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ACERCA DA ABOLIÇÃO DA PENA DE MORTE

NOS CRIMES MILITARES

El ia n a G e r sã o

1 — No ano em que Portugal celebra o centenàrio da abolição da


pena de morte não podemos deixar de recordar que, entre nós, ainda não
estão satisfeitas todas as exigências do movimento abolicionista.
Na verdade, a Constituição de 1933 enumera entre os direitos indivi
duais dos cidadãos portugueses o de não sofrer «penas corporais perpétuas,
nem a de morte, salvo, quanto a esta, o caso de beligerância com país estran
geiro, e para ser aplicada no teatro da guerra» (art. 8.°, n.° 11).
Em harmonia com o preceito constitucional, o Código de Justiça
Militar prevê, entre as suas reacções criminais, a pena de morte (art. 28.°).
Tal pena, executada por fusilamento (art. 29.°), é aplicável aos crimes
de traição no teatro da guerra com país estrangeiro (arts. 73.°, 74.° e 76.°),
espionagem no teatro da guerra com país estrangeiro (arts. 78.°, 79.° e 83.°),
insubordinação em frente do inimigo (art. 91.°, n.° 1), ofensas corporais
de que resultar a morte de um superior, cometidas no teatro da guerra
(art. 95.°, n.° 1), cobardia dos governadores militares, comandantes de força
ou outros militares, perante o inimigo (arts. 119.°, 120.°, 121.° e 122.°, n.° 1),
abandono do posto de vigilância ou serviço, em frente do inimigo (arts. 141.°,
n.° 1, 142.°, n.° 1 e 143.°, n.° 1), deserção em frente do inimigo precedida
de coligação (art. 174.°), destruição, por incêndio ou explosão, de edifícios,
obras e material militar no teatro da guerra (art. 190.°, n.° 1). Ë ainda apli
cável aos crimes de homicídio ou ofensas corporais de que resultar a morte,
praticados como meio de facilitar a execução de outro crime (art. 197.°),
violação da qual resultar a morte da ofendida (art. 198.°, § único), violên
cias contra feridos (art. 199.°) e instigação ao saque ou destruição em grupo
e mediante coligação (art. 202.°, n.° 1), se forem cometidos no teatro da
guerra.
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A comemoração da data na qual o nosso país se colocou à cabeça
do movimento abolicionista leva-nos a reflectir sobre o problema da pena
de morte na sua aplicação a crimes militares e a encarar a possibilidade
de suprimir a pena capital no Código de Justiça Militar.
Não é nosso intento apresentar todos os elementos necessários para
resolver tão grave questão. Pretendemos apenas não a deixar esquecida
e alinhar alguns dados que julgamos serem de interesse em favor da
extensão do princípio abolicionista àqueles crimes.
2 — Promulgada a Lei de 1 de Julho de 1867, estava-se em Portugal
a um passo da abolição absoluta da pena de morte: suprimida para os
crimes políticos e civis, essa reacção criminal ficou só a subsistir para as
infracções militares. E, mesmo para estas, não parecia que se pudesse
manter em vigor por muito tempo.
Na verdade, a questão da aplicabilidade da pena de morte aos crimes
militares não tinha sido esquecida nos debates parlamentares travados
das diversas vezes em que foram apresentadas às Câmaras propostas de
abolição da pena máxima. Afirmara-se, em tais debates, que também a
estes crimes devia ser estendido o princípio abolicionista; defendera-se
que, se a pena de morte é ilegítima, desnecessária e ineficaz, apresenta as
mesmas características seja qual for a natureza da infracção à qual corres
ponda.
Concretizando estas ideias, Ayres de Gouveia, na sessão parlamentar
de 3 de Julho de 1863, depois de propor a supressão, no orçamento do
Estado, do ofício de carrasco e do respectivo salário, apresentou uma nova
proposta, abolindo a pena de morte em todos os crimes, sem excepção
dos militares. Proposta generosamente acolhida, e logo secundada por
uma outra, assinada pelo deputado Gavicho e por diversos membros da
assembleia, a qual englobava, num único texto, as duas propostas de Ayres
de Gouveia (1).
Este último deputado, quatro anos mais tarde, quando o Governo
apresentou à Câmara o projecto de Barjona de Freitas donde veio a resultar
a Lei de 1 de Julho de 1867, depois de se mostrar o mais caloroso defensor
do princípio abolicionista, opôs-se vivamente ao projecto apresentado,
e recusou-se mesmo a dar-lhe o seu voto favorável, por ele excluir desse
princípio os crimes militares (2).
C1) É o seguinte o texto da proposta do deputado Gavicho: «l.° — Fica abolida
a pena de morte; 2.° — É extinto o hediondo ofício de carrasco; 3.° — É riscada do orça
mento do Estado a verba de 49$200 réis para o executor» (Diário de Lisboa, 1863, p. 1750).
(2) Diário de Lisboa, 1867, pp. 2075-2076.

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Não foi o desacordo da Câmara com o princípio abolicionista, mesmo
quando extensivo a todos os crimes, que determinou não ter a orientação
de Ayres de Gouveia obtido consagração em nenhuma das sessões parla
mentares indicadas.
Na primeira, as propostas de abolição da pena de morte não chegaram
sequer a ser votadas. A reunião era dedicada ao debate do orçamento e
não se julgou oportuno decidir nela, como por incidente, um problema
de tal gravidade. A sua solução foi deixada para mais tarde e, entretanto,
os projectos baixaram à Comissão de Legislação, para que esta desse o
seu parecer.
Na segunda, o Ministro da Justiça, Barjona de Freitas, travou hábil
mente a oposição de Ayres de Gouveia, com o fundamento de que o projecto
em discussão provinha apenas do seu Ministério, não tendo sido ouvido
acerca dele o Ministro da Guerra. Acrescentou, todavia, manifestando
assim um certo apoio tácito à oposição daquele deputado, que seria o
Código de Justiça Militar, há longos anos em preparação, o lugar mais
indicado para, no tocante a crimes militares, substituir a pena de morte
por outra reacção criminal.
A posição dos poderes públicos portugueses parecia assim favorável
a um acolhimento sem reservas das ideias abolicionistas.
É verdade que em 1864 tinha sido apresentado à Câmara um novo
projecto, desta vez assinado por Sá da Bandeira, Gaspar Pereira da Silva
e José da Silva Mendes Leal, que, depois de abolir, no art. l.°, a pena de
morte «em todos os crimes», exceptuava, no art. 2.°, certos crimes militares.
Mas mesmo este projecto restringia sensivelmente o campo deixado pelas
leis militares, ao tempo vigentes, à aplicação da pena capital, ao reservar
esta sanção para os crimes que, estando a ela sujeitos pelas leis militares,
fossem cometidos em tempo ou acto de guerra entre Portugal e alguma
nação estrangeira, por indivíduos fazendo parte do exército ou da
armada í1).

C1) Ao perfilhar este projecto confirmou Sá da Bandeira a opinião que expressara


no ano anterior, ao escrever, em manuscrito datado de Junho, do qual H enriques Secco
nos dá notícia (Memórias do tempo passado e presente para lição dos vindouros, I, Coim
bra, 1880, p. 660) : «Concordo em que no Código penal militar seja suprimida a pena de
morte em tempo de paz, devendo porém ser conservada em tempo de guerra nos corpos
em campanha contra uma potência estrangeira». À notícia deste manuscrito acrescenta
Henriques Secco o seguinte comentário : «É certo que exceptúa o tem po de guerra estra
nha, mas ainda assim deixa na regra geral os corpos que não tomam a campanha nessa
guerra, e a guerra civil. E é mais que provável que, se continuasse a viver até hoje,
concluisse por deixar sem excepção a regra».
3 — A este ambiente favorável às ideias abolicionistas acrescia que o
estado de disciplina do exército português não parecia reclamar a severidade
punitiva que se traduzia na aplicação da pena última.
Em 1874, no relatório apresentado à Câmara dos Deputados e lido na
sessão de 19 de Fevereiro, o Ministro da Guerra tinha-se referido elogio
samente a esse estado, afirmando, depois de analisar o mapa alusivo às
transgressões disciplinares e aos crimes cometidos, de 1 de Novembro
de 1869 a 1 de Outubro de 1873, em todos os corpos do exército: «(...) por
amor à verdade, cumpro um dever não passando adiante sem reduzir
ao seu justo valor o efeito das transgressões e crimes que os documentos
acusam, sendo certo que, apesar do seu número, não perturbaram a tran
quilidade em parte alguma, não impediram que se executasse nenhuma
ordem, não obstaram à marcha de qualquer força, grande ou pequena, para
bem do serviço público. O rigor da ordenança qualifica de transgressões
alguns factos que passariam despercebidos fora do domínio das instituições
militares, e sem querer de modo algum atenuar a importância de tais faltas,
que é indispensável punir, e que convém muito evitar, quanto possível,
aspiro a que se não exagere a gravidade delas, fazendo ao exército tuna
injustiça que está longe de merecen). Seguidamente, depois de citar o
exemplo de certos corpos do exército que, sendo obrigados a efectuar
deslocações longas e em más condições, tinham dado provas de um invulgar
espírito de disciplina, concluirá: «Não deve preocupar-nos a estatística (...),
a qual, se nos aconselha a modificar a nossa legislação, não inspira, por
outro lado, o menor receio pela disciplina do valente e brioso exército
português» O).
4 — Parecia assim que se podia legítimamente esperar que a reforma
das leis militares viesse a suprimir a pena de morte.
Esta reforma surgia com um carácter de urgência.
Nos princípios de 1875 vigorava ainda a legislação do Conde de Lippe (2),
a qual manifestava tal dureza na punição que os próprios tribunais fugiam
C1) Diário da Câmara dos Deputados, 1874, pp. 447-448.
(2)T e r m in a d a a guerra dos sete anos, o conde de Lippe, marechal-general do
exército português e comandante das tropas anglo-portuguesas em Portugal na campanha
contra os espanhóis e franceses no últim o ano desta guerra, tinha ficado durante mais
dois anos em Portugal, para disciplinar as tropas. Publicara, para esse fim, os Regulamentos
de Cavalaria e de Infantaria, bem como os Artigos da guerra. Antes de partir para Ingla
terra, a 2 de Setembro de 1764, dirigira uma carta aos comandantes dos regim entos,
convencendo-os da necessidade de conservar a disciplina por ele introduzida no exército
português (Enciclopédia luso-brasileira, vol . X X V I I , v° S’chaurnburg-Lippe-Bückeburg, p . 860).

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de a aplicar, do que resultava frequentemente a impunidade dos crimes
militares. Por outro lado, nos casos em que a aplicavam, tornava-se muitas
vezes necessário recorrer ao poder moderador, em circunstâncias nas
quais tal recurso não seria necessário, se a lei penal não fosse injusta (2) (2).
Já no princípio do século se tentara reformar a legislação do exército,
tendo os Decretos de 21 de Março de 1802 e de 27 de Maio de 1916
nomeado uma comissão para preparar e rever um projecto de Código
Penal Militar. Do trabalho da comissão resultara um texto que chegou
a ser aprovado em 7 de Agosto de 1820, por um Alvará assinado no Rio
de Janeiro. Mas a nova concepção quanto ao exercício do poder legislativo,
inerente à ideologia que no mesmo ano triunfou em Portugal, deter
minou que o texto não fosse executado, só chegando mesmo a ser
impresso no Rio de Janeiro.
Trinta e cinco anos mais tarde, o Decreto de 23 de Junho de 1855
encarregou o auditor da l.a divisão militar, António José de Barros e Sá,
de redigir um novo projecto de Código Penal Militar, e nomeou, para o
rever, uma comissão composta por juristas e militares e presidida pelo
Ministro da Guerra, ao tempo Sá da Bandeira.
O projecto de Código de Justiça Militar, resultado dos trabalhos desta
comissão, apenas veio a ser apresentado em 1862. Ele mantém ainda a pena
de morte. Mas é de algum modo significativo, pelo menos na medida em
que indicia uma certa relutância contra tal pena, que a comissão, no seu
relatório, a considere uma «pena terrível» que ela «quisera fosse possível
riscar de uma vez da lei penal».
Todavia, o campo de aplicação deixado à pena de morte não é tão
pequeno como tal voto leva a supor. Esta pena está prevista numa longa
série de artigos, referentes tanto a crimes cometidos em tempo de guerra
— civil ou com país estrangeiro — como de paz.
5 — Apresentado em 1862, o projecto só em 1875 se vem a transformar
em lei.
Nos treze anos que medeiam entre as duas datas deram-se passos
C1) Assim se afirma no relatório que antecede a proposta de lei, de 6 de Junho de 1862,
destinada a aprovar o Código Penal Militar. Este relatório, bem como outros documentos
relativos ao projecto de Código de Justiça M ilitar que viria a ser aprovado em 1875, pode
ler-se em Projecto de Código de Justiça Military Lisboa, 1869.
(2) D a dureza desta legislação tinha resultado o Decreto de 13 de Novem bro de 1790,
que confere ao Conselho de Guerra a faculdade de minorar a seu arbítrio as penas impostas
pelos conselhos de l .a instância, bem como a legislação de 1809, que minora as penas
previstas para os desertores.

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14 — 11 Voi.
importantes em direcção ao abolicionismo: aboliu-se a pena de morte
para os crimes civis; contestou-se, mais do que uma vez, a legitimidade
da sua aplicação a infracções militares.
Perante estas conquistas, é difícil compreender como conseguiu obter
a aprovação das Câmaras tun projecto que mantém a pena de morte numa
vasta série de casos. Só as circunstâncias nas quais tal aprovação foi conse
guida conseguem explicar este ponto.
6 — Em 16 de Março de 1875, poucos dias antes de terminar a sessão
legislativa desse ano, foi apresentada à Câmara dos Deputados uma proposta
pedindo que a mesa fosse autorizada a designar algumas sessões nocturnas
destinadas à discussão do projecto de lei sobre o Código Penal Militar (*).
Alguns deputados manifestaram-se vivamente contra a proposta: depois
de a Câmara ter passado quase todo o ano sem qualquer assunto grave
a discutir, pràticamente esquecida pelo Governo, era difícil aceitar que
este órgão pretendesse obter à pressa, em algumas reuniões nocturnas,
a aprovação de um texto de tal importância. Tanto mais que, se a
aprovação era urgente e, por esse motivo, o Governo não a queria adiar
para o ano seguinte, bem podia prolongar a sessão legislativa.
Mas, apesar da oposição com que deparou, a proposta foi aprovada.
E logo no dia seguinte se iniciou a discussão do projecto de Código
de Justiça Militar.
O projecto foi mal recebido em ambas as Câmaras.
Na dos Deputados, a oposição, para manifestar o seu desacordo, não
compareceu à reunião dedicada ao seu debate. Esta ausência explica que
apenas dois deputados — Eduardo Tavares e Barros e Cunha — tenham
levantado a voz para se pronunciarem contra a pena de morte e para rejei
tarem o projecto (2).
Na Câmara dos Pares a discussão foi mais longa, ocupando integral
mente as reuniões dos dias 30 de Abril e 1 de Maio.
Os Pares Visconde de Fonte Arcada, Marquês de Sabugosa e Miguel
Osório (3), depois de reafirmarem os argumentos invocados em 1867 para
fundamentar a abolição da pena de morte nos crimes civis (4), denuncia-
C1) Diário da Câmara dos Deputados, 1875, p. 814.
(2) Vide as suas intervenções no Diário da Câmara dos Deputados, 1875,
p. 825 ss.
(3) Vide as respectivas intervenções no Diário da Câmara dos Pares> 1875,
p. 219 ss.
(4) Ao analisar o argumento que afirma ser a pena capital ineficaz, por o medo
da morte não evitar a prática do crime, M iguel Osório falava mesmo do contra-senso

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ram a fragilidade das considerações com as quais se pretendia justificar a
sua manutenção nos crimes militares.
Estas considerações baseavam-se na existência da pena capitai nos
códigos militares estrangeiros, bem como na legislação portuguesa que os
governos tinham, até essa altura, mantido em vigori1). Mas — objectaram
os Pares referidos — nos códigos estrangeiros a pena de morte também exis
tia para os crimes comuns, e tal circunstância não tinha impedido Portugal
de a abolir. E o facto de a mesma reacção criminal existir na legislação
militar portuguesa nada provava: era precisamente para reformar essa
legislação que se procedia à elaboração de um novo código.
De resto, a pena de morte, embora existindo nas leis militares, não
era aplicada há muitos anos, por não haver força moral para o fazer. Ora
— como denunciava abertamente o Marquês de Sabugosa (2) — era preci
samente essa força que se procurava obter com a aprovação do novo Código
de Justiça Militar.
No fundo, a apresentação apressada deste texto ao parlamento resul
tava (3) não tanto da livre convicção do Ministro da Guerra, como da pres
são do exército, melhor dizendo, da oficialidade, exaltada por um lamen
tável acontecimento.
7 — Esse lamentável acontecimento tinha sido o assassinato do alferes
Brito pelo soldado António Coelho.
O crime, praticado no quartel de S. João de Deus, em Lisboa, havia
agitado vivamente a opinião pública portuguesa e provocado grande discussão
sobre a necessidade e conveniência da pena de morte para manter a disci
plina do exército (4).
de pretender incutir o medo da morte àqueles a quem se deve ensinar a desprezar a
vida, im pondo-lhes por obrigação não se importar com ela, arriscando-a no campo de
batalha (a í., p. 228).
A mesma contradição é apontada por Marrecas Ferreira, que considera absurdo
dizer ao soldado, quando ele se alista nas fileiras, que será fusilado se praticar este ou
aquele acto, e acrescentar-lhe, ao mesmo tempo e no mesmo metal de voz, que deve correr
todos os perigos, sempre obediente ao comando dos superiores, afrontando a morte, cujo
receio começaram por lhe incutir («A pena de morte», extracto da Revista das Sciências
Militares, Lisboa, 1911, p. 15).
C1) Vide a intervenção do M inistro da Guerra, no Diário da Câmara dos Deputados,
1875, pp. 860-861.
(2) Cif., p. 220.
(s) Como referiram M iguel Osório (cit.y p. 231) e o M arquês de Sabugosa
(cit.y p. 224).
(4) D a discussão resultou ter-se dado notícia ao público de execuções que até

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A imprensa periódica, tanto governamental como da oposição, deu largo
contributo à polémica travada: a governamental, reclamando a pena de morte
para o soldado assassino; a da oposição, manifestando-se contra essa pena.
Publicaram-se numerosos opúsculos, a favor (x) e contra (2) os fusilamentos.
O acontecimento teve tal projecção que Guerra Junqueiro lhe dedicou o
poema «O crime» de A musaem férias e Ramalho Ortigã
de As farpas (f).
Para aumentar a repercussão deste assassinato contribuiu a circuns
tância de no período decorrido entre 1872 e 1874 se terem verificado no
exército outros crimes de homicídio.
Entre eles, avultava o praticado pelo soldado Barnabé Nunes, em
Barrancos, no dia 30 de Junho de 1872, do qual tinha sido vítima o alferes
Crisóstomo da Silva (4).
então eram ignoradas, mostrando-se assim errónea a convicção, existente durante m uitos
anos, de que a pena de morte não era executada desde 1846.
Entre as execuções de que nesta altura se deu notícia, conta-se a do soldado
António Pereira, condenado em 1848, por homicídio dum sargento da sua companhia.
H enriques S ecco (ar., pp. 490-492), depois de nos dar notícia do fusilamento deste sol
dado, transcreve, da Revolução de Setembro, a descrição do seu interrogatório. Segundo
a descrição, o réu, depois de confessar o crime, tinha apresentado como suas causas os maus
tratos que o sargento frequentemente lhe infligia, e a indiferença manifestada pelos seus
superiores quando se lhes queixou do procedimento do sargento.
(!) Vide, a favor dos fusilam entos, A ntónio G. F. de Castro, Algumas considerações
sobre a pena de morte e a indisciplina militar (série de artigos publicados em 1872 e em 1874
no Jornal do Commercio), Lisboa, 1874; Cunha de B arbosa, Duas palavras sobre o opúsculo
do Sr. Navarro *Os fusilamentos». Militarmente: o direito e a necessidade; em geral:
a legitimidade da pena de morte, Coimbra, 1875.
(2) Vide, contra os fusilamentos, E migdio N avarro, O s fusilamentos — O direito
— A política — A ordem social, Lisboa, 1874; Sérgio de Castro, A disciplina e o exército
(A propósito do assassinato do alferes Brito), Lisboa, 1874; A ntónio Ennes, Deve resta
belecer-se a pena de morte?, Lisboa, 1874.
(3) «A disciplina militar e a pena de morte — O caso do soldado António Coelho»,
no voi. V II de As farpas.
(4) É curioso notar que os crimes que vitimaram os dois alferes foram cometidos
em circunstâncias muito semelhantes.
Ambos foram praticados num dom ingo, pouco depois de o regimento voltar da
missa. Tanto num caso como no outro se procurou a explicação do hom icídio no facto
de, no caminho para a igreja, os alferes terem repreendido os soldados, por eles se não
comportarem com a devida compostura: Barnabé N unes, «por apanhar pedras do cami
nho e as arremessar aos seus camaradas»; António Coelho, «por ir rindo, brincando
e fazendo momices» (Vide a descrição do crime de Barnabé Nunes no artigo publicado
por A ntónio G. F. de Castro no Jornal do Commercio, de 22 de Agosto de 1872, e
transcrito na compilação citada, p. 11 ss. A descrição do crime de António Coelho pode
ler-se em Eduardo de N oronha, Pena de morte, Lisboa, 1936).

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Mas ao crime de Bamabé Nunes podia ainda acrescentar-se o do
soldado Francisco António, que assassinara à traição um seu camarada,
de guarda à cadeia civil de Monsanto, em virtude de este o repreender por
conversar com os presos às grades, servindo-se, para praticar o homicídio,
da espingarda que já tinha carregada para matar o tenente comandante do
destacamento í1).
8 — Estes crimes dão-nos, de certo modo, a razão de se ter mantido no
Código de Justiça Militar um dos pontos mais criticados do respectivo
projecto: a desarmonia entre os artigos 55.° e 81.°.
Segundo o primeiro destes artigos, o militar que maltratasse com
pancadas algum inferior ou prisioneiro de guerra, a não ser em legítima
defesa própria ou de outrem ou com o fim de conseguir a reunião dos
fugitivos ou debandados ou de obstar à revolta, ao saque ou à devastação,
seria punido com prisão militar de três meses a dois anos; resultando da
sua acção crime a que correspondesse pena mais grave, seria imposta
esta pena.
De acordo com o segundo, a ofensa corporal cometida por qualquer
militar contra algum superior seria punida com a pena de morte, se fosse
praticada com premeditação, debaixo de armas, em acto de serviço ou em
razão do serviço; com a pena de presídio de guerra de cinco a dez anos ou,
sendo cometida por oficial, com demissão agravada, nos restantes casos.
Aumentando ainda a gravidade desta ameaça, o § l.° do mesmo artigo escla
recia que era considerada ofensa corporal não só qualquer pancada, contusão
ou sofrimento físico, mas também o tiro de arma de fogo e o emprego de
qualquer arma, posto que não houvesse ferimento nem contusão.
A diferença na punição do mesmo crime, reservando a pena de morte
para os «filhos do povo»(2), foi vivamente criticada pelas Câmaras, onde
de modo inequívoco se afirmou que esta desigualdade, reintroduzindo os
privilégios numa altura em que já não se admitia o princípio das classes
privilegiadas, violava a Carta Constitucional, a qual queria que a lei,
protegendo ou castigando, fosse igual para todos (3).
9 — Apesar da oposição que suscitou nas Câmaras, o projecto conseguiu
obter o voto concordante da maioria dos parlamentares. Poucos dias depois
foi aprovado, pelo Decreto de 9 de Abril de 1875.

C1) H e n r iq ue s S e c c o , cif., p. 489.


(2) H. J. d o s S a n t o s Ca r do so , «A exautoração militar aliada pena de morte»,
em Verdades de sangue, Porto, 18 8, p. .
(3) M iguel Osório, c íí ., pp. 232-234.

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Seria preciso esperar ainda muitos anos para ver abolida a pena de
morte nos crimes militares. Os Códigos de 1895 e 1896, que vieram
substituir o de 1875, não alteraram essencialmente a situação por este
criada quanto à aplicação da pena de morte. E, consultando as actas das
sessões relativas à sua preparação, não encontramos mesmo, nem nos
pareceres das comissões de legislação, nem nas intervenções dos parla
mentares, qualquer referência à problemática da pena capital (x).
10 — Em 1875, tinha Miguel Osório afirmado na Câmara dos Pares : «Se
o Código vier a ser aprovado, eu tenho a certeza de que ele será apenas um
espantalho, permita-se-me a expressão, porque acima da vontade dos
governos está a opinião pública, que se revolta contra a pena de morte» (2).
No mesmo sentido, tinha o Marquês de Sabugosa vaticinado: «Apesar da
sanção legislativa, esta pena não será aplicada mais do que uma ou duas
vezes, o que se vota aqui são tuna ou duas sentenças de morte, e não mais,
porque a consciência pública há-de opor-se enèrgicamente à continuação
dessa pena»(3).
Terá sido efectivamente assim? Sancionada a pena de morte, terá
ela tido uma existência apenas teórica?
Consultando a Estatística criminal e disciplinar do Exército e as Ordens
do Exército referentes ao período que decorre de 1875 a 1911 obtemos algumas
informações sobre este ponto.
Da consulta da Estatística podemos concluir que, de 1881 (4) a 1911,
os tribunais militares aplicaram efectivamente a pena de morte, se bem que
m im número restrito de casos. Encontramos, na verdade, referência a sete
condenações: uma em 1881, outra em 1892, uma outra em 1894, três
em 1895 e uma em 1905 (5).
Os dados estatísticos, porém, não nos indicam quais os crimes aos
quais a pena de morte foi aplicada. Não nos indicam também se a pena
foi realmente executada ou se o Rei, no exercício do seu direito de graça,
a comutou. Apenas a Estatística relativa a 1881 refere que a pena de(*)
(*) Diário da Câmara dos Deputados, 1896, p. 1577 ss.; Diário da Câmara dos
Pares, 1896, pp. 726 ss.
(2) d t., p. 224.
(3) d t., p. 221.
(4) Não conseguimos saber se de 1875 a 1880 houve alguma condenação à pena
de morte, visto que a Estatística só em 1881 começa a especificar as penas aplicadas.
(5) N ão conseguimos porém consultar os volum es estatísticos relativos a 1890,
1891, 1901, 1902 e 1903. É bem possível que nestes anos tenha havido mais alguma
condenação à morte.

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morte aplicada a um soldado de infantaria, pelo crime de insubordinação
por ofensa corporal contra um superior, não foi executada, por estar o res
pectivo processo ainda dependente de resolução do poder moderador.
É nas Ordens do Exército do período indicado (1875-1911) que podemos
obter mais alguns dados sobre a questão de saber se as penas aplicadas terão
sido comutadas. Na verdade, era costume, por ocasião da Semana Santa ou,
por vezes, de outras solenidades, o monarca usar da sua clemência para
com aqueles réus que, por circunstâncias ponderosas, se mostravam dignos
de comiseração. Tê-la-á usado para com os condenados à morte?
Nas Ordens do Exército que tivemos ao nosso dispor (1), encontrámos
notícia de quatro comutações da pena capital, feitas por ocasião da Semana
Santa: uma em 1889 (2), outra em 1891 (3), a terceira em 1893 (4) e a última
em 1895 (6). Todos os réus aos quais a pena foi comutada eram soldados,
condenados pelo crime de insubordinação por ofensa corporal contra
superior. Encontrámos ainda, em 1887 (6), notícia da comutação, feita
por ocasião do nascimento do Príncipe da Beira, da pena de morte aos
réus que a ela tivessem sido condenados, por sentença transitada em julgado.
Destes elementos não é possível tirar quaisquer conclusões nem
quanto ao número exacto de condenações à morte, nem quanto à questão,
mais importante ainda, de saber se as penas aplicadas terão efectivamente
sido executadas (7). Todavia, os dados que conseguimos obter não excluem
de forma alguma, antes indiciam, a possibilidade de ser habitual a inter
venção do poder moderador, comutando as sentenças de morte pronunciadas.

C1) N ão conseguimos infelizmente consultar as Ordens do Exército relativas aos


anos de 1896 a 1900 e 1904 a 1910.
( ) Ordem do Exércitoy n.° 7, de 1 de M aio de 1889.
(3) Ordem do Exércitoy n.° 11, de 7 de Abril de 1891.
(4) Ordem do ExércitOy n.° 10, de 4 de Abril de 1893.
(5) Ordem do ExércitOy n.° 10, 2.asérie, de 22 de Abril de 1895.
( ) Ordem do ExércitOy n.° 13, de 28 de M aio de 1887.
(7) T al acontece, em primeiro lugar, por não termos podido consultar nem os
volumes estatísticos nem as Ordens do Exército referentes a todos os anos do período sobre
o qual recaiu a nossa investigação.
Mas resulta também de não haver correspondência entre os elem entos de informação
que se podem colher dos dados estatísticos e aqueles que se podem retirar das Ordens do
Exército. N a verdade, os primeiros não indicam nem o nome do réu, nem o crime pelo
qual ele foi condenado; as segundas, dão-nos ambos estes elem entos, mas não referem a
data da aplicação da pena comutada.
Em resultado da insuficiência do material e da desarmonia dos dados, não podemos
sequer saber se as penas de morte de cuja comutação damos notícia são aquelas mesmas
de que detectámos a aplicação.

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11 — Viria a caber à República o mérito de abolir a pena de morte
nos crimes militares. Poucos meses após a sua implantação, o Decreto de
16 de Março de 1911, ao declarar provisoriamente em vigor o Livro I do
Código de Justiça Militar, referente aos crimes e às penas, introduziria nesse
texto certas restrições. Entre elas avultava precisamente a abolição, em
absoluto, da pena de morte. Nos casos em que a lei anterior a cominava,
mandava o citado Decreto aplicar a pena imediatamente inferior (art. 3.°,
§ único).
12 — Certamente por lapso, não foi harmonizado com este Decreto
o n.° 29 do art. 54.° do projecto de Constituição que, poucos meses depois,
a Assembleia Nacional Constituinte começou a discutir. Este número,
na verdade, declarava: «Fica abolida a pena de morte, reservadas as dispo
sições da legislação militar em tempo de guerra».
A contradição existente entre esta disposição e o art. 3.° do Decreto
de 16 de Março foi imediatamente notada pelos membros da Assembleia.
Nada havia já a ressalvar, visto que também nas leis militares aplicáveis
em tempo de guerra estava a pena de morte abolida.
Mas, no receio de que se pudesse pensar na sua reintrodução, Egas
Moniz, logo na discussão na generalidade do texto constitucional, fez
notar calorosamente a necessidade de abolir a pena de morte em todos os
casos, «porque há muito vive na tradição portuguesa essa consoladora
orientação penal, talvez resultante da nossa afectividade excessiva». Em
tempo de guerra — acrescentou — maior era a necessidade de abolição
da pena capital, «porque sendo o principal argumento contra essa pena
o erro judiciário, é exactamente em tempo de guerra que esse erro se pode
dar com mais facilidade e frequência» (J) (2). A estas considerações, acres
centou Sebastião Baracho a da inutilidade da pena capital «desde que a
educação do soldado se faça como deve ser, por processos suaves e de
persuasão, e não de violência, rigidez, terror) (3).

C1) Diário da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n.° 17, de 10 de Julho


de 1911, p. 23.
(2) Num a série de depoimentos sobre a pena de morte, recolhidos, em 1938, pelo
jornal O Diabo, figura precisamente o de Egas M oniz, no qual o ilustre m édico, confirmando
a sua posição de 1911, se manifesta francamente contra a pena de morte («Pena de morte
— Depoim entos de Afonso Lopes Vieira, António Sérgio, Egas M oniz, Júlio Dantas,
Padre Alves Correia, Ramada Curto e Vieira de Almeida», em O Diabo, de 23 de Janeiro
de 1938, p. 1).
(*) Diário da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n.° 21, de 14 de Julho de 1911,
p. 15.
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O texto inicial do projecto de Constituição foi ràpidamente corrigido,
e o que em seguida foi proposto à apreciação da Assembleia omitia já a
reserva das disposições da legislação militar em tempo de guerra.
Mas mesmo para este segundo texto foram apresentadas propostas de
emenda. Para a Assembleia Constituinte não era já suficiente abolir a pena
de morte em todos os crimes, pois esse objectivo já tinha sido alcançado
por disposições legais anteriores. Era preciso ir mais longe, e proibir
o seu restabelecimento. Decidir tal proibição seria um dos mais belos
gestos que as Constituintes podiam ter e constituiria para elas um título
de glória^).
Efectivamente, a Assembleia Constituinte tem esse título de glória: o
texto que veio a ser aprovado, proposto por Sebastião Baracho, declara
que «em nenhum caso poderá ser restabelecida a pena de morte».
13 — Infelizmente, a 1.a revisão constitucional, antecipada de cinco
anos em consequência da entrada de Portugal na I Grande Guerra, viria
corrigir este princípio. O art. 3.° da Lei n.° 635, de 28 de Setembro
de 1916, resultante dessa revisão, declarou inserto na Constituição
um artigo (art. 59.°-A) redigido nestes termos: «A pena de morte e as
penas corporais perpétuas ou de duração ilimitada não poderão ser reintro-
duzidas em caso algum, nem ainda quando for declarado o estado de sítio,
com suspensão total ou parcial das garantias constitucionais (2); exceptua-se,
quanto à pena de morte, somente o caso de guerra com país estrangeiro,
em tanto quanto a aplicação dessa pena seja indispensável, e apenas no
teatro da guerra».
Ë interessante todavia notar que, ainda desta vez, não foi sem oposição
que um projecto de lei prevendo a pena de morte foi aprovado pela assem
bleia legislativa. Protesto veemente foi o do deputado José António da
Costa Júnior, o qual apresentou uma moção afirmando «em nome do pro
letariado português, que este, em nenhum caso, e seja em que circuns
tâncias for, aceitará o restabelecimento da pena de morte, reportando-a
monstruosa violação de todos os princípios de direito moderno e dos mais(*)

(l) Esta última afirmação, feita por Afonso Costa, pode ler-se no Diário da Assembleia
Nacional Constituinte, sessão n.° 33, de 28 de Julho de 1911, pp. 18-19.
(*) A inaplicabilidade da pena de morte em estado de sítio constitui precisamente
o traço distintivo entre o artigo citado e o n.° 11 do art. 8.° da actual Constituição. Como
neste texto não se encontra qualquer referência ao estado de sítio, parece que, decretado
esse estado, com a suspensão das garantias que lhe é inerente, poderá a pena de morte
ser aplicada.

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altos e sagrados sentimentos da humanidade» (*). Esta moção, conforme o
deputado esclareceu, era baseada em princípios estudados, em várias assem
bleias, pelas classes proletárias, que tinham decidido fazer oposição ao
restabelecimento da pena capital.
Mas houve outros membros do Congresso, além de Costa Júnior,
que se manifestaram contrários à reintrodução da pena de morte. Não
podemos saber quantos terão sido, pois o Diáño das Sessões não nos indica
por quantos votos foi aprovada a proposta de emenda constitucional.
Podemos porém saber que alguns houve, pois o Diário transcreve vários
documentos, mandados para a mesa durante a sessão, rejeitando o resta
belecimento dessa pena.
14 — Todavia, ao que cremos, a reintrodução da pena de morte pouco
mais alcance teve do que o de ameaça: segundo as informações que conse
guimos obter, ela apenas foi executada uma vez, em França, num soldado
do Corpo Expedicionário Português, condenado por espionagem a favor
dos alemães (2).
15 — As notas que acabamos de apresentar não pretendem constituir
uma fundamentação cabal da necessidade de abolir a pena de morte nos
crimes militares.
Todavia — mostrando que em Portugal, a partir de 1863, foram feitas
tentativas para suprimir a pena capital na legislação militar; denunciando
a fragilidade das razões que levaram a manter essa sanção, no passo decisivo
dado em 1875; salientando que, num período da nossa história, se alcançou
efectivamente a abolição total dessa pena; indiciando que, prevista a pena
de morte nas leis militares, a sua existência pouco mais foi do que teórica
— esperam estas notas contribuir, mesmo que só remotamente, para que o
princípio abolicionista venha a ser acolhido, sem quaisquer reservas, no
nosso país.

(l) Diário do Congresso, sessão n.° 16, de 31 de Agosto de 1916, p. 11.


(») Esta indicação encontra-se também em F. C o r r e ia d a s N e v e s , Algumas consi
derações sobre a pena de morte, Braga, 1962.
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