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REFUTAÇÃO

DA

llOUTRJN,\ CON!I6NADA
NO

ARTIGO to.• DO PROJECTO DO CODIGO PENAL


NA CHIARA DOS SENHORES DEPUTADOS
COXTENDO A D E F I ~ I Ç.\0 DOS Cfl lliBS MILIHRHS

OFFERECIDA

AO Ex ." Sn. VISCONDE DE SA DA BANDEIIU

REDACTOR DOS PROJECTOS DO CODIGO PENAL

JlfiQCESSO MILITA R

LI SBOA
DJ PHEN~A XACIOX.U.
18G2
• •

Por decreto de 23 de julho de 1~55 fui encarregado de


redigir e confeccionar um projecto de codigo penal militar,
e posteriormente foi-me incumbida a redacção do codigo
do processo criminal militar, nomeando-se, ao mesmo tem-
po, uma commissão especial para rever e examinar os tra-
balhos que por mim lhe fossem apresentados.
Em desempenho, e para dar cumprimento ao encargo
com que fui hom·ado por Sua Magestade El-Rei Regente,
empreguei os maiores esforços; e não passo_u muito tempo
sem que fossem apresentados á. commissão revisora o res-
pectivo projecto de codigo penal, e, logo depois, o outro
sobre as leis da competencia das jurisdicções ou dos tribu-
naes militares, c sobre a sua organisação, abrangendo todas
as differentes e variadas situações em que póde achar-se
um exercito; isto é-comprehendendo o estado de paz c
o tempo de guetTa, a qual póde ter logar cm tcrritorio
nacional ou em paiz estrangeiro, e acontecer em campo
aberto ou em praças sitiadas, etc., etc. Deixei para mais
tarde confeccionar a ultima parte do codigo do processo,
respeitante <Í.S fórmas propriamente dit-as, porque tendo
estas · forçosamente de ser differcntcs e variar, conformo
as diversas maneiras por que podem ser constituídos c or-
ganisados _os tribunacs militares, e segundo a mais ou me-
nos ampla jurisdicção que tiverem, só depois ele definitiva-
!
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diversidade de pessoas e classes, segundo as relações diffe- Estas são as deducçi'Ses que logica. e naturalmente resul-
rentcs e situações diversas cm que pódc achar-se um exer- tam dos princípios consignados no artigo 10. 0 do projecto,
cito; permittn. v. ex. a que eu faça algumas ponderações e farei n'isto alguma insistencia, -porque se outro devc1· ser
sobre a. limi tação a que ficará reduzido o domínio do clireito o sentido e o seu alcance talvez não haja motivo justo para
e legislaç.1o militar, pelas exigencias contidás nos n. 0 ' 1. 0 reclamação. N'este caso porém outra terá de ser a redac-
e 3. 0 Taes são: 1. 0 , que haja offensa directa da disciplina ção da lei.
militar; 2. 0 1 que haja violação dedeverexclusivamentemilitar. Tributando a maior consideração aos talentos e saber
Poder-se-ha dizer que estas duas ultimas condições são dos auctores do projecto, e fazendo a devida justiça ás suas
na essencia uma só, e que envolvem o mesmo pensamento: rectas intenções, persuado-me que elles se preoccuparam
comtudo, ainda assim, a repetição da mesma idéa, feita no demasiadamente de uma idéa; qual é, que das leis geraes
mesmo artigo, aindaque por palavras differentes, faz-me da sociedade nenhuma pessoa ou classe deve ficar isenta, c
crer e confirmar mais no juizo em que estou, de que o pen- portanto que os militares devem, sempre e em toda a situa-
, samento dos conspícuos redactores do ·prqjecto c o do illus- ção, ficar adsb·ictos ás leis communs e sujeitos ás suas in-
tre ministro que o converteu em proposta de lei, era e é criminações. Esta idéa já por varias vezes e em differentes
excluir absolutamente do domínio da legislação e direito mi- cpochas tem invadido e dominado o espírito de muitos pu-
litar todos os factos criminosos, aindaque d'elles resulte of- blicistas e philosophos, pelos quaes em nenhuma conta são
fcnsa da disciplinamilit'lr, mas s6 indirecta; bem como todos tidos os perigos que a cxperiencia. constantemente tem mos-
aquellcs de que, mesmo resultando o.ff"ensadirecta ádiscipüna, trado seguirem-se da applicação systematica das regras do
não importem violação de deveres unicamente e exclusú;amente direito commum ás cousas do exercito; e teria por si a au-
militares: excluir, portanto, todos os factos em que, a par ctoridade da lei frnnceza de 19 de outubro de 1791, que
da offensa. dincta dos deveres militares, houver misturada parece haver sido a fonte do artigo 10. o do projecto, se
alguma cousa de offensivo ás leis geraes da sociedade ou esta mesma lei não houvesse sido revogada, logo seis mc-
aos deveres communs de todos os cidadãos. zes depois da. sua promulgação, pela oub·a de 16 de março
E com effeito, existem muitos factos que sendo contra- de 1792. Tão fataes :\.disciplina do exercito fra.ncez foram
rios e oppostos aos primeiros deveres militares, são t.'l.mbem as consequencias d'aquella theoria, convertida em preceito
contrarias e offensivos das leis communs e dos deveres ge- legislativo!!! Aquella lei de 1791, nos artigos 3. 0 e 4. 0 1
raes, de que nenhum cidadão está. isento. Estes factos, dizia,:
aindaquc offensivos dos peculiares deveres do homem das • Art. 3° Nul n'est exempt de la loi commune et de la
anuas, repugnantes á honra militrtr e attentatorios da dis- jurisdiction des tribunaux, sous pretexte du service militairc;
ciplinn, ficariam, segundo a doutrina do projecto, fóra do do- et tout délit que n'attaque pas immédiatement le devoir,
mínio da lei e direito militar, por isso que violam tambcm ou la discipline, ou la subordination militaire, est un délit
deveres geraes, e não deveres exclusivamente mi litares. As- commun, dont, la connaissance appartient aux juges ordi-
sim, a trniçüo, os furtos e roubos feitos nas casernas e quar- naires, et pour raison duqucllo prévenu, soldat, sons officicr
teis, as violencias feitas entre camaradas, a destruição de ou officicr, ne peut êtrc traduit que devant eux.
objectos militares, a prevaricação, a falsidade em materia. « Art. 4° Nul délit n'est militaire, s'il n'a été commis par
de serviço militn.r, a corrupção e a infidelidade na adminis- un individu qui fait partic de l'armée. Tout autre individu
tração do exercito, e as violencias praticadas em execução ne peut jamais êtrc traduit comme prévenu devant les ju-
de alguma ordem ou dever militar, todos estes factos, digo, ges délégués par la loi militaire. » •
ficarão excluíd os do direito militar, c não poderão ser men- D'es'tas disposições resultava que unicamente podiam ser
cionados no codigo militar, porque todos elles já têem le- considerados delictos militares aquelles que offendiam im-
gislação no codigo ordinario, e constituem violação de de- mediata.mente a disciplina militar, e que só estes pertenciam
veres não exclusivamente militares, mas mixtos-militm·es e á competencia. dos tribunaes do exercito, ficando todos os
ge1·aes ou communs. outros sujeitos sempre ájw·isdicção dos tribunaes ordinarios.
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Resultava, portanto, que todos os factos que immediatamento dois principias, para que limitando-se ou restringindo-se e
não eram oflCnsivos da disciplina militar, eram excluidos do completando-se reciprocamente, não se estenda alem do que
clominio da lei c do direito militar. é util e justo, a missão do legislador torna-se muito difficil
Parece-me que este mesmo foi tambem o pensamento c e complicada.
a idéa que dominou na redacção do artigo 10. 0 do projecto, Existem factos que, sendo por sua natureza crimes milita-
c que taes devem ser tambem as suas consequencias. res, porque envolvem infracção de deveres especiacs da mili-
E para não ficar duvida a este respeito, bastará reflectir cia, na sua origem eram crimes communs, tornando-se militl.-
que nã:o só se exige (como na lei franceza) que o facto seja res e perdendo a primitiva natmeza, em rasão da qualidade
immediatamente (ou direct.:'tmente) offensivo da disciplina mi- das pessoas ou por virtude das circumstancias dos Jogares,
litar, mas que constitua violação de dever exclusivamente mi- do tempo, da occasirto c dos perigQs ou resultados pernicio-
lita?·, c tudo isto para bem se claramente exprimir a idéa que sos á conservação do exercito, d'onde derivam nova e maior
as violações dos deve1·es múvtosJ-rnilitares e communs fica- criru.!nalidade.
vão excluidas da categoria de crimes militares. O militar póde e deve ser considerado debaixo de duas
Assim, factos similhantes e violações tn.es, nem poderão relações differcntes ou de dois aspectos distinctos. É ho-
entrar no catalogo das incriminaçàcs da lei militar, para. mem, é cidadílo, e como tal está sujeito ás l e~s gcraes, que
lheS ser imposta. pena correspondente á sua natureza c gra- são communs e obrigam a todos os cidadãos. E soldado, faz
vidade, comqnanto muitos d'elles s~jam infracções de al- parte do exercito, e como tal contrahiu deveres especiaes,
gum dos primeiros deveres da ruilicia; nem para lhes ser obrigações peculiares que a sociedade civil desconhece, e
aggravada a pena, que já pelo direito commum lhes corres- que são reguladas por leis espcciaes, pelas leis militares.
pondia, em rasão da maior gravidade adquirida pelas cir- Assim, sujeito ~ts leis geraes, e adstricto a deveres espe-
cumstancias dos tempos, dos logares, das oecasiões e dos ciaes, se infringe aquellas é o direito commum que deve ser
perigos que resultam á segurança. do e~crcito e da socie- applicado, e por este deve ser punido; mas se infringe os
dade; e muito menos podem entrar ou ser comprchendidos deveres especiaes da milicia, é ao direito e á lei militar que
nos limites da competencia. das jurisdicções militares, para é devida reparaçílo, e segundo ella deve ser castigado. Aqui
serem julgadas e punidas pelos tribunaes militares. nasce a distincção entre os crimes militares e os delictos
rremos assim, n'aquelle artigo do projecto, estabelecida uma communs, distincção verdadeira, que tem sido admittida em
regra suprema de competencia da justiça militar, que ficará todas as legislações, como já era sanccionada nas leis roma-
circumseripta a prover unicamente sobre as infracções mem- nas_, no frg. 2-D. de ré milit.
mente militares, ou sobre as violaçêSes dos deveres exclusiva- E certo que nem todas as acções puniveis dos soldados,
mente militares. ou dos militares podem ser classificadas ou qualificadas como
E serão estes realmente os limites naturaes e raeionaes crimes ou dclictos militares.
da competencia da lei militar? Deverá a lei penal militar, O soldado não deixando de pertencer á sociedade, ads-
0\L o codigo militar, limitar-se unicamente a punir as acções tricto sempre <ÍS leis gcraes e stUeito ás suas incriminações,
du·ectamente offensiva.s da disciplina, ou a incriminar os fa-
ctos offensivos do dever rnilitm· exclusivamentâ
• pódc praticar acções que nada tenham com o dever militar.
Separado das bandeiras, longe dos quarteis, disfructando as
A missão da j ustiça especial seria muito simples, se uni- immunidades da vida civil, e gosando as delicias dos lares
'camcnte fosse encarregada de reprimir as faltas contra a paternos e da vida domestica, póde achar-se misturado em
disciplina ·ou contra o dever exclusivamente militar; e as re- aceusações por actos de vida puramente civil; e seria irri-
gras da sua competencia, tanto em relação ájurisdicção como sorio que, n'estes C..'lsos, abandonada a lei commum, fosse
ás incriminações e penalidades, seriam tambcm faceis de es- procurar-se no codigo m!litar a lei applicavcl para a puni-
tabelecer, se se adoptasse como principio regulador, unica e ção correspondente.
exclusivamente, ou a natureza das noções ou a qualidade Mas concluir:se-ha d'aqui que só podem ser considerados
das pessoas; mas devendo tomar.sc cm consideração estes crimes militw·es~ aquelles que devem a. sua existencia, como
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crimes á lei militar? Aquelles que constituem violação de mas no militar é crime muito maior, c deve ser mais scvc-
deveres exclusivamente militares, e são incriminados só na lei rm>lcn te punido.
militar, e nunca na lei commum? 'ral parece ser a opinião Se pois o militar commette traição, se se subleva ou in-
dos illustres redactores do projecto de codigo, ora sujeito à surrecciona, diz a rasão que deve ser punido segnndo as
approvaçilo do parlamento, e tambem á do respeitavel mi- leis militares. O crime tem o mesmo nome, mas é outro
nistro que o converteu em proposta. de lei. Mas, salvo ores- muito differente em intensidade, e muito diverso em natu-
peito devido, e tributando profundo acatamento a tão res- r cz.:'\; e para esta nova intensidade e natureza não será no
pcitaveis auctoridades, seja-me licito divergir d'esta opinião codigo militar que deve procurar-se a balança da justiça?
e doutrina, que não me parece verdadeira. Se dois homem se associam para auxiliarem as operações
Ha crimes que devem a sua existencia, como taes, ex- do inimigo, ou se rcunem a elle quando invade as frontei-
clusivamente á lei militar, e que nunc..'\ seri am mencionados ras c ataca a indcpendencia nacional, ambos são crimino-
nas leis communs se não houvesse exercito. Estes infringem sos porque infringem as leis geraes; mas um d'elles é
deveres exclusivamente militares, e estão comprehendidos, milita.r, c converte contra a patria as ar mas que recebeu
ou são unicamente os comprehendidos na doutrina do ar- sob o juramento de as empregar unicamente em sua defeza
tigo 10. 0 do projecto, taes são o abândono do posto ou e auxilio; este é, na verdade, duplicadamente criminoso, é
dà. gnarda, a insubordinação contra os cheiOs, a revolta mi- duas vezes traidor: alem da lei geral que devia respeitar
li tar, etc., etc. como cidadão, violou a fé do juramente, e oft(mdeu a honra
Mas tambem ha muitos outros factos, como já indiquei, o dever militar. E onde procw·ar, em taes casos, a sancção
que, apesar de não deverem a sua existencia, como crimes, <l'este dever infringido e da honra mi\itar aviltada, senão
tt lei militar exclusivamente~ são p1·opriamente dclictos mi- no codigo especial das leis militares? E pois bem visto que
litares, e não podem deixar de ser incriminados no codigo o crime de traição, commettido pelo homem militm\, consti-
mi litar, porque constituem violação de deveres militares, tue, nem podia deixar de consti tuir crime militar, não ob-
aindaque tem misturado alguma cousa. de deveres geraes e stante que viola deveres não exdusivamentemilitares ; rasão
communs. Estes factos podem ser ou deixar de ser delictos por que seria excluido do eodigo militar, se fosse convertida
mili tares, segundo as circumstancias dos tempos, logares, cm lei a doutrina do projecto no seu artigo 10. 0
occasiõcs e pessoas; mas dando-se alguma ou algumas d'es- A corrupção, a falsidade, a infidelidade e a prevaricação,
tas circumstancias previstas na lei e codigo militar, devem sem duvida, são crimes previstos pelo direito commum. Mas
ser qualificados como crimes ou delictos militares, ainda- quando praticados em materia de administração e serviço mi-
qne infringem leis geraes ou deveres communs ao mesmo litar, quem poderá. desconhecer que estes factos constituem
tcn:tpo. violação tanto do dever militar como dos deveres geraes ou
E esta a unica, ou a mais essencial differença que existe communs?
entre uns e outros crimes. Aquelles são sempre em todas as Os chefes c os administradores militares, a quem estão
situações logares e circumstancias, dclictos militares, por- entregues, e foram confiados os dinheiros do estado desti-
que unica e exclusivamente violam as leis militares, leis que nados à sustentação do exercito, não contrahem para com
não existiriam se não houvesse exercito i estes silo crimes mi- o paiz, e para. com o mesmo exercito deveres especiaes?
litares só quando atacam a disciplina, transtornam a ordem Nllo fnltarão elles à religião do seu juramento, e aos seus
mi litar, ou infringem o principio de honra, que é o timbre do deveres cspeciaes se porventura exageram o consumo, se
homem que professa as armas. dissipam os depositos, se traficam com os dinheiros, e se
Taes são os crimes de traição contra a patria, de falsi~ alteram ou corrompem os generos?
dado, de corrupção e de infidelidade cm materia de admi- Não tirarão estes factos criminosos muita. maior crimi-
ni stração militar, a prevaricação no serviço, e muitos ou- nalidade da gravidade das circumstancias da. situação em
tros. rl'rahir a patria, conspirar contra a ordem estabelecida, que póde achar-se um exercito, e dos perigos que podem
sublevar conh·a o governo, é crime para todos os subdi tos, resultar ú. sua segw·ança, da qual póde estar dependente,
tO li
-em muita-a occasiões, a defeza da patria e a sua indcpcn- resultar, correspondem-lhe 1nnito maiores penas do que as
dencia? decretadas no direito commum. E se este augmento de pena-
Submetter a incriminação d'estes factos e a sua punição lidade não transtorna a justa. proporção entre as penas e
exclusivamente á lei e justiça commum, seria o mesmo que os crimes, porque as penas devem medir-se tambem p~los
entregar-lhe e submetter-lhe toda a administração militar resultados perniciosos que dos mesmos provem, não detxa
do exercito, o que não só contrariaria a índole d'esta. insti- de ser certo que todos aquelles factos que levam maior nu·
tuição, mas repugnaria aos usos, habitas e costumes mili- mero de individuas perante os tribunaes militares, são aquel-
tares, admittidos entre nós e em todos os exerci tos da Eu- les ro,esmos que nunca deixariam de fazer interessar os juizes
I ropa; e seria tambem uma clara invasão nos limites do c;vis pelos delinquentes, porque nada indica n'elles a exis-
direito e lei militar, cuja missão é regular os deveres espe- tcncia d'aquelle caracter odioso de criminalidade que inspira
ciaes da milicia, e garantir a sua execução e cumprimento justo horror aos jurados, e ampara a sua consciencia no exer-
por meio de correspondentes sancções penaes. ci cio do seu ministerio judicial.
É portanto evidente que estes factos, isto é, que a fal- Nos juizos civis ficariam quasi sempre impunes, resul ..
sidade e a corrupção, que a infidelidade o a prevaricação tando infallivelmente a indisciplina e a insubordinação das.
commettidas em mate1:ia de serviço e administração militar, tropas, ct~as terriveis consequencias no exercito ninguem
apesar de não serem infracções exclusiva e meramente rnili- ignora, mas que são desconhecidas por alguns philosophos
ta1'es1 são crimes militares, e devem ser comprehendidos no e publicistas para quem a disciplitla militar é mais uma
codigo militar; consequencia esta que igualmente repugna idéa theorica, uma pura concepção do espirita, do que um
com a doutrina. do a:rtigo 10. 0 do actual_ projecto do codigo sentimento vivo e em acção.
penal. 'l'odos estes factos, apesar de offenderem di1·ecta e imme-
Ainda ha outros que, não sendo na sua origem, nem por diatamente a disciplina militar e de violarem deve1·es mili-
sua natureza, crimes militares, tornam-se taes porque affe- tm·es ficariam, segundo a doutrina do projecto, fóra do domí-
ctam as pes<~oas e as cousas do exercito, e influem podero- nio da lei penal do exercito, porque não constituem violação
samente na ordem e na disciplina militar, e não só devem de deveres exclusivamente militares1 mas militares e com-
ser mencionados c incriminados na lei penal do exercito, muns ao mesmo tempo, doutrina que me parece inadmis-
mas devem tambem ser julgados perante os tribunaes mili- sivel c inaceitavel.
tares, no interesse da mais prompta c justa administração Escusado será accumular mais exemplos de factos que,
de ju:stiça. . não constituindo violação de deveres exclusivamente milita-
'l'aes são os roubos e furtos praticados nos quarteie, ca- res, são na verdade crimes militares, e não podem deixar
sernas, bivaques c acampamentos, a destruição de oqjectos de ser qualificados como t.c•tes, porque importam a infracção
c obras militares destinadas á defeza e ao serviço militar, de deveres cssenciaes á manutenção da força armada obe-
as violencias entre camaradas, etc. diente e disciplir.acla. Bastantes são já os que mencionei,
Em todos estes casos é sempre o dever militar que é c um só bast.:1.ria para demonstrar a inexactidão da doutrina
offendido (aindaque este dever não seja rnera e exclusiva- consignada no artigo 10. 0 do projecto.
1nente militar); e se alguma outra lei, ou se alguma outra Devo porém acrescentar que esta doutrina nem tem por
justiça, que não a militar, fosse a encarregada da sua puni- si a sancção dos codigos que actualmente vigoram nas na-
ção, ficariam quasi sempre sem castigo; os interesses da çücs da Europa, nem a auctoridade dos escriptores que
ordem e disciplina mi litar ficariam sem protecção, e o dever modernamente têem cultivado este ramo, tão amplo como
militar ficaria desacompanhado de sancção correspondente subtil, das sciencias juridicas,-o direito criminal.
real e cffectiva. Estas acções, sem duvida, são sempre crimi- Não conheço escriptor que sustente a doutrina consignada
nosas quando mesmo praticadas na sociedade civil, ahi são no projecto. Vejo, pelo contrario, que os sabios auctores da
sempre puniveis; mas, a.ssumindo um caracter novo de gravi- theoria do codigo penal, ao mesmo tempo que impugnam,
dade na sociedade militar, pelos perigos que d'elles podem com a inergica linguagem, filha da mais forte convicção,
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c com rasões proprias de tão elevados talentos, que a juris~ theoria do codigo penal Chavcaux e Hilic), que são excluídos
dicção dos tribunaes militares não deve abranger os crimes pela doutrina do projecto. E se, não obstante aquella lei ser
communs dos militares, reconhecem que ha duas cspecies de muito mais ampla e proxima da. verdade, seis mezcs foram
crimes militares: uns, dizem elles, são da m·dem politica, bastante para que os resulta.dos da experiencia tornassem
taes são os que atacam a dúciplina do exet·cito e inf1·ingern evidente que o seu principio era destruidor da disciplina,
o dever militar; outros pertencem á 01·dem rM1'al, são os incompativel com o principio da anctoridade e inviolabili-
delictos communs, que assumem um cat·actet· mixto em t·asão dade do commando, onde poderão chegar as consequencias
da qt1alidade da pessoa dos accttsados ou dos offendidos; taes da doutrina que agora se pretende plantar entre nós, doutri-
são os delictos commettidos de milítw· a militm·.. os f u1·tos da.~ na aliás muito mais offensiva do mesmo principio c mais
casel'1tas, etc., etc. invasora dos legitimas domínios do direito militar? Não
Cln.ramente se vê, pois que, na opinião d'estes tão estre- deverá competir á lei militar unicamente prescrever as re-
nuos defensores das immunidades do direito geral e juris- gras segundo as quaes o dever militar ha de ser cumpri-
dicções communs, existem crimes, que são propriament~ mi- do, ~ f1xar as correspondentes sa.ncçêies penaes contra os
lita.res, mas que violam deveres não exclusivamente milita- infractores?
?·es. Esta doutrina é tão geralmente seguida, que, salvo o Não concluirei esta minha exposiç.ão sem notar o que
respeito que é devido e consagro ao muito saber dos exi- snccedeu por occasião dá. redacção do artigo 5. o do codigo
mias redactores do projecto, não conheço outra opinião em penal francez, que corresponde ao 10. 0 do projecto, e ao
contrario . 16. 0 do nosso actual codigo penal.
Emquanto aos codigos das nações civilisadas, tambem não Em seguida áquelle dito artigo 5. 0 , que consigna a dou-
sei que em algum d'elles esteja consignada a doutrina do trina que as suas disposiçêlcs não são applicaveis aos crimes
projecto. militares, dispunham-se n'um artigo 6. 0 1, algumas regras
Tenho á vista o codigo francez, o qual no artigo 5. 0 de- para por meio d'ellas se distinguirem os crimes militares dos
clara que as suas disposições não são applicaveis aos c·ri- communs; isto é, definiam-se os crimes militares.
mes militares; o codigo da Belgica., que estabelece a mes- Logo na primeira sessão em que esta materia foi discu-
ma disposição; o da Hespanha que, no artigo 5. 0 , diz «.não tida no conselho d'estado, a que presidia o imperador, foi
es~ão st~eito s ás disposições d'estc codigo os delictos milita- tal e tanta. a divergencia dos systcmas apresentados por
res»; e o codigo de Napoles, que no artigo 149. 0 diz «os es- aquelles exímios conselheiros, foi tal, permitta-se-me a ex-
tatutos especiaes militares regerão as infracções d1esta na- pressão, a anarchia das idéas que appareceram, que impos-
tureza• . Finalmente, repito, não conheço legislação criminal sível se tornou assentar qualquer resolução, e por isso foi reen-
onde haja sido consignada aquella doutrina do projecto, a 1 Articlc G• Lcs contraventions, délits et crimes militaires aont aeu-
qual de certo não teve outra fonte senão a supramencio- Iement:
nada lei da assembléa constituinte de 1791; lei esta que, 1° Ceux qui ont été commis1 cn quelque lieux que CC soit, par dcs
sendo consequencia do systema uniformisador que n'aquella
epocha dominava os espíritos, filha da falsa idéa que o foco
~~~~~~;:so~e (~r~~e~~ dd:n~i~~x~~c?~: a~r~:r~cfo~~\i~!~~~~i~i~~i~;~~(~t~
cn état de acr vice militaire;
militar constitue um privilegio de classe, quando a verdade é 2" Cem: qui ont été commis, pas quelque personne que se soit, en-
que deriva o flmdamento da sua ex.isteneia de um princi- Yers des militairca en exercice actuei d'unc fouction, com me, pas c.xcm-
pio substancial á boa e exacta administração da justiça e á ma- ple, cnvcrs un officier faisant nctucllcmcnt aa ronde, ou envers, un
militaire actucllcment cn fonction i
nutenção da di sciplina militar, foi logo revogada pela de 16 3o Ccux qui ont été commis, par quelque personnc que ce soit, dans
do março de 1792, não tendo por isso mais de seis mezes de un liett actucllemcnt ct excluaivemcnt aftCcté au scrvicc, ou aux fon-
existencia legal!! E, ainda assim, não exigia ella, como o ctions militairca;
projecto, que o facto constituísse violação de deveres exclu-- 4° L'espionnage et l'cmbauchage; .
5'> L a deacrtion, le rcfua dcs requisitionnaircs ou conscritea eles
sivamente 1nilitar~s ; nem exchria do dominio da legislação joindrc !cura drapeam:1 et toute autrc acte commis uniqucment contre
militar os crimes mixtos, (assim chamados pelos auctores da. la discipline, ou le service militaire.
i5
viado o dito artigo 6.0 á commissão de legislação. Isto acon- D'esta resumida exposição do processo por que passou o
teceu cm sessão de 4 de outubro de 1808. artigo 5. 0 do codigo francez, antes de ser convertido em
Bem dizia n'essc dia Deffm·mon que o eodigo pénal or- lei, pretendo eu deduzir um forte argumento de auctoridade
dinario não devia intrometter-se a tratar da materia dos contra a doutrina do artigo 10. 0 do actual proj ecto, c con-
delictos militares nem das jurisdicções mi litares. Esta opi- tra a. pretensão de, na codificação da lei geral, serem defi-
nião, que a final prevaleceu na revisão definitiva de 1810, nidos os crimes e delictos militares; até porque, para haver
foi então vencida pelas rasões apparentemente verdadeiras coherencia., seria preciso que na mesma lei geral se especi-
de Regnaud, dizendo que na lei geral era preciso prescreve- ficassem e se incriminassem todos esses dclictos, regulando-
r em-se as raias que a sepa.ravam da lei especial; mas foi este se assim os deveres militares c estabelecendo-se as corres-
mesmo Regnaud o que mais tarde propoz a sua adopção. pondentes sancções penaes.
Em 21 de fevereiro de 1809 voltou novamente esta ma- A doutrina do projecto importa a forçosa necessidade de
teria á discussão, servindo já então de thema uma nova re- na pratica se fazerem sempre duas distincç.ões, a saber :
dacção :1, que teve o mesmo exito; e foi n'esse dia que o 1. 0 Quaes são os crimes que violam directamente, c os
conselheiro Regnaud propoz a eliminação do artigo 6. 0 , que só ' indirectamente violam a disciplina militar;
para que desappareccsse do codigo ordinario a definição dcr 2. 0 Quaes são as violações de deveres exclusiva ou não
delictos militares. Ainda então não foi adoptada esta idéa, exclusivamente militares.
e pela segunda vez a mesma materia foi reenviada ás com- Mas serão faceis e simples estas distincções? E será con-
mis,sCíes de guerra e legislação reunidas. veniente forçar os juizes civis e militares a dedicarem todas
E digno de notar-se o que já então foi sustentado por as faculdades intellectuaes ao exame e estudo d'estas meta-
Napoleão, dizendo que, se no codigo ordinario era indis- physicas sublimes?
pensavel definir os delictos militares, não menos necessario Crimes militares são todas as acções ou omissões que a
seria definir os delictos ecclesiasticos, porque, formando es- lei militar incrimina, como violação dos deveres da milicia..
tes, como os militares, uma classe particular no estado, po- Que estes deveres violados sejam exclusivamente militares,
diam em rasão do seu mini sterio commetter outros crimes ou militares e communs ao mesmo tempo; que sejam só es-
alem dos communs; e portanto concluía que, por crimes pcciaes e peculiares da milícia, ou especiacs c gemes ao
militares se deviam entender todos aquelles que o codigo mesmo tempo; que haja offensa directa da disciplina, ou só
militar qualificasse como tacs. indircct.:'l-, pouco importa. Se o dever milit.:'lr, por qualquer
Em 22 de julho de 1809 voltou pela terceira vez a mate- modo, é violado; isto é, se a disciplina e a boa ordem militar
ria á discussão do conselho d'estado, c adoptada então a idéa é offendida; se o principio da honra militar, timbre d'esta.
de Deffcrmon, eliminou-se o artigo 6. 0 que dava a defini ção noblissima profissão, 6 desprcsada ou aviltada.; se a invio-
de crimes militares. labilidade do mando é por qualquer fórma atacada, existe
Po~ o que tambem se resolveu na sessão de 12 de feve- crime militar, o qual só pela lei militar poderá ser definido
reiro de 1810, c o que a final foi convertido em lei, e ainda c incriminado, porque só a lei militar podenl. bem regular
hoje vigora no imperio. os deveres militares, e determinar o modo e a. fórma da sua
I ArticlcG 0 Lcs contraventions, délits ct crimes militaircs, sont scu- execução; e só ella poderá estabelecer as correspondentes
lcmcnt: sancções pepaes contra os infractores.
1" L'cspionnngc; O primeiro capitão, c o mais notavel legislador do seculo
2<> L'cmbauchagc;
go La déscrtion ; presente dizia, que delictos militares eram todos aquelles
4." Lcs crimes ct délits commis par <lcs milita.ires de terre ou de que a lei militar definia. c incriminava, c que todos os outros
mcr, ou par de:; pcrsonnes rtttuchécs anx :-trmécs de terrc ou de mcr, eram delictos communs, ainda quando commettidos por sol·
ou à leur suite, ;;oit dans les camps et armée<~, soit dans lcs rvutc, soit dados. É esta a doutrina que encontro sanccionada nos
dana lcs gnrni:-Oni:>, qtiand ces crimes ct délib; ont. été conunis à la. occa·
sions ou dans !c cotU':; du scrv ice. Ccs crimes ct délits sont détcrmi- codigos das nações modernas, é a que está legislada ha mais
ués, ct leu1' pcinc est rcg:léc plU' lc codc militnirc. de doiS scculos nas nossas leis patrias; é a mais simples,
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a mnis clara, a mais pratica, a que menos se prest."'. a in-
tcrpret..'l.ções erroneas ou caprichosas, e a que menos occasião
póde dar abusos. E lk1.vemos, por isso mesmo, despreza-la,
substituindo-a por outras regras porventura mais metaphy-
sicas?!
Permitta-mev. ex. a que termine esta minha, já longa, ex-
posiçüo, transcrevendo as proprias palavras do imperador.
Dizia elle, fallando sobre esta ma teria no conselho d'estado:
«Ün vcut donc introduire une innovation, ct il importe de
bien la peser avant de l'admettre. Les juges saisjraient diffi-
cilimcnt ccttc metaphysique. Une réglc aussi vague serait
d'une application fort embarrassante».
Estas considerações do imperador determinaram a elimina-
ção do artigo 6. 0 do projecto primitivo do cocligo penal fran-
cez; e é esta mesma eliminação que eu peço para o § unico
do artigo 10. 0 do actual projecto, ficando redigido o artigo
do modo seguinte:
Artigo 10. 0 Não são comprehendidas n'este codigo: 1. 0 ,
as infracções militares, as quaes serão designadas na lei
militar, etc.
Deus guarde a v. ex.a Lisboa, 13 de fevereiro de 1862.
=Ill. mo e ex. mo sr. visconde de Sá da Bandeirn, ministro
c secretario d'cstado dos negocios da guerra.=Antonio José
de Ba1·ros e Sá.
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