Ayres de Gouveia, não deram quaisquer ouvidos a essa aspiração,
quando vieram à luz do dia, antes reafirmaram a aplicação da pena de
morte por fuzilamento a um número relativamente largo de crimes do
foro militar (2).
de apresentação do projecto ao Rei; e subscrito pelos mesmos signatários, de que trans
crevemos os seguintes passos mais expressivos:
«Senhor. — A lei de 1 de julho de 1867 que aboliu a pena de morte não foi mandada
vigorar no ultramar, deixou ali de ser publicada nos periódicos officiaes, e nem se acha
referendada pelo ministro que tem a cargo os negocios das provincias ultramarinas.
Alguns juizes hesitam em applica-la, emquanto outros a applicam sem os prender a
minima duvida. N a propria relação se tem levantado divergencia radical a similhante
respeito...............
Urge adoptar uma solução prompta, porque é indispensável fazer cessar o estado
anomalo, contra o qual as auctoridades superiores das possessões ultramarinas reclamam
decisão immediata. Os ministros de Vossa Magestade não hesitam no problema, e vem
propor a Vossa Magestade que se digne de o resolver pela maneira christã e civilisadora
por que a lei de 1 de julho de 1867 providenciou para o reino.
O acto addicional aboliu a pena de morte nos crimes politicos, a citada lei de 1867
aboliu-a nos crimes civis para o continente. Ponha Vossa M agestade o remate n ’esta
obra successivamente gloriosa. Se não tom ám os um dos primeiros logares nos conselhos
da Europa pela extensão do nosso territorio, demos ao mundo exemplos nobres que
chamem as attenções dos estranhos para a doçura dos nossos costumes e para o poder
da nossa civilisação. Ainda hontem eramos citados com louvor n ’este mesmo assumpto
pelos principaes criminalistas e pelos membros das camaras estrangeiras. Cada povo
deve concorrer com o seu contingente para a causa do progresso humanitario, conforme
as circumstancias em que se ache. Nenhum a nação, como nenhum hom em , é inútil
n ’este movimento dos seres. Das nações pequenas sáem às vezes os exemplos mais nobres.
Respeitemos a ordem providencial e concorramos todos para o grande intento com a cons
ciencia dos nossos actos..............
A Vossa Magestade coube a gloria de assignar a lei que extinguiu a escravidão em
todas as possessões portuguezas. A Vossa Magestade caberá também a gloria de ter abolido
a pena de morte não só no continente e ilhas adjacentes, como também em todas posses
sões ultramarinas que pertencem ao reino de Portugal. ...» (cfr. loc. cit.> p. 831, l .a col.).
C1) V. supra, n.° 27 e notas 1 e 2 da p .“543.
(2) Vinha de longe o reconhecimento da necessidade de se reformar a legislação
penal militar portuguesa e alguns passos tinham sido dados já nesse sentido desde os
551
Mas toda esta aparente severidade ficou, na prática, letra morta, desde
o famoso caso do assassinato do Alferes Brito pelo soldado António Coelho,
começos do século. M as foi só em 1875 que a ambicionada reforma foi levada a bom term o,
com a promulgação do primeiro C ódigo de Justiça M ilita r português.
O respectivo projecto tinha sido organizado por uma comissão criada por um
Decreto de 23 de Junho de 1855; e fora apresentado pelo Governo às Câmaras legisla
tivas, pela primeira vez, em 6 de Junho de 1862. É a esse projecto que A yres de G ouveia
faz alusão no seu discurso parlamentar de 21 de Junho de 1867, como causa próxima
— conjuntamente com os outros Códigos P enais apresentados pela mesma altura à apre
ciação do Parlamento (cfr. supra , nota 1 de pp. 541-543) — da sua decisão de luta sem
tréguas contra a pen a de m orte , em todos esses projectos consagrada. E é ao m esmo pro
jecto, ainda nessa altura por discutir, que Barjona de F reitas se refere, na mesma sessão
de 21 de Junho de 1867, como sendo o lugar próprio para introduzir, caso a Câmara
assim o viesse a entender, a abolição da pena de morte para os crimes militares (cfr.
supra , n.° 27 e nota 2 de pp. 543-544). N o entanto, foi só por diploma de 9 de Abril de
1875 que o referido projecto foi transformado em lei, depois duma discussão apressada
e agitada nas duas Casas do Parlamento.
N ão entraremos em mais promenores acerca dos antecedentes e das vicissitudes
da promulgação do Código de Justiça M ilita r de 1875 (V., sobre o assunto, a análise
cuidada feita no estudo recente de Eliana G ersão, A cerca da abolição da pena de
m orte nos crim es m ilitares . Separata das A cta s do Colóquio com em orativo do cente
nário da abolição da pena de m orte em P ortu gal. Coimbra, 1967, pp. 8 a 13). Aqui,
cumpre apenas registar que o C ódigo de Justiça M ilita r consagrava a pena de morte
em nada menos de 37 preceitos legislativos (V. a respectiva enumeração e indicação dos
delitos a que se reportam em H enriques S ecco, M em orias cit., vol. I, p. 638, em
nota)! E , não contente em a estabelecer para os criminosos dependentes da disciplina
do Exército, estendia-a, em certos casos, aos próprios paisanos e a delitos que mais podiam
considerar-se políticos do que m ilitares , o que faz dizer a H enriques S ecco (ob. e loe. cits .),
com certa razão, que tal Código revogou em parte, asem o dizer», a lei de 1 de Julho de 1867 e
rasgou, asem o poder », o Acto Adicional de 1852. O texto do Código de Justiça M ilita r
de 1875 vem reproduzido na íntegra em S ilva A ntunes, Com pilação cit., pp. 316 a 367.
O referido Código foi completado pelo Regulam ento p a ra a execução do C ódigo de Justiça
M ilita r , aprovado pelo Decreto de 21 de Julho de 1875 (publicado ibidem , pp. 367 a 395).
O Código de 1875 vigorou até à promulgação, por Decreto de 10 de Janeiro de 1895,
dum novo Código de Justiça M ilita r (cfr. ibidem , pp. 559 a 617), que era aplicável à
Marinha «emquanto não for publicado um codigo de justiça militar para a armada»
(artigo 2.° do Decreto de aprovação). Tinham sido vãs, efectivamente, até essa data, as
tentativas para a elaboração do C ódigo de Ju stiça da A rm a d a. Por Decreto de 10 de
Novem bro de 1869, fora nomeada uma Comissão para o efeito, que deveria tomar por
base dos seus trabalhos «o projecto de codigo militar, apresentado às cortes em 6 de
junho de 1862 e 17 de agosto de 1868, organisado pela commissão creada por decreto
de 23 de julho de 1855, e a organisação que ultimamente foi decretada em 26 de
novembro de 1868 para o supremo conselho de justiça militar» (cfr. ibidem , p. 300). Como
essa Comissão nada fez, o Decreto de 21 de Junho de 1875 nomeou outra, com o encargo
de redigir «um projecto de codigo de justiça militar para a armada, adaptando-o quanto
possivel aos principios e regras geraes que presidiram á redacção do codigo de justiça

552
ocorrido em 1874. Q) Pela letra das leis militares, o homicida deveria ser
militar, ultimamente promulgado para o exercito» (cfr. ibidem , p. 367). E um Decreto
de 4 de Junho de 1886 remodelou essa Comissão, nomeando novos membros, para substi
tuir os que tinham morrido ou se tinham afastado, e mandando prosseguir os trabalhos
(cfr. ibidem , p. 477). Em 1895, porém, ainda a Armada não tinha o seu Código de J u stiça ;
e por isso se mandava aplicar-lhe, pro visòriamente, o C ódigo de Justiça M ilita r do E xército .
O Exército teve novo C ódigo de Justiça M ilita r em 1896, que é um decalque do
do ano anterior, mas agora sancionado por uma carta de lei, depois de ter sido apro
vado em Cortes (Carta de Lei de 13 de M aio de 1896, no D iario do G overno , n.° 120,
de 29 de mesmo m ês e ano, pp. 1379 a 1396). E a Marinha teve, finalmente, o seu
primeiro Código de Justiça da A rm a d a em 1899, sancionado também por uma carta de
lei, depois de aprovado em Cortes (Carta de Lei de 1 de Setembro de 1899, no D iario do
G overno , n.° 202, de 8 do mesmo m ês e ano, pp. 2321 a 2335). Foram estes dois Códigos
de 1896 e 1899 que regularam a justiça militar, respectivamente do Exército e da Marinha,
até aos começos da época republicana (vide in fra , nota 3 da p. 556).
Além de ampiamente consagrada — como já vim os atrás — no C ódigo de Justiça
M ilita r de 1875, a pena de morte continuou a ter a mesma ampla consagração nos demais
Códigos citados (C ódigos de Justiça M ilita r de 1895 e de 1896; e Código de Justiça da
A rm a d a de 1899).
0) Como devidamente salienta E liana G e r sã o (ob. c it ., p. 11), a apressada apre
sentação às Câmaras do projecto de Código de Justiça M ilita r de 1875 e a sua rápida
discussão e aprovação (tudo se processou desde 16 de Março a 1 de Abril desse ano) estão
já relacionadas com o lamentável caso do assassinato do Alferes Brito, pois o Exército
reclamava não apenas a imediata punição do criminoso, mas uma legislação suficiente
mente severa para evitar a repetição de casos similares. A severidade do Código de 1875
há-de ser explicada, justamente, à luz do ambiente apaixonado em que foi proposto,
discutido e votado. M as, por outro lado, o m ovimento de opinião contrário a essa «sede
de vingança» em que o Código de 1875 foi gerado, não só salvou a vida do criminoso,
como veio definitivamente pôr termo, de facto, à aplicação da pena de morte em Portugal
nos crimes do foro militar.
Vale a pena historiar brevemente o que se passou:
H á-de ter-se em conta, antes de mais, que a pena de morte já não se executava entre
nós, quanto aos próprios crimes militares, desde o fuzilamento do soldado António Pereira,
ocorrido em Viseu, no Campo da Feira, em 4 de M aio de 1849, em execução de sentença
proferida dois dias antes (v. supra , nota 1 pp. de 489-490; e H enriques Secco, M em o
rias cit. , tomo I, pp. 490 a 492, em nota).
Tanto o público como o Exército tinham-se já pràticamente esquecido, ao cabo
de mais de 20 anos, do fu zilam en to por crimes militares, quando se verificou, em 30 de
Junho de 1872, um caso extremamente grave, que logo alertou os espíritos: o assassinato
do alferes Francisco Crisóstomo da Silva pelo soldado Barnabé N unes, no destacamento
militar estacionado junto à raia espanhola, a duas léguas da Praça de Eivas (v. S e c c o ,
ob. e vol. cits. , p. 489, em nota). O homicídio dera-se por um m otivo fútil: o facto de o
alferes ter repreendido o soldado, quando iam, nesse dia, a caminho da missa, por este
ir apanhando pedras do chão e arremeçando-as aos seus camaradas; e fora praticado com
todos os requintes de malvadez e premeditação.
(Continua nas págs. seguintes)

553
passado pelas armas; mas logo se suscitou um intenso m ovim ento de opinião

Este primeiro caso logo suscitou uma certa excitação no seio do Exército, com e
çando a tomar vulto um movimento de opinião contra a corrente que andava no ar
desde 1867 para tornar extensiva aos crimes militares a extinção da pena de morte,
na prometida e esperada reforma do direito penal militar. Foi porta-voz desta reacção,
muito em especial, o primeiro-tenente de Artilharia 1 A ntónio G uilherme F erreira
de C astro, numa série de artigos publicados no Jorn al do Com m ercio , desde 22 de Agosto
a 27 de Outubro de 1872, e no Jorn al da N o ite , desde 10 a 31 de Agosto de 1874, depois
recolhidos em folheto, «por uma commissão de officiaes do exercito», em 1874 (A lgum as
reflexões ácerca da pena de m orte e da indisciplina do exercito ; Lisboa, Typographia
Lisbonense, 1874).
Em 29 de Agosto de 1874, novo caso de assassinato ocorreu, praticado por Fran
cisco António, soldado de Caçadores 3, na pessoa dum seu camarada que estava de guarda
à cadeia civil de M oncorvo, pelo m otivo insignificante, de este o repreender por conversar
com os presos às grades (v. S ecco, ob. e loe. c its.).
E foi neste quadro, com os ânimos já excitados, que em 18 de Outubro de 1874 se
verificou o assassinato do alferes José Augusto da Palma e Brito, no quartel de S. João
de Deus, em Lisboa (Regimento de Infantaria 2), pelo soldado António Coelho, pouco
depois de o Regimento ter regressado da missa, na Igreja de Santos-o-Velho, com um
fútil m otivo semelhante ao do crime cometido dois anos antes: tê-lo o alferes repreendido
«por ir rindo, brincando e fazendo momices» na formatura (v. S ecco, ob. e loe. c its .;
e E liana G ersao, ob. cit ., p. 12, nota 4).
O caso suscitou logo rios de tinta na imprensa periòdica e teve imediatas repercus
sões de ordem política, com o partido governamental a apoiar o movimento que recla
mava a aplicação da pena de morte ao assassino, como indispensável à manutenção da
disciplina do Exército, e com a oposição a manifestar-se contra a aplicação daquela pena:
— O primeiro-tenente de Artilharia A ntónio G uilherme F erreira de C astro, no escrita
U m a ultim a p a la v ra , datado de 2 de Novem bro de 1874 (publicado em apenso às acime
citadas A lgum as reflexões ácerca da pena de m orte , pp. 103-110), reclamava insistentemente
justiça, em nome da vítima e da disciplina do Exército ; e C unha de B arbosa, um dos raros
deputados que em 1867 se tinham manifestado contra a proposta de abolição da pena de
morte para os crimes civis, de B arjona de F reitas, saía também à estacada, com o folheto
D u as palavra s sobre o opúsculo do S r. N a va rro «O s fusilam entos ». M ilitarm en te : o direito
e a necessidade. E m geral : a legitim idade da pena de m orte (Coimbra, Imprensa Univer
sidade, 1875).
M as, em sentido contrário, começavam a aparecer outros folhetos, logo no ano
de 1874, como o de E mygdio N avarro (que suscitou a réplica de C unha de B arbosa,
ainda agora citada), O s fusilam entos. O direito — A p olítica — A ordem social (Lisboa
Typographia do jornal «O Paiz», 1874); o de S ergio de C astro, A disciplina e o exer
cito (a proposito do assassinato do alferes B rito ) (Coimbra, Imprensa Commercial e
Industrial, 1874); e o de A ntonio E nnes , D eve restabelecer-se a pena de m orte? (Lisboa,
Typographia do jornal «O Paiz», Outubro de 1874).
A primeira vitória foi para os partidários da severidade, ao conseguirem fazer passar
nas duas Casas do Parlamento, na segunda quinzena de Março de 1875, o C ódigo de
Justiça M ilita r , que a Carta de Lei de 9 de Abril imediato sancionaria e onde a pena de

554
pública contra essa solução extrema Q), tendo vindo à liça nomes da categoria
dum Ramalho Ortigão, que consagra ao caso um dos mais interessantes capí
tulos de As Farpas (2), e dum Guerra Junqueiro, que inclui no seu livro
morte no foro militar aparecia — como vimos (supra, nota 2 de pp. 551-553 — largamente
consagrada.
M as a vitória definitiva pertenceria aos que clamavam contra o fuzilamento do
soldado António Coelho, pois a severidade do Código de Justiça Militar ficou letra-morta;
e a pena capital nunca mais se executou entre nós nos crimes miliatres. Houve ainda várias
condenações à morte por crimes militares, depois disso, de acordo com o disposto no
C ó d ig o ; mas não se sabe de qualquer caso em que tenha sido efectivamente executada,
pois o Poder M oderador acabava por conceder a respectiva comutação. V ., sobre o assunto,
E liana G ersão, ob. c it ., pp. 14-15.
C1) Entre os inúmeros artigos de jornal suscitados pela questão, merece aqui uma
especial referência o da autoria de Joaquim M artins de C arvalho, em O Conimbricense
de 27 de Outubro de 1874 (n.° 2844), sob a epígrafe V erdades duras, m as verdades.
M artins de C arvalho toma partido aberto contra o eventual fuzilamento do soldado
António Coelho, dizendo designadamente : «Há annos foi moda o advogar a abolição da
pena de morte. Hoje, porem, é outra a moda. Agora já se não fala senão de fuzilamentos
e forcas...»
(2) V. O bras C om pletas de R amalho O rtig Ão, A s fa rp a s (edição integral), voi. V II
(Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1948), pp. I l l a 134. É o capítulo X II, intitulado
A disciplina m ilitar e a pena de m orte — O caso do soldado A n tón io Coelho. R amalho
toma uma posição especial sobre o problema, limitando-se a protestar contra a incongruência
de estar entre nós abolida a pena de morte para os crimes civis e continuar consagrada para
os crimes m ilita res ; mas aceita a pena de morte em si mesma:
«...A pena de morte aplicada ao soldado António Coelho para desagravo da disci
plina militar repugna-nos pois como absurda. Não nos repugna porém a aplicação da
pena de morte como pena geral do homicídio.
Nunca, desde os nossos mais tenros anos até hoje, pudemos compreender as razões
poéticas e sentimentais dos que aboliram ou querem abolida para os malfeitores a pena
última...............» (cfr. loc. c it., pp. 130-131).
E, mais adiante, a terminar o capítulo:
«...Oh! sim, choremos de remorso pelos senhores assassinos condenados à morte,
dizem os criminalistas sentimentais, porque a sociedade não tem o direito de os castigar.
O crime é uma fatalidade fisiológica, é uma doença moral. Assim como vem à pele um
furúnculo, assim o crime vem. Que é que se deve fazer ao criminoso! Pôr-lhe pomada
alvíssima.
É para isso que se criaram as prisões penitenciárias, que são os hospitais dos crimi
nosos. Aí se recebe o doente do crime, convenientemente agasalhado e mantido, à espera
de que a reabilitação lhe chegue para regressar ao grémio social. Não há nada mais humano.
Somente, eu que escrevo estas linhas, no fundo do meu coração experimento um senti
mento que m e parece um pouco humano também, e vem a ser:
Que nunca mais eu teria na terra um minuto de repouso, um instante de sossego
enquanto aquele que fríamente e expressamente houvesse assassinado meu pai ou meu
filho, se achasse tranquilo no seu gabinete, sentado diante da fisiologia, à espera de que
a reabilitação lhe viesse; e, por consequência, eu preferiria, em vez de entregar o assassino

555
A musaem férias uma extensa poesia contra a condenação do soldado
Coelho à pena última — poesia que é dedicada, justamente, a Barjona
de Freitas^1). E, perante esta reacção generalizada, foi poupada a vida
do criminso (2).
Desde esse dia, a pena de morte ficava verdadeiramente abolida também
para os crimes militares. Mas foi só em 16 de Março de 1911, por um
Decreto com força de lei do Governo Provisório da República, que a
abolição obteve, também nesse domínio, consagração legislativa, tendo-se
estabelecido que a pena de morte ficaria abolida «em absoluto» e tendo-se
revogado as disposições do Código de Justiça Militar, de 1896, e do Código
de Justiça da Armada, de 1899, que dispunham diversamente (3).
ao regime emoliente da justiça humanitária, aquartelhar-lhe na cabeça as cinco balas do
m eu revólver, e em seguida ir reabilitar-me eu. Isto é o que profundamente sinto a respeito
daquele que assassinasse em minha casa.
D epois disso ocorre-me se me será permitido ter uma opinião diversa acerca dos
que assassinam os pais ou os filhos — dos outros» (cfr. ibidem , pp. 133-134).
C1) V. G uerra Junqueiro , A m usa em F eiras (Idilios e sa tiva s) , sétima edição
(Lisboa, Parceria Antonio Maria Pereira, 1923), pp. 129 a 147. A poesia tem por epígrafe
O Crim e (A proposito do assassinato do alferes B rito ) e é dedicada «ao sr. B arjona de
F reitas».
(2) O soldado António Coelho foi condenado à morte por sentença do Conselho
de Guerra permanente da l . a divisão militar, de 5 de M arço de 1877, confirmada por
acórdão do Tribunal Supremo de Guerra e Marinha de 7 de M aio do mesmo ano. A pena
foi-lhe comutada pelo P oder M oderador na de prisão celular perpétua, por Decreto de 29 de
Setembro de 1877 (cfr. H enriques S ecco, ob . e v o l . cits., p. 594).
(3) V. D ia rio do G overno de 26 de Abril de 1911 e Collecção officiai de legislação
p ortu gu eza , I semestre de 1911, pp. 472 ss. Este Decreto corn força de lei do Governo
Provisório da República, de 16 de Março de 1911, aprova o Código de Processo C rim in al
M ilita r , que foi obra duma Comissão nomeada para o efeito em 15 de Novem bro de 1910.
Este Código de Processo C rim in al M ilita r fundiu num só diploma as disposições
de processo cim inal constantes do C ódigo de Justiça M ilita r , de 1896, e do C ódigo de
Justiça da A rm a d a , de 1899 (referidos supra, nota 2 de pp. 551-553). N o preâmbulo
do citado decreto introdutório, esclarece-se que não foi possível proceder igualmente, de
m om ento, à reforma da parte desses C ódigos referente ao direito penal substantivo, que,
por isso, é mandada continuar provisoriamente em vigor, com as alterações indicadas no
referido decreto. Assim se dispõe:
«Artigo l.° — É approvado, para ter execução, no exercito e na armada, o Codigo
do Processo Criminal M ilitar, que faz parte integrante do presente decreto.
Art. 2.° — Continuam provisoriamente em vigor o livro I do Codigo de Justiça
Militar de 13 de maio de 1896 e o livro I do Codigo de Justiça da Armada de 1 de setembro
de 1899, com as alterações constantes dos artigos seguintes.
Art. 3.° — É abolida, em absoluto, a pena de morte.
§ unico. N os casos em que a lei a commina, será a referida pena substituida pela
immediatamente inferior na respectiva escala».

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Na sequência desta medida, a Constituição Política de 1911 veio
determinar que «em nenhum caso poderá ser estabelecida a pena de morte»
(artigo 3.°, n.° 22.°) (*). Mas a entrada de Portugal na Guerra obrigou a
alterar nesse ponto o texto constitucional; e por força da Lei n.° 635, de 28 de
Setembro de 1916, foi aquele preceito suprimido e introduzido um outro
onde, depois de se afirmar o princípio de que «a pena de morte e as penas
corporais perpétuas ou de duração ilimitada não poderão ser restabelecidas
em caso algutrn, se acrescenta um parágrafo a exceptuar «quanto à pena de
morte, somente o caso de guerra com país estrangeiro, em tanto quanto
a aplicação dessa pena seja indispensável, e apenas no teatro da guerra» (2).
E é essa a norma que ainda hoje vigora, com redacção ligeiramente dife
rente, por força do n.° 11.° do artigo 8.° da Constituição Política de 1933 (3).

C1) Constituição P o litica da R epública P ortuguesa , artigo 3.°: «A Constituição


garante a portugueses e estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos
concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
l.° ... 2.° ... 3 .° ... 22.°. Em nenhum caso poderá ser estabelecida a pena de morte, nem
as penas corporais perpétuas ou de duração ilimitada» (cfr. ed. da Imprensa Nacional,
Lisboa, 1924, pp. 3-4 e 6).
(2) A Lei n.° 635, de 28 de Setembro de 1916, no seu artigo 2.°, manda eliminar
o n.° 22.° do artigo 3.° da Constituição Política; e determina seguidamente:
«Artigo 3.° — Após o artigo 59.° da Constituição será inserto o seguinte artigo :
Artigo 59.°-A — A pena de morte e as penas corporais perpétuas ou de duração
ilimitada não poderão ser restabelecidas em caso algum, nem ainda quando for declarado
o estado de sítio com suspensão total ou parcial das garantias constitucionais.
§ único — Exceptua-se, quanto à pena de morte, somente o caso de guerra com país
estrangeiro, em tanto quanto a aplicação dessa pena seja indispensável, e apenas no teatro
da guerra» (cfr. ed. cit. da C onstituição , p. 20).
(3) C onstituição P olítica da R epública P ortuguesa , a ctu a liza da de harm onia com a
L e i n.° 2100 , de 29 de A gosto de 1959 (Lisboa, Imprensa Nacional, 1961, pp. 8-9),
artigo 8.°: «Constituem direitos, liberdades e garantias individuais dos cidadãos portu
gueses: l.° ... 2.° ... 3.° ... 11.° N ão haver penas corporais perpétuas, nem a de morte,
salvo, quanto a esta, o caso de beligerância com país estrangeiro, e para ser aplicada no
teatro da guerra».

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