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alterações da Lei 13.491/17 no art. 9º do Código Penal Militar
A fim de analisarmos a Lei 13.491/17, bem como entendermos os
desdobramentos legislativos proporcionados por ela, se torna imprescindível
estudarmos as mudanças históricas no artigo 9º do Código Penal Militar (CPM).
Assim, devemos retornar ao ano de 1992, com a instauração de uma Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI) voltada a apurar a enorme quantidade de homicídio de
crianças e adolescentes no Brasil.
Durante os trabalhos dessa CPI foram identificados inúmeros casos de
assassinatos de crianças e adolescentes cometidos por policiais e bombeiros militares,
estando de serviço ou de folga, muitas vezes em atividades típicas de grupos de
extermínio. Vários desses grupos eram mantidos por comerciantes de áreas atingidas
pela criminalidade, os quais, duvidando do sistema penal e das polícias, os contratavam.
Uma das razões que a CPI entendeu como fator catalisador da impunidade foi a
possibilidade do autor do crime ser processado e julgado pelas Justiças Militares. Pois
mesmo não estando o militar federal ou estadual em situação de serviço, a antiga alínea
‘f’, do artigo 9º, do CPM, previa que bastava o militar estar utilizando o armamento ou
qualquer outro material bélico da instituição, que a competência da justiça castrense
atrairia o crime. Assim era a antiga redação da alínea ‘f’:
Art. 9ºConsideram‐se crimes militares, em tempos de paz:
II. os crimes [...] quando praticados
[...]
f) por militar em situação de atividade ou assemelhado que, embora
não estando em serviço, use armamento de propriedade militar ou
qualquer material bélico, sob guarda, fiscalização ou administração
militar, para a prática de ato ilegal;
Ou seja, um policial militar, bombeiro militar ou militar federal que, estando de
folga, utilizasse uma arma pertencente à corporação para uma atividade criminosa,
mesmo sendo um homicídio, cometeria um crime militar e seria julgado por seus pares,
na Justiça Militar da União ou dos Estados.
Ademais, entendiam as autoridades que compunham a Comissão Parlamentar
de Inquérito, que as justiças militares não deveriam ser competentes, em tempos de
paz, para atuar em crimes cometidos por qualquer agente militar contra civis.
Foi então proposto no relatório final da CPI uma mudança legislativa,
consecutivamente sendo apresentado no Parlamento o Projeto de Lei 2.801/1992. Esse
projeto propunha alterar o Código Penal Militar e o Código de Processo Penal Militar da
seguinte forma:
Art. 1º ‐ O Artigo 9º do Código Penal Militar passa a vigorar acrescido do
seguinte parágrafo:
Parágrafo único: Não se consideram crimes militares, em tempos de paz, os
praticados por qualquer agente contra civil.
Art. 2º ‐ O Artigo 82 do Código de Processo Penal Militar passa a vigorar
acrescido do seguinte parágrafo:
Parágrafo único: Não está sujeito ao foro militar, em tempo de paz, o
julgamento de crimes praticados por qualquer agente contra civil.
Importante ressaltarmos a expressão qualquer agente, pois dela depreende‐se
que desde o projeto de lei a intenção do legislador era que tanto os militares estaduais
quanto os federais não fossem mais julgados, quando cometessem delitos em desfavor
de civis, pelas justiças militares, mas sim pela comum.
Tal mudança legislativa, após quatro anos de debates no Congresso, veio a
ocorrer através da Lei 9.299/96, entretanto, apresentando uma redação
completamente diferente do que se propôs incialmente:
Art. 1º. O art. 9° do Decreto‐lei n° 1.001, de 21 de outubro de 1969 ‐
Código Penal Militar, passa a vigorar com as seguintes alterações:
"Art. 9° [...]
II – [...]
c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão
de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito
à administração militar contra militar da reserva, ou reformado, ou
civil; [...]
f) revogada.
Parágrafo único. Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos
contra a vida e cometidos contra civil, serão da competência da justiça
comum."
Art. 2° O caput do art. 82 do Decreto‐lei n° 1.002, de 21 de outubro de
1969 ‐ Código de Processo Penal Militar, passa a vigorar com a seguinte
redação, acrescido, ainda, o seguinte § 2° , passando o atual parágrafo
único a § 1° :
"Art. 82. O foro militar é especial, e, exceto nos crimes dolosos contra
a vida praticados contra civil, a ele estão sujeitos, em tempo de paz:[...]
§ 1° [...]
§ 2° Nos crimes dolosos contra a vida, praticados contra civil, a
Justiça Militar encaminhará os autos do inquérito policial militar
à justiça comum."
Curiosamente, em que pese a controversa alínea ‘f’, do artigo 9º, haver sido
suprimida, fulminando com a atração ao foro especial castrense pelo mero uso de arma
ou qualquer material bélico da corporação militar, bem como excluindo o processo e
julgamento das justiças militares nos crimes dolosos cometidos contra a vida de civis,
em verdade a L. 9.299/96 acabou por ampliar a sua competência, ao inserir na alínea ‘c’,
do item II, a expressão “em razão da função”.
Assim, qualquer militar que atuasse, mesmo de folga, em razão da função, e
cometesse nessa ação qualquer delito capitulado no rol dos crimes militares, estaria
amparado pelo foro especial.
A mudança realizada no artigo 82, §2º do Código de Processo Penal Militar
(CPPM) também deixou claro de quem era a atribuição investigativa mesmo nos crimes
dolosos contra a vida de civis. Ao assinalar que a Justiça Militar encaminharia os autos
do inquérito policial militar para a justiça comum em tais crimes, retirou por completo
a possibilidade de delegados de polícia em investigarem tais supostos delitos, já que
por norma legal as autoridades de polícia judiciária militar são os comandantes, chefes
e diretores das forças armadas e auxiliares.
O parágrafo 2º, do art. 82, do CPPM, foi logo motivo de questionamento no
Supremo Tribunal Federal sobre sua constitucionalidade, pela Associação de Delegados
de Polícia (ADEPOL). Entretanto, em julgamento liminar, o Pretório Excelso denegou a
ordem, aduzindo a possibilidade de dois inquéritos consecutivos para apurar o mesmo
fato. Um dos inquéritos poderia ser de natureza militar, levado adiante pelo
comandante, e outro, de natureza comum, levado à frente pelo delegado de polícia.
Com a devida vênia, discordamos desse posicionamento, por entendermos sobre a
ocorrência de bis in idem, além da possibilidade de conclusões dos inquéritos
completamente opostas, o que levaria a um grave comprometimento na ordem e
garantia jurídica, como, por exemplo, um inquérito ser arquivado por se entender por
uma excludente de ilicitude e outro ter denúncia proposta pelo Ministério Público e
aceita pelo juízo.
Noutro giro, em que pese a possível inconstitucionalidade da L. 9.299/96, por
retirar da Justiça Militar o julgamento de um crime previsto na legislação penal
castrense, ao arrepio da Carta Magna, a qual determina ser de competência de tal justiça
militar processar e julgar os crimes militares, a legislação se manteve utilizada nos
últimos 21 anos.
Nesse ínterim, a Emenda Constitucional 45/2004 veio sanar a suposta
inconstitucionalidade da L. 9.299/96 para os militares estaduais, com o seguinte texto:
Art. 125 [...]
§ 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares
dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais
contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri
quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir
sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das
praças.
Destarte, a exceção constitucional realizada para policiais e bombeiros militares
que cometessem crimes dolosos contra a vida de civis nas condições previstas pelo art.
9º, retirava qualquer dúvida sobre onde aqueles agentes seriam processados e julgados.
Mas e para os militares federais?
Parte da doutrina, bem como decisões do Superior Tribunal Militar, apontavam
que o parágrafo único do art. 9º não seria aplicável para os militares federais, pois não
seriam eles o objeto do legislador quando da alteração realizada em 1996, bem como
argumentavam sobre a sua inconstitucionalidade.
Entretanto, em sentido contrário, veio a L. 12.432/2011. Tal legislação
acrescentou o seguinte texto no parágrafo único, do art. 9º, do CPM: “salvo quando
praticados no contexto de ação militar realizada na forma do art. 303 da Lei n o 7.565, de
19 de dezembro de 1986 ‐ Código Brasileiro de Aeronáutica.”.
Ao compulsar o art. 303, da L. 7.565/86, vemos no item V que:
[...]
§ 1° A autoridade aeronáutica poderá empregar os meios que julgar
necessários para compelir a aeronave a efetuar o pouso no aeródromo
que lhe for indicado.
§ 2° Esgotados os meios coercitivos legalmente previstos, a aeronave
será classificada como hostil, ficando sujeita à medida de destruição,
nos casos dos incisos do caput deste artigo e após autorização do
Presidente da República ou autoridade por ele delegada.
§ 3° A autoridade mencionada no § 1° responderá por seus atos
quando agir com excesso de poder ou com espírito emulatório.
Para sanarmos a dúvida sobre a quem se refere a legislação supra quando
menciona “autoridade aeronáutica”, nos dirigimos ao art. 2º do mesmo diploma: “Art.
2°. Para os efeitos deste Código consideram‐se autoridades aeronáuticas competentes
as do Ministério da Aeronáutica, conforme as atribuições definidas nos respectivos
regulamentos.”.
Ou seja, se o legislador entendeu como necessário acrescentar importante
exceção no parágrafo único do art. 9º, sacando os militares da Aeronáutica, quando
atuem em ação de abate de aeronave classificadas como hostis, do Tribunal do Júri, é
porque, por óbvio, caso não existisse a ressalva, deveriam aqueles agentes serem
julgados conforme a regra geral.
Finalmente, após as várias decisões judiciais das últimas décadas, inclusive
sumuladas pelo Superior Tribunal de Justiça, que apontavam por um esvaziamento das
Justiças Militares, em outubro de 2017 a comunidade jurídica foi surpreendida pela
promulgação da L. 13.491.
Ao observamos de forma perfunctória a L. 13.491, o que mais chama a atenção
é o deslocamento de competência dos crimes dolosos contra a vida de civis, perpetrados
por militares federais, em sentido antagônico da antiga L. 9.299/96, retornando‐os para
a Justiça Militar da União.
Art. 1º O art. 9º do Decreto‐Lei no 1.001, de 21 de outubro de 1969
‐ Código Penal Militar, passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 9º [...]
§ 1º Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida
e cometidos por militares contra civil, serão da competência do
Tribunal do Júri.
§ 2º Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida
e cometidos por militares das Forças Armadas contra civil, serão da
competência da Justiça Militar da União, se praticados no contexto:
I – do cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo
Presidente da República ou pelo Ministro de Estado da Defesa;
II – de ação que envolva a segurança de instituição militar ou de missão
militar, mesmo que não beligerante; ou
III – de atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia
da lei e da ordem ou de atribuição subsidiária, realizadas em
conformidade com o disposto no art. 142 da Constituição Federal e na
forma dos seguintes diplomas legais:
a) Lei no 7.565, de 19 de dezembro de 1986 ‐ Código Brasileiro de
Aeronáutica;
b) Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999;
c) Decreto‐Lei no 1.002, de 21 de outubro de 1969 ‐ Código de
Processo Penal Militar; e
d) Lei no 4.737, de 15 de julho de 1965 ‐ Código Eleitoral. ”
Assim, a partir da redação do §2º, do art. 9º, inserida pela L. 13.491/2017,
militares das Forças Armadas voltam a ter foro especial na Justiça Militar da União ao
serem processados e julgados por crimes dolosos contra a vida de civis nas mais diversas
hipóteses, abrangidas pelos incisos I, II e III e suas alíneas.
Dentre as hipóteses previstas temos a atuação das Forças Armadas na Garantia
da Lei e da Ordem; a utilização de apoio aos pleitos eleitorais; as ações previstas,
incluindo a possibilidade já mencionada de abate de aeronaves, no Código Brasileiro de
Aeronáutica; o cumprimento de atribuições estabelecidas pelo Presidente da República
etc.
Tal alteração há muito era rogada pelas Forças Armadas brasileiras a fim de lhes
conferir, segundo seus comandantes, as garantias jurídicas necessárias a ações cada vez
mais corriqueiras nos decretos de Garantia da Lei e da Ordem (GLO).
Porém, a nosso ver, a mais importante alteração realizada pela L. 13.491/2017
foi feita através da mudança do inciso II, do artigo 9º, englobando a Justiça Militar da
União e as Justiças Militares Estaduais. A mudança deixou o texto do inciso II, ao
considerar quais são os crimes de natureza militar, da seguinte forma: " II – os crimes
previstos neste Código e os previstos na legislação penal [...]”.
A partir daí todos os crimes previstos na legislação penal pátria, seja ela comum,
extravagante ou especial, também passaram a ostentar a natureza militar, desde que
cometidos por militares, sejam estaduais ou federais, nas condições do art. 9º.
Nessas circunstâncias, todos os crimes serão processados e julgados pelas
justiças castrenses (excetuando os dolosos contra a vida de civis praticados por policiais
e bombeiros militares). No mesmo contexto, a atribuição de polícia judiciária militar
aumentou, já que, da mesma forma, o rol dos crimes a serem investigados foi
igualmente ampliado,
Podemos perceber, portanto, o movimento inverso de esvaziamento das justiças
militares que vinha ocorrendo nas últimas décadas, para uma real ampliação da mesma.
E como tal norma define competência do juiz, o entendimento majoritário doutrinário
e dos Tribunais é de que todos os processos em andamento nas primeiras instâncias
deverão ser direcionados ao novo juízo natural, qual seja, as Auditorias de Justiça
Militar.
Processos que tramitam em segunda instância, já sentenciados pela primeira,
nos casos de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e São Paulo, os quais possuem Tribunais
de Justiça Militar, devem ser mantidos na justiça comum. Nos outros estados, a segunda
instância já é a justiça comum, através dos Tribunais de Justiça, não havendo qualquer
possibilidade de questionamento.
Notadamente, tal ampliação irá gerar diversos problemas de natureza
hermenêutica, principalmente no que se refere a utilização de normas penais
constantes existentes no Código Penal Militar ou as de igual teor que constam na
legislação penal comum/ especial/extravagante.
Um bom exemplo a ser dado sobre essa problematização é no tocante à lei de
drogas. Um militar de serviço que seja flagrado consumindo um cigarro de maconha
deverá ser autuado pela tipificação do CPM ou da Lei de Drogas, que nesse caso é muito
mais branda? Lembrando que não cabe a aplicação da L. 9.099 no caso de crimes
militares por restrição expressa desse ordenamento. E o militar que, através de
inquérito policial militar, for identificado traficando drogas em área castrense? Qual a
justiça competente, considerando que a legislação penal extravagante, nesse caso, é
muito mais rígida?
Caso a lei se mantenha nos moldes que hoje se encontra, tendo em vista já haver
arguição de sua inconstitucionalidade no STF, somente o debate doutrinária e a
jurisprudência poderão sanar os diversos questionamentos que já surgiram e ainda irão
surgir.
Se por um lado é de louvar a atitude do legislador em querer dar garantia jurídica
à atuação das tropas militares, sejam estaduais ou federais, por outro lado, o
açodamento na redação de tal norma levou a inúmeros problemas.
Além disso, o impacto repentino no aumento do volume de processos nas
Auditorias Militares e nas investigações por inquérito policial militar/autuações em
flagrante, causaram sérias adversidades tanto no Poder Judiciário quanto nas
instituições militares. Todos estão absorvendo, aos poucos, as alterações e buscando se
adaptar à nova realidade legal existente. Esperamos, todos, que consigam no menor
espaço de tempo, a fim de proporcionar a devida garantia jurídica aos militares.