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PENA DE MORTE

Mi g u e l To r g a

Convidado a participar neste coloquio comemorativo da abolição


da pena de morte em Portugal, é na dupla condição de poeta e de médico
que estou aqui. O poeta representará, como puder, o ardor indignado
e fraterno de quantos, de Villon a Victor Hugo, de Gil Vicente a Guerra
Junqueiro, protestaram contra o iníquo pesadelo, e contribuíram para a
sua extinção ou repulsa na consciência universal; o médico simbolizará,
com igual modéstia, a interminável falange daqueles que foram sempre,
e são ainda, em todas as sociedades, os inimigos jurados e activos de qualquer
forma de aniquilamento humano. Procurador sem procuração duns e
doutros, nada mais pretendo do que ser a discreta sombra que os sugira
presentes nesta assembleia, que ficaria incompleta sem eles. Faltariam
no seio do grande e aguerrido exército da não-violência os clarins da emoção
e as batas da preservação. Valem muito a dialéctica e o saber, que destrinçam,
ordenam e codificam, mas não valem menos a palavra inspirada, que arrebata,
e o exemplo abnegado, que opõe teimosamente o não da vontade ao sim
da fatalidade. O que não realiza a seca complexidade dum argumento,
realiza-o muitas vezes a singeleza dum verso; o que não consegue um
abstracto fervor humanitário, consegue-o quase sempre uma devoção
concreta.
Todos sabemos que a morte é uma necessidade da vida. Que apenas
da prévia agonia do outono nasce a primavera. Que só do facto inelutável
da permanente consumpção nos pode vir a certeza da eterna duração. Se

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o lume se alimenta de lenha, enquanto houver lenha haverá lume. Ininter-
ruptamente nutrida pelo perecível., a combustão será imperecível.
Simplesmente, até ao dia de hoje, nunca o homem se resignou a ser
uma fugaz labareda dessa fogueira perpétua. Nega-se ferozmente à
imolação, resulte dela o brilho que resultar. A certeza de que a síncope
do seu coração é o sustento indispensável à imorredoira pulsação do
Cosmos não o consola. Contra a força clara do entendimento, ergue-se
dentro dele a obscura força do sentimento.
Safo, a grande poetisa grega, disse que se morrer fosse bom, os deuses,
que tudo podem, morreriam também. E os deuses querem ser imortais.
Menos ambiciosos, mas igualmente apegados à fortuna de existir, nós,
os filhos de Prometeu, pedimos ao menos o adiamento indefinido da partida
pela voz pânica do instinto de conservação. Instinto que se justifica só
por si no puro plano biológico, mas que, para honra e glória da espécie,
de simples egoísmo individual ascendeu progressivamente à nobreza de
valor colectivo. E creio que ninguém regateará à poesia e à medicina um
decisivo papel na promoção desse impulso natural. Sacralizando a vida
pela exaltação do seu íntimo significado, e defendendo-a tenazmente das
agressões maléficas de que é alvo constante, Orfeu e Hipócrates ajudaram
a dar limites racionais à ilimitada força irracional que lateja dentro de
nós. Embalada pelos trenos do cantor, e confiada nas prescrições do
doutor, a besta fera foi gradualmente tornando moderado e convivente
o ímpeto temperamental, que, sem perder a significação primária, perdeu
a solidão agressiva. A máscara animal do antropòide deu lugar à fisio-
nomia de pessoa, e o rosto de pessoa à graça de semelhante. E assim,
transfigurado sem desfiguração, atingiu o homem finalmente a sua exacta
medida: um ser que se quer cumprir no mundo na mais larga e livre
duração possível, fiel aos imperativos congénitos, mas pondo no mesmo
pé de igualdade a conservação própria e a alheia. Trata com iguais remédios
a doença que o contamina ou contamina o vizinho, e luta pela longevidade
sempre prolongada, dele e do próximo, com idêntica fé e tenacidade.
Ora, por uma contradição infeliz da sua natureza, esse homem, que tem
no dom da vida a única oportunidade de salvação terrena, que tão aterra-
damente se desvia da morte que o ronda dia a dia, sempre pronta a inter-
romper-lhe os sonhos e os empreendimentos, que, socorrendo-se de todas
as armas e ciências, a combate à escala do agro e à escala do planeta, num
esforço titânico de conservação singular e plural, fez dela, e faz ainda em
muitos lugares da terra, instrumento de punição. Electrocuta, degola,
fusila ou enforca em nome da justiça, numa cegueira que estende à própria
imagem da potestade que diz servir, expressivamente figurada de olhos

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vendados nos templos jurídicos. Num sadismo que o nega somàti-
camente, e arruina a majestosa construção ética que representa, troca levia-
namente a toga impoluta de magistrado pelo sujo tabardo de carrasco.
Gregário por vocação ou necessidade, pouco importa, o rei da criação
teve de regularizar o trânsito social, estabelecendo normas de conduta
em todas as circunstâncias e caminhos. Normas que, historicamente consi-
deradas, são o espelho fiel do seu próprio crescimento mental e moral
através dos tempos. Bárbaras a princípio, adoçadas pouco a pouco, civili-
zadas por fim, é quase inconcebível que elas sejam dispensáveis algum
dia. Sempre haverá prevaricadores no mundo, por mil razões que todos
sabemos, luminosa e brumosamente. Bichos que fomos, bichos continuamos
na fundura das funduras. Nem Cristo fugiu à tentação do demónio que
morava dentro dele. Mas se a repressão do mal agressivo tem de fazer-se
— porque o mal não agressivo come connosco à mesa —, se há delitos
que pedem severo castigo, se é necessário defender o edifício colectivo
dos incendiários, é preciso também que o braço da justiça se mantenha
dentro da área da repressão legítima. Isto é: que pare na fronteira que
forçosamente tem de balizar qualquer saudável espaço comunitário. Sair
fora dessa raia sanitária, é invadir o mundo defeso da personalidade
humana, terra sacrossanta que no mais íntimo todos desejamos inviolável,
por só nela sentirmos resguardada a integridade da pessoa que somos.
Levar o castigo a esse reduto privado, a esse santuário do mistério indi-
vidual, ao cerne da criatura, já não é justiçar. É, simultáneamente,
cometer uma profanação e degradar a autoridade que a comete. É responder
ao crime punível com um crime impune, por ser realizado em nome da
humanidade, e duplamente monstruoso, porque abate do mesmo golpe
a parcela agredida e a soma agressora. Junta-se num dos pratos da balança,
a equilibrar o outro, o peso infinito duma violência deliberada, e o contra-
peso, não menos infinito, da alienação que ela implica. A suprema
perdição é abdicar da paz de consciência de boa consciência.
A pena de talião peca por míngua e peca por excesso. Por míngua,
na medida em que nenhuma reparação repara a ofensa; por excesso, uma
vez que a justiça ultrapassa nela o seu objectivo. O crime ilegal, numa
problemática perspectiva de liberdade plena, compromete apenas o agressor.
O crime legal, onde tal perspectiva é incontroversa, compromete toda
a sociedade, que nessa maciça, fria e desmedida resposta ao agravo dum
só se exautora e condena. Com o arsenal de meios coercivos de que dispõe
— cadeias, penitenciárias, reformatorios, etc., etc. — que necessidade tem
ela de suprimir o que pode eficientemente neutralizar? Por acreditar
no poder frenador dos espantalhos? Por não acreditar na regeneração

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do culpado? Por estar segura da inteira responsabilidade dele? Ou,
simplesmente, por ter ainda saudades de uma ancestralidade nevoenta
em que o religioso, o supersticioso e o impiedoso se confundiam?
Está hoje sobejamente demonstrado que nem a pena capital amedronta,
nem a emenda do mais empedernido réu é impossível, nem o determinismo
é uma palavra vã. Mas valha ou não valha a exemplaridade da expiação,
seja ou não seja o criminoso recuperável, tenha ele procedido voluntàriamente
ou empurrado por forças que na ocasião já não domina, em caso algum o
irremediável deve surgir da sentença de juízes que se queiram desvin-
culados dum pretérito surdo às razões da dúvida e aos clamores da
inocência. Só a irresponsabilidade passa pela História sem nada aprender.
Que ouvido não ouve o erro a sentenciar através dos séculos, e a voz
póstuma dos injustamente julgados a pedir reabilitação? Se os fanáticos
da pena capital desconhecem as leis da clemência, que conheçam ao menos
as da prudência. Como se atreve a avaliar em redondo, quem apenas pode
ver em ângulo?
— Não matarás! — proclamam as Escrituras, do fundo dos tempos,
quando o homem mal imaginava a que abismos de introspecção desceria
no futuro e de que milagres terapêuticos a ciência por ele criada seria
também capaz, um dia. E as rectas consciências descobriram finalmente
que esse mandamento é o primeiro dos que nos preservam de cair no
inferno da infalibilidade, a tentação das tentações. O risco vermelho separa
o possível do impossível, o revogável do irrevogável, o desespero da
esperança.
— Não matarás, nem mesmo aquele que matou — explicitaram a seguir
os convertidos à claridade do mandamento. As mãos de Cairn, tingidas do
sangue inocente do irmão, jamais serão lavadas. Mas outras mãos que
vingassem o acto nefando ficariam eternamente mais sujas ainda. Sujas
dum crime que de nada serviria à primeira vítima, e acrescentaria ao
horror colectivo o pesadelo irremissível da sua própria crueldade.

Portugal há um século que aboliu a pena de morte. O civismo liberal


dum pequeno povo, sem esperar por outros exemplos, adiantou-se corajo-
samente na senda do espírito, e pôs termo à negra tarefa das balas, do
baraço e do cutelo. Pôs termo ao único gesto absoluto que o homem pode
fazer, e não deve nunca fazer. Ao gesto que o transforma num grotesco
Deus de arremedo que, quando fulmina, se fulmina.
Celebrar o acontecimento é homenagear no presente uma grandeza
de alma, um apogeu político, uma clarividência legislativa do passado, e, ao
mesmo tempo, fazer um apelo à consciência universal, nesta hora lúgubre

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em que nem só por crimes reais há execuções nos visíveis ou invisíveis
patíbulos do mundo. Nesta maldita hora de campos de concentração,
de câmaras de gás, de bombas atómicas, de guerras sinistras, de massacres
expeditivos. Apelo ao respeito devido à nossa já dramática condição de
mortais. A tragédia do homem, cadáver adiado, como lhe chamou Fernando
Pessoa, não necessita dum remate extemporâneo no palco. Ë tensa bastante
para dispensar um fim artificial, gizado por magarefes, megalómanos,
potentados, racismos e ortodoxias. Por isso, humanos que somos, exijamos
de forma inequívoca que seja dado a todos os povos um código de huma-
nidade. Um código que garanta a cada cidadão o direito de morrer a sua
própria morte.

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