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A roda da Fortuna

O
s assassinatos dos três médicos:
Marcos de Andrade Corsato, Diego
Alves Bonfim e Perseu Ribeiro
Almeida, na madrugada de quinta-feira, dia 05 de outubro,
em um quiosque na Barra da Tijuca chocou o Brasil. O
quarto profissional sobreviveu ao ataque covarde dos
bandidos, mesmo atingido quatorze vezes.
A tragédia é uma mistura de história de terror,
noticiário policial e má sorte com pitadas de existencialismo
sartreano. As vítimas chegaram ao Rio para um Congresso
de ortopedia. Um bate papo e uma bebida num quiosque em
frente ao hotel em que estavam hospedados terminou da
pior forma possível para a maioria deles. Os acontecimentos
seguintes pertencem ao absurdo que a existência humana
pode ser reduzida em um ambiente urbano caótico.

A deputada federal Samia Bonfim, parente de um


dos mortos, chora ao falar do irmão. Afirma que ele estava
no melhor momento da sua vida. A esposa de Perseu, o
médico que foi confundido com o miliciano jurado de
morte, lembra, saudosa, da bondade, do carinho do marido e
do ótimo profissional que ele era. Um paciente do doutor
Marcos de Andrade Corsato, traz à lembrança, emocionado,
a amizade com o médico que cuidou dele décadas atrás e lhe
garantiu que após a cirurgia e as fisioterapias, ele andaria de
novo. Ouvir tudo isso é enormemente angustiante.

Os três mortos eram pessoas boas, meu Deus...


Que mundo injusto é esse em que vivemos?!

No século VI d. C., o teólogo, poeta e filósofo


Boécio, preso e a espera da sentença, também contemplando
as injustiças do mundo, não fez esse tipo de pergunta, mas
escreveu o livro “A Consolação da Filosofia”. Nele procurou
encontrar o sentido da existência humana e relacionou o que
acontece em nossas vidas com a sábia e bondosa
Providência divina. Uma força sobrenatural que tudo sabe e
que no final faz o desfecho se harmonizar com a vontade
universal ao transformar o mal em bem. Ou seja, não existe
injustiça ou maldade substantivamente... Parte de um diálogo
de Boécio com a Sabedoria prova isso:

“Eis por que”, disse ela, “o sábio não deve


recalcitrar cada vez que é mandado a bater-
se contra a Fortuna, do mesmo modo que
não seria digno de um homem corajoso
revoltar-se cada vez que ouve o retinir das
armas”. Pois nos dois casos a dificuldade é
precisamente a ocasião para que um
aumente sua glória e outro aperfeiçoe sua
sabedoria (p.86).

Os gregos e os romanos, por outro lado, não


tinham dúvidas de que a vida humana podia tomar rumos
totalmente inusitados, um fenômeno relacionado com forças
espirituais superiores. Tais forças, entretanto, não eram
sábias nem bondosas como acreditava Boécio ou qualquer
teólogo do Cristianismo, mas sim, forças caprichosas e
cruéis que decidiam, ao seu bel prazer, o destino, a felicidade
ou infelicidade dos mortais.
A Fortuna para os romanos e Tique para os gregos
governavam o futuro, a sorte e o azar de cada um de nós. A
roda da fortuna, símbolo do trabalho dessas deusas
temperamentais indicava que a boa ou má sorte de cada
pessoa era algo instável e passageiro. Hoje em cima, amanhã
embaixo, de acordo com o movimento da roda e a atitude
aleatória das deusas. A coletânea de poemas Carmina
Burana, escrito na Idade Média, fala sobre isso de forma
comovente:

[...]

Sorte imensa

E vazia

És má

Vã é a felicidade

Sempre dissolúvel

Nebulosa

[...]

Todavia, uma coisa é saber que o nosso destino e a


nossa vida podem estar nas mãos da Sorte ou do Azar ou de
qualquer força caprichosa da natureza, ou do acaso. Outra,
bem diferente, diz respeito à atuação destas duas forças, a
benfazeja e a funesta, que ao determinar nossos dias na terra
usam a estrutura vigente da sociedade para praticar suas
ações inexplicáveis e desconcertantes para a nossa
infelicidade ou felicidade.

Quanto à primeira proposição não há muito a dizer


que não passe pela mitologia grega, por sistemas primordiais
de crenças, religiões monoteístas e convicções pessoais de
cada um. Na perspectiva fatalista, as deusas Fortunas e Tique
junto com as amargas Parcas, as sinistras irmãs gregas,
teceriam nosso destino e pronto. Como Édipo, só nos
restaria à cegueira como testemunha. Se nem os deuses e os
semideuses estariam livres das ações das senhoras do
destino, nós, os simples mortais, muito menos.

Já sobre a situação social faz-se necessário ressaltar


alguns pontos importantes. O primeiro deles é a falta de uma
política de segurança pública de verdade no Rio de Janeiro.
Isso quer dizer que não existe por parte do Poder Estatal
que possui o monopólio do uso da força dentro dos limites
da Lei e do Estado de Direito, uma estratégia para combater
o tráfico de drogas e as milícias que a cada ano estende seus
tentáculos por toda cidade do Rio e Grande Rio. O segundo,
consequência direta do primeiro, são as operações reativas
da Segurança pública, simulando resgatar pedaços de
territórios urbanos contaminados e dominados
profundamente pela criminalidade.

Prova de que o governo engatinha como criança


desorientada entre a violência urbana que assola a sociedade
é a forma como os supostos executores dos médicos foram
punidos. Os chefes do grupo de criminosos, de dentro de
um presídio carioca, por meio de videoconferência
ordenaram as mortes dos comparsas devido à grande
repercussão negativa do caso. O que mais precisa ser dito...

Enfim...

Saber que um momento de alegria e satisfação em


um quiosque pode se transformar numa cena de pavor com
desfecho tão terrível é algo tão angustiante para o espírito
humano que, por alguns segundos, a razão fica refém do
absurdo e chora despedaçada no quarto escuro, fétido e
úmido do existencialismo que apregoa que o sentido das
coisas só existe na compreensão de quem as observa... Aí
então, a crença em forças superiores, aleatórias e impassíveis,
determinando o futuro de cada um de nós parece fazer
sentido e pior do que isso se transforma na única luz,
cambiante e fraca, a iluminar o triste quarto mergulhado na
escuridão...
Assim, o único sentido para uma vida sem sentido.
É o sentido que alguém, de fora, lhe atribui. Embriagados
pela dor, num desgosto profundo, tropeçamos na fé, rimos
de Boécio. Um pensador que, influenciado pela passagem
bíblica na qual Deus tornou as más ações do irmão de José
em boas, passou a acreditar que a realidade inteira do mundo
dos homens se submetia a esse tipo de comando milagroso.
Sem chão, começamos a acreditar que a Fortuna e a Dique,
deusas incompreensíveis e cruéis, continuam atuando no
mundo e que todos nós, de uma forma ou de outra, cedo ou
tarde, acabamos como Sísifo, realizando um trabalho inútil
que depois de pronto será desfeito para que no dia seguinte,
recomece e assim sucessivamente...

Essa sensação de vazio e desamparo espiritual,


todavia, só dura até retomarmos a consciência da situação de
caos social em que vive as grandes metrópoles brasileiras
entregue nas mãos de traficantes e milicianos diante de uma
força policial tão despreparada e um Estado inoperante e
incompetente independente da ideologia por traz da
administração pública (veja o caso da Bahia...).

Um caos tão grande e recorrente que nem precisa


da Fortuna ou o Acaso para tornar a vida do cidadão
brasileiro roteiro sem sentido e trágico de uma história
repleta de maldade e terror...

Joel Duarte

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