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O mínimo sobre ANARCOCAPITALISMO

Paulo Kogos
1ª edição — fevereiro de 2023 — CEDET
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Capa:
Guilherme Conejo

Diagramação:
Virgínia Morais

Revisão de provas:
Luiz Fernando Alvez Rosa
Tamara Fraislebem

Conselho editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Silvio Grimaldo de Camargo
FICHA CATALOGRÁFICA
Kogos, Paulo.
O mínimo sobre anarcocapitalismo / Paulo Kogos
Campinas, SP: O Mínimo, 2023.
ISBN : 978-65-85033-07-7
1. Ciência política 2. Ideologias políticas
I. Autor II. Título
CDD 320 / 320.5

ÍNDICES PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO


1. Ciência política – 320
2. Ideologias políticas — 320.5

www.ominimoeditora.com.br
Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por
qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica, mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro
meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.
Sumário
APRESENTAÇÃO

A ESSÊNCIA DO ANARCOCAPITALISMO

ECONOMIA DO ANARCOCAPITALISMO

APLICAÇÕES SETORIAIS DO ANARCOCAPITALISMO

ESTRATÉGIAS PARA UMA CONTRA-REVOLUÇÃO ANARCOCAPITALISTA

NOTAS DE RODAPÉ
P ornãoquedecidiram
você abriu este livro? Os políticos, seus “representantes”, já
por você e por sua família sob qual regime deverão
viver? O seu interesse por este título já demonstra uma justa rebelião
contra aqueles que lhe negam o incentivo para exercitar o
discernimento sobre questões políticas e o direito de aplicar as
conclusões à sua própria vida. Quando as suas escolhas sobre com
quem se associar e a quem se submeter são nulificadas pela força
bruta de um tirano, pela esperteza de uma oligarquia ou pela
superioridade numérica das massas, resta a única escolha que ninguém
pode impedir:

não consentir com o status quo.


Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, atribui ao sábio o
conhecimento daquilo que é melhor para si, mas lembra que os
políticos costumam se intrometer nisso. É nesse momento que o
incentivo à sabedoria acaba, o que o filósofo demonstra logo em
seguida ao citar o poeta Eurípides: “Mas para que dar-me ao trabalho
de ser sábio, se como parte do numeroso exército obteria sem esforço
um quinhão igual?”.

Mas não foi com sabedoria que Teseu derrotou o opressivo


Minotauro? O monstro mitológico devorava carne humana e foi
aprisionado em um labirinto por Minos, rei de Creta. Este porém,
ainda mais monstruoso, demandava dos atenienses o pagamento de
tributos em vidas humanas, jovens que ele enviava ao labirinto para
serem devorados pela besta. O herói Teseu ofereceu-se então como
voluntário para tentar matar o Minotauro, sendo auxiliado em sua
missão pela apaixonada e sagaz princesa Ariadne, filha de Minos. Ela
lhe ofereceu uma espada e um novelo de lã que o guerreiro usou como
linha-guia para escapar do labirinto após eliminar o monstro.

A sabedoria, e mais ainda o amor, canalizaram a força bruta para o


serviço da justiça e foi por ela que você abriu este livro. Você se
inclina naturalmente àquilo que é bom, belo e verdadeiro e sabe, ao
olhar para o cenário nacional e mundial que não há algo de podre
apenas no Reino da Dinamarca à época de Hamlet, mas em toda a
história da humanidade desde a queda de Adão.

A podridão está em tudo o que é imoral, mas não é do escopo deste


livro tratar de todos os problemas — apenas de um: o uso da coerção.
O fato é que

tanto o poder financeiro como o poder


intelectual são suscetíveis ao poder físico,
à capacidade de matar. É por isso que o líder comunista Mao Zedong
afirmou que o poder político germina do cano de uma arma. Mas a
ressureição de Cristo prova que o poder do amor vence até mesmo a
destruição do corpo, e que os três piores opressores do Universo (o
pecado, o demônio e a morte) são derrotados por ele. É possível então,
pelas virtudes, vencer os opressores menores? É possível uma política
baseada no amor à justiça e não na coerção sistemática contra
inocentes? É possível isto que eu chamo de anarcocapitalismo?
Quando eu era pequeno, fui educado pelo meu avô, Álvaro Célio de
Magalhães Hugenneyer, na biblioteca de seu escritório. Ele me pegava
no colo, apontava para um quadro do Sagrado Coração de Jesus e
dizia: “Jesus, manda luz!”. Depois me contava histórias de reis sábios,
rainhas caridosas, princesas amáveis e cavaleiros valentes. A ideia de
hierarquias virtuosas iluminadas pela graça divina é excelente para
integrar a formação do imaginário infantil, mas pode ser rapidamente
desvanecida pela apologia ao moderno estatismo que domina a escola,
a mídia e o senso comum. Nestas esferas impera o igualitarismo que
levou Caim ao ódio contra Abel. Domina o legalismo que levou
Caifás a condenar Cristo com a anuência omissa de Pôncio Pilatos. E
reina o relativismo que levou este governador a perguntar “o que é a
verdade?” quando a Verdade encarnada estava à sua frente.

Porém, devido à forte semente familiar, não tardou para que eu


percebesse que no lugar dos régios heróis das histórias do meu avô
havia, nas palavras do filósofo Hans Hoppe, “uma instituição dirigida
por gangues de assassinos, saqueadores e ladrões e rodeada de
carrascos, propagandistas, sicofantas, trapaceiros, mentirosos,
charlatães, manipulados e idiotas úteis”.

O Estado, que o economista Claude-


Frédéric Bastiat chamou de “grande ficção
onde todos acham que podem viver às
custas dos demais”,
assassinou diretamente 262 milhões de pessoas ao longo do século
XX, segundo estimativas do cientista político Rudolph Rummel. Estas
mortes, que ele denomina democídio, incluem genocídios e
assassinatos em massa, mas não as baixas fatais em guerras nem a
fome e a doença decorrentes da miséria causada pelas intervenções
estatais.

Interessantemente, Deus avisou que isto iria acontecer em 1 Samuel


8: “Samuel transmitiu todas as palavras do Senhor ao povo que
reclamava um rei: ‘Eis — disse ele — como vos há de tratar o vosso
rei: tomará os vossos filhos para os seus carros e sua cavalaria […].
Tomará também o melhor de vossos campos, de vossas vinhas e de
vossos olivais e os dará aos seus servos […]. Tomará ainda o dízimo
de vossos rebanhos e vós mesmos sereis seus escravos. E no dia em
que clamardes ao Senhor por causa do rei, que vós mesmos
escolhestes, o Senhor não vos ouvirá’”. Olhamos para o passado e
vemos bandeiras ideológicas tremulando em meio aos rastros de
sangue. Olhamos para o futuro e vemos, como o novelista George
Orwell, uma bota pisando um rosto humano para sempre. Mas e se
parássemos de aceitar fórmulas políticas prontas e quiséssemos
apenas a justiça no presente? Em Esaú e Jacó, de Machado de Assis,
o personagem Custódio, dono de uma padaria, encomendou uma placa
com os dizeres “Confeitaria do Império”. Corria, porém, o mês de
novembro de 1889 e o comerciante, temendo a reação republicana,
pensou em alterar para “Confeitaria da República”. Mas e se houvesse
uma reviravolta monarquista? Então ele decidiu-se por “Confeitaria
do Governo”. Eis o homem comum, aquele que mais sofre as
intempéries das marés políticas e o que menos influência possui sobre
seus próprios negócios. Sua padaria é de fato do governo.

A pior tragédia da política não é o assassinato de Júlio César nem


Marco Antônio traindo Roma por Cleópatra. As ideologias caducam,
os sistemas passam.

O que há de pior é o homem comum se


transformando num fratricida
autodestrutivo em nome de sistemas
políticos,
vendendo sua dignidade em troca de promessas utópicas, e perdendo,
com isso, sua alma imortal. Este livro não pretende solucionar estes
problemas. Quero apenas que ele sirva de instrumento para o cultivo
da sua sabedoria política. A missão de amar a verdade e agir com
justiça é sua. O teólogo Francisco Suárez escreveu como seria a vida
política no Jardim do Éden, quando a humanidade estava em estado
de inocência. Para ele, a unidade política fundamental seria a família,
da qual o homem adulto se emancipa para formar a própria. Fomos
expulsos do Paraíso, mas evitar o mal e lutar para o bem do próximo
começando pela família continua sendo um imperativo. O
anarcocapitalismo é essencialmente sobre isso.

Boa leitura!
A ESSÊNCIA DO ANARCOCAPITALISMO

O ANARCOCAPITALISMO À LUZ DA FILOSOFIA


POLÍTICA

C erta vez perguntaram ao filósofo Gilbert K. Chesterton qual livro


ele gostaria de ter caso naufragasse em uma ilha deserta. Ele
respondeu que seria um manual de como construir um barco.

A finalidade última do homem é chegar à beatitude no Céu, ou como


escreve Santo Inácio de Loyola, conhecer, amar e servir a Deus para
ser feliz com Ele eternamente. Entretanto, um náufrago precisa, como
finalidade intermediária urgente, sair da situação hostil em que se
encontra e retornar ao lar e à Pátria onde poderá cumprir missões mais
elevadas. Da mesma forma, a função da Pólis (a cidade, aqui
metonímia de sociedade política) na tradição política aristotélico-
tomista é a vida virtuosa dos cidadãos livres que a compõem e que na
atividade comunitária exercem mais elevadamente a sabedoria prática
(aquela que versa sobre a boa deliberação nas coisas humanas).

Entretanto, quando o homem está sob o jugo dos maus governos que
o exilam na desordem através de leis injustas que, como nos lembra
Santo Agostinho, não são leis, ele deve urgentemente retornar à Pátria
da ordem. O anarcocapitalismo não é a filosofia política em si, pois
não versa sobre princípios e fins da vida em sociedade. É sim um
adendo a ela que, à luz de outras ciências como a sociologia e a
economia, auxilia o cidadão a discernir entre bem e mal, operação
essencial para que o animal político se distinga de meros bichos
gregários. As observações anarcocapitalistas são como o manual do
barco que nos leva de volta à ordem e não como a Bíblia que o
náufrago encontrará quando chegar em casa.

Eu concedo aos adversários do anarcocapitalismo que este termo é


péssimo.
Não se trata de anarquismo,
pois não há ordem sem hierarquia e autoridade. Pseudo-Dionísio, o
Areopagita, nos lembra que toda a criação foi ordenada
hierarquicamente por Deus e que o homem só pode vir a contemplar
as hierarquias celestes quando auxiliado por suas reflexões analógicas
no mundo material. A participação dos entes existentes na suma
bondade, beleza e verdade se dá de forma desigual, logo, nenhuma
sociedade poderia se ordenar à suma autoridade divina sem
autoridades intermediárias. O viciado não pode ser igual em
autoridade ao virtuoso, nem o recruta igual ao veterano, nem o
empregado igual ao fundador da empresa.

Não se trata, tampouco, de capitalismo,


um termo empregado pelo socialista Louis Blanc para denotar
apropriação de capital em prejuízo do próximo. Um livre mercado, na
concepção anarcocapitalista do termo, é definido moralmente. Ele não
existe quando a regra moral de que a propriedade privada seja dirigida
ao bem comum, proposta por Santo Tomás de Aquino, passa a ser
violada de forma sistêmica e institucionalizada. Entretanto, na
ausência de um termo melhor, adoto “anarcocapitalismo” não apenas
por sua consagração em círculos de debates, mas também porque o
polímata Gustave Le Bon notou que as piores teorias políticas se
disfarçam sob belos nomes. O anarcocapitalismo fica sendo, portanto,
oposto a esta tendência sofista e demagógica.

O economista Murray Rothbard foi o primeiro autor a empregar o


termo, definindo-o como um posicionamento político que rejeita
qualquer regulamentação estatal sobre as liberdades individuais e a
propriedade privada, em última instância abolindo completamente o
Estado e substituindo todas as relações governamentais por relações
econômicas em um mercado desimpedido. A linha rothbardiana
suscitou o surgimento de intelectuais que fundiram o pensamento
político anarcocapitalista com a chamada ética libertária, ou
libertarianismo. Este baseia-se no conceito de autopropriedade, que é
a soberania do indivíduo sobre si mesmo e, consequentemente, sobre
sua propriedade privada, já que esta é tida como uma extensão de seu
corpo. Para os libertários, o direito de propriedade é inviolável e
absoluto.

Hoppe desenvolveu uma justificação metaética (o ramo da ética que


estuda os princípios subjacentes à ética) para o libertarianismo
chamada ética argumentativa, que é baseada na ética discursiva dos
filósofos Jürgen Habermas e Karl-Otto Apel, ambos adeptos da Teoria
Crítica, uma abordagem adotada pelos esquerdistas revolucionários da
Escola de Frankfurt para tentar desconstruir todas as estruturas
sociais, tradições e instituições. Enquanto a metaética tradicional
estabelece uma comunhão ontológica (relativa ao ser) entre os homens
ao apontar-lhes uma suma finalidade comum, a ética argumentativa
hoppeana, ignorando a natureza humana, procura meramente conciliar
todas as diferenças segundo um critério racionalista com a finalidade
utilitária de minimizar conflitos na sociedade. O critério é que as
proposições éticas não caiam em contradições performáticas, que são
aquelas nas quais o ato de propor contradiz o conteúdo daquilo que é
proposto, como na afirmação “eu não ajo”, já que afirmá-la é uma
ação. Para Hoppe, qualquer argumento contrário à propriedade
privada falha neste critério já que o indivíduo necessariamente faz uso
privado dos meios materiais necessários para comunicar uma ideia,
inclusive do próprio corpo.

Entretanto, como nos elucida Santo Agostinho em De magistro, a


função das palavras é ensinar, ou seja, realizar a intermediação entre o
intelecto e a realidade através de um ato de significação. Este requer o
entendimento de princípios anteriores e exteriores ao discurso.
Escreve o teólogo que é “impossível por meio do debate ensinar o que
a palavra significa” e que “é necessária a apresentação desta coisa
significada, em sua realidade objetiva”. Não é função do discurso,
portanto, fechar-se em si mesmo para estabelecer uma ética separada
dos contextos significados. Aristóteles nos lembra que

a sabedoria prática, necessária às boas


escolhas éticas e políticas, requer o
discernimento situacional à luz dos
princípios gerais,
não podendo ser reduzida a um critério racionalista como a ética
argumentativa sem o risco de substituirem-se as virtudes morais por
uma tecnocracia ou de cairmos no relativismo do filósofo Friedrich
Nietzsche, que afirmava não haver fatos morais, apenas
interpretações. A ética libertária renega a virtude da prudência, que
Santo Alberto Magno exalta como sendo a ligação entre a metaética e
a vida moral, degenerando-se em pura retórica.

Esta “expressão que se pretende conceito” é como a filósofa Natália


Sulman define uma ideologia. Os adeptos da ideologia libertária
professam desde a ilegitimidade de um bombeiro pegar água de uma
piscina privada sem consentimento do dono pra evitar uma explosão
catastrófica até o direito dos pais deixarem o filho bebê morrer de
fome. Partindo de seus pressupostos sofistas, alguns ditos libertários,
a serviço da agenda das grandes corporações farmacêuticas, chegaram
a defender até mesmo que pessoas fossem processadas por
inadvertidamente transmitir uma gripe a alguém. Estas e tantas outras
absurdidades, em alguns casos contraditórias entre si, seguem da
idolatria da autopropriedade, conceito refutado em 1 Cor 6, 19: “Não
sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que habita em
vós, o qual recebestes de Deus e que, por isso mesmo, já não vos
pertenceis?”.

Quando perguntados se, em situações práticas, manter-se-iam sempre


fiéis aos ditames da ética libertária, seus ideólogos respondem que
ética e moral são coisas diferentes e que alguns atos antiéticos
poderiam ser morais. Trata-se claramente de paralaxe cognitiva, que
Olavo de Carvalho define como desvio do eixo de construção teórica
de um indivíduo em relação às suas experiências reais. Moral e ética
são sinônimos, diferindo apenas na raiz etimológica (a primeira latina
e a segunda grega) e dizem respeito à normatividade das ações
humanas em todas as situações. É verdade que há condutas que,
embora imorais, não devem ser proibidas legalmente. Alegar o
contrário é ter a pretensão de construir uma utopia teocrática,
atribuindo aos efeitos temporais pretendidos uma importância maior
que os bens espirituais perdidos em decorrência da desordem causada.
Santo Agostinho dizia que se proibissem o pecado da prostituição, a
luxúria represada convulsionaria o mundo. No entanto, a filosofia do
direito, que estuda o escopo da lei, é um ramo da ética e jamais pode
dela se divorciar.

Notemos que os autores libertários reduzem a filosofia política a uma


dimensão combativa, um instrumento para debelar aquilo que
consideram intrinsecamente mau, como a violação da propriedade
privada, o tolhimento da liberdade ou a ausência de um critério
lógico-discursivo para minimizar conflitos interpessoais. Os bens em
questão, contudo, não são universalmente bons, afinal, diferentemente
das virtudes, podem ser mal utilizados. Ao entronizá-los, o
libertarianismo elimina do pensamento político o conceito de bem
comum, que é aquele que se almeja pela virtude da justiça geral. Isto
impede que a vida política cumpra sua finalidade apontada por Santo
Tomás de Aquino, que é servir de meio para se atingir a beatitude,
promovendo, ao contrário, um estado de constante rebelião individual
contra as exigências de uma vida em comunhão com a realidade. Este
individualismo subversivo, ao renegar a autoridade dos princípios que
antecedem e plenificam o indivíduo, como as boas tradições, levam à
cegueira da razão, ao enfraquecimento do tecido social e,
consequentemente à perda da liberdade, pois limitam o escopo desta
ao seu aspecto negativo, que é o de ausência de coerção.

O filósofo Isaiah Berlin, que apesar de liberal foi um aguerrido


crítico do iluminismo, nos lembra que uma civilização livre requer
também

a liberdade positiva, que numa


concepção tradicionalista pode ser definida
como o poder de superar os vícios e de agir
virtuosamente contra a tendência social à
desordem.
É por isso que uma posição anarcocapitalista sólida, que não seja
ideológica, deve abandonar quaisquer influências liberais e
revolucionárias.

Para Santo Agostinho, governos são permitidos por Deus como


punição pelo pecado original. Na melhor das hipóteses eles mantém
uma ordem imperfeita, cabendo ao indivíduo abrir-se à graça divina
para reerguer em seu coração, pela caridade, uma Cidade de Deus. Na
pior das hipóteses, governos são eles mesmos agentes do caos,
criminosos em larga escala cujo poder resulta da construção de uma
Cidade dos Homens baseada na cobiça e no egoísmo.

William de Ockham, teólogo do século XIV, rebelou-se contra a


tradição patrística (dos pioneiros Padres da Igreja) e escolástica (dos
teólogos medievais com base aristotélica), fundando um ceticismo
político segundo o qual não era possível ao homem viver segundo
absolutos transcendentes como justiça e honra. Interessantemente,
porém, ele acredita ser possível criar um reino perfeito na Terra
através de politicas públicas eliminando problemas imanentes como
escassez e conflitos. O processo revolucionário continua, passando
por autores como Hugo Grotius (século XVI) e Samuel von Pufendorf
(século XVII), que defendem um direito voltado para finalidades
temporais, sem fundamentos metafísicos e espirituais. Disto resulta o
mito liberal do contrato social, segundo o qual o indivíduo cede sua
liberdade ao Estado para se proteger contra a sociedade, obtendo sua
dignidade por decreto e não por natureza.

Trata-se da total inversão da verdade sociológica encontrada na


observação de Robert Nisbet, que constatou não ser a sociedade um
conjunto de contratos individuais, mas uma rede de hierarquias
iniciada na família. Fossa iluminista abaixo, chega-se a autores como
Jean-Jacques Rousseau, que concebeu o legislador não como o
guardião platônico, cuja função era dar o exemplo da virtude, mas
como um engenheiro social responsável por remodelar a sociedade
inteira à imagem e semelhança do Estado.

À derrocada da humanidade em relação ao seu auge institucional,


que foi o medievo católico, corresponde a ascensão deste racionalismo
secular que é o cerne do liberalismo e que resultou na virulência
inaudita da expansão do estatismo. São João Crisóstomo afirma que o
desejo de dominar é a mãe das heresias. A raiz destas, para o Padre
Félix Sardà y Salvanny, é o liberalismo. Notamos esta
correspondência entre a opressão resultante da libido dominandi e a
revolução decorrente da autonomia individual no desejo de Eva de ser
como deuses, desobedecendo às ordens de Deus ao ser tentada pelo
primeiro liberal que foi Satanás. Eis o motivo pelo qual o desejo
kantiano (relativo ao filósofo Immanuel Kant) de se libertar de todas
as autoridades resulta na subjugação dos povos pelos piores
opressores.

O jornalista Louis Veuillot resumiu aquilo que a história demonstra:


o mundo deverá escolher entre a cristandade, que é a negação do
liberalismo, ou o socialismo, que é sua tenebrosa consequência.

Conforme instrução do Papa Bonifácio VIII na bula Unam Sanctam


(de 1302), a espada do poder temporal, brandida pelas autoridades
terrenas, deve estar sob o comando supremo do poder espiritual, como
quando a militarmente habilidosa Matilda de Canossa, marquesa da
Toscana, dedicou-se com denodo a proteger o Papa São Gregório VII
no século XI.

Notemos, contudo, que São Miguel, o príncipe das milícias celestes


que liderou os anjos fiéis na batalha contra os anjos rebeldes, foi
desobediente. Ele é um arcanjo (o segundo coro mais baixo na
hierarquia angélica) enquanto Lúcifer era o mais alto dentre os mais
altos, os serafins. São Miguel, por ser antes de tudo um servo de Deus,
recusou-se a seguir seu rebelado superior angélico. Eis o primeiro
anarcocapitalista, a extrema-direita celeste.

Em Da direitamoderna à direita tradicional : Análise de uma


categoria metapolítica, o sociólogo Cesar Ranquetat Jr. escreve que
“etimológica e semanticamente, a direita é o que é justo, reto, correto,
conveniente, sincero, fundado, razoável e verdadeiro. Já a esquerda
explicita noções negativas, tais como sinistro, obscuro, torto, torpe,
sem valor, débil, incorreção, oblíquo, desafortunado e inepto”. Esta
constatação é corroborada pelas Sagradas Escrituras, onde lemos que
“o coração do sábio vai para a direita, mas o coração do insensato para
a esquerda” (Ecl 10, 2).

O anarcocapitalismo é o esforço
constante para se manter o mais à direita
possível no espectro político. Pode ser
definido como a preservação das justas
hierarquias e autoridades contra os
usurpadores, para que as sociedades
políticas mantenham sua função ordenada.
É necessário, a partir daqui, definir quais autoridades são justas. O
termo auctoritas, para os antigos romanos, aplicava-se à uma
liderança natural que emerge da reputação e do valor pessoal,
especialmente quando estes são empregados na preservação de
princípios e tradições. Por depender de virtudes como critério, serve
de mecanismo corretivo contra a corrupção do poder, evitando o
absolutismo de entidades contingentes e provando o ponto do filósofo
Alasdair MacIntyre de que são as leis inscritas na natureza das coisas,
e não os decretos humanos, que possuem vocação subversiva contra
sistemas falhos.

O termo imperium, que denota mandato legal, está ligado ao direito


de imperar, como o de um atual gerente em uma loja, ou como aquele
direito que o poeta Virgílio atribuiu ao próprio povo romano em
Eneida, relacionando o conceito de imperium a uma superioridade
precedente. O poder político coercitivo, análogo ao da intimidação
militar, era chamado potestas, o mais contingente dos poderes,
reservado a situações muito específicas devido ao risco moral
envolvido.

À luz do pensamento político e social da filósofa Santa Edith Stein,


podemos relacionar auctoritas ao que ela designou comunidade, que é
uma instituição constituída de relações interpessoais concretas que
subsistem pela sua própria natureza, como a família. Já o imperium
relaciona-se com o conceito de sociedade, cujas relações constituintes
requerem um ato de vontade do participante mediante o qual ele se
dispõe a servir de meio para as finalidades do grupo.

O senso de pertencimento característico da comunidade propicia a


subsidiariedade, princípio que preconiza que as decisões sejam
tomadas o mais localmente possível e que é viabilizado pela coesão
comunitária e pelo suporte do todo às suas partes. Os contratos
característicos das sociedades permitem o intercâmbio entre
indivíduos de diferentes comunidades com relativa certeza jurídica e
contribuem para a formação da complexidade institucional da
civilização, formada por uma miríade de associações especializadas e
sobrepostas, cujo ordenamento, nos lembra Santo Tomás de Aquino,
depende da adequação do seu escopo à sua função. Esta, por sua vez,
depende da competição institucional, o bom conflito que o poeta
Hesíodo relaciona a servir à harmonia social, e que contrasta com o
mau conflito resultante de condutas injustas como a tributação e a
imposição de monopólios. Estas geram uma dependência sistemática
da potestas, que extrapola seu justo escopo e substitui a comunidade e
os contratos, contrariando assim a ideia aristotélica de autarquia, que é
o aperfeiçoamento da comunidade política de forma a evitar a
dependência de fatores contingentes.

Aristóteles observa ainda que

o coletivismo incentiva a negligência e o


vício enquanto a propriedade privada
incentiva a industriosidade e as virtudes.
O anarcocapitalismo propõe que este raciocínio seja aplicado às
governanças, pois a livre adesão às instituições políticas exigiria
virtudes tanto dos governantes quanto dos governados, evitando assim
a degeneração das associações políticas em uma massa ignóbil
manipulada por oligarquias inescrupulosas.

O historiador Políbio desenvolveu a teoria da anaciclose política, que


versa sobre o ciclo interminável de corrupção e revolução dos regimes
políticos. Platão e Aristóteles desenvolveram o tema com algumas
diferenças, mas todos concordam que a tendência dos governos é a
degeneração em regimes contrários ao bem comum, que é como
podemos definir Estado. O professor Jorge Martinez Barrera nos
lembra que a concepção de estado na tradição clássica e medieval é de
acidente (aquilo que é circunstancial, não existindo por si), referindo-
se ao estado atual da coisa pública, mas com o advento do
modernismo passa a significar substância (aquilo que é em si mesmo),
referindo-se à coisa pública pertencente ao Estado.1 Notemos que a
pergunta “Quando o Estado funcionou?” é muito mais sensata que a
pergunta “Quando o anarcocapitalismo funcionou?”, afinal este
funciona constantemente nas instituições naturais como a família e
nas contratuais como as empresas honestas. Estas, como observa o
filósofo Guilherme Freire, são as monarquias de livre adesão que
produzem praticamente toda a atual prosperidade material.

A monarquia é a forma de governo que melhor reflete a hierarquia


celeste e, segundo Mariano José Pereira da Fonseca, Marquês de
Maricá, a tendência natural de todo sistema político. Já a democracia
sempre foi tida na tradição como um regime degenerado, a corrupção
da politeia (cidadania). Aquela refere-se a uma comunidade política
onde cidadãos armados e em contato direto com os governantes
cobram deles a defesa do que lhes é de direito, enquanto esta não
passa de uma tirania dos demagogos.

O Cardeal São Roberto Belarmino repudia a democracia por


submeter as raras virtudes aos numerosos vícios. Por outro lado, o
jesuíta deixa claro que o poder ordenado dos governantes, embora
integrado e submetido ao poder eclesiástico, difere dele por ser
instituído por Deus através do intermédio do consentimento e da
dignidade individual dos governados, e não diretamente. Ao mesmo
tempo, embora os homens sejam iguais na sua essência humana,
diferem em suas perfeições naturais e na graça, devendo se submeter,
como nos lembra o Papa Pio VI, àquilo que lhes é superior. O
anarcocapitalismo permite conciliar a necessidade das hierarquias
políticas com o emprego das faculdades individuais na escolha delas,
levando àquilo que Nicolás Gómez Dávila chama sabedoria política:
fortalecer a sociedade e enfraquecer os resquícios de Estado.

Para que os monarcas sirvam aos súditos, devem competir por eles,
do contrário não haverá critério para avaliar suas virtudes. Hoppe
comenta o conceito de elite natural, composta por indivíduos que se
sobressaem por suas qualidades técnicas e morais, sendo reconhecidos
espontaneamente como líderes aptos a proteger as autoridades que os
precedem. Deste processo orgânico resulta uma associação política
que não se reduz à dicotomia entre governantes e governados, mas, ao
contrário, é composta por diversos corpos intermediários, como
corporações, confrarias e aristocracias feudais, que protegem o
indivíduo e as justas autoridades contra a usurpação desordeira
perpetrada por um tirano ou pela turba (esta é ainda mais perigosa que
aquele, pois como nos lembra o escritor Antoine de Rivarol, o
soberano pode ser Marco Aurélio ou Nero, mas a multidão é sempre
Nero).

O anarcocapitalismo, cuja essência é a livre


adesão a instituições jurídicas,
permite que os critérios de validação das autoridades não sejam
deturpados para servir a interesses espúrios ou aos apelos irracionais
das massas. Possibilita o constante reequilíbrio entre monarquia,
aristocracia e politeia que Santo Tomás de Aquino defende ser a
melhor governança. A resultante plasticidade das jurisdições fortalece
aquilo que é essencial e perene, como a tradição e a moralidade, ao
mesmo tempo evitando a uniformização burocrática que, segundo o
historiador Arnold Toynbee, caracteriza as civilizações em declínio. Já
o estatismo (defesa do Estado) é utópico, pois parte da premissa de
que um arranjo político pode ser planejado ou decretado, esquecendo
a constatação de Platão em A República de que nada funciona se a
justiça não residir no coração dos cidadãos, e não há justiça na
imposição de um Estado. Quem poderia considerar justo que a coroa
espanhola expulsasse índios e jesuítas de Sete Povos das Missões com
base em um decreto (o Tratado de Madri de 1750)? E quem poderia
considerar ilegítima a resistência do mártir Sepé Tiaraju, que ao
resistir bradou: “Esta terra tem dono!”? O historiador Plutarco conta
que em 390 a.C. o líder celta Breno, após capturar quase toda Roma,
exigiu de seus habitantes 1000 libras de ouro para devolvê-la. Os
romanos concordaram mas reclamaram que os contrapesos utilizados
pelo invasor estavam viciados. Breno depositou sua espada na balança
prejudicando ainda mais os romanos e disse: “Ai dos vencidos”. É
pueril esperar que governos fundamentados na coerção cumpram até
mesmo as próprias leis.

LEI E JUSTIÇA SEM O ESTADO


Para entender a aplicação de leis sem o Estado, é preciso distinguir
quatro conceitos, sendo Santo Tomás de Aquino o autor das
definições dos dois primeiros:
I. O direito, que é o justo em si e é o objeto da justiça.

II. A virtude da justiça, que é a vontade constante e perpétua de dar a cada um o que lhe é de
direito.

III. A filosofia do direito, que é a investigação do que é justo pela sabedoria filosófica.

IV. A arte de prestar serviços de justiça, que, pela sabedoria prática, emprega recursos
escassos através de instituições adequadas para fazer valer o direito em circunstâncias
específicas.

O fundamento ético do direito é o Bem. Este coincide com o


Verdadeiro, que é o Ser por excelência, que é Deus e que subjaz a toda
a realidade contingente, sustentando-a. Tudo o que existe, portanto, o
faz segundo uma natureza dada por Deus, impondo à razão humana
um ordenamento cuja finalidade é o bem comum e que chamamos lei.
Esta se manifesta em 4 categorias:
I. Lei Eterna: expressão do intelecto divino que torna justo em si tudo o que é real na
medida em que participa da ordem universal.

II. Lei Natural: a porção da Lei Eterna participada à razão humana e que é o componente
normativo (do qual procedem deveres) que a natureza das coisas nos impõe.

III. Lei Divina Positiva: revelada por Deus para ordenar a conduta dos homens à beatitude,
que é seu fim último. Um exemplo são os 10 Mandamentos.

IV. Lei Humana: normas criadas pelos homens para ordenar a vida do cidadão às virtudes na
vida política, sendo válidas somente quando em conformidade com a Lei Natural.

Santo Tomás de Aquino chama determinatio a autoridade do


legislador ou juiz para concretizar princípios gerais em situações
particulares através da escolha racional de alternativas, permitindo-lhe
algum grau de arbitrariedade. O ponto do anarcocapitalismo é que
pelo mesmo princípio da determinatio o cidadão pode escolher
arranjos jurídicos específicos, que por serem contingentes não
configuram uma necessidade absoluta.

A obediência à Lei Natural é a única restrição às alternativas


possíveis. O próprio doutor angélico comenta na Suma Teológica que,
diante da injustiça de um juiz e tendo consciência da justiça de sua
própria causa, o réu tem o direito de apelar e até de resistir, pois “a
sentença do juiz seria semelhante à violência dos ladrões” e

“assim como é lícito resistir aos ladrões,


assim também o é, em tal caso, aos maus
príncipes”.
Talvez o agiota usurário Shylock, personagem de Shakespeare em O
Mercador de Veneza, fizesse ao meu argumento a mesma objeção que
fez àqueles que queriam impedi-lo de cobrar uma libra de carne do
corpo do comerciante Antônio: a possibilidade de resistir à decisão de
um juiz depõe contra a eficácia das leis. Ora, o anarcocapitalismo
permite a concorrência entre árbitros, instituições e práticas legais
reduzindo este risco moral a um mínimo já que a plasticidade das
jurisdições serviria justamente para evitar o dilema moral entre a
resistência individual e a autoridade de uma decisão ou contrato.
É interessante notar certas noções anarcocapitalistas no raciocínio de
Sócrates no diálogo platônico Críton, ao explicar ao amigo de mesmo
nome os motivos de sua recusa em fugir da prisão em Atenas onde
aguardava a execução. O filósofo via-se visceralmente ligado à cidade
por laços familiares e submetido às suas decisões na medida em que a
escolhera como morada. A fuga, contudo, seria justa se as autoridades
atenienses fossem alheias ao indivíduo, impondo-se artificialmente
como o fizeram contra os mélios na Guerra do Peloponeso, admitindo,
segundo consta no relato do historiador Tucídides, que os submetiam
pela força.

Sócrates não é, contudo, um legalista, pois escolhe deixar com que


sua morte seja a manifestação patente da injustiça dos homens que
perverteram a lei. Se ele fugisse, não alteraria a injusta sentença que o
condenou, mas a transformaria em pretensa justiça, que é a pior forma
de injustiça segundo Platão. Conhecemos a árvore pelos frutos, e a
condenação de um homem virtuoso e inocente como Sócrates é um
fruto ruim que levou Platão a concluir que a árvore que a gerou, a
democracia ateniense, era corrupta e viciosa.

A solução que ele propõe é um governo de reis-filósofos formados


nas virtudes, cujas autoridades derivariam da disposição em promover
o bem comum, assim como da competência em fazê-lo. Esta é
chamada téchne politiké (arte política), um conhecimento técnico no
campo da governança. Entretanto, se a boa política deve promover as
virtudes dos cidadãos, ela não poderia excluir o exercício delas na
escolha concreta de aderir ou não a uma governança. Se é através do
livre mercado que adquirimos os parâmetros para exercer o juízo
sobre a competência de um produtor e se estes parâmetros são os
diferentes produtos ofertados, porque não podemos aplicar o mesmo
critério às leis humanas e seus ofertantes (legisladores e juízes)? Se as
melhores práticas técnicas e gerenciais emergem da concorrência
entre prestadores de serviço, por qual motivo o mesmo não valeria
para os melhores princípios jurídicos? Estes, como observa Rothbard,
não são decretados, mas descobertos através do processo dinâmico do
empreendedorismo no campo dos serviços de justiça, sem o qual o
rei-filósofo de Platão não passará de um ditador tecnocrata. É por isso
que Hoppe propõe o que ele chama sociedade de leis privadas, em
cuja essência está o direito dos indivíduos à secessão. Nela, o poder
legislador concorreria por cidadãos como clientes de suas jurisdições
e o poder judiciário concorreria por jurisdições como clientes de seus
serviços de arbitragem de disputas.

Notemos que

a defesa de uma sociedade de leis


privadas não implica legitimar qualquer
lei nem em fazer do legislador privado um
ditador local.
Ela é, pelo contrário, o corolário da observância das regras gerais da
conduta humana determinadas pela moral, que é absoluta. Já as leis
humanas, como notou o filósofo Lon Fuller, são empreendimentos
cuja função é submeter a sociedade de forma prática aos princípios
morais, e devem ser, portanto, relativas. A existência de um
monopólio legal e jurídico, como o Estado, as torna absolutas, não
apenas substituindo o senso moral das pessoas e tornando-as servis
aos tiranos e demagogos, mas também pervertendo a função da lei.
Esta perversão consiste, segundo Bastiat, no seu uso pelos
magistrados inescrupulosos para explorar o próximo sem risco de
responder por isso. É aquilo que João Nogueira da Silva Neto, o
Rasta, chama de

bigodagem (poder sem responsabilização)


e que subjaz a todo monopólio, inclusive, e talvez principalmente, o
jurídico.

Para entender a relação entre a ausência de um livre mercado de


serviços judiciários e a perversão da lei, devemos considerar a
invalidade da tese de que a separação de poderes, tão cara a autores
iluministas como John Locke e Montesquieu, seria salvaguarda contra
a tirania, como se os poderes pudessem se vigiar mutuamente. A
pergunta do poeta romano Juvenal “Quem vigia os vigilantes?”
permanece. Ora, executivo, legislativo e judiciário são funções de uma
governança que podem ser delegadas a diferentes entidades por um
poder, e não poderes em si. O poder, por sua vez, só pode ser limitado
por um poder supremo que o submeta, observando-se assim a unidade
de comando, que de tão eficiente é um dos princípios da guerra. O
poder supremo é Deus, fonte da moral, e Nele não há separação de
poderes.

Eusébio de Cesareia nos lembra que Cristo é o único rei, sacerdote e


profeta por excelência, e a estes ofícios correspondem
respectivamente as dimensões executivas, legislativas e judiciárias. A
submissão à moral, por sua vez, requer que todas as funções das
governanças sejam constantemente sujeitas a um juízo segundo a Lei
Natural e é por isso que a sabedoria política repousa na função
judiciária. É ela quem julga se os reis da Terra se submetem ao autor
da Lei Eterna e é por isso que lemos no Evangelho de São Lucas (1,
17) que o espírito do profeta Elias reconduz os rebeldes à sabedoria
dos justos. A legitimidade das autoridades e de suas regras é julgada
conforme o poder sapiencial dos profetas e este se enfraquece quando
há um monopólio das funções judiciárias por dois motivos: O
primeiro é que as pessoas perdem o incentivo ao uso da razão moral.
Para o antropólogo Bronisław Malinowski, as regras sociais e
dispositivos legais surgem naturalmente devido à necessidade dos
indivíduos se protegerem contra a malícia alheia, ou seja, não apenas
precedem o Estado como constituem o único contraponto à sua
expansão. A razão moral precede o decreto, mas um monopólio
judiciário inverte esta relação e transfere o foco dos esforços sociais
da luta pelo direito para a luta pelo controle ou influência sobre as
instituições judiciárias.

O segundo é que o escopo da função judiciária é distorcido, de forma


que juízes e legisladores se fundem e se confundem no processo de
blindar as instituições monopolistas contra as determinações da Lei
Natural. O poder sapiencial é substituído pelas técnicas sofísticas de
manipulação da verdade que caracterizam o ativismo judiciário, a
ponto deste contra-senso se tornar doutrina ensinada nas faculdades de
direito. Um exemplo é o principialismo apregoado pelo jurista Ronald
Dworkin, segundo o qual as leis humanas devem ser interpretadas
pelo juiz conforme princípios políticos específicos que acabam sendo,
como nos ensina Olavo de Carvalho, sempre revolucionários e
contrários à Lei Natural, pois os magistrados deixam de aplicar
princípios perenes para agir em conluio com legisladores que lhes
garantem o monopólio legal.

No romance histórico Um conto de duas cidades, Charles Dickens


descreve como os tribunais da sanguinária Revolução Francesa
intimidavam os cidadãos alegando que a insubmissão a eles era uma
revolta contra a legalidade em si, e que um homem deveria estar
disposto a sacrificar uma filha se a República assim demandasse.
Qualquer tribunal humano que se autodenomine supremo, como todo
brasileiro honesto sabe, se coloca no lugar do Deus de Abraão que o
mandou sacrificar o filho Isaac, mas ao contrário Dele, não ordena a
interrupção do sacrifício. A tendência é sacrificar vidas inocentes no
altar do politicamente correto para alastrar o caos e substituir a ordem
natural por uma nova ordem totalitária.

O socialista Herbert Marcuse, da infame Escola de Frankfurt,


preconizou o ativismo judicial em conluio com o lumpesinato
(pessoas à margem da sociedade, como bandidos e seus defensores)
para promover uma revolução socialista. O resultado é a perversão do
direito apregoada por juristas bandidólatras como Luigi Ferrajoli, que
diz que a função primária das leis é proteger o criminoso e não o
cidadão de bem.

Um episódio emblemático de ativismo judiciário é o caso Gibbons


vs. Ogden, julgado pela Suprema Corte dos EUA em 1824. Aaron
Ogden havia adquirido privilégios de monopólios de navegação para
seus navios a vapor concedidos pelo estado de Nova Iorque, mas
Thomas Gibbons passou a operar uma rota no mesmo território sob
licença do Congresso americano. O chefe de Justiça dos EUA, John
Marshall, interpretou que a Cláusula de Comércio da Constituição
americana, que permitia ao Congresso regular o comércio entre
estados, lhe permitia também regular a navegação, decidindo em favor
de Gibbons. O injusto monopólio estabelecido no nível estadual foi
quebrado, mas ao custo intolerável de abrir um precedente para o
crescimento desenfreado do poder regulatório central. Vemos que

o federalismo (autonomia das partes de


uma federação) não apenas falha em proteger
o direito natural como também em proteger a
si próprio.
A total concorrência entre instituições judiciárias puramente humanas,
que é a essência do anarcocapitalismo, é o único arranjo não-utópico
na luta pelo direito, expressão esta que intitula um dos livros do
jurista Rudolph von Jhering. Para ele, todo indivíduo é um potencial
defensor da Lei Natural por sua natureza humana, da qual a noção do
direito é um atributo inseparável.

A metafísica escolástica nos ensina que o modo de operar segue o


ser, logo, a conduta humana tende naturalmente ao estabelecimento do
direito. Nenhum sistema legal ou jurídico puramente humano
(excluindo-se, portanto, o Magistério divinamente inspirado da Igreja
Católica) está imune à perversão, o que significa, em última instância
que os mecanismo de correção devem estar fora deles, mais
exatamente nesta ativa vigilância do indivíduo contra os injustos
arbítrios que von Jhering recomenda. Entretanto, somente no
anarcocapitalismo ela será eficiente em produzir resultados
duradouros, pois a concorrência entre as cortes de justiça permite que
tanto a sociedade por elas servidas quanto os clamores legítimos das
partes em litígio tenham peso decisório sobre as práticas adotadas.

Alguns anarcocapitalistas defendem a adoção de uma constituição,


uma ilusão iluminista que se baseia no mito do império da lei e do
Rechtsstaat (Estado de direito). Trata-se de um conceito inspirado nos
erros de Kant em sua Metafísica dos costumes, para quem a lei
existiria independentemente dos sujeitos de direito. O dever de
obedecê-las derivaria de uma razão pura, separada das circunstâncias
concretas e da razão prática com a qual lidamos com elas.

Esta separação gnosiológica (relativa ao conhecimento) entre a lei e


aquilo que o direito deve julgar (matéria, circunstância e sujeito) está
na raiz da ingenuidade dos constitucionalistas em achar que um
código escrito substitui a sabedoria moral. Leis humanas escritas são
benéficas quando dentro de seu escopo contingente e limitado às
jurisdições também contingentes. O jurista Bruno Leoni demonstra
que a pulverização das instituições judiciárias na Inglaterra medieval
levou à descoberta de normas jurídicas ordenadas à Lei Natural,
dispensando os extensos códigos legais escritos que, segundo Nicolás
Gómez Dávila, são acumulados por sociedades moribundas como
medicamentos por um homem moribundo.

Na República Romana e no começo do Império Romano, o direito


privado ficava fora do escopo dos legisladores, enquanto os juízes
atuavam como consultores técnicos. No período pós-clássico (a partir
de meados do século III), quando os códigos escritos ganham
proeminência, as decisões dos juízes passa a compor uma
jurisprudência vinculante, mas o conceito de lei como uma descoberta
feita pela dinâmica judiciária persistiu até mesmo no Corpus Juris
Civilis, promulgado por Justiniano I, imperador bizantino, entre 529 e
534.

É preciso, contudo,

que a escolha dos juízes não seja


democrática, tecnocrática ou despótica,
mas seja ela mesma fruto dos processos de mercado. Estes são
capazes de incentivar e refletir a busca individual pelas virtudes que,
nas palavras de Dávila, anima as instituições sociais numa sociedade
aristocrática.
Antes de vermos como seriam os serviços judiciários no
anarcocapitalismo, vejamos alguns indícios fornecidos pela história.

Na Irlanda do medievo arcaico não havia Estado. A organização


política se dava através das túatha, alianças político-religiosas de livre
adesão que concorriam entre si por territórios assinantes. Seus líderes
reuniam-se anualmente para escolher um rei dentre as linhagens reais
hereditárias dos clãs, cujas atribuições estavam limitadas a funções
sacerdotais, militares e diplomáticas. As túatha podiam formar
confederações de defesa mútua ou dispersar-se. Os litígios entre
indivíduos ou entre clãs eram arbitrados pelos brehons, homens
doutos e de boa reputação moral especializados em assuntos
jurisprudenciais, cujo ofício era herdado como tradição familiar. Eram
profissionais privados contratados pelas partes em litígio devido ao
conhecimento técnico e sabedoria em aplicar as leis aos casos
específicos com imparcialidade e retidão.

O cumprimento das decisões dos brehons era garantido por um


sistema de fiadores, que não apenas se comprometiam em ressarcir
qualquer indenização faltante como cobravam a parte condenada. Se
esta não honrasse suas obrigações, passava a dever um montante
maior aos fiadores até eventualmente se tornar um fora-da-lei e perder
suas garantias legais. Devido ao caráter concorrencial e
consuetudinário (baseado em costumes) deste sistema jurídico, a
adaptação da Irlanda à Doutrina Católica ocorreu de forma pacífica e
harmoniosa desde o início de sua evangelização no século V, não
havendo perseguições nem martírios no país até o cisma de Henrique
VIII no século XVIII.

Segundo a historiadora Kathleen Hughes, o efeito da Igreja Católica


sobre as leis e instituições irlandesas foi de fortalecê-las e aperfeiçoá-
las na obediência à Lei Natural. As leis humanas escritas pelos santos
e sábios, como São Patrício e São Columbano, leis essas que
caracterizaram aquela terra naquele tempo, garantiram às mulheres
mais direitos legítimos de propriedade do que elas tinham na
Inglaterra vitoriana. O Papa Bonifácio VIII emitiu em 1296 a bula
Clericis Laicos, uma tentativa de proteger as propriedades da Igreja
contra a sanha tributária e confiscatória dos Estados. As salvaguardas
clericais foram bem acolhidas pelas túatha mas atropeladas por reis
centralizadores como o inglês Eduardo I, que também era senhor da
Irlanda e que violou, assim, as garantias dadas à Igreja Católica no
país por Henrique II, o rei inglês que sancionou a invasão anglo-
normanda contra os irlandeses em 1169.

Um exemplo totalmente privado de justiça é a lex mercatoria, o


corpo de leis consuetudinárias desenvolvidas por mercadores
europeus ao longo da Idade Média por tentativa e erro, aperfeiçoando-
se até chegar a reger a maior parte das principais transações
comerciais do continente no século XI. Elas cumpriam a função de
reduzir os custos de transação (aqueles associados a uma troca
comercial como a verificação dos antecedentes legais das partes), já
que os comerciantes podiam, por exemplo, frequentar eventos
importantes como a Feira de Champagne, sabendo que apenas aos
mercadores honestos e que aderissem às leis mercantis era permitido
ali operar. Os juízes eram contratados pelos próprios comerciantes
com base em suas reputações e conhecimento, aperfeiçoando a
jurisprudência de forma a limitar a arbitrariedade dos governantes.

Numa sociedade anarcocapitalista, os serviços judiciários poderiam


ser financiados conforme os mais diversos modelos de negócio
competindo entre si. Para o economista Robert Murphy, pessoas
teriam seguros de justiça semelhantes aos dos automóveis, que
indenizariam a parte que viesse a ser lesada por elas. Indivíduos
desordeiros pagariam prêmios mais caros e poderiam ser excluídos do
convívio social caso nenhuma seguradora os aceitasse. Estas, por sua
vez, proveriam advogados aos seus segurados (que também poderiam
ser contratados particularmente) mas em caso de sucumbência, a parte
derrotada não apenas teria que arcar com os custos dos honorários da
outra parte como também dos tribunais, que seriam privados. Logo,
haveria incentivos econômicos para reduzir estes custos, impedindo
apelações eternas.

Os advogados e seguradoras, para serem competitivos no mercado,


teriam que prever nos contratos de prestação de serviço os tribunais de
suas preferências. Estes, por sua vez, para serem competitivos, teriam
que se sujeitar contratualmente a cortes de apelação da mais ilibada
reputação, em quantos níveis fosse mercadologicamente eficiente.

Governanças e empresas de policiamento teriam grande interesse em


financiar sólidos sistemas judiciários baseadas em princípios claros e
perenes, já que isso reduziria gastos com apelação e conflitos que
pudessem custar a vida dos policiais. Como as relações de suserania e
vassalagem seriam de livre adesão, um suserano que não
providenciasse regras claras e justas e as devidas salvaguardas
judiciárias aos seus vassalos perderia assinantes.

Destes, contudo, ele poderia exigir, por contrato, que financiassem


serviços judiciários em favor de qualquer pessoa que circulasse pelas
terras sob sua jurisdição, caso contrário trabalhadores pobres e suas
famílias não se sentiriam seguros na região e seriam atraídos para
outras localidades. Aliás,

ninguém se sentiria juridicamente seguro


se o mais miserável indigente não fosse
coberto pelas firmas de serviços judiciários,
cujo melhor marketing seria provê-los a
quem não pode pagar.
Uma objeção ao anarcocapitalismo é que os ricos comprariam os
juízes (como se George Soros não tivesse dezenas de juízes sob seu
comando). Trata-se de uma falácia econômica, já que embora as
partes em litígio possam demandar sentenças viesadas, a sociedade
demanda instituições judiciárias imparciais. É o acúmulo artificial de
poder propiciado pelo Estado que distorce a produção de serviços
judiciários impedindo que o mercado oferte a justiça demandada pelo
homem comum. Os tribunais de uma sociedade anarcocapitalista
teriam como principal ativo sua reputação e por isso tornariam muito
transparentes sua obediência às boas regras do direito processual.
Além disso, uma decisão viesada não apenas perderia seu caráter
imperativo por violar os contratos implícitos e explícitos com a
sociedade, como também sujeitaria o tribunal que o emitiu a ser
processado, algo que seus concorrentes estariam ansiosos por fazer.
Devido à natureza corretiva da concorrência institucional no
anarcocapitalismo, sistemas judiciários não competiriam por grupos
de interesse beneficiários de leis arbitrárias, como ocorre numa
democracia, mas pelas melhores práticas em serviços judiciários que
fizessem valer a Lei Natural.

O filósofo Robert Nozick defende o chamado Estado ultramínimo,


argumentando que agências privadas de justiça seriam obrigadas a se
submeter àquela que exigisse as regras mais rigorosas do direito
processual, e que esta se tornaria o Estado. O que ele não percebe é
que não se configura um Estado enquanto houver a liberdade de
concorrer com esta agência.

Uma última objeção ao anarcocapitalismo é que bandidos como


estupradores e terroristas não estariam dispostos a se sujeitar aos
contratos jurídicos ou a acatar as decisões dos tribunais privados. Ora,
a perda do direito a estas escolhas é parte da punição deste tipo de
criminoso (desde que, é claro, se prove a culpa), e incluiria a morte.
Mas se a pena de morte é intrinsecamente justa e essencial para
proteger a sociedade contra os malfeitores, é melhor que os juízes com
o poder de aplicá-la tenham sua retidão moral e competência técnica
sujeitas ao crivo de um livre mercado de serviços judiciários, que
tende a ser pautado pela observância da Lei Natural e não pelos
caprichos de um monopolista legalista.

SEGURANÇA E DEFESA DAS SOCIEDADES


ANARCOCAPITALISTAS
Uma sociedade livre cujos cidadãos não tratam de defesa é como uma
empresa de finanças digitais onde não se discute segurança
cibernética. As considerações sobre assuntos militares serão, nas
palavras de Sun Tzu, a diferença entre a proteção e a ruína.
Não se trata, porém, de alimentar sonhos utópicos como a paz
perpétua kantiana, supostamente provida por uma autoridade mundial
que respeitasse direitos individuais, nem de despir-se de toda a
decência e defender a guerra em si, como o anarquista de esquerda
Pierre-Joseph Proudhon, que alega ser ela um fenômeno elevado e
fundamental para o desenvolvimento humano. Trata-se de constatar
que a realidade do pecado original impõe às pessoas a necessidade de
guardar aquilo que é de direito, afinal nos diz São Paulo em sua
primeira epístola a Timóteo: “Quem se descuida dos seus, e
principalmente dos de sua própria família, é um renegado, pior que
um infiel”.

O pacifismo é, portanto, imoral e encoraja


belicistas inescrupulosos.
A maioria das pessoas, contudo, é inadvertidamente pacifista tão logo
aceitam que um agente como o Estado monopolize o uso da violência,
pois abdicam não apenas de demandar e produzir serviços de defesa
concorrentes mas também de se defender contra os abusos cometidos
pelo monopolista.

O economista Walter Block constata que um serviço monopolista de


defesa, além de perder os incentivos econômicos para aumentar a
qualidade e reduzir preços, também configura uma contradição, já que
proíbe o surgimento de qualquer mecanismo que se contraponha a este
acúmulo de poder. Imagine que um homem, alegando cavalheirismo,
decide escoltar uma moça pelas ruas contra a vontade dela, obrigando-
a a pagar uma taxa de proteção e proibindo que ela contrate qualquer
outro guarda-costas. Trata-se de um mafioso, não de um cavalheiro.

Não há segurança sem moralidade, logo não há como um arranjo


imoral de produção de defesa nos deixar mais seguros. Ao contrário,
nos lembra o literato León Gautier, somente a moral católica
conseguiu, ao levar os antigos códigos guerreiros à perfeição cristã,
disciplinar a profissão das armas segundo os ideais de cavalaria,
submetendo-a ao poder sapiencial e sacerdotal do clero,
interrompendo as invasões bárbaras e propiciando a estabilidade na
qual floresceu o alto medievo. Isto torna o anarcocapitalismo ainda
mais vital para a segurança, pois não se trata apenas de concorrência
entre agências de defesa que sirvam assim de contrapeso mútuo mas
também de minimizar arbitrariedades e disputas por poderes artificiais
que tanto causam ódio e contendas, buscando, em substituição, a
justiça. Esta, para Platão, gera amizade e um pacificador senso de
propósito comum. O escritor Alexander Soljenítsin nos lembra ainda
que

a estabilidade de uma civilização


depende de um senso de dever auto-
imposto perante a necessidade da justiça
moral.
A segurança, portanto, repousa na eterna vigilância da mesma
liberdade que é destruída quando um serviço de segurança coage
pessoas à sujeição. Para Benjamim Franklin, a desconfiança e a
cautela são os pais da segurança. Confiar em um agente a ponto de
delegar-lhe um monopólio da produção de defesa é, portanto, uma
atitude temerária e que, para o economista Gustave de Molinari,
resulta em guerras. O autor comenta que sem a disciplina imposta pela
livre concorrência, o setor de segurança torna-se apanágio de
burocratas visando o poder e não a paz. Alexander Hamilton sugere
que é constante na história a prática de uma classe dirigente travar
guerras em nome de interesses particulares sob pretexto do interesse
público. Interessa aos Estados, portanto, despertar animosidades
artificiais ao invés da harmonia. Sob os slogans da emergência bélica,
escreve Rothbard, o governantes podem tolher liberdades com menos
resistência.

Algumas pessoas defendem o mito da pax democratica, a ideia


sofística de que democracias são pacíficas e não guerreiam entre si.
Elas não apenas usam a exportação do regime democrático como
pretexto imperialista desordenado, mas também promovem entre si
algumas das maiores carnificinas, como a Primeira Guerra Mundial
(as Potências Centrais já tinham características democráticas), conflito
que o escritor Georges Bernanos classificou como a grande guerra
impiedosa das democracias pacifistas e humanitárias. Os esforços de
paz do imperador santo Karl I da Áustria foram minados pelo
primeiro-ministro francês Georges Clemenceau, levando o poeta
Anatole France a comentar que um rei teria clemência de seu povo,
mas

a democracia não tem compaixão e é


escrava do poder financeiro.
A relação entre estatismo e belicismo fica mais clara quando se
percebe que o Estado degrada as relações políticas naturais até reduzi-
las à concepção doentia que Foucault fazia da política: continuação da
guerra por outros meios. O general Carl von Clausewitz cunhou o
termo “centro de gravidade” para definir a fonte crucial do poder
militar. O monopólio estatal da defesa transfere o centro de gravidade
do tecido social, que se enfraquece, para as estruturas burocráticas,
tornando-se assim um instrumento de tirania interna, como James
Madison temia.

Interessantemente, as técnicas utilizadas pelo Estado contra a


população são semelhantes às que os revolucionários, insurgentes e
criminosos organizados usam pra solapar as estruturas sociais
legítimas e angariar poder. O coronel do Exército Brasileiro
Alessandro Visacro, especialista em guerra irregular (aquela que
envolve agentes não-estatais), escreve que o centro de gravidade neste
tipo de conflito se concentra na luta por legitimidade popular,
empregando-se para tanto propaganda, assistencialismo e operações
psicológicas. Ora, isto é exatamente o que o Estado faz para justificar
seus monopólios financiados por roubo tributário e inflacionário, que
também alimenta a fabricação de ideologias de massa que, nas
palavras do cientista político Erik von Kuehnelt-Leddihn, servem para
organizar ódios de massa.
A possibilidade de se financiar extraindo tributos da população
incentiva o expansionismo em detrimento da coesão cultural que
poderia propiciar segurança real. Em A guerra antes da civilização, o
arqueólogo Lawrence Keeley comenta que entidades políticas só
entram em guerra contra outras caso disponham dos meios
institucionais e administrativos de converter a vitória militar em
capacidade de tributar. Por outro lado, se as pessoas seguirem o
conselho do classicista Étienne de La Boétie e decidirem não mais se
sujeitar à escravidão da tributação, o colosso da tirania estatal colapsa,
dando lugar a um livre mercado de defesa disciplinado moralmente
pela mesma coesão social que advém da determinação do conflito de
interesses que existe entre Estado e população. A defesa moral do
anarcocapitalismo é por si mesma um elemento essencial da defesa
militar de uma sociedade livre.

Entender a relação entre anarcocapitalismo e paz requer a rejeição de


dois erros antropológicos. O primeiro é o do filósofo anticatólico
Thomas Hobbes, que acreditava na autoridade central de um Estado
ameaçador como única forma de superar um conflito perpétuo de
todos contra todos. O segundo é o do antropólogo anarquista Pierre
Clastres, para quem a guerra perpétua seria a única forma de
contraposição à formação desta injusta autoridade.

A verdade é que a guerra e a desordem


são o grande alimento do Estado, enquanto
a harmonia de interesses no seio da família
e dos clãs promove uma ordem social que
precede a formação das instituições
políticas.
Ora, se o conservador Russell Kirk acerta ao afirmar que a ordem é a
necessidade mais urgente da sociedade, é esta que tenderá a ser mais
prontamente atendida por um livre mercado de instituições políticas
como é o anarcocapitalismo. O erro de Kirk ao criticar os
anarcocapitalistas é dissociar a ordem social de sua dimensão
transcendente, separando-a da ordem de justiça. Esta, como todo fruto
da virtude, requer liberdade para ser consolidada de forma duradoura.

Santo Tomás de Aquino afirma que para que qualquer ato seja
virtuoso, é necessário que seja voluntário, estável e firme. Assim
sendo, embora a moral possa exigir medidas discricionárias em
situações de caos iminente, a arbitrariedade não pode ser o
fundamento da civilização. Esta só se define como tal na
indissociabilidade entre ordem, justiça e liberdade, e o mesmo vale
para os meios permanentes de zelar por sua integridade física, que
devem ser livre-concorrenciais.

Não devemos, contudo, acreditar no discurso liberal iluminista de


que o comércio é a antítese da guerra. Molinari bem disse que o
Estado é a garantia de que um grupo cometerá crimes, mas o
anarcocapitalismo não garante o fim das ameaças. Para o filósofo
René Girard, a ação econômica e a ação hostil estão intimamente
ligadas, de forma que reduzir o fenômeno da guerra às suas dimensões
materiais e acreditar que a paz possa repousar apenas no redesenho
dos incentivos econômicos torna-se uma atitude pueril. Não há paz
duradoura sem o aspecto moral, mas também não há moralidade em
aceitar a hegemonia de um grupo tirânico com a desculpa de que a paz
não é garantida por um livre mercado de defesa. Este, contudo, é a
melhor chance que ela tem.

No anarcocapitalismo, a ausência do monopólio sobre os meios de


defesa dispersa naturalmente o poder, efetivando a demanda da
maioria das pessoas comuns por paz através de uma rede
mercadológica intrincada onde a probabilidade de alguém lucrar com
uma guerra diminui consideravelmente. Guerras são caríssimas e
extremamente destrutivas econômica, humanitária e culturalmente,
beneficiando apenas aqueles que já detém privilégios indevidos, como
os corporativistas do complexo militar-industrial, em detrimento do
resto da sociedade. Sem os monopólios estatais, haveria incentivos
econômicos para submeter toda a doutrina militar a uma grande
estratégia de paz. E se isto significa, como observou Flávio Vegécio,
prontificar-se para a guerra, é razoável crer que sociedades
anarcocapitalistas contariam com poderosas forças militares e
policiais para fins defensivos. Se na formação do Estado a disciplina
militar superior de um grupo minoritário lhe permite, segundo o
sociólogo Ludwig Gumplowicz, submeter a maioria, num livre
mercado de defesa as elites militares que se dedicassem a serviços
legítimos de proteção teriam larga vantagem estratégica em relação
aos grupos inescrupulosos, pois contariam com o apoio (inclusive
armado) da população geral e estariam visceralmente unidos a ela por
laços de voluntariedade cívica.

Estes vínculos localistas fortalecidos por uma cultura sólida seriam a


base da defesa militar anarcocapitalista, afinal, como nos lembra
Chesterton, nenhum soldado luta tão tenazmente quanto aquele que o
faz por amor ao que ele defende. E como é da natureza do amor
transbordar-se ao próximo, como se lê em 1 Ts 3, 12,

o patriotismo dificilmente se degeneraria


no desordenado nacionalismo
revolucionário que é hostil aos povos
estrangeiros.
Mais prováveis seriam casos como a aliança da cristandade para
proteger os peregrinos nas Cruzadas, ou como a união de negros,
índios e portugueses para expulsar do Brasil o invasor holandês nas
Batalhas dos Guararapes em 1648 e 1649.

Autores materialistas, que reduzem o homem ao modelo falacioso de


agente egoísta e maximizador de sua própria utilidade, argumentam
que no anarcocapitalismo ninguém lutaria nem contribuiria para a
defesa, já que não haveria serviço militar obrigatório nem impostos.
Não faltam exemplos como os voluntários que defenderam o Álamo
até a morte em 1863 contra o general López de Santa Anna, ou como
o do almirante Salvador Correia de Sá e Benevides, que vendeu as
próprias terras para comprar navios armados para a expedição que
libertou os portugueses em Angola contra os holandeses em 1648.
Adicionalmente, há diversas soluções empresariais para o problema
da defesa.

As seguradoras seriam grandes financiadoras de forças armadas


privadas, já que elas teriam que indenizar os segurados em caso de
ataque ou invasão. O utilitarista David Friedman argumenta que o
aumento da segurança advindo dos investimentos militares
beneficiaria também as empresas de seguro não-pagantes, eliminando
os incentivos para que cada uma despendesse dinheiro próprio. Hoppe
refuta esta objeção evidenciando a natureza intrincada do mercado de
seguros e resseguros (instrumentos adquiridos pelas seguradoras para
se protegerem em caso de grandes sinistros), que conecta as firmas do
setor através de uma “rede de acordos contratuais de assistência mútua
e arbitragem”.

Em suma, os empresários do ramo atuarial não ficariam ociosos e


indefesos só porque um economista sofista quer, mas firmariam os
contratos necessários para que as medidas de segurança fossem
tomadas. A nobreza, as elites naturais e os donos de ativos
estratégicos como pontes e usinas de energia teriam todas as razões
para investir diretamente em meios militares e assim dissuadir
quaisquer ameaças às suas posições sociais independentemente do
benefício conferido aos não-pagantes.

Um exemplo histórico emblemático desta dinâmica é República de


Gênova, que existiu de 958 a 1797. Em fins dos anos 1530, o rei
francês François I solicitou ao doge (líder) de Gênova que lhe
enviasse fundos públicos para compensar o dinheiro genovês enviado
ao seu rival Carlos V, sacro-imperador romano-germânico e rei de
Espanha. O doge respondeu que não havia fundos públicos e que todo
o dinheiro era obtido mediante empréstimos privados, também
disponíveis aos franceses. As famílias mercadoras da cidade
conheciam os riscos da centralização do poder militar e financeiro e
por isso desenvolveram instituições privadas para financiar forças de
defesa também comandadas privadamente. No conflito que se seguiu
entre os rivais supracitados, as marinhas particulares genovesas não
tomaram parte para não comprometer o tecido social. Este modelo
privado não apenas funcionava para evitar guerras mas também para
vencê-las.

Quando o Ducado de Savoy atacou Gênova em 1625, os defensores


empregaram com sucesso milícias voluntárias e forças pagas e
organizadas privadamente pelos ricos clãs da cidade. Durante as
guerras religiosas desta época destacaram-se os condottieri, capitães
mercenários frequentemente empregados por monarcas e pelos papas
através de contratos de serviços temporários. Após a expiração destes,
o condottiero não poderia guerrear contra seu ex-empregador por dois
anos. A trégua costumava ser honrada já que havia concorrência entre
mercenários, obrigando-os a zelar pela própria reputação.

Maquiavel, ao comentar o contexto político fragmentado da Itália


quando das Guerras da Lombardia, no século XV, observa que os
Estados não mantinham forças permanentes. Estas estavam nas mãos
de príncipes menores em busca de segurança e de soldados da fortuna
que investiam desde cedo no próprio treinamento.

O estrategista também nota que é frágil a fama de uma potência que


não seja amparada pelas próprias armas, o que nos leva a concluir que,
embora a demanda por segurança tenda a ser correspondida por oferta,
a prudência exige que se a demande corretamente, com livre
concorrência e supremacia militar localista. A forma mais barata e
eficaz de garanti-las é com armamento civil.

Uma população armada, além de ser


essencial para combater a criminalidade, é
a principal defesa contra a tirania estatal,
inclusive contra um governo de ocupação.
O historiador Carroll Quigley aponta que ao longo da história só
houve liberdade quando o poder de fogo da população civil foi
suficiente para dissuadir forças governamentais. Se um governo tenta
impedir o povo de se armar, eles não podem estar do mesmo lado,
pois um soldado jamais desarmaria seu companheiro de trincheiras a
não ser que trabalhasse para o inimigo. Em uma sociedade
anarcocapitalista, ao contrário, agências militares atuariam em
parceria com civis armados para baratear custos e dividir tarefas.
Como o treinamento militar seria livre, exércitos privados poderiam
ministrar instruções aos civis para se financiar e estes poderiam atuar
como reservistas de diversas empresas de defesa, barateando os custos
de preparo e mobilização.

O economista Jörg Guido Hülsmann nota que se as pessoas puderem,


no nível individual, escolher se querem ou não financiar esta ou
aquela agência de defesa, o capital militar tenderá a ser distribuído de
forma a melhor balancear os poderes e a favorecer os profissionais
mais competentes. Assim, convencendo voluntários a segui-los,
surgiram líderes militares como o general Koos de la Rey, cujos
kommandos (guerrilheiros bôeres) capturaram milhares de britânicos
no final do século XIX; e Viriato, que liderou inúmeras tribos
lusitanas em uma série de campanhas espetaculares contra os romanos
no século II a.C. Localidades menores poderiam contratar pactos de
defesa mútua das agências maiores. Estes perderiam a validade caso
um dos lados cometesse agressões ou abuso. Como uma força
suserana não poderia, legalmente, instituir um monopólio nem cobrar
impostos, qualquer tentativa de se tornar um novo Estado seria um
péssimo negócio, já que seus vassalos poderiam firmar aliança com
vassalos de outros suseranos e declarar guerra contra ela. Além disso a
agência abusiva sofreria deserções e perda do acesso às linhas de
suprimento, já que na ausência de corporativismo (conluio entre
empresas e Estado) a indústria de defesa seria pulverizada.

Muitos críticos do anarcocapitalismo objetam que seria impossível


para as pequenas governanças e feudos privados defenderem-se contra
potências estatais. Ora, a grande competência do Estado é propaganda
e engenharia social, e não defesa e segurança. Em uma simulação
militar em 2002, o tenente-general da reserva do Corpo de Fuzileiros
Navais dos EUA Paul van Riper enfrentou o próprio país fazendo o
papel de força opositora com um pequeno e atrasado contingente
representativo de um Estado pária árabe. Valendo-se de estratégias de
guerra assimétrica que minimizam a disparidade numérica e
tecnológica, destruiu as poderosas forças americanas e aproveitou
para criticar a mesma miopia doutrinária e a rigidez burocrática que
levaram os EUA à derrota contra plantadores de arroz no Vietnã ou
pastores de cabras no Afeganistão.

Estratégias de guerra de resistência com táticas de guerrilhas são tão


eficazes que o marechal prussiano Colmar von der Goltz comenta que
a França poderia ter vencido a Guerra Franco-Prussiana (1870) se as
tivesse empregado no lugar dos métodos convencionais priorizados
pelos burocratas do Governo de Defesa Nacional. No século XV, a
aristocracia feudal albanesa financiou e organizou a Liga de Lezhë,
sob liderança de Skanderbeg, para conduzir uma bem-sucedida
rebelião católica contra o opulento Império Otomano através de uma
guerrilha.

Uma sociedade anarcocapitalista, contudo, seria superior ao Estado


também na guerra convencional. O economista Miguel Anxo Bastos
comenta que o modelo estatal de produção de defesa estabelece
escalas arbitrárias na prestação deste serviço, pois não há um sistema
de preços (como haveria com seguradoras de defesa e contratos de
vassalagem) para alocar os recursos militares racionalmente ou
determinar o tamanho e a jurisdição de cada organização de
segurança. Um livre mercado no

Sun Tzu nos lembra da natureza fluida e dinâmica da guerra, o que


torna o empreendedorismo mais adequado para lidar com ela do que a
burocracia.

Aceita-se que o Estado é incompetente para


gerir uma sapataria mas ainda acredita-se
que ele possa lidar com a imensa
complexidade das operações militares melhor
que o mercado.
O estrategista naval Julian Corbett, em sua teoria dos meios, discute
qual seria a melhor composição de uma marinha de guerra,
concluindo que ela deveria refletir de forma balanceada as diferentes
funções navais, com navios específicos para cada missão. Ele observa,
contudo, que poucas marinhas conseguem se manter equilibradas já
que os critérios de classificação dos navios costumam ser arbitrários.
As seguradoras de defesa numa sociedade anarcocapitalista tenderiam
a canalizar os recursos navais para as necessidades de segurança mais
urgentes, resolvendo racionalmente, por exemplo, o dilema entre
construir um cruzador adicional para superioridade em águas
profundas ou mais uma corveta para patrulhas costeiras.

A função de policiamento é análoga à de defesa militar. No Antigo


Egito, surgiu como um serviço privado contratado por proprietários de
terra e mercadores antes de se tornar ferramenta de poder político sob
Ahmose I no século XVI a.C. Polícias privadas seriam contratadas no
mercado para reprimir crimes reais e não para confiscar mercadoria de
ambulante. Se hoje as polícias estatais recomendam às pessoas que
escondam seus valores, confessando incompetência, as polícias
concorrenciais fariam anúncios de como seus clientes andam
tranquilamente contando dinheiro. Políticas antiéticas como a guerra
às drogas, que fortalecem cartéis e agentes corruptos mas condenam
policiais em combate e civis nas periferias, não teriam demanda. A
cooperação dos cidadãos com investigações seria prevista em contrato
ou coberta por seguros que indenizassem o indivíduo forçado a
cooperar, incentivando as agências policiais a otimizar suas práticas
forenses e reduzir arbitrariedades a um mínimo.

As virtudes da concorrência no setor de segurança foram


reconhecidas até por César Augusto, que criou as cohortes urbanae,
unidades paramilitares de polícia, para contrabalancear o poder da
Guarda Pretoriana, um equivalente imperial do atual U.S. Secret
Service. No anarcocapitalismo, seria observada a recomendação do
general do Exército Francês André Beaufre: que a ciência da
estratégia não mais fosse um apanágio de uma classe governamental,
mas um corpo cumulativo de conhecimento de toda a sociedade. A
burocracia e o legalismo que hoje permeiam as forças de defesa
seriam substituídos por um senso cívico e patriótico que integraria
combatentes e civis na busca vigilante pelas melhores práticas a
serviço da segurança e da paz.
ECONOMIA DO ANARCOCAPITALISMO

CIÊNCIA ECONÔMICA, ANARCOCAPITALISMO E


CIVILIZAÇÃO

O historiador Cassius Dio, ao relatar as extorsões que o imperador


Caracala impunha aos cidadãos de Roma para financiar suas
extravagâncias, conta que sua mãe o repreendeu por gastar demais,
dizendo que não havia fontes de renda remanescentes. Ele apontou
para sua espada e respondeu que enquanto possuísse a arma, não lhes
faltaria dinheiro, corroborando assim a constatação de Nietzche de
que

tudo o que o Estado tem foi, em algum


momento, roubado de alguém que produziu.
Como é impossível sentar-se num trono feito de baionetas por muito
tempo, as potestades políticas tratam de perverter a ciência econômica
através de seus intelectuais orgânicos (termo que Antonio Gramsci
aplica aos membros da intelligentsia a serviço de um grupo de
interesse). É por isso que muitos consideram a economia uma ciência
sombria, reservada a um seleto grupo de iluminados capazes de gerir
os empreendimentos alheios para otimizar resultados sociais,
submetendo-se assim às arbitrariedades dos governantes.

Restaurar a correta noção da natureza


da ciência econômica é essencial para
entender a aplicabilidade do
anarcocapitalismo.
Os pensadores da Escola Austríaca de Economia classificam esta
ciência como um ramo da Praxeologia, que é o estudo lógico da ação
humana propositada, que sempre se dá no tempo e sob incerteza. O
homem age racionalmente aplicando meios para atingir fins, um fato
inegável cujos corolários compõem leis econômicas cuja validade não
depende de circunstâncias como tempo e lugar. Uma delas é a
utilidade marginal decrescente, que nos diz que as unidades
disponíveis de um determinado bem serão aplicadas para satisfazer os
fins mais urgentes de um indivíduo segundo uma escala ordinal e
subjetiva de valor. Uma unidade adicional (marginal) derivará seu
valor da utilidade da próxima necessidade mais urgente ainda não
satisfeita, menos valiosa do que aquelas já atendidas, o que explica o
preço de 1 litro de vinho ser maior que o de 1 litro de água, que
embora mais útil, é muito mais abundante.

Decorre desta lei que, num livre mercado, haverá a tendência de que
os recursos escassos sejam alocados de forma a melhor satisfazer as
finalidades mais urgentes da sociedade, embora isso dependa das
virtudes dos agentes econômicos em discernir desejo de utilidade e
meios adequados de meios inadequados. Não há, como propôs Adam
Smith, uma mão invisível que regula o mercado, mas sim um
mecanismo de lucros e prejuízos que incentiva o indivíduo à
prudência, definida por Santo Tomás de Aquino como a razão reta no
agir.

Para entender o quão inúteis e prejudiciais são os planejadores


centrais, deve-se descartar os modelos econômicos prontos, todos
falaciosos, e recolocar no centro do estudo científico da economia a
figura do empreendedor. A raiz etimológica desta palavra é
prehendere, em latim algo como alcançar compreensão.

O que o empreendedor faz é compreender


aspectos específicos da realidade de forma a
descobrir onde certos recursos poderiam ser
melhor alocados,
auferindo lucros se estiver correto.
Um trabalhador assalariado também empreende quando procura um
emprego melhor ou negocia um aumento. Alguns autores como o
economista neoclássico Joseph Schumpeter consideram a atividade
empreendedora um processo revolucionário de destruição criativa,
através da qual um suposto equilíbrio de mercado seria rompido. A
economista Mariana Piaia Abreu, contudo, contrasta esta tese com o
pensamento de autores da Escola Austríaca, como Israel Kirzner e
Murray Rothbard, demonstrando que o empreendedor identifica
situações de desequilíbrio e procura oferecer correções, tendendo a
um aumento da ordem. O desenvolvimento econômico é, portanto,
uma possibilidade que depende da competência do indivíduo em
empreender, e não o resultado de uma política pública.

O sucesso do empreendedor, por sua vez, depende de um tipo de


conhecimento que está disperso na sociedade, que Sócrates relaciona à
sabedoria do artesão e que Aristóteles chama techné, uma arte de
saber como exercer uma atividade produtiva. Os engenheiros sociais,
como observa o economista Thomas Sowell em Os intelectuais e a
sociedade, agem como se pudessem superar a interação orgânica entre
os saberes de bilhões de pessoas e ignorar suas preferências
subjetivas, o que o economista F.

A. Hayek chamou de pretensão do conhecimento. Infelizmente, esta


soberba não se limita ao âmbito das sugestões mas transforma-se em
coerção contra ações livres legítimas dos indivíduos, abolindo, desta
forma, a plena deliberação dos proprietários sobre suas respectivas
propriedades privadas. Configura-se o que Hoppe chama de
socialismo da engenharia social e, como em todo socialismo, a
impossibilidade de realizar racionalmente o cálculo econômico.

As empresas, no mercado, valem-se das informações transmitidas


pelo sistema de preços para calcular o valor relativo dos bens de
capital conforme a demanda subjetiva dos consumidores e decidir em
qual cadeia produtiva aplicá-lo. As interferências estatais alteram os
preços relativos descolando-os completamente da realidade, reduzindo
assim a eficiência dos parâmetros disponíveis aos empresários para
saber se estão produzindo ou destruindo valor. O marxista Oskar
Lange tentou viabilizar o socialismo sugerindo que as empresas se
coordenassem com os planejadores centrais para igualar o custo
marginal da produção de um bem ao seu preço tabelado. Porém, por
mais que os burocratas soviéticos do Comitê Estatal de Planejamento
(Gosplan) tentassem criar complexas tabelas de preços para centenas
de milhares de itens, o resultado foi o desabastecimento e a
descapitalização da economia da URSS. O economista Ludwig von
Mises constatou certeiro que

a ausência de propriedade privada


elimina pela raiz os incentivos ao lucro,
distorcendo a escala de valores, criando
riscos morais e inviabilizando qualquer
tentativa de se emular a eficiência de um
livre mercado.
As falácias econômicas são o melhor disfarce do flagelo socialista e
a economia matemática é talvez o pior deles. A chamada econometria,
pseudociência que propõe correlações estatísticas entre variáveis
econômicas, reduz toda a complexidade antropológica a números,
como se o homem não fosse dotado de livre-arbítrio. Reduz a
realidade e seus mistérios, que a física e a metafísica mal conseguem
arranhar, a modelos quantitativos sem nenhum parâmetro mensurável
cientificamente. Todas as escolas de pensamento econômico não-
praxeológicas ignoram tanto a natureza contínua do tempo, que é uma
sucessão de causas e efeitos, quanto a impossibilidade de quantificar
os valores subjetivos atribuídos aos bens e serviços. Estas duas
constatações de Santo Agostinho ainda no século IV invalidam
qualquer pretensão de aumentar a eficiência econômica através de leis
positivadas. Estas, como nos lembra Bastiat, têm como função
proteger, por justiça, as instituições que decorrem da natureza do
homem, como a propriedade privada, e não substituí-la para
maximizar algum critério arbitrário.
Infelizmente, a Escola Austríaca de Economia também parte de
algumas premissas filosoficamente erradas por ter bebido do veneno
liberal a despeito de suas raízes escolásticas. Para Mises, por exemplo,
a ciência econômica é apriorística, ou seja, não depende de
observações empíricas, e suas proposições são apodíticas, isto é,
seguem imediatamente das premissas. Este racionalismo ignora as
nuances da alma tanto quanto o empirismo dos econometristas,
levando seus adeptos a cometer erros ainda mais graves como isentar
a economia de juízos de valor ou tentar explicar fenômenos sociais
como mero resultado das ações individuais tomadas isoladamente (o
chamado individualismo metodológico).

Desprezando o papel das virtudes e a substancialidade das


agremiações humanas, um liberal da Escola Austríaca não consegue,
por exemplo, explicar a relação direta entre a virtude do patriotismo e
a prosperidade material, que Chesterton tão bem sintetiza ao afirmar
que Roma não era amada por ser grande, mas grande por ser amada. A
liberdade econômica é uma condição necessária mas não suficiente
para a riqueza de um povo, afinal, como disse José Monir Nasser,

uma sociedade não enriquece nem se


solidifica sem o auxílio de uma elite
cultural capaz de influenciar o
direcionamento de seus esforços para os
bens espirituais.
A piedade e a liberdade de um artesão medieval não seriam
suficientes para construir uma catedral gótica sem a influência cultural
da Abadia de Cluny. Isto não implica, contudo, a necessidade de um
Estado, mesmo porque uma das causas do florescimento civilizacional
propiciado pela ordem cluníaca foi esta estar submetida diretamente
ao Papa e não ao poder temporal.

Na concepção de Aristóteles, a economia diz respeito à retidão de


vida e por isso seu livro sobre o tema versa sobre como administrar
um lar e uma família. O filósofo distingue esta ciência da crematística,
que é a arte de acumular riquezas e que está subordinada tanto à
economia quanto à sabedoria prática. Esta última diz respeito à ética e
ao bem comum, estando mais próxima da finalidade última do homem
que a mera produção de meios materiais. O que Aristóteles chamou de
práxis eram as ações intransitivas, ou seja, aquelas com resultados
internos como o cultivo de hábitos virtuosos. Uma abordagem sólida
da praxeologia deve necessariamente, portanto, fazer juízos de valor,
sem os quais é impossível subordinar a economia à sabedoria prática,
correndo-se o risco de agir como o liberal Schumpeter, que mostrou-
se entusiasmado com a Revolução Bolchevique na Rússia, em outubro
de 1917, alegando que seria um interessantíssimo laboratório prático
do socialismo apesar da pilha de cadáveres.

A engenharia social deve ser imediatamente rechaçada por sua


imoralidade antes de considerarmos quaisquer consequências
econômicas ou políticas. Uma delas, porém, é a entronização de uma
elite tecnocrática que, como escreve o filósofo José Pedro Galvão de
Sousa, substituirá a prudência e a justiça por ditames de inspiração
positivista, uma corrente de pensamento que adota a metodologia das
ciências naturais para lidar com as ciências sociais. Tal como qualquer
ideologia de cunho materialista, como o marxismo e o liberalismo, a
tecnocracia confere aos esforços sociais um viés exteriorizante,
focado na construção de uma utopia em vez de buscar o
aperfeiçoamento das almas. Mises, desta vez de forma irretocável, nos
lembra que

todo intervencionismo estatal na


economia acarreta algum grau de
desordem que servirá de pretexto para
intervenções subsequentes até a completa
instauração do socialismo.
É ingênuo, portanto, achar que exista algum meio-termo sustentável
entre a total ausência de coerção institucionalizada contra a
propriedade privada e um pesadelo comunista.

Apesar de partir de algumas premissas liberais, a Escola Austríaca de


Economia está munida de um poderoso ferramental de tradição
praxeológica que lhe permite demolir todas as falácias econômicas
das outras escolas de pensamento e consequentemente refutar
objeções ao anarcocapitalismo neste campo. Bens e serviços podem
ser providos de forma mercadológica ou por monopólio legal. No
primeiro caso há livre concorrência e direito de recusa, ao passo que
no segundo não há liberdade de entrada no setor e o consumidor é
obrigado a pagar o ofertante. A sólida ciência econômica demonstra
que, sob monopólio legal, não haverá incentivos à qualidade ou à
economia de recursos, logo as pessoas serão forçadas a pagar cada vez
mais caro por bens e serviços cada vez piores. Haverá ainda um risco
moral, já que a burocracia que administra este sistema procurará
justificar sua existência e hipertrofia aprofundando os problemas que
supostamente deveria resolver.

O anarcocapitalismo fundamenta-se economicamente na conclusão


lógica de que nenhum tipo de prestação de serviços deve gozar de
privilégios de monopólio legal. Ironicamente, uma das principais
objeções de seus opositores é que num livre mercado as empresas
tenderiam a formar oligopólios e monopólios já que haveria plena
liberdade de formar cartéis, trustes (fusões e aquisições) e holdings
(conglomerados). Estes arranjos de negócios são essenciais para uma
economia complexa já que possibilitam a coordenação de
investimentos massivos em projetos que só se tornam viáveis em
grandes proporções, atingindo assim a chamada economia de escala.
Sem ela não haveria, por exemplo, os grandes estaleiros navais e
refinarias, dos quais toda a cadeia de petróleo depende.

Na ausência de intromissões estatais como agências reguladoras,


subsídios e barreiras tarifárias, nenhum grande cartel ou truste está
protegido contra a concorrência, de forma que oligopólios e
monopólios por definição não se configuram num livre mercado (o
economista George Reisman nos lembra que são os privilégios
protecionistas e não o número de agentes que determina se um setor é
livre ou oligopolizado). As grandes escalas nas quais grandes
conglomerados operam dificultam o cálculo dos preços relativos dos
insumos internamente, ao mesmo tempo em que transmitem
externamente informações úteis aos seus potenciais competidores,
obrigando assim os empresários a inovar constantemente com melhor
qualidade e menores preços. Em um ambiente de livre competição por
recursos escassos, uma firma só consegue um elevado market share se
for eficiente.

Os críticos do livre mercado alegam que a eficiência ótima só existe


em caso de competição perfeita, um modelo teorético no qual se
pressupõe informação perfeita e ausência de influência de firmas
individuais sobre os preços. Na vida real, contudo, não existe algo
como eficiência ótima e muito menos competição perfeita, mas
demonstra-se que a interferência estatal no processo competitivo é
sempre deletéria. F. A. Hayek define a competição de mercado como
um mecanismo orgânico de transmissão de informações nas quais as
pessoas se baseiam para atribuir valores e fazer juízos. Os dados e as
circunstâncias nas quais eles são coletados estão em permanente
mudança, não existindo algo como um equilíbrio estático.

Qualquer intervenção de um planejador


central altera a coerência unitiva da
economia de mercado e altera artificialmente
as informações nas quais supostamente sua
política pública teria se baseado.
Por ignorar a ciência econômica, o senso comum segue legitimando
leis antitruste como o Sherman Act de 1890 nos EUA. Entretanto, até
mesmo um historiador socialista, como Gabriel Kolko, admite que
“não foi a existência de monopólios que levou o governo federal a
intervir na economia, mas a total ausência deles”. O Estado, em
conluio com os grandes bancos e empresas corporativistas, não
permitiria que firmas grandes e honestas erguessem toda a infra-
estrutura de uma nação sem depender de apadrinhamento político e da
alavancagem financeira que enriquece os banqueiros. O historiador e
economista Thomas DiLorenzo demonstra que nos dez anos
anteriores à edição do Sherman Act, os preços praticados nos setores
onde os políticos alegavam haver formação de monopólio estavam
caindo continuamente enquanto a produtividade subia. Foi por pressão
dos lobistas desejosos de minar a concorrência que as leis antitrustes
foram criadas.

Os apologetas do Estado falam ainda no conceito de monopólio


natural, que ocorreria quando um determinado setor, como o de redes
de esgoto e rede elétrica, apresenta altos custos fixos e de entrada, mas
os custos marginais de produção decrescem. Segundo esta teoria, a
concorrência resultaria em instalações redundantes e perda de
eficiência, de forma que uma única firma acabaria por dominar o
mercado e teria que ser regulada pelo Estado. O que ocorre na vida
real é que a concorrência desimpedida mostra-se um bem econômico
em si, levando as empresas a resolver os obstáculos técnicos com
redução de custos que se refletem em preços menores ao consumidor.

O Estado faz pior que gerar e proteger monopólios. Ele gera escassez
artificial, como é o caso da chamada propriedade intelectual, que na
verdade é monopólio intelectual. Mentir sobre a autoria de um livro
ou invenção de fato configura fraude, por isso é justo exigir créditos,
mas não royalties, afinal o artista ou inventor não pode reivindicar
direitos de propriedade sobre técnicas e conceitos ou sobre o material
alheio usado na reprodução de uma obra.

Thomas Jefferson comparou a disseminação de ideias com a chama


de uma vela, que pode acender outra sem se apagar, e por isso cópia
não é roubo. A imitação, segundo Confúcio, é a maneira mais fácil de
adquirir sabedoria e é através dela que uma inovação inspira outra,
dando ao progresso técnico seu caráter incremental. Leis de copyright
e patentes acomodam seus beneficiários protegendo-os da necessidade
de inovar, distorcem o tipo de pesquisa para atingir marcos
patenteáveis que não são necessariamente mais úteis e desviam
recursos da área científica para a área jurídica. Foi a ausência de leis
de monopólio intelectual na Alemanha uma das causas de sua
expansão industrial e literária no século XIX, quando ela fez jus à sua
alcunha de terra de poetas e pensadores.

Os críticos do anarcocapitalismo afirmam que determinados bens e


serviços, pela sua natureza, não poderiam ser providos privadamente
por não ser possível excluir os não-pagantes de seu usufruto. São os
chamados bens públicos e supostamente incluiriam, por exemplo,
obras de defesa civil e padrões de segurança. O benefício que eles
propiciam aos caronas (pessoas que não pagam por algo mas não
podem ser impedidas de usufruir dele) é chamado externalidade
positiva e, segundo os estatistas, justificaria que o governo subsidiasse
estes bens pois o mercado não os produziria em quantidade suficiente.

Ora, as externalidades positivas não devem ser um salvo conduto


para arrancar dinheiro alheio. A verdade é que todo o edifício da
civilização se baseia nisso, afinal os habitantes atuais da Terra não
pagaram pelos imensuráveis benefícios de toda a produção cultural, de
toda a divisão de trabalho na indústria e de todos os padrões, medidas
e regras tácitas desenvolvidos ao longo de séculos por tentativa e erro.
Exatamente por isso (e por não termos que pagar por isso) podemos
partir de um patamar mais elevado intelectual e materialmente, pois
como Norbert Elias comenta em O processo civilizador,

na sua curta história um indivíduo


perpassa todo o processo de formação de
sua sociedade.
Ademais, a história comprova a capacidade superior do livre
mercado em prover todos estes bens. A Magna Frísia foi um conjunto
de pequenos reinos que ocuparam, entre os séculos VII e VIII, um
território costeiro extremamente vulnerável a inundações, hoje
ocupado por Holanda, Alemanha e Bélgica. Além de cooperarem
entre si para a defesa militar, os inúmeros vilarejos construíram um
complexo sistema de diques sem recorrer a estruturas centrais de
governo, mas contando apenas com a colaboração voluntária que o
senso cívico inspira.
Soluções lucrativas de mercado como a especulação de terras e o
interesse das seguradoras também exercem papel proeminente em
obras de interesse comunal. É o caso de muitos faróis marítimos,
como o farol de Casquets, construído em uma rocha nas Ilhas Anglo-
Normandas em 1724. Na ocasião, um grupo de donos de navios
mercantes firmaram um contrato com o proprietário da ilhota
prometendo-lhe um pagamento pela tonelagem das embarcações que
passassem pela rota em questão. Infelizmente, ele também teve que
pagar a autoridade governamental de sinalização náutica pelo direito
de operar o farol, que hoje é estatizado.

Filósofos utilitaristas como John Stuart Mill e Henry Sidgwick,


ignorando a injustiça inerente às agressões estatais sistêmicas contra
indivíduos ordeiros, desenvolveram o conceito de falha de mercado,
situações nas quais a interferência dos governos na economia geraria
resultados melhores que a iniciativa privada. O fator tempo é
completamente desprezado pelos defensores desta tese, fazendo-os
incorrer em dois erros graves. O primeiro é desprezar a natureza
iterativa dos processos de mercado, ou seja, a possibilidade de
recorrência de decisões como comprar um determinado insumo ou
renovar um contrato. As ações individuais são encadeadas no tempo e
introduzem expectativas e mecanismos correcionais de forma que o
comportamento cooperativo, visando benefícios mútuos de longo
prazo, seja muito mais frequente do que o previsto por modelos sem
nenhuma aplicabilidade em ciências sociais, como a teoria dos jogos.

O segundo erro é desconsiderar que a mera possibilidade jurídica de


intrometimento estatal na economia gera o que o historiador Robert
Higgs chama de incerteza de regime, que é a perda da estabilidade
institucional necessária para que os agentes econômicos invistam em
projetos de longo prazo sem incorrer em riscos inaceitáveis. O jurista
esquerdista Richard Posner escreveu um livro defendendo o Estado
como único protetor possível contra grandes sinistros como o impacto
de um asteróide, tendo sido refutado pelo economista Jacob Huebert.
Este alega que a existência de uma burocracia estatal para fins de
defesa orbital, financiada com impostos, empobreceria a sociedade
por anos a fio (reduzindo o avanço tecnológico) e depositaria todas as
chances em uma única alternativa, violando o princípio da
diversificação de riscos.

Rothbard deixa claro que,

independentemente da natureza técnica de


um bem, serviço ou setor, é a liberdade
institucional que será determinante na
eficiência dos arranjos produtivos adotados.
Já no século IV a.C. o filósofo ateniense Xenofonte teorizou sobre a
eficiência dinâmica das instituições, que é o atributo da criatividade
empreendedora de valer-se dos recursos disponíveis em um dado
tempo para expandir a capacidade de produção, obtendo ainda mais
recursos e desencadeando um círculo virtuoso. Todavia, somente o
anarcocapitalismo permite que esta criatividade se aplique às próprias
instituições, já que nele os contratos privados podem contemplar
jurisdições territoriais, governanças e aplicação de códigos legais. A
concorrência entre instituições contingentes, e portanto a sustentação
do processo civilizador, é uma exclusividade anarcocapitalista.

PATERNALISMO X CARIDADE
São Bento de Núrsia, pai do monasticismo ocidental, desenvolveu
uma regra de vida para os monges pautada pelo equilíbrio,
regularidade e adequada atribuição da função de cada coisa,
contribuindo para a íntima aliança entre fé e razão que caracterizou o
pensamento medieval, da filosofia de Santo Anselmo da Cantuária às
inovações dos mosteiros cistercienses no campo da hidráulica. O
resultado foi o primeiro grande irrompimento industrial da história.
Não uso o termo revolução industrial pois ela é sempre resultante do
acúmulo de capital e conhecimento ao longo das eras.

Cristiano Chiocca, presidente do Instituto Rothbard Brasil, constata


que os choques só ocorrem quando amarras estatais são impostas ou
suspensas. O padrão de vida dos camponeses no auge do medievo
ocidental elevou-se consideravelmente em meio aos arados pesados e
alto-fornos, mas foram os ecos eternos da filosofia da época que
permitiram o irrompimento industrial inconteste dos séculos XVIII e
XIX, e consequentemente, a redenção material da massa operária e
camponesa. A contribuição de economistas escolásticos como São
Bernardino de Siena para a defesa da propriedade privada, dos lucros
financeiros e do livre comércio é o que ajuda os pobres e não o
discurso demagógico e populista de hereges da atual Teologia da
Libertação. O teólogo São Pedro Fabro, que viveu no século XVI,
percebeu a

íntima relação entre o empreendedorismo e


o aumento das oportunidades e do padrão de
vida dos pobres.
Ele ressaltava a importância da caridade e das esmolas, mas via na
liberdade de empreender a solução definitiva para a pobreza.

No anarcocapitalismo haveria a máxima facilidade de fazer negócios,


mas seus opositores insistem em afirmar que o pobre ficaria
desassistido. Muitos deles interpretam erroneamente a doutrina
tomista da distribuição universal dos bens, confundindo-a com o
conceito de função social da propriedade. Este, desenvolvido pelo
deletério filósofo Auguste Comte, fundador de uma religião secular,
preconiza que a propriedade privada seja garantida apenas conforme
atenda a finalidades utilitárias materiais. Já aquela está ligada ao dever
de misericórdia de servir ao bem comum e não a obrigações jurídicas.
Ela assume a propriedade privada como premissa para o exercício das
virtudes e sublimação dos vícios do materialismo, que Santo
Ambrósio sintetiza ao afirmar que “a posse deve ser do possuidor, não
o possuidor da posse”. É verdade que a propriedade privada é um
direito natural secundário, cuja observância não se recomenda em
casos isolados de ameaça existencial à ordem civilizatória ou grave
escândalo moral, mas ainda assim, por ser o arranjo que melhor serve
ao direito natural primário de justiça, não deve ser relativizado em
nome de outro sistema.

Uma das objeções mais comuns ao livre mercado é o preço abusivo


que alguns ofertantes cobrariam em situações de emergência. Cícero,
em Dos deveres, trata deste tema dando como exemplo um mercador
de milho a caminho de uma Rodes devastada pela escassez. Supondo
que ele saiba que muitas outras caravanas dirigem-se à cidade, teria
ele o dever moral de informar o fato aos habitantes de Rodes ou ele
poderia aproveitar-se do medo do desabastecimento para cobrar mais
caro? Ora, é a alta dos preços que atrai outros mercadores e evita o
consumo demasiado do item em questão. Ademais, como saber se as
caravanas vindouras não serão acometidas por uma tempestade, por
exemplo? Logo, o teólogo Xoán de Lugo acerta ao dizer que apenas
Deus pode conhecer o preço matemático justo, e que pelas leis
humanas deve valer o preço que foi concordado.

Há ainda a caridade, fator extremamente desprezado pelos críticos do


anarcocapitalismo apesar de ser o princípio e o fim da verdadeira
civilização, a “força motriz para a realização da ordem moral” nas
palavras do filósofo Étienne Gilson. Ela será tão mais abundante
quanto menos políticas assistencialistas houver. Sem o Estado
tributando os frutos das virtudes, não apenas o capital será mais
abundante mas também a disposição de abdicar do consumismo para
destinar recursos excedentes ao bem dos pobres.

O historiador Paul Veyne convida seus leitores a um sobrevôo mental


pela antiga Roma contemplando os balneários e as basílicas, ou pelas
grandes cidades do medievo admirando as catedrais, os orfanatos e as
cozinhas comunitárias que serviam refeições aos mendigos. Estas
foram algumas das obras erguidas pela caridade, força capaz de
definir o contorno físico das sociedades humanas pré-industriais mas
que os socialistas acham insuficiente para suprir as lacunas sociais
ainda não abarcadas pelo livre mercado e sua crescente tecnologia.

O assistencialismo estatal, por outro


lado, destrói o espírito caritativo.
São João Crisóstomo, teólogo patrístico do século IV, escreve que a
justiça material não se faz por coerção. Esta insufla ressentimento nos
ricos, levando-os à avareza, e ingratidão nos pobres, levando-os à
inveja. Políticas de redistribuição de renda promovem a cizânia da
sociedade em classes hostis umas às outras, esgarçando o tecido social
e solapando a harmonia que deve fundamentar uma verdadeira
comunidade humana de interesses legítimos. O filósofo Bertrand de
Jouvenel nos lembra que as ideologias igualitárias, tão coletivizantes
politicamente, resultam num individualismo utilitário
antropologicamente.

Todo programa assistencialista é financiado com dinheiro arrancado


de quem gera empregos produtivos, e subsidia o consumismo e o
desemprego, impedindo que o empregador marginal (aquele que está
na margem do rol patronal, com a máxima dificuldade de manter seus
empregados) se mantenha no mercado. Com menos empresas
concorrendo e mais consumo sem contrapartida em produção, os
preços sobem e a pobreza aumenta, engrossando a fileira daqueles que
solicitam ajuda do Estado. Este por sua vez, cobrirá os gastos
crescentes com inflação e impostos até que o poder de compra das
bolsas governamentais seja neutralizado pela carestia.

A destruição não ocorre apenas no âmbito material, mas


principalmente na esfera moral, promovendo o materialismo e a
prodigalidade. O assistencialismo corrompe as famílias e aumenta a
criminalidade, pois substitui a subsidiariedade familiar pelo Estado
paternalista. A fornicação e os divórcios aumentam quando a
diligência e a capacidade de sustentar um lar deixam de ser requisito
para os relacionamentos. Ao mesmo tempo, os jovens perdem de vista
a relação entre virtude e sucesso, tornando-se cada vez mais presos ao
círculo vicioso da dependência estatal.

Fiodor Dostoiévski expressa sua sabedoria sobre o tema em Os


irmãos Karamazov através do personagem Zossima, um velho monge
e conselheiro espiritual que critica a atitude materialista por confundir
felicidade com satisfação constante de necessidades crescentes até o
ponto da sociedade perder a capacidade de repartir os bens com os
necessitados de forma pacífica.

Quando a caridade é substituída por


políticas públicas, as instituições
subsidiárias que amparam o indivíduo
carente são aniquiladas.
O Estado esmaga as elites naturais com a desculpa de distribuir seus
bens enquanto as massas delegam aos governantes a responsabilidade
pelas questões sociais, dissolvendo o senso de comunidade. Não tarda
para que o miserável seja visto como um passivo social, a ponto do
utilitarista Jeremy Bentham afirmar que mendigos reduzem a
“felicidade total da sociedade” (seja lá que diabo for isso) e que por
isso deveriam ser removidos para casas de trabalho forçado.

O inchaço cancerígeno do Estado de bem-estar social se deu de


forma desenfreada durante as grandes guerras do século XX, quando a
destruição material e moral foi acelerada. Winston Churchill
aproveitou-se do caos resultante destes dois morticínios (que ele
ajudou a causar) para implementar o socialismo assistencialista no
Reino Unido. Os efeitos disso reverberam na trágica sinfonia da
decadência atual do Ocidente, cujos habitantes se transformaram no
homem-massa descrito por José Ortega y Gasset. Querem direitos sem
deveres, rendem-se aos desejos, aceitam migalhas aparentemente
gratuitas em troca da liberdade e da dignidade. Tornam-se invejosos a
ponto de, nas palavras do sociólogo Helmut Schoeck, achar que
andarão melhor se o vizinho quebrar uma perna.

A caridade gera paz social e nos torna mais livres, enquanto o


assistencialismo cria conflitos sobre a destinação dos recursos. O
Estado apresenta-se então como único mediador possível das disputas
que ele mesmo cria, expandindo-se. Em 1824 o oficial de milícias
britânico Sir William Hillary conseguiu que mercadores ingleses
apoiassem a criação da Royal National Lifeboat Association, uma
organização privada que atuou muitas vezes como uma guarda
costeira em missões de busca e salvamento. Infelizmente, quando ela
começou a aceitar subsídios governamentais passou a ser controlada
pela Dinastia de Saxe-Coburgo-Gota, precursora da atual Dinastia
Windsor e herdeira de uma linhagem de usurpadores germânicos do
trono inglês. Submetida atualmente a políticas esquerdistas, atentou
contra a segurança britânica trazendo imigrantes ilegais e terroristas
ao solo do Reino. Agiu, segundo Nigel Farage, como taxi marítimo do
tráfico humano, ajudando a promover um caos social do qual o Estado
se aproveita para solapar a liberdade e a privacidade de todos.

Outro exemplo é o salário mínimo, uma medida populista que causa


desemprego, principalmente entre jovens pobres com menos
instrução. Surgiu da cabeça dos mesmos democratas elitistas que
implementaram leis de segregação racial e com o mesmo objetivo.
Walter Block relaciona o aumento do salário mínimo real entre 1948 e
1979 com o aumento do desemprego entre jovens negros de 10,2%
para assustadores 33,5%. Em vez de abolir estas odiosas regulações
que tolhem oportunidades aos menos instruídos, o Estado responde
com mais intromissões no mercado na forma de políticas afirmativas
(como cotas), que são ainda mais racistas e geradoras de dependência
que as legislações trabalhistas. Todas estas medidas demagógicas
constituem a falsa caridade estatal, prejudicando principalmente
aqueles a quem supostamente beneficia.

Um dos marcos do populismo trabalhista foi a Carta del Lavoro,


promulgada em 1927 pelo ditador fascista Benito Mussolini, e que
substituiu a relação voluntária entre empregadores e empregados pelo
microgerenciamento estatal. Seu autor, como esquerdista que era,
tinha Karl Marx como seu guru, qualificando-o como “magnífico
filósofo da violência da classe trabalhadora”. Vemos que a luta de
classes é uma artificialidade e não, como os marxistas pregam, o
motor da história. É preciso estar muito louco no hegelianismo
(filosofia de Hegel, cuja dialética pressupõe que a plenificação de algo
requer seu oposto) para achar que o edifício civilizatório pode ter
como fundamento a desarmonia.
Apesar de tudo o que foi demonstrado, até mesmo alguns cristãos
insistem em defender o paternalismo estatal sob outros nomes,

como se Cristo tivesse mandando o jovem


rico dar aos pobres os bens alheios ao invés
dos próprios.
Autores como Hilaire Belloc e Chesterton, brilhantes em
determinados campos mas totalmente ignorantes da ciência
econômica, propuseram o chamado distributismo, que consiste em
garantir que todos tenham propriedades capazes de prover
subsistência com o intuito de evitar a escravidão salarial e a
concentração de capital nas mãos do Estado ou de uma elite
capitalista. O resultado seria a ausência de preços de mercado para os
fatores distribuídos, como terra e gado, resultando em escassez e na
inviabilidade dos latifúndios, cuja importância socioeconômica foi
ressaltada pelo Papa Pio XII. Além disso, os distributistas esquecem
que o livre mercado industrial permite que a mera força de trabalho
seja empregada como capital lucrativo, tornando o cidadão menos
dependente de um capital inicial.

No anarcocapitalismo, os investimentos a longo prazo em recursos


humanos criariam oportunidades inéditas às massas hoje
depauperadas e a assistência voluntária aos poucos desvalidos seria
abundante. A liberdade econômica, porém, é a condição para que a
esmola seja acompanhada das virtudes da prudência e da caridade.

COMO O ESTADO SE ALIMENTA DA DESTRUIÇÃO DA


MOEDA
Me sinto na obrigação de explicar este assunto mais detalhadamente,
já que ele está na

raiz de todo estatismo.


Está arraigada no senso comum a teoria chartalista da origem do
dinheiro, desenvolvida por Georg Knapp, um economista da escola
histórica alemã, famosa por negar que existam teoremas econômicos
de validade universal. Segundo o chartalismo, o dinheiro surge por
decreto estatal e dele deriva seu valor. Por isso uma das objeções ao
anarcocapitalismo é “Como poderia haver moeda sem o Estado para
cunhá-la e garantir seu valor?”.

Todavia, a moeda surge espontaneamente no mercado, conforme


exposto pelo Teorema da Regressão de Mises, de validade universal.
Uma economia de trocas diretas limitaria tanto o comércio que a
civilização não poderia avançar. Surge então a troca indireta mediada
por bens valorizados por seu uso não-monetário, mas com certos
atributos que facilitam que eles sejam empregados como meio de
troca e reserva de valor.

A expectativa de que estes bens terão liquidez e o aumento da


demanda por eles como meio de troca alimentam-se mutuamente, até
que eles se difundam o suficiente para serem chamados dinheiro. Dos
blocos de sal no Império Etíope ao tabaco na Virgínia colonial, muitas
foram as commodities que serviram como dinheiro, mas foram o ouro
e a prata que se destacaram por atributos como escassez, durabilidade
e fungibilidade (uma unidade específica é indistinguível de outra).

O problema da portabilidade das moedas metálicas foi facilmente


resolvido com a emissão de títulos que davam ao portador o direito de
resgatar a quantidade depositada. Um sistema assim, chamado feipiao
(dinheiro voador), foi desenvolvido por mercadores chineses do
século VIII, sob a dinastia Tang, para facilitar o comércio de longa
distância, que havia sido prejudicado por intervenções fiscais do
governo. Foram, porém, os cavaleiros da Ordem dos Pobres
Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão, mais conhecidos como
Templários, que desenvolveram um sistema bancário internacional,
permitindo aos peregrinos e cruzados depositar dinheiro metálico na
Europa e resgatar na Terra Santa.

Tragicamente, sempre que o mercado produz riqueza, o Estado não


apenas a rouba como também apregoa que ela não poderia ser
produzida sem sua interferência. O Rei Filipe IV executou os mestres
templários para se apoderar da riqueza em seus bancos mas, como
disse o dramaturgo socialista Bertolt Brecht,

assaltar banco é para amadores —


profissionais os controlam.
A observação anarcocapitalista é que bancos não são intrinsecamente
criminosos a não ser que gozem de regalias concedidas pelo Estado
para praticar fraude impunemente. Isto só pode ocorrer quando este
detém o controle monopolista da moeda, que é um tipo de jura regalia
(termo jurídico para designar direitos exclusivos de um rei). O
filósofo do absolutismo Jean Bodin, que viveu no século XVI,
afirmava que o monopólio estatal sobre a cunhagem de moedas era
essencial para sua soberania e, de fato, é isto que financia o
monopólio político.

Em Desestatização do dinheiro, contudo, Hayek nos lembra que o


monopólio monetário é a raiz de todos os males que acometem nosso
dinheiro. O economista observa que num ambiente de livre
concorrência entre moedas, as pessoas seriam criteriosas em
selecioná-las segundo sua capacidade de fornecer uma base de cálculo
econômico, reservar valor para pagamentos futuros e oferecer liquidez
para o consumo imediato. O monopólio estatal, por outro lado,
protegido da disciplina de mercado, permite aos governantes solapar o
valor da moeda e até eliminar seu lastro em commodity para se
financiar. Trata-se da moeda fiduciária, ou lastreada em honestidade
de político, para usar um termo do ativista Peter Turguniev
(pseudônimo de Ricardo Albuquerque Pinto). Como ela perde
rapidamente a confiabilidade, os governos costumam recorrer às leis
de curso forçado da moeda estatal, como aquela que vigora no Brasil
desde 1933, decretada durante o Governo Provisório do ditador
Getúlio Vargas. Na ocasião, a Cláusula Ouro, que permitia o
pagamento em qualquer moeda estipulada contratualmente, foi
revogada, forçando o povo a aceitar o papel-moeda estatal.
Ao longo da história, inúmeros são os exemplos que comprovam a
observação de Benjamim Tucker de que monopólios monetários
sempre são usados para roubar pessoas comuns. O Império Romano
atingiu o auge de sua expansão sob Trajano, em 117 d.C. Quando os
espólios de guerra cessaram, os imperadores passaram adulterar a
moeda a um ritmo inaudito, tomando para si o conteúdo metálico
precioso enquanto decretavam que a moeda de menor qualidade
continuaria tendo o mesmo valor de face. Desta forma, o denário, cujo
teor de prata era de 85% sob Trajano, passou a 60% sob Sétimo
Severo no início do século III. Durante a Crise Imperial de 235 a 284,
a desvalorização foi tanta que Aureliano mudou a base metálica do
denário para o bronze enquanto financiava suas campanhas militares.

A partir da crise do século XVI, com a centralização dos Estados


Nacionais em detrimento do feudalismo, difundiu-se a prática da
senhoriagem, que consiste em recolher a moeda para que o rei
imprimisse nela seu selo, cobrando para tanto um imposto
inflacionário através do mesmo processo de adulteração.

Trata-se de um “pró-labore” do ladrão,


uma licença remunerada para falsificar moeda. Desta forma, o livre
tournois francês que era definido como 98 gramas de prata em 1200
d.C. passou a representar 11 gramas em 1600 d.C.

A situação se agrava quando o sistema bancário obtém o privilégio


de violar a Lei Natural através da apropriação indébita dos ativos dos
correntistas. Há basicamente dois tipos de bancos, os de investimento
e os de depósito. O primeiro toma empréstimos de poupadores para
fornecer crédito aos empreendedores a uma taxa de juros maior, cuja
diferença em relação à taxa de rendimento da poupança define o
spread bancário, que é o justo lucro obtido pelo justo trabalho de
coordenar o fluxo de poupança e o fluxo de investimentos observando
a devida disciplina creditícia. Já os bancos de depósito são aqueles
nos quais os correntistas guardam seu dinheiro em contas-corrente,
presumindo o direito de retirar quando desejarem. O correntista aceita
abdicar do rendimento maior das contas-poupança em troca do pronto
resgate.

Se um banco de depósito cria mais notas bancárias (recibos de


armazenagem) do que ele realmente possui de ativos reais, ele está se
apropriando indevidamente do dinheiro do correntista para emprestá-
lo a juros. Haverá títulos de propriedade diferentes para o mesmo bem
e o banco passará a operar em insolvência devido à prática da reserva
fracionária, que consiste em manter em caixa apenas uma fração das
notas emitidas. A incapacidade de honrar, em um dado tempo, todos
os contratos devidos aos correntistas, configura fraude e seria passível
de punição no anarcocapitalismo. Hayek argumenta que em um
sistema de livre concorrência entre bancos isto não seria um problema
já que o mercado imporia disciplina ao sistema bancário. Se um banco
comercial emitir muito mais notas do que tem em reserva, elas
poderiam ser depositadas pelo público em um banco concorrente que
poderia exigir prontamente o resgate, quebrando o primeiro. Embora
seja verdade que um sistema bancário livre-concorrencial, e portanto
mais pulverizado, seria mais disciplinado, isto não impede que a
estrutura do capital seja afetada pela expansão da oferta monetária
sem lastro em riqueza real.

A ideia de que a oferta monetária sem lastro pode afetar a alocação


correta do capital remonta a Juan de Mariana, teólogo da Escola de
Salamanca, que constatou, ainda no século XVI, a função da moeda
como parâmetro de medida do cálculo econômico. À mesma escola
devemos as contribuições do teólogo Martín de Azpilcueta, que
relacionou a expansão monetária ao aumento de preços.

Se há mais dinheiro circulando para a


mesma quantidade de bens, cada unidade
de dinheiro será trocada por menos bens.
Mais tarde, no século XVII, o economista da escola fisiocrata
Richard Cantillon estabeleceu uma relação entre a carestia de origem
inflacionária e a distorção econômica. Segundo seu princípio da
uniformidade dos lucros, mudanças nos preços de mercado alteram as
margens de lucro e levam à realocação do capital para as cadeias
produtivas recém-valorizadas. O problema é que a inflação altera esta
estrutura artificialmente, conduzindo as decisões dos empresários
através de preços relativos ilusórios. Cantillon constatou a não-
neutralidade da moeda, ou seja, o ponto onde ocorre injeção de
liquidez na economia altera os resultados. Se a Casa da Moeda
imprimir mais dinheiro, os primeiros que o receberem (geralmente
governos, corporações e banqueiros) terão acréscimo do seu poder
aquisitivo e consumirão mais bens, restando menos para aqueles que o
receberem por último (geralmente aposentados, assalariados e
pequenos produtores). Esta heterogeneidade da carestia gerada pela
inflação, que enriquece os grandes e os pródigos enquanto empobrece
os pequenos e os poupadores, é chamada Efeito Cantillon.

Ora, se existir a possibilidade jurídica de os bancos enriquecerem


expandindo o crédito com dinheiro criado do nada, é previsível que o
governo aproveitar-se-á para financiar seus próprios gastos. É assim
que surge o nefando conluio entre o Estado e sistema bancário,
freqüentemente estreitado pelas guerras estatais.

O Banco de Amsterdã, fundado em 1609 e considerado precursor dos


bancos centrais, começou operando com 100% de reserva, mas
quando obteve o monopólio legal sobre o comércio de ouro e prata em
1684, afrouxou a regra mantendo a liquidez mediante a exigência de
grandes colaterais dos tomadores de empréstimo. A disciplina,
contudo, cessou completamente por ocasião da Quarta Guerra Anglo-
Holandesa (1780-1784), levando ao calote da Companhia das Índias
Orientais e à falência do banco, que foi assumido pela cidade de
Amsterdã com resultados desastrosos.

Durante a Guerra de 1812 contra o Reino Unido, os EUA


financiaram os esforços militares tomando empréstimos de bancos
que emitiam notas de papel sem lastro, disparando uma crise
inflacionária que levou os bancos mais austeros a exigir restituição
das notas. A resposta governamental foi a suspensão da restituição em
espécie (algo muito semelhante ao confisco da poupança que os
brasileiros sofreram em 1990 num plano engendrado pela ministra da
economia Zélia Cardoso de Mello), acarretando crises sucessivas ao
longo de toda a primeira metade do século XIX.

Mais um passo rumo ao centralismo bancário foi dado em 1864,


durante a Guerra da Secessão, quando o governo da União, através do
National Bank Act, permitiu que os bancos emitissem notas lastreadas
em títulos do Tesouro Nacional. Trata-se de um esquema de pirâmide,
já que os bancos financiam o governo com moedas garantidas por
passivos deste mesmo governo.

O Federal Reserve (Banco Central dos EUA) foi fundado em 1913.


No ano seguinte eclodiu a Primeira Guerra Mundial, quando muitos
países abandonaram o padrão-ouro e adotaram o papel-moeda. A
década de 1920 foi marcada pelo predomínio de um sistema chamado
padrão-ouro-lingote, no qual a restituição em ouro era realizada
somente pelos bancos centrais e limitada a operações financeiras de
larga escala, uma regulação pesadamente inflacionária.

De qualquer forma, a mera existência de


um banco central remove os mecanismos
disciplinadores do mercado que obrigam os
bancos à saudável austeridade.
Além de servir de emprestador e socorrista de última instância, ele
coordena a expansão de crédito praticada pelos bancos comerciais.
Estes devem possuir em reserva uma certa porcentagem, estipulada
por decreto, daquilo que emprestam. É o chamado depósito
compulsório e é depositado junto ao Banco Central, que pode valer-se
dele para socorrer bancos insolventes.

O pior, contudo, ocorre cotidianamente através das operações de


open market, nas quais o Banco Central compra títulos da dívida
pública em posse dos bancos comerciais para aumentar a oferta
monetária acrescentando dígitos à reserva do banco vendedor, sobre a
qual este pode “piramidar” novos fluxos de crédito. Isto lhes permite
baixar a taxa de juros no mercado interbancário (que no Brasil é a taxa
SELIC). Como resultado destes juros subsidiados pelo pagador de
imposto e pelas gerações futuras, os bancos conseguem evitar a perda
de reservas para os concorrentes emprestando sempre a juros maiores
do que tomam emprestado de outros bancos, acarretando assim uma
alavancagem simultânea de todo o sistema bancário.

Esta é a causa das grandes crises cíclicas que alternam bolhas e


recessões. Elas são causadas por políticas monetárias, ao contrário do
que foi apregoado por intelectuais orgânicos como Nikolai
Kondratiev, economista soviético pago pelo Kremlin para tentar
provar que ondas de boom (prosperidade) e bust (declínio) seriam
inerentes ao livre mercado. A Teoria Austríaca dos Ciclos
Econômicos (TACE) oferece a explicação de como as bolhas
econômicas se formam e estouram e por isso seus adeptos previram
corretamente eventos como a Grande Depressão de 1929 e a Crise do
Subprime em 2007/2008.

Como vimos, há uma estreita relação entre política monetária e juros,


de forma tal que

o controle estatal da moeda permite aos


burocratas controlar a taxa de juros.
Mas este é um preço e todo controle de preço deturpa as informações
das quais os agentes econômicos dependem para alocar recursos
racionalmente. Como agravante, a taxa de juros é o preço mais crítico
da economia, pois é o preço do tempo. Dentre seus inúmeros
componentes, o mais importante é a preferência temporal, que
representa a razão entre o valor atribuído a um bem no presente e o
valor atribuído a este mesmo bem no futuro.

Outro componente é a disponibilidade de capital poupado. Quando a


sociedade dele carece, os juros sobem incentivando a poupança até
que mais capital se torne disponível viabilizando novos investimentos,
o que se reflete na queda natural dos juros. Ora, se a política
monetária inflacionista permite o subsídio ao crédito em detrimento
do poder aquisitivo do dinheiro poupado, haverá consumo de capital.
A liquidez excessiva será injetada na economia nas etapas da cadeia
produtiva mais distantes do consumo.

Eugen von Böhm-Bawerk demonstra que à medida que uma


economia se desenvolve, ela acrescenta etapas ao processo de
produção, que se dão no tempo, e que ele denomina produção indireta.
Se antes se produzia manualmente um arado manual para plantio, hoje
se produz o chip do robô que faz a peça usada na máquina de fazer
arados para plantio. É a queda na preferência temporal das pessoas
refletida na queda natural dos juros que viabiliza o investimento em
etapas mais indiretas do processo produtivo que resultarão em
aumento da prosperidade.

Mas quando o governo expande o crédito, há um aumento artificial


no roundaboutness (medida de quão indireto é o processo produtivo),
já que os empresários são induzidos pelos juros artificialmente baixos
a imaginar que há mais capital poupado na economia do que
realmente há e que a preferência temporal das pessoas é menor do que
realmente é. Esta ilusão os leva a investir excessivamente em bens de
capital em detrimento da satisfação das necessidades de consumo num
prazo mais curto, afinal, se dinheiro transmite informação, dinheiro
falso transmite informação falsa. Os juros baixos, assim, aumentam a
demanda por bens de capital de longo prazo de maturação em relação
aos bens de capital de curto prazo, que são necessários para repor
aquilo que as pessoas seguem consumindo. Num primeiro momento,
porém, a inflação não se traduz em carestia pois o dinheiro está sendo
artificialmente canalizado para grandes empreendimentos e o capital
de curto prazo consegue, por um tempo, repor os estoques de bens de
consumo, de forma que até mesmo o inflacionista John Maynard
Keynes admitia que “há muitos percalços entre o cálice e os lábios”.
A inflação monetária e os juros subsidiados, contudo, incentivam a
prodigalidade e o consumismo enquanto o investimento em capital
está sendo mal alocado, descoordenando as várias etapas da estrutura
produtiva. Os empresários superestimam a disponibilidade de
recursos, como o construtor imprudente criticado por Jesus Cristo em
Lucas 14, para eventualmente descobrirem que não haverá demanda
para seus empreendimentos. Começam então os calotes aos bancos,
cuja situação é agravada pelo endividamento das famílias que ocorre
quando a carestia de origem inflacionária começa a se manifestar
devido à falta de capital para repor os bens de consumo.

Neste momento há basicamente duas atitudes.

A correta é aquela adotada pelo presidente americano Warren


Harding durante a crise de 1921: não interferir, deixando os bancos e
grandes empresas quebrarem e os juros subirem. Assim sendo, os
maus investimentos serão liquidados e os bens de capital ficarão
disponcíavpeítiuslopara empreendedores diligentes. O derretimento
das ações nas bolsas, que estavam sobrevalorizadas,
concomitantemente ao aumento da atratividade dos ativos de renda
fixa, levam o público a poupar enquanto a austeridade monetária
deflaciona a moeda restaurando o poder de compra das pessoas.

Mas se o g3 overno interfere socorrendo


os bancos e injetando mais liquidez na
economia, como o fez Franklin Roosevelt
em 1929, os resultados são desastrosos.
A Grande Depressão que se seguiu ao crash da bolsa nesta ocasião
durou até 1945, quando o fim da Segunda Guerra Mundial fez cessar a
gastança bélica.

A partir de 1946, um novo sistema monetário internacional passou a


viger conforme os ditames dos acordos de Bretton Woods, nos quais o
dólar foi atrelado ao ouro e as moedas internacionais atreladas ao
dólar. Criaram-se ainda o Fundo Monetário Internacional e o Banco
Mundial para respaldar estes primórdios de um banco central de um
Estado mundial através do endividamento dos países do mundo, cujos
cidadãos já não podiam exigir resgate de notas em ouro mas servem
como colateral da dívida dos governos com estes banksters
globalistas. É o povo esmagado entre a tributação e a inflação, como
Lenin instruiu ser o modo de esmagar a classe média (por isso Klaus
Schwab, fundador do Fórum Econômico Mundial, tem uma estátua do
facínora em seu escritório).

Este esquema permitiu aos bancos centrais nacionais “piramidar”


descontroladamente a expansão monetária em cima das reservas de
dólares que o Federal Reserve “piramidava” em cima do ouro. Para
não perder suas reservas do metal, o governo de Richard Nixon
suspendeu unilateralmente a conversibilidade do dólar em ouro em
agosto de 1971, inaugurando uma ordem monetária mundial baseada
em papel moeda. Hoje o único lastro das moedas estatais é a
capacidade dos governos de coagir sua população a pagar impostos e
a se submeter a um sistema inflacionário no qual as notas perdem
qualquer relação com dinheiro real e se tornam nada mais que débito,
já que a carteira de ativos dos bancos centrais é majoritariamente
composta por títulos da dívida dos governos.

Em outras palavras, a moeda de papel é lastreada em chumbo, que o


cidadão recebe na cabeça caso se recuse a entregar sua propriedade ao
Estado. Eis a explicação econômica da constatação de Publílio Siro,
que foi escravo em Roma:

“A dívida é a escravidão dos libertos”.


O Estado Mundial passa por uma moeda de curso forçado mundial,
cujo protótipo é o Euro. Por isso o socialista Jacques Delors, defensor
da unificação política da Europa, foi um dos mais ferrenhos
proponentes desta unificação monetária.

As interferências monetárias do Estado não se resumem à inflação.


As regulações financeiras, por exemplo, cartelizam as agências de
avaliação de risco, protegendo-as de concorrência. Ao mesmo tempo
o governo apadrinha empresas de securitização, que é a conversão de
dívida dos credores em títulos de crédito que são negociados com
investidores para angariar fundos, prática comum no mercado
imobiliário, principalmente quando este está hipertrofiado por
políticas inflacionárias. Foi o caso das securitizadoras Fannie Mae e
Freddie Mac, das quais o governo era garantidor e a cujas práticas
indisciplinadas deve-se, em boa parte, a magnitude da Crise do
Subprime.

Estas empresas criaram pacotes de ativos que serviam de garantia de


pagamento aos investidores, compondo assim instrumentos de
securitização chamados CDO (Obrigação de Dívida Colateralizada,
em inglês). Por não haver disciplina de mercado, ativos péssimos mas
com excelente classificação de risco foram misturados aos pacotes e
vendidos, prolongando a bolha e, consequentemente, intensificando os
danos de seu estouro.

O controle estatal da moeda sempre foi


uma das mais poderosas ferramentas a
serviço da tirania.
A perene tendência inflacionista de qualquer Estado desvia o
dinheiro da produção de capital para a queima de capital, seja pelos
maus investimentos ou pelo incentivo ao endividamento e ao
consumismo, com terríveis consequências culturais e morais.
Hülsmann observa que disto resulta o surgimento de costumes
inflacionistas, já que a virtude da temperança é punida
financeiramente. A expectativa de ter o valor de seu trabalho corroído
pela inflação leva o indivíduo a tornar-se imediatista, aumentando
assim a preferência temporal de toda a sociedade que já não constrói
nem cultua nada que seja duradouro.

Isto vale para tradições, bons valores e laços sociais, que são
substituídos pela total dependência de instituições governamentais
cada vez mais centralizadoras e anti-subsidiárias, que são financiadas
pela inflação. Esta, por sua vez, é a causa econômica do que Zygmunt
Bauman chamou de modernidade líquida, uma sociedade onde a
angústia e a ansiedade levam as pessoas a viverem a esmo sem raízes.
E a causa da inflação é o Estado, que uma vez existindo vai
necessariamente se intrometer com o dinheiro.
APLICAÇÕES SETORIAIS DO
ANARCOCAPITALISMO

RUAS, ESTRADAS E TRANSPORTE AÉREO

A pergunta “Quem vai construir as estradas?” é uma dúvida tão


recorrente que virou meme nos fóruns de discussão sobre
anarcocapitalismo, sem que haja, contudo, um fundamento histórico
ou econômico para tamanho ceticismo na capacidade do livre
mercado prover vias de acesso. Na Roma Antiga, as estradas
construídas privadamente por indivíduos para atender suas
necessidades locais eram chamadas via privatae. Com frequência,
seus proprietários a concediam para atender aos interesses da
comunidade, o que, segundo o cientista político Alexis de
Tocqueville, é o interesse individual compreendido corretamente.

Se é da natureza das estradas potencializar a atividade econômica e


valorizar o terreno por onde passa, é lucrativo aos proprietários e
negociantes locais financiar e explorar sua construção. George
Washington observou como era complexo o sistema de estradas por
servir e interligar os campos de cada família. Isto significa que, ao
contrário do que apregoam os planejadores centrais,

não são as estradas estatais que incentivam


a economia local, mas a economia local que
incentiva a construção de estradas.
Um investidor privado pode construir uma estrada para lucrar com a
especulação dos terrenos, mas somente se enxergar ali um potencial
econômico prévio. Rotas comerciais precedem as estradas que as
servem.
Exemplos não faltam, mas o grande fato histórico é que o modo de
produção burocrático de logradouros, pontes e auto-estradas não
acompanha a plasticidade sociológica das cidades nem a capacidade
de produção de meios de transporte pela iniciativa privada, resultando
invariavelmente em congestionamentos, desperdícios e acidentes nas
grandes cidades do mundo. O subsídio não é uma solução plausível.
Quando Theodore Roosevelt, em 1903, resolveu subsidiar a
construção de estradas no deserto, alocou irracionalmente
comunidades inteiras onde o custo da irrigação era proibitivo,
levando-as à falência.

O mercado, porém, pode prover vias de acesso de diversas formas


éticas e eficientes, sendo o pedágio apenas uma delas. Os críticos do
anarcocapitalismo imaginam pedágios a cada poucos metros, o que
tornaria as viagens impraticáveis, mas não há motivos para crer que
soluções privadas tenderiam a arranjos ineficientes. O mais provável é
que proprietários e administradores de vias privadas alugassem o
espaço às suas margens para prestadores de serviços, como as lojas ao
longo dos corredores de um shopping center. Aquelas com traçado
mais racional, melhor manutenção e maior facilidade de trafegar
atrairiam mais motoristas e poderiam cobrar aluguéis maiores de lojas,
postos de combustíveis e hotéis à beira da estrada.

Cidades empresariais certamente teriam o traçado de ruas e auto-


estradas como parte de seu projeto de negócios, o que já ocorre em
grandes condomínios. Em bairros pobres é comum que os moradores
se juntem para reparar buracos nas ruas e construir pequenas pontes,
quando a prefeitura não os impede. Não surpreende que este modo
colaborativo de produção de acessibilidade sempre gaste centenas de
vezes menos que o valor orçado pela burocracia estatal. Empresas
grandes interessadas em reduzir seus custos de frete certamente
investiriam em interligações rapidamente para ganhar vantagem
competitiva, não importando que não-pagantes de menor porte
também se beneficiassem. Ao longo da Idade Média, este papel foi
magistralmente exercido pelos mosteiros, que trataram as estradas
como obras de Deus a serviço dos peregrinos.
Empresas privadas de defesa também construiriam estradas, afinal,
como nos lembra Napoleão,

um exército marcha conforme seu


estômago.
Foi com finalidades logísticas militares que os romanos construíram a
Via Ápia, a rainha das estradas.

Quanto à manutenção das ruas, a solução empresarial já existe. São


os chamados PRMAs (Private Road Maintenance Agreements, ou
acordos de manutenção de vias privadas), que geralmente são exigidos
por companhias hipotecárias para que um imóvel possa ser
hipotecado, criando assim um incentivo para que associações de
moradores distribuam, mediante contrato, as responsabilidades de
manutenção das ruas locais.

Ruas privadas resolveriam boa parte dos problemas que os


monopólios estatais negligenciam ou até provocam. Moradores e
administradoras teriam interesse imediato em mantê-las limpas,
aprazíveis e seguras; coletando lixo, contratando vigias, instalando
banheiros e postes de luz, cuidando da paisagem e até provendo
internet sem fio. Walter Block nota ainda que se uma rua privada
permitisse a circulação de carros poluentes, seria viável que os
moradores afetados acionassem judicialmente seus responsáveis,
reduzindo problemas ambientais. A indústria da multa, que tanto
alimenta a sede insaciável dos burocratas em detrimento da liberdade
e das garantias jurídicas do cidadão comum, não teria como se
sustentar.

As leis de trânsito nas ruas privadas emergiriam das melhores


práticas em ciências atuariais e não de arbitrariedades. Semáforos,
lombadas e limites de velocidade representam uma distopia onde
planejadores governam os movimentos humanos por mecanismos de
punição e recompensa, tal como na utopia Walden Two do psicólogo
esquerdista B.F. Skinner, pai do behaviorismo radical, teoria segundo
a qual a conduta individual é animalesca e deve ser governada por
uma elite de engenheiros sociais. Os famosos cruzamentos das
metrópoles indianas, de aparência caótica, mas fluidos e sem
acidentes, exemplificam como o ser humano adapta continuamente
sua conduta em relação aos demais de forma a otimizar
sistemicamente o trânsito. Aquele que, contudo, dirigisse de forma
imprudente, seriamuito mais severamente punido que hoje, pois seu
ato seria tido corretamente como crime contra a vida humana e não
como contravenção de trânsito.

Governos costumam construir grandes obras viárias através de


desapropriações, algo que não ocorreria em uma sociedade
anarcocapitalista, mas também não seria necessário. Terrenos em
áreas de difícil acessibilidade sofreriam desvalorização enquanto as
taxas de retorno dos investimentos viários cresceriam conforme a
demanda, de forma tal que proprietários obteriam grandes lucros ao
vender terras para a passagem de ruas que de outra forma seriam
pouco vendáveis.

Uma última objeção às ruas privadas seria a possibilidade de


violação do justo direito de passagem de membros da comunidade
local e seus convidados. Seria mais lógico usar este argumento pra
questionar a existência do Estado, que pode bloquear ruas e restringir
o deslocamento de cidadãos ao seu bel-prazer, como ocorreu durante a
ditadura sanitária de 2020 ou no episódio que envolveu um
empresário inglês chamado Mike Watts em 2014.

Cansado de esperar o governo concluir a desobstrução de uma


estrada, ele construiu um desvio pedagiado com capital próprio,
melhor e com tarifas mais baratas que os equivalentes estatais. Os
donos de negócios beneficiados chegavam a cobrir o pedágio de seus
clientes, mas infelizmente os políticos decidiram interditar o
empreendimento. Interessantemente o termo inglês para rodovia é
highway, e sua conotação, que remonta ao período normando na
Inglaterra, é de passagem irrestrita dos membros da comunidade e de
viajantes. O jusfilósofo Frank Van’Dun propõe ainda que nenhuma
propriedade privada de via de acesso seria legítima se violasse as
prerrogativas prévias de livre circulação dos habitantes locais. Por
outro lado, a possibilidade de fechar as ruas privadamente contra
forasteiros aumentaria consideravelmente a segurança das localidades.

Demonstrada a superioridade anarcocapitalista na produção de vias,


deve-se notar que rotas aéreas também são vias, delimitadas segundo
regras de utilização do espaço aéreo.

A propriedade privada é, como critério para uma regra geral,


suficiente e necessária para que o mercado desenvolva normas e
procedimentos técnicos que viabilizem transportes aéreos seguros,
telecomunicações funcionais e outros bens que dependam de
padronizações. Dois conceitos são necessários para compreender os
mecanismos que originam as regulações privadas.

O primeiro é a

unidade tecnológica,
definida por Rothbard como a quantidade mínima de um recurso que
viabilize sua utilização, incluindo a inviolabilidade dos recursos
acessórios necessários para tanto. Uma empresa de radiodifusão, por
exemplo, ao apropriar-se de uma faixa do espectro eletromagnético
em um dado território, requererá a inviolabilidade das faixas de
frequência adjacentes para que não haja interferência. A aplicação
deste conceito ao espaço aéreo fornecerá parâmetros ao mercado
sobre a quantidade de espaço que os aviões requerem para operar sem
que imponham ou sofram riscos ou perturbações inaceitáveis.

O segundo é o conceito de

ordem espontânea,
cunhado pelo polímata Michael Polanyi, para o qual, uma vez que nos
atenhamos a princípios absolutos como justiça e verdade, um livre
mercado permitirá a coordenação do conhecimento tácito (informal)
disperso entre seus participantes no sentido de produzir um grau de
ordem superior a qualquer arranjo central.

Acreditar que normas de aviação devam ser impostas por uma


autoridade estatal é o que Hayek chamaria de arrogância fatal. No
livro de mesmo nome ele acusa os defensores desta posição
(racionalistas construtivistas) de atribuírem poderes cognitivos irreais
ao planejador central, como se eles pudessem conhecer o processo em
toda sua complexidade. A descentralização decisória é necessária para
abarcar as informações relevantes e a história comprova esta tese.

No início da década de 1930, o aviador Elrey Jeppesen começou a


anotar detalhes das rotas aéreas que ele percorria, chegando a subir em
montanhas pra calcular cotas topográficas, e logo passou a vender
estas anotações. Ele também desenvolveu procedimentos de pouso e
arremetida. Seu sucesso foi tal que em 1934 fundou a Jeppesen & Co,
empresa que até hoje domina o setor de cartas aéreas. Companhias
aéreas do mundo inteiro adotam espontaneamente seus produtos,
permitindo uma saudável padronização da aviação internacional
apesar das agências de aviação governamentais de cada país
produzirem cartas com padrões diferentes.

A desestatização do setor aéreo não é


apenas uma questão de baratear viagens e
produzir aeroportos belos, aprazíveis e
rentáveis, mas também de segurança.
O Estado impõe uma combinação de regulações autocráticas,
impedindo o lucro de empresas inovadoras, e subsídios e pacotes de
socorro, que blindam empresas negligentes contra a devida punição.
No anarcocapitalismo, as seguradoras seriam fulcrais para o setor de
segurança dos transportes, de forma análoga ao de defesa militar. Por
competição, elas concatenariam as práticas de fabricantes de
aeronaves, empresas de controle de vôo, escolas de formação de
pilotos etc., para otimizar segurança e eficiência. A autoridade de suas
determinações adviria das vantagens contratuais por elas propiciadas.
Cabe ao leitor abstrair os princípios aqui abordados relativamente ao
setor aéreo e aplicá-los por analogia a outros campos da atividade
humana, como a construção civil e as normas industriais, para
compreender a ordem anarcocapitalista

URBANISMO
Até mesmo alguns ferrenhos opositores do estatismo no nível das
nações defendem monopólios governamentais na administração das
cidades. A necessidade de planejamento urbano estatal é uma falácia
que se torna mais arraigada quanto mais perdemos de vista a origem
espontânea das cidades na história.

O historiador Henri Pirenne descreve como as cidades medievais


despontaram ao longo das rotas comerciais exatamente onde elas
sofriam menos interferência senhorial. Segundo Mises,

a tendência da ação humana no mercado


é a cooperação cada vez maior através do
aprofundamento da divisão de trabalho
que inclui a especialização geográfica.
A cidade assim emerge, distinta e complementar ao campo, como
uma localidade especializada em mediar trocas indiretas, promovendo
a harmonia entre regiões distantes pelo comércio e pelo intercâmbio
cultural e intelectual que nela florescem.

A complexidade dos arranjos espaciais urbanos resulta também,


como constata Hoppe, em uma intrincada profusão de instituições,
jurisdições e modelos de governança que impossibilita o planejamento
central mais do que em qualquer outro ambiente. É natural que as
pessoas procurem evitar que a volubilidade das preferências alheias
afete suas vidas e por isso, no anarcocapitalismo, a administração das
governanças urbanas dificilmente seria democrática, para desespero
de Roussau (embora até mesmo ele, um revolucionário, admitisse que
democracias são inviáveis para além do nível de cidades-estado).
Condomínios monárquicos de livre adesão conquistariam mais
contratos de vassalagem quanto mais simples, racionais e perenes
fossem as regras que oferecessem. Em contrapartida, o vassalo se
comprometeria, por exemplo, a observar padrões arquitetônicos
tradicionais em sua propriedade e a contribuir com gastos
emergenciais, reduzindo ainda mais as incertezas.

Se a governança é um bem econômico, ela será demandada


naturalmente e ofertada adequadamente se houver concorrência,
inclusive com bens substitutos como a assinatura de serviços de
utilidade urbana ou associações de moradores. Um mesmo domicílio
poderia ser vassalo de um marquesado para fins de segurança, assinar
os serviços de uma empresa para coleta de lixo, contribuir para a
manutenção da rede elétrica em um clube de moradores e dispor de
um parque como bem comunal de um clã familiar.

As propriedades comunais pertencentes a clãs, e que portanto não


são individuais nem públicas, sempre foram uma excelente solução
para proteger os membros contra arbitrariedades externas, garantindo-
lhes o acesso às áreas comuns enquanto lhes permite excluir
forasteiros. O Estado elimina as fronteiras naturais obrigando
cidadãos à convivência forçada uns com os outros, de forma que os
custos de manutenção dos bens comunais são socializados. Basta
notar como as praias públicas são sujas e isentas de infra-estrutura
mínima, como banheiro, em contraste com praias privadas de resorts,
que hoje são um luxo dos muito ricos. No anarcocapitalismo, muitas
praias seriam provavelmente propriedade comunal dos moradores
locais administradas por empresas que cobrariam aluguéis de
permissionários que ofereceriam múltiplas comodidades, como num
shopping.

A cidade pode se configurar, parafraseando o urbanista Alain


Bertaud, como a manifestação espacial das preferências dos
indivíduos, estas fundamentadas em conhecimento local e ordenadas e
transmitidas pelos preços de mercado. Mas também podem brotar de
normas arbitrárias oriundas dos devaneios megalomaníacos de
planejadores como o modernista Le Corbusier que, em seu elitismo
arrogante, pregava o redesenho racionalista das cidades em nome de
uma utopia igualitária e democrática construída por uma elite de
arquitetos sociais. Sua doutrina consistia em manipular as interações
humanas através do design de bairros artificiais e foi aplicada nos
EUA com a desculpa populista do Housing Act de 1949, um
programa federal de habitação popular. Os resultados foram um
verdadeiro desastre humanitário e racista, segregando negros em
bairros disfuncionais isolados dos espaços naturais de subsidiariedade
social e integração econômica.

Para a urbanista Jane Jacobs, cidades planejadas centralmente


retiram do indivíduo a responsabilidade pelo espaço em que habita.
Suas interações naturais são substituídas por um controle cada vez
maior que a materialidade da cidade planejada exerce sobre seus
movimentos, transformando o ambiente urbano naquilo que o filósofo
pós-marxista Gilles Deleuze chamava sociedade de controle, na qual o
indivíduo é modulado por uma malha social capaz de alterar até
mesmo seus desejos. A leitura errônea de Deleuze o leva a pôr a culpa
nas instituições de direita como a família, a propriedade privada e os
valores tradicionais. Mas estas virtudes civilizatórias emergem
naturalmente no campo e fazem surgir a cidade como o coroamento
delas.

O problema começa quando um poder


centralizador corrompe a harmonia entre
cidade e campo interferindo no uso da terra,
sendo o planejamento urbano governamental
a mais invasiva intromissão possível neste
setor.
A historiadora Régine Pernoud relata como os pólos culturais se
concentraram em centros urbanos à medida que os Estados-nação
suplantaram as autoridades feudais. O êxodo rural em busca de
oportunidades de trabalho fez então subir os preços dos terrenos
urbanos e baixar os salários, até que a economia das cidades passasse
a girar em torno de grandes empresas. O resultado foi, como denuncia
o filósofo Mário Ferreira dos Santos, que as metrópoles se tornaram
centros de morte da cultura, já que o indivíduo não tem mais controle
sobre o ambiente que o cerca. Pense em como o cidadão de uma
metrópole cosmopolita tem sua vida modulada pelas grandes marcas
nos shoppings, pelas redes de fast food, pelas escolas, bancos e
corporações que o empregam e por um governo que planeja onde ele
habita e como ele se desloca. As regulações urbanas contribuem
particularmente para este quadro. O zoneamento, por exemplo, força
as pessoas a viver longe do trabalho, tornando-as mais dependentes do
transporte coletivo e criando espalhamentos suburbanos artificiais que
impedem que as cidades se repliquem segundo uma escala humana.
Os impostos contra a propriedade de terreno, como o IPTU, punem a
especulação imobiliária, necessária para disponibilizar terrenos para
projetos de longo prazo com grande acréscimo de valor. O resultado é
a desvalorização econômica de bairros inteiros no longo prazo, mas
com aumento de aluguéis no curto.

O mais trágico disto é que as pessoas são desencorajadas de casar e


ter famílias numerosas. Regulações como recuo obrigatório reduzem a
oferta de terreno para a construção e destroem o pequeno comércio
que dependia de uma calçada viva próxima aos pedestres, fazendo
restar grandes e impessoais prédios corporativos com grandes pátios
inúteis. Ao mesmo tempo, empreendimentos residenciais que
poderiam oferecer grandes recuos para atrair moradores tornam-se
financeiramente proibitivos devido à menor oferta de terreno.

Há ainda situações em que governos


planejam cidades com o direto e principal
propósito de esmagar o indivíduo, como é o
caso de Brasília.
Foi o impopular Marquês de Pombal quem, em 1751, primeiro
sugeriu a transferência da capital, Salvador à época, para o interior.
Sua motivação era proteger o governo contra revoltas populares, a
mesma que levou os criminosos que proclamaram a República a
prever a interiorização da capital na Constituição Brasileira de 1891.
Mas foi em 1957, sob Juscelino Kubitschek, que os urbanistas
comunistas Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, projetando Brasília,
aplicaram a doutrina de construções governamentais faraônicas para
reduzir o indivíduo à mesma insignificância com a qual os operários
foram tratados por estes humanistas. Os candangos, como eram
chamados, trabalhavam em péssimas condições. Em 1959 alguns se
revoltaram e foram fuzilados por jagunços que compunham a Guarda
Especial de Brasília (GEB), no que ficou conhecido como Massacre
da Construtora Pacheco Fernandes. Quando, a partir de 1853,
Georges-Eugène Haussmann, sob Napoleão III, começou a demolir os
bairros medievais em Paris para criar quarteirões retos e espaçados,
sua desculpa era sanitária mas o objetivo era facilitar o controle e a
repressão da população.

O plano de Haussmann baseou-se em suas concepções igualitárias


mas acabou segregando os pobres em bairros afastados dos centros de
atividade econômica. No anarcocapitalismo, as cidades seriam, em
algum grau, como aquelas descritas por Fustel de Coulanges em
Cidade antiga: com suas hierarquias e desigualdades refletindo a
sociedade humana, mas com um pujante mercado livre integrando
suas partes de forma simbiótica. Haveria casas de rico e casas de
pobre, mas não tanto bairros de rico e bairros de pobre.

Alguns críticos do urbanismo de livre mercado temem a


gentrificação, processo através do qual os moradores mais pobres se
mudam de um bairro em valorização. Mas isto implica oportunidades
de trabalho com melhores salários transbordando riqueza para os
bairros mais periféricos. No anarcocapitalismo, a demanda das
pessoas por cidades em escala humana, que inclui o escopo local das
governanças para reduzir os riscos morais de grandes jurisdições, se
refletiria em uma miríade heterogênea de vizinhanças.
O crítico cultural Theodore Dalrymple (pseudônimo de Anthony
Daniels), observa que a produção cultural de Florença na Idade Média
Tardia era superior à de todo o mundo ocidental atual apesar de ser
7.000 vezes menor em população. Um dos motivos é o fato de ser
pequena e particular, diferente das megalópoles homogêneas de hoje.
Todas as grandes cidades do mundo parecem iguais, seja qual for o
país, começando pela arquitetura internacionalista.

Quando um povo perde seus estilos


arquitetônicos tradicionais, ele perde sua
identidade e a formação de seu imaginário é
prejudicada.
Chesterton bem disse que a boa arquitetura é o maior sistema
simbólico já construído, comunicando não apenas o legado de uma
cultura mas também princípios estéticos absolutos e perenes. Destruí-
la é uma forma de censura, quiçá de roubo. Alguns críticos do
anarcocapitalismo objetam que sem um Estado para tombar imóveis, a
arquitetura tradicional seria obliterada. Historicamente porém, vemos
que quanto mais Estado, mais feiúra. Os únicos prédios mais feios que
aqueles construídos sob os regimes comunistas e fascistas são aqueles
em estilos pós-modernos e paramétricos típicos das sociais-
democracias contemporâneas.

No romance A nascente, de Ayn Rand, o arquiteto Howard Roark diz


que trocaria o mais belo pôr do sol pela visão dos arranha-céus de
Nova Iorque. O livro é uma ode a um individualismo crasso que na
vida real só emerge quando o Estado destrói os laços do homem com
sua terra e sua comunidade, pervertendo os padrões estéticos e
subsidiando projetos heterodoxos impostos à força contra as
localidades.

É oposto aos valores de empreendedores católicos como Jakob


Fugger, o Rico, que construiu na Augsburgo do século XVI um lindo
complexo residencial para cidadãos necessitados chamado Fuggerei,
que operava à época como um enclave urbano independente. O
filósofo Roger Scruton mostra que o homem tem necessidade de
beleza. Certamente, quando livre, tomará as medidas institucionais
para produzi-la e protegê-la.

MEIO-AMBIENTE
Toda objeção ambiental a uma filosofia política deve ter os seres
humanos como único objeto de consideração moral, tal como nos
ensina Santo Tomás de Aquino, afinal animais e plantas não possuem
alma imortal capaz de contemplar o Criador. Além disso, pode-se
constatar racionalmente que a natureza humana, sendo comum a todos
os indivíduos, possibilita a harmonia dentro da espécie humana.
Porém se, por esta mesma natureza, dependemos da exploração de
outras espécies, esta harmonia será comprometida por qualquer
restrição que se imponha contra o direito de qualquer ser humano
explorar a natureza como melhor lhe convier desde que não agrida
seus semelhantes.

Leis ambientais sem fundamento na preservação dos direitos naturais


do homem deturpam a finalidade do direito de promover o bem
através da ordem social. Incapazes de elevar ecossistemas à
civilidade, o que elas fazem é reduzir a sociedade a uma selvageria
onde os mais aptos sobrepujarão os mais fracos. As leis, que segundo
Ovídio, servem para impedir a lei do mais forte, uma vez pervertidas
pelo ambientalismo ideológico, produzem o efeito contrário.

Suponha que haja, em uma galáxia tão distante que até mesmo a luz
emitida por ela seja inalcançável, um planeta com as mais belas
paisagens povoadas por um colorido caleidoscópio de flores e por
uma fauna de exuberância idílica. Eis que ele é atingido por raios
gama de uma supernova e se torna um deserto inóspito. Se as belezas
do planeta jamais poderiam ser contempladas pela mente racional, que
diferença faz sua destruição? Não seria o mais ínfimo incremento de
bem-estar de um humano moribundo mais valioso que todas as
florestas e arrecifes daquele longínquo corpo celeste?
O bem-estar humano é o fundamento de
toda consideração ambiental legítima.
A poluição pode nos afetar diretamente, seja ela química ou física
(sonora, luminosa). Entretanto, nas faculdades de economia, não se
ensina que a agressão de poluidores contra indivíduos inocentes é
errada, e sim que o direito do poluidor dependerá de quanto ele agrega
ao Produto Interno Bruto. Os economistas estatistas criam modelos
totalmente infundados para justificar que poluidores ricos e poderosos
possam violar impunemente a saúde e a propriedade privada do pobre.
O monopólio estatal dos serviços de justiça agrava o problema, pois
viabiliza economicamente o lobby das grandes corporações junto a
órgãos regulatórios enquanto as protege contra processos por
particulares.

Um exemplo é o chumbo tetraetila, antidetonante que foi adicionado


à gasolina ocidental por quase 70 anos. O inventor da gasolina com
chumbo, Thomas Midgley, sabia tanto da toxicidade do composto
quanto da segurança e eficiência de alternativas como o etanol. Este,
todavia, não poderia ser patenteado. Surgiu então, na década de 1920,
um conluio entre grandes conglomerados como a General Motors e a
Standard Oil para controlar todo o mercado de combustíveis através
da patente da gasolina com chumbo combinada ao lobby regulatório
que limitava a concorrência e aprovava o uso de algo tão danoso a
despeito dos alertas de médicos e cientistas. Ora, no
anarcocapitalismo não existiriam oligopólios protegidos por regulação
estatal e propriedade intelectual. A santidade da propriedade privada
individual, por outro lado, fundamentaria inúmeras ações judiciais
particulares contra governanças locais que permitissem o uso de um
combustível tóxico em suas jurisdições.

Seja através de privilégios corporativos ou violações de propriedade


privada, as intervenções estatais sempre concorrem para impossibilitar
o usufruto humano do planeta. Em O ambientalista libertário, Marco
Batalha lista inúmeros desastres ambientais ocorridos nos países do
Pacto de Varsóvia sob o comunismo, como a explosão da usina
nuclear de Chernobyl, na Ucrânia, e a contaminação dos rios
poloneses por fábricas estatais. Invariavelmente, na raiz das
catástrofes estava a censura contra aqueles que questionassem a
capacidade do politburo comunista de gerir a crise.

A seca do mar de Aral, causada pelos subsídios à agricultura


promovidos por Nikita Kruschev no final dos anos 1950s, é também
citada. Na raiz do problema está a tragédia dos comuns, que consiste
na exaustão dos recursos sem propriedade privada definida. Se os
agentes se beneficiam de sua exploração no curto prazo sem a
possibilidade de auferir retornos de longo prazo mediante título de
propriedade, cada um terá o máximo de incentivo para explorá-lo o
máximo possível e quase nenhum incentivo para preservá-lo,
resultando na sua total depleção. A privatização dos recursos naturais
é a única forma de racionalizar sua extração. Os recursos renováveis
tenderão a ser repostos enquanto os não renováveis serão sujeitos a
um sistema de preços que incentive a pesquisa por substitutos.

Esta lógica aplica-se também aos recursos hídricos, como mares,


rios, lagos e aquíferos. Ineficientes e monolíticas são as determinações
arbitrárias da legislação estatal e dos tratados internacionais sobre o
uso das águas, cujas jurisdições ilegítimas lhes conferem o controle
das águas in toto, que é o pior tipo de arranjo possível. Nele, uma
única organização domina todas as dimensões de um corpo aquático,
não havendo segurança para quem dele depende nem espaço para a
concorrência. Concessões a agentes privados costumam ser feitas
segundo arranjos ineficientes, como a doutrina ripária, que permite ao
proprietário de uma terra ribeirinha desviar o fluxo de um rio para si,
incentivando o sobreuso de seu fluxo. Já as cotas de pesca outorgadas
por burocratas canalizam os esforços dos empresários para disputas
judiciais em vez de cooperarem em inovações para aumentar a oferta
marítima de cardumes.

Em Water Capitalism, Walter Block discorre sobre as possíveis


soluções técnicas para a privatização de corpos aquáticos, a depender
de suas particularidades físicas e do contexto institucional. Os títulos
de propriedade sobre recursos hídricos no anarcocapitalismo podem
ser aplicados sobre uma massa específica de água, sobre o fluxo de
água ou sobre uma área ou volume geoespacialmente determinados. O
fator comum a todos os arranjos é a preservação do bem relevante
para cada tipo de proprietário: o peixe para o pescador, a rota de
navegação para o barqueiro, o fluxo fluvial para o agricultor, a
qualidade da água para a empresa de água mineral.

Em casos em que a extensão da unidade tecnológica de um recurso


hídrico exigisse que ele fosse compartilhado por mais de um
proprietário, a distribuição de ações relativas àquela unidade poderia
solucionar conflitos como a cota de água máxima que um acionista
poderia extrair de um aqüífero por unidade de tempo.

Nos oceanos, várias modalidades de propriedade privada


conviveriam sobrepostas na mesma área, conforme a natureza do
recurso em questão. Baleeiros poderiam reivindicar a posse de um
único espécime, podendo caçá-lo numa área onde uma traineira detém
a exploração exclusiva de crustáceos.

Mais importante que detalhar os pormenores técnicos de cada


solução para cada setor é ressaltar que

no anarcocapitalismo, os
empreendedores se veriam obrigados a
cooperar na preservação da oferta dos
recursos ao invés de se digladiarem
judicialmente pelo direito de extrair o
máximo possível.
A privatização dos recursos naturais é a única forma de preservar
espécies ameaçadas e toda a “biblioteca genética” da qual a
humanidade pode dispor para a cura de doenças e novos produtos em
geral. Galinhas são mortas aos bilhões mensalmente, mas não correm
risco de extinção pois são propriedade privada das granjas, cujos
donos tratam de fazê-las procriar. Elefantes e rinocerontes, por outro
lado, correm risco devido à proibição de sua exploração econômica
privada. O marfim de suas presas continua tendo valor, mas o
incentivo para preservá-los é tolhido por leis que impedem a criação
de reservas privadas de caça.

Uma objeção ao anarcocapitalismo é que recursos como florestas


tropicais, com espécies endêmicas cuja utilidade econômica ainda é
desconhecida, seriam destruídas para atender a oportunidades de lucro
de curto prazo. A realidade, porém, mostra que apenas mediante
pesados subsídios estatais é que fazendeiros se instalam de forma
insustentável. Necessidades humanas de curto prazo são críticas para a
nossa sobrevivência, mas a prosperidade e a atitude poupadora que
prevalecem num livre mercado permitiriam à sociedade se dar ao luxo
de preservar enormes rincões de floresta para o longo prazo.

O discurso ambientalista, contudo, ignora


não apenas as leis econômicas mas a própria
dignidade do homem, tratando-o como um
parasita
e chegando a apelar para cultos à natureza de inspiração pagã. Quando
as pessoas obedecem ao mandamento de Deus, em Gênesis 1, de
proliferar, encher e sujeitar a Terra e dominar sobre as outras criaturas,
o resultado é o bem-estar material em todos os sentidos, inclusive
ambiental. O historiador Charles Forbes René, Conde de
Montalembert, elogia o trabalho dos monges beneditinos que
transformaram pântanos inóspitos em paragens aprazíveis e idílicas
por toda Europa a serviço dos seres humanos.

Mas a obediência às falsas doutrinas alardeadas por uma elite


ecofascista, cujo intuito é a reserva de mercado, a supressão da
concorrência, a nulificação das soberanias locais e o controle sobre o
fluxo de capitais, resultará num planeta dividido entre terras
inabitadas e aglomerados humanos distópicos.
O globalista Mikhail Gorbachev, ex-secretário geral do Partido
Comunista da União Soviética, não acabou com o socialismo através
da Perestroika e da Glasnost. Apenas removeu suas vestes vermelhas
para revesti-lo de verde e azul (da ONU), ajudando a redigir a Carta
da Terra que foi apresentada na Eco-92 no Rio de Janeiro. Um dos
preceitos deste documento de linguagem messiânica é a criação de
uma autoridade ambiental mundial.

Lamentavelmente, os movimentos ambientalistas não são anti-


humanos apenas em suas raízes filosóficas, mas nas consequências
diretas de seu lobby. A proibição do pesticida DDT, inaugurada pelos
nazistas, condenou milhões à fome e às doenças transmitidas por
insetos. A proibição do CFC com base na mentira dos buracos da
camada de ozônio priva inúmeros pobres de ter uma geladeira ou
mesmo um inalador eficaz para a asma.

Mas a maior mentira ecofascista de


todas é a das mudanças climáticas
antropogênicas.
Ignorando a nossa própria ignorância sobre a plêiade de fatores que
afetam o clima (da atividade solar às correntes marítimas), os
partidários da seita aquecimentista apregoam medidas como limites de
emissão de carbono e redução populacional, que condenarão nações
inteiras à miséria se aplicadas.

Há ainda quem defenda o controle de natalidade com desculpas


humanistas, como Thomas Malthus, economista inglês que alegava
que a capacidade de explorar recursos crescia mais lentamente que a
população, levando sempre a uma catástrofe humanitária. Ele
ignorava não apenas o avanço tecnológico e gerencial mas também
que a maior oferta de mão-de-obra permite uma maior divisão do
trabalho que aumenta o acúmulo de capital e o investimento em novas
tecnologias. A história nos dá um assustador exemplo de sociedade
que tentou controlar a população para manter o padrão de vida: as
tribos do Taiti antes da recolonização europeia de 1767 praticavam
infanticídio e guerras para evitar um aumento demográfico. O que era
para ser uma ilha paradisíaca transformava-se num inferno darwinista.

Perante a natureza, devemos ter as posturas de Aldous Huxley e de


São Francisco de Assis. O primeiro a via corretamente como um
poderoso inimigo a ser dominado pelo homem. O segundo se valia
dela, também corretamente, como meio para contemplar a beleza de
Deus. Tornemos a natureza serva do homem para a glória de Deus, em
vez de nos deixarmos escravizar por ela em atenção àquele que foi
homicida desde o princípio.

SAÚDE
Não deveria haver uma sessão sobre saúde neste livro pelo mesmo
motivo pelo qual não deveria haver uma sobre rodinhos de tirar água
da pia. Serviços de saúde não são um direito mas uma mercadoria
como outra qualquer exceto pelo fato de que sua regulação confere
poderes brutais aos regimes totalitários. O direito legítimo à saúde é
um direito negativo, ou seja, o de não tê-la subtraída mediante
agressão. O suposto direito positivo à saúde (o de obrigar alguém a
fornecê-la) o contradiz, já que implica em ameaçar a integridade física
de pagadores de impostos.

Quem pensa como eu é, por vezes, tratado como um monstro, apesar


do fato de que o nazista Josef Mengele, o comunista soviético Trofim
Lisenko e outros bandidos que representaram a síntese entre o médico
e o monstro nunca poderiam ter realizado seus experimentos médicos
anticientíficos e antiéticos fora do bojo da medicina socializada.

A questão de como o indigente poderia pagar por saúde, como nos


lembra o praxeologista Fernando Chiocca, poderia ser respondida de
três formas:
I. Cada um que se dane

II. Vamos promover a caridade e as inovações de mercado para provê-lo

III. Vamos assaltar pessoas inocentes para provê-lo


Lamentavelmente, a terceira solução, que é a única criminosa, é a
primeira a ser aventada, apesar dos inúmeros exemplos históricos
comprovando a tese de Mises de que todas as sociedades
minimamente civilizadas adotam a segunda solução.

O primeiro grande hospital na acepção moderna do termo surgiu no


século IV em Cesareia (atual Caiseri, Turquia), fruto da caridade de
São Basílio Magno, por isso se chamou Basilíada. Tratava-se de uma
verdadeira cidade médico-religiosa totalmente sustentada por doações.
Seu portento, complexidade e a piedade com que os enfermos e
desamparados eram tratados levou São Gregório de Nazianzo a
afirmar que ela em muito superava as Grandes Maravilhas do Mundo
Antigo.

O historiador Guenter Risse descreve como os mosteiros medievais


se tornaram centros de pesquisa e divulgação da ciência médica. No
Brasil, o pioneiro foi Braz Cubas, fidalgo português que erigiu a Santa
Casa de Misericórdia de Santos em 1543 com o auxílio voluntário da
população da Capitania de São Vicente. Seu objetivo era puramente
caritativo. O médico João Semana, personagem de Júlio Dinis em As
pupilas do senhor reitor, que caminhava sob sol e chuva para atender
gratuitamente aos pobres do seu vilarejo, não é ficção científica, mas
representa a praxe de quando o Estado não se intrometia no setor de
saúde.

Infelizmente, parafraseando Sowell,


algumas pessoas acreditam que a
sociedade é incapaz de pagar por médicos
e hospitais no mercado mas pode arcar
com os custos dos médicos e hospitais
públicos e de toda a burocracia estatal que
administra o sistema.
Historicamente dois modelos de saúde pública predominam no
mundo ocidental: o bismarckiano e o beveridgiano. O primeiro,
adotado pelo chanceler Otto von Bismarck na Alemanha unificada,
fundamenta-se em seguros obrigatórios e descontos nas folhas de
pagamento. Costuma conviver com o mercado privado de saúde, mas
não pacificamente. Se, nas palavras de James Bryce, a boa medicina
trabalha contra a razão de sua existência (as moléstias), os governos
fazem o contrário. A burocracia estatal tende a regular o setor privado
para que ele não atenda satisfatoriamente às necessidades do povo, o
que faria transparecer a inutilidade do Estado. As regulações impostas
às seguradoras de saúde, como obrigá-las a cobrir condições não-
seguráveis, são extremamente prejudiciais, já que expulsam os
concorrentes menores do mercado, o que reduz a oferta e aumenta
preços.

Ainda assim, a concorrência entre planos de saúde privados subsiste,


o que torna o modelo bismarckiano menos deletério que o
beveridgiano. Este foi desenvolvido em 1942 pelo liberal William
Beveridge, um dos fundadores do estado de bem-estar social
britânico, e preconiza a cobertura de saúde universal, tendendo à
unificação institucional e supressão da concorrência entre seguradoras
de saúde. Quem não é tratado como cliente é tratado como passivo.
Quando o Estado se propõe a tratar o indivíduo do berço ao túmulo,
ele faz de tudo para reduzir o intervalo. Países que adotam este
modelo, como Reino Unido e o Canadá, negam acesso de idosos à
saúde, justamente quem mais precisava. A médica Jane Orient aponta
para o fato de a saúde pública universal sempre vir acompanhada de
agendas assassinas como eutanásia e aborto.

A medicina socializada, como constata Hoppe, é um sistema no qual


pessoas virtuosas que zelam pela saúde própria e dos seus, abstendo-
se de vícios, são pagadoras líquidas dos tributos destinados à saúde,
enquanto as pessoas negligentes são recebedoras líquidas. Como
resultado, haverá uma piora dos hábitos de saúde da população, que
terá menos incentivos para se cuidar e poupar recursos. A higidez
geral diminui, aumentando a suscetibilidade de todos a doenças e
congestionando o sistema com filas de espera que custam vidas.
A profilaxia é mais fácil que a terapêutica,
mas a medicina socializada inibe o
comportamento profilático enquanto
sobrecarrega os meios terapêuticos.
O diagnóstico precoce é crítico para os prognósticos de cura e é o
primeiro fator a ser afetado quando a medicina, que Ovídio chama de
arte do tempo certo, passa a ser regida pela lentidão burocrática típica
de sua socialização.

Com menos poupança e mais impostos, haverá menos investimento


privado em novas tecnologias médicas e fábricas de equipamentos
médicos. A inflação e os impostos que o povo paga para manter a
saúde pública pioram o mix de saúde da população, que consumirá
comida pior, fará menos esporte, terá menos lazer e passará mais
stress. A saúde pública é um problema de saúde pública.

No livre mercado, quando uma empresa é ineficiente, ela vai à


falência e seus ativos tornam-se disponíveis para administradores
mais competentes. No estatismo, ocorre o contrário. Diante das filas e
da incapacidade dos burocratas de alocar racionalmente os recursos
médicos, os políticos demagogos pleiteiam mais verbas para a saúde
pública, desperdiçando recursos escassos que poderiam ser bem
geridos pela iniciativa privada visando atender às demandas de saúde
da população. Em arranjos burocráticos, contudo, sem preços de
mercado para racionalizar a alocação de bens escassos, o desperdício
é certo e brutal.

Se é a burocracia quem decide a disposição de recursos, ela decidirá


em seu próprio favor. É por isso que a proporção de médicos e
enfermeiros no sistema de saúde pública sempre cai em relação à de
burocratas responsáveis por geri-lo. Isaac Asimov constatou que a
burocracia cresce para atender às demandas de uma crescente
burocracia na qual, segundo Mises, as promoções serão por critérios
arbitrários ou favorecimentos, não por atendimento das reais
demandas do povo. Assim, quando a capacidade arrecadatória do
Estado se esgota, o economista Yuri Maltsev nos lembra que só um
caminho é tomado para a contingência de gastos na saúde pública: o
racionamento dos serviços médicos.

Em 1965 Lyndon Johnson instituiu o assistencialismo federal de


saúde nos EUA através do Social Security Act. No paper Input and
Output in Medical Care Milton Friedman constata que deste ano a
1989 o custo de paciente-dia internado aumentou quase 8 vezes
enquanto a proporção de leitos hospitalares por habitante caiu quase
50%.

Em 1918, sob Lenin, o Estado soviético se propôs a oferecer saúde


pública universal e gratuita. Não tardou para que um mercado negro
surgisse, com pacientes desesperados nas filas subornando os gestores
do sistema de saúde soviético para receber algum tratamento. Estes
eram apparatchiks, funcionários do Partido Comunista com
responsabilidades burocráticas. O termo adquiriu uma conotação
pejorativa, de incompetência e corrupção, justamente por ser assim
que os membros de monopólios estatais tendem a se comportar. As
mortes nas filas e a péssima qualidade do atendimento não são
exclusividade dos regimes comunistas propriamente ditos, mas
também acometem as sociais-democracias como a Suécia, onde os
impostos de 70% limitam a medicina privada a uma elite.

Se a medicina socialista é um fracasso, o mesmo não se pode dizer


de seus marqueteiros. Cuba era o 13º país com menos mortalidade
infantil antes da revolução liderada por Fidel Castro, ditador que
assumiu o poder em 1959. O país caiu para a 44ª posição apesar dos
esforços do governo como obrigar mulheres a abortar bebês com
complicações de saúde e alterar a idade de óbito das crianças para não
constar nas estatísticas. Mas a esquerda aplaude o comunismo cubano,
como aplaude todas as medidas totalitárias impostas em nome do
suposto bem-estar coletivo, uma prática literalmente nazista.

Com a desculpa de que a saúde é bem público, o III Reich impôs


desde leis antifumo até as mais execrandas práticas de eugenia,
passando por proibir judeus de freqüentar espaços destinados a
exercícios físicos e por propagandistas incentivando cidadãos a
denunciar cônjuges suspeitos de portar doenças sexualmente
transmissíveis.

Foi apelando para a socialização dos


custos de saúde que a elite tecnocrática
atual convenceu a população a aceitar os
abusos anticientíficos da ditadura sanitária
de 2020, como quarentena, máscara
obrigatória e passaporte vacinal.
A superioridade ética do anarcocapitalismo em lidar com epidemias
é evidente, mas também haveria vantagem técnica. Seguradoras
teriam incentivo para monitorar com presteza a dinâmica do contágio.
Com base em sólida ciência, não em lobby, pequenas localidades
poderiam controlar o acesso externo de forma tal que a doença seria
rapidamente isolada e debelada.

Como nos lembra o psiquiatra Thomas Szasz, a toda defesa da saúde


pública subjaz uma ideologia utópica e totalitária. Ele dizia que a
batalha pelo mundo é a batalha por definições e a definição de
“saúde” da OMS (Organização Mundial da Saúde) é “um estado de
completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de
afecções e enfermidades”. Ora, isto está mais para a descrição do
estado de glória em visão beatífica no Céu, e não de uma vida
saudável na Terra, e só pode resultar num Estado que se tem por
divindade.

Para Aristóteles, a saúde é uma virtude do corpo, e como tal, deve


ser pautada pela prudência e equilibrada com outros aspectos da vida.
Ela não é um fim em si mesma, mas um meio para a felicidade, que é
impossível quando se almeja um nirvana terreno.

EDUCAÇÃO
Dizia Bastiat que todos os monopólios são detestáveis, mas o da
educação é disparadamente o pior. Do libertário de esquerda Thomas
Hodgskin, que constatou que ser educado pelo Estado é pior que não
receber educação, ao conservador Olavo de Carvalho, que se dizia um
anarquista educacional, praticamente todos os intelectuais com algum
grau de honradez se opuseram ao controle estatal da educação. Neste
quesito, argumentos econômicos como gastos exorbitantes, aumento
de impostos e ineficiência gerencial, embora corretos, são
secundários.

O grande mal é a perversão intelectual e


moral das crianças promovida pelos
engenheiros sociais e suas agendas.
Infelizmente, autores liberalóides como Milton Friedman não
perceberam que políticas como vouchers educacionais não eliminam a
raiz do problema, pois quem paga a orquestra escolhe a música. Esta
medida permite ao Estado regular a educação privada, além de ser
financiada com dinheiro que o fisco rouba do trabalhador.

A única solução é aquela que os anarcocapitalistas propõem:


eliminar completamente qualquer participação estatal na educação.
Não se trata de uma novidade histórica. Ao longo da maior parte da
história, a educação foi livre de regulação governamental, produzindo
a Academia de Platão, o Liceu de Aristóteles e as primeiras escolas
catedrais que se seguiram ao Concílio de Toledo e que dariam origem
às grandes universidades católicas na Idade Média. O processo foi
natural, racional e hierárquico, educando inicialmente o clero e a
nobreza para garantir um fundamento civilizacional que resultou no
florescimento das artes liberais (trivium e quadrivium) durante o
período carolíngio (por volta do século IX).

Paulatinamente, os mosteiros, paróquias e guildas foram assumindo a


educação de crianças de todos os estratos sociais. O medievo católico,
especialmente os séculos XI e XII, foi a era dos grandes educadores,
como Hugo de São Victor e São Bernardo de Claraval. O historiador
C. Stephen Jaeger trata especialmente destes 200 anos no livro A
inveja dos anjos, poeticamente afirmando que aquela educação
medieval de cultivo das virtudes que transformava o exterior a partir
da interioridade humana causaria inveja aos anjos que, sendo
incorpóreos, não poderiam refletir o esplendor das riquezas de suas
almas na dimensão corpórea.

Que diferença brutal em relação à educação contemporânea que


forma escravos corporativos ou militantes desmiolados! Mas como
passamos da educação invejada por anjos para, nas palavras de Guerra
Junqueiro, “isto, escolas, que indecência. Escolas, esta farsada! São
açougues de inocência, são talhos d’anjos, mais nada”? Com a
intromissão do Estado.

As bases filosóficas desta derrocada são lançadas pelos nominalistas,


para os quais apenas aquilo que é particular e concreto poderia existir,
ignorando abstrações universais como o Bem e a Justiça. Este
pensamento reflete-se na educação, que ganha contornos utilitários a
partir de Lutero e Calvino no século XVI. Este estabeleceu escolas
compulsórias na sua ditadura em Genebra enquanto o primeiro
exortou os governantes a ocupar-se da educação das crianças para
doutriná-las forçadamente.

Mais tarde, no século XVIII, Friedrich Wilhelm I, rei da Prússia,


estabelece um sistema de educação pública, universal e compulsória
nos moldes contemporâneos, que se expande sob os líderes
subseqüentes junto com o serviço militar obrigatório e as regulações
profissionais; culminando, com a unificação alemã, na destruição das
línguas e culturas locais.

Nos EUA, a educação compulsória se difundiu a partir do final do


século XIX. Para o jornalista Joseph Sobran, falecido em 2010, esta é
a causa do ensino americano ter, em menos de 100 anos, passado de
latim e grego no colegial para reforços de inglês na universidade. A
escolha dos cidadãos foi suprimida e não houve mais concorrência
entre sistemas pedagógicos. O currículo engessado e mandatório e o
agrupamento das crianças por idade em vez de afinidade fazem pior
que ensinar mal: matam a vontade de aprender, pervertendo a natureza
humana que, segundo Aristóteles, é naturalmente inclinada ao saber.
Mises nos lembra, em Governo onipotente, que

a educação pública é uma arma terrível


de engenharia social pela sua própria
natureza, não importando quem seja o
ministro da educação.
Um erro comum do conservadorismo brasileiro é a defesa da “escola
sem partido”, tida por alguns como remédio para o problema da
doutrinação marxista nas escolas. De fato, a pedagogia de Paulo
Freire, responsável pelo apedeutismo endêmico nas escolas nacionais,
não apenas doutrina para a revolução, mas é em si revolucionária.
Apregoa o fim da necessidade tomista de adequar o intelecto à
realidade e trata a relação mestre-discípulo sob uma ótica marxista de
luta de classes, propondo uma horizontalização da hierarquia que
resulta numa concepção construtivista da realidade, segundo a qual
esta seria resultante do debate igualitário entre professor e aluno.
Trata-se de uma dialógica desregrada na qual o burocrata termina por
impor sua agenda contra uma massa de vítimas sem preparo
intelectual para questionar.

Mas a “escola sem partido” faz exatamente a mesma coisa, de forma


mais covarde, pois pretende ser neutra e engana melhor. As regras da
realidade são substituídas pelas regras do Ministério da Educação, que
com ares de árbitro da realidade, tolhe oficialmente a opinião do
docente e incapacita o dissente de distinguir doxa (opinião) de
episteme (conhecimento científico). Se o mestre tenta impor a
verdade, nos diz Santo Tomás de Aquino, ele incute crendices e não
ciência.

Em Crise na educação, a filósofa Hannah Arendt propõe uma


dialética contra-revolucionária da educação, demonstrando que cabe
aos pais educar a criança de forma a protegê-la das intempéries
ideológicas do mundo enquanto se prepara para nele agir
ordenadamente, conforme a realidade e não segundo arroubos
revolucionários ou ditames ministeriais. A ação adequada ao lugar que
se ocupa no mundo requer sabedoria, uma virtude que Santo Tomás de
Aquino relaciona à compreensão de princípios primeiros, e que
precedem em ordem causal e em elevação de finalidade qualquer
conhecimento que se adquira nos bancos escolares.

A família, que também precede a escola na ordem das causas e dos


fins, é onde a sabedoria pode ser ensinada. É ela que intenciona o bem
da criança e pode protegê-la contra as falsas doutrinas com as quais
ela invariavelmente terá contato no tão superestimado ambiente
escolar. Educadores profissionais devem competir no mercado para
trabalhar para as famílias, servindo-lhes de consultores e tutores
contratados, mas nunca de reguladores.

É por isso que a educação domiciliar (conhecida por homeschooling)


e até o unschooling (educação sem escolarização formal) são tão
desejáveis, mais até que pelas suas vantagens econômicas. O Padre
Antonin-Gilbert Sertillanges recomenda uma vida intelectual na qual a
mente sirva de lente para um interesse absorvente que mova a alma.

Os currículos escolares impostos


burocraticamente causam o efeito
contrário, dispersando os esforços
intelectuais para uma série de tarefas
artificiais alheias às vocações dos alunos.
O homeschooling e o unschooling permitem que pais e filhos
descubram juntos, de forma particularizada, como melhor aproveitar
as potencialidades destes enquanto fortalece a hierarquia e a
influência daqueles. Para que estas formas de educação familiar
cumpram sua função, todavia, é preciso que elas sejas livres de
qualquer regulamentação estatal.
Desregulamentado também deve ser o acesso ao mercado de
trabalho. Aquilo que Sir William Osler, considerado pai da medicina
moderna, disse sobre a ciência médica (que ela é aprendida à beira do
leito mais que nos anfiteatros) vale para todas as profissões poiéticas
(aquelas que produzem obras), das engenharias às artes, passando,
como Camões declama nos Lusíadas através de um lírico general
Aníbal, pelo ofício guerreiro. Não é “sonhando, imaginando ou
estudando, senão vendo, tratando e pelejando” que se profissionaliza
alguém, por isso o fundamento de uma sociedade próspera não é a
educação formal, mas a liberdade de aprender trabalhando, afinal é a
competência técnica e não o diploma que produz boas obras.

Os Tigres Asiáticos não enriqueceram com educação universitária


para todos, mas sim com uma indústria suficientemente livre para que
a divisão de trabalho resultasse em altos salários para trabalhadores de
colarinho azul, aqueles que desempenham tarefas manuais com algum
nível de conhecimento técnico (geralmente adquirido no próprio
trabalho). Qual o sentido de tributar essas pessoas para financiar o
doutorado de futuros desempregados? Qual a lógica de forçar
(diretamente ou pela carestia) um pobre a financiar os estudos alheios
com o argumento de que o pobre não tem dinheiro para estudar?

Pior que a tributação, contudo, é a


regulação. Pior que alguém roubando os
frutos do trabalho alheio é alguém proibindo
o trabalho alheio.
A exigência de diploma para exercer certos ofícios costuma surgir por
lobby de conselhos de classe buscando garantir uma reserva de
mercado. É isso que tolhe as oportunidades daqueles que não podem
pagar por caríssimos colégios particulares ou cursinhos pré-vestibular.
Esta é a falácia da igualdade de oportunidades. Quanto mais o
governo intervém na sociedade para igualar a educação, mais
oportunidades são destruídas e as restantes serão abocanhadas por
pessoas desiguais nos critérios arbitrários estabelecidos pela
burocracia educacional, restando pouco espaço para a criatividade e
engenho senão para as atividades de um pícaro (arquétipo do
malandro, na literatura espanhola, que vive de ardis para se sustentar).

Uma objeção ao anarcocapitalismo é que pessoas exerceriam


profissões sem as devidas qualificações, como se um monopólio
burocrático estatal de certificação fosse confiável. Não há motivos
para crer que seria de praxe que as pessoas se sujeitassem a processos
judiciais por imperícia podendo, a custos decrescentes, se tornar mais
competitivas no mercado de trabalho aprendendo adequadamente um
ofício e recebendo certificações privadas.

Uma nação enriquece quando empreende e empreender é


literalmente enxergar o que ninguém mais está enxergando. O preparo
necessário para transformar oportunidade em fortuna não é a educação
formal, mas o treinamento informal para não depender dela. Além
disso, como constata o Padre Leonel Franca, o princípio da boa
educação é a moralidade de sua pedagogia. Logo, é impossível
fundamentá-la na agressão estatal contra pessoas inocentes, seja
obrigando-as a frequentar escolas ou a financiar o ensino alheio.

Epíteto dizia que apenas os educados são livres. Talvez o inverso


seja ainda mais verdadeiro: somente os livres são educados.
ESTRATÉGIAS PARA UMA CONTRA-
REVOLUÇÃO ANARCOCAPITALISTA

Você vai morrer.


E isto muito provavelmente antes que a humanidade supere o
estatismo, o que só vai ocorrer quando o Anticristo, futuro líder de um
Estado mundial, for derrotado por Cristo. Logo, não tenha como
objetivo colher em vida os frutos de uma sociedade anarcocapitalista,
pois qualquer estratégia neste sentido será fracassada.

O crítico literário Otto Maria Carpeaux recomenda, ao contrário, que


se abandone este materialismo que superestima a importância dos
grandes acontecimentos políticos, afinal “é a morte que dá a esses
episódios a sua verdadeira medida”. Adicionalmente, Santa Teresinha
do Menino Jesus nota que o desânimo é soberba, recomendando que,
com humildade, imprimamos nas menores tarefas o máximo de amor
com olhos na eternidade.

Saiba definir o conflito: não é uma guerra do Estado contra o


mercado, mas das forças da serpente adversária da humanidade contra
as forças de Maria Santíssima que deu à luz o Redentor. Ao cuidar da
sua alma e do seu entorno, você criará um reduto de tradição, ordem e
liberdade, contrariando os planos dos engenheiros sociais a serviço da
Nova Ordem Mundial, o plano da oligarquia satânica que se opõe ao
Reinado Social de Cristo. Como nos lembra o Cardeal Leme, não se
pode ser indiferente à comunidade, à Pátria e aos destinos do mundo;
mas apregoar justiça universal como desculpa para negligenciar a
justiça particular ao nosso alcance é, segundo Olavo de Carvalho,
subterfúgio de ideólogos pervertidos.

Há pessoas sofrendo hoje e não importa se é por culpa do Estado, do


crime comum ou por fatores naturais e imponderáveis. Não dê crédito
aos revolucionários que pregam a omissão ou mesmo a piora da
situação em nome de um futuro mundo ideal. Estes indivíduos já se
perverteram moralmente.

Como a ordem social, nas palavras de


Étienne Gilson, é um prolongamento da
ordem moral fundamental, não espere aquela
sem esta.
A mentalidade revolucionária é sempre desordeira e imoral, pois
reduz as relações humanas do presente a meros meios para finalidades
futuras. Por isso falo em contra-revolução.

Escreve o douto pensador Plinio Corrêa de Oliveira: “Se a revolução


é a desordem, a contra-revolução é a restauração da ordem. E por
ordem entendemos a paz de Cristo no reino de Cristo. Ou seja, a
civilização cristã, austera e hierárquica, fundamentalmente sacral,
anti-igualitária e anti-liberal”.

Na guerra, é preciso proteger seu quartel-general. Felizmente, seu


QG está fora do alcance do inimigo, se você assim quiser. Marco
Aurélio, o imperador-filósofo, encontrava forças no controle que ele
exercia sobre a própria mente. Remova dela as ideologias, as falácias
e a propaganda terminológica. O filósofo Eric Voegelin recomenda
não comungar das ressignificações linguísticas promovidas pelas
ideologias dominantes. Não deixe o libertário ideológico, muitas
vezes o pior inimigo do anarcocapitalista, te dizer o que
anarcocapitalismo significa.

A mente convoluta é o único alicerce real


do Estado, mas você tem o poder de
desestatiza-la tão logo a ordene.
O economista Anthony de Jasay afirma que o Estado subsiste na
ilusão de sua necessidade, logo ele pode ser vencido pela razão e pelo
amadurecimento moral que nos leve à rejeição de suas promessas
cômodas. Em Democracia: o deus que falhou, Hoppe recomenda
ainda a constante propagação das ideias verdadeiras. Para tanto, é
preciso ter coragem moral. Não se cale quando alguém propagar
ideias falsas, pois não há amor maior que o sacrifício pela verdade.
Não espere que alguém sangre em batalha pela sua liberdade se você
não é capaz de angariar hostilidades em nome dela.

Tudo fica mais fácil, porém, se você fortalecer o tecido social ao seu
redor. Seja temperante e evite o hedonismo (vida pautada pela busca
de prazer). “Vós, irmãos, fostes chamados à liberdade. Não abuseis,
porém, da liberdade como pretexto para prazeres carnais. Pelo
contrário, fazei-vos servos uns dos outros pela caridade”, lemos em
Gálatas 5, 13.

Pratique obras de caridade e dê esmolas. Rejeite as ideologias anti-


matrimoniais como o feminismo e sua versão masculina, o MGTOW
(sigla que em inglês significa “homens indo pelo seu próprio
caminho”). Constitua uma família e tenha muitos filhos, mesmo que
isto seja apenas no sentido metafórico, como o velho Gandalf
(personagem de J. R. R. Tolkien) em relação à Sociedade do Anel, que
ele aconselha e protege. Rejeite o individualismo, pois o homem
isolado, nos lembra Sertillanges, torna-se tímido e abstraído. Tome
como sua a sua comunidade, não no sentido de reivindicar direitos,
mas de contrair deveres, afinal amamos mais aquilo que é nosso, diz o
economista e teólogo Tomás de Mercado.

Rejeite o modernismo em todas as


dimensões da sua vida. Não seja, contudo, um
reacionário, aquele revolucionário
temporalmente invertido,
quixotesco, que romantiza o passado e deseja andar de armadura. Isto
seria inestético. Descubra como adaptar o seu tempo aos valores
perenes em vez de negá-lo ou tentar destruí-lo.
O engenheiro de software Mencius Moldbug (pseudônimo de Curtis
Yarvin) constata que todo processo revolucionário começa com a
quebra de paradigmas estéticos. Restaure o seu imaginário através da
beleza da boa literatura, da boa arte e dos bons costumes. Desligue sua
televisão e seu rádio, preferencialmente venda-os e compre uma
estante de livros.

Não há material aproveitável na grande imprensa, toda controlada


pelo estamento vigente, que justifique seu tempo. Se quiser ver
notícias, acesse veículos de mídia independentes, preferencialmente
aqueles que sofrem perseguições das grandes corporações
tecnológicas. Prefira, contudo, aquilo que é perene. Thomas Jefferson
afirma que o homem iletrado está à frente daquele que só lê jornais.

Aprenda habilidades relevantes, como defesa pessoal, tiro,


agricultura, mecânica veicular e sobrevivência. Elas não apenas
podem ser a diferença entre a vida e a morte como também a
diferença entre a sua dependência ou libertação do sistema. No
diálogo platônico Lísis, o jovem eupátrida (nobre) de mesmo nome
relata estar proibido de fazer certas coisas que os escravos podem
fazer, como dirigir bigas, não por sua pouca idade mas por sua
imperícia.

O conhecimento é libertador! Domine o máximo que puder da arte


da guerra e das técnicas militares. É verdade que um Estado opressor
possui armamento de guerra superior, mas eles perdem eficiência num
cenário de resistência interna. O major do exército suíço Hans von
Dach escreveu Total Resistance, um manual ensinando como os civis
poderiam sabotar a ocupação de seu país por potências comunistas do
Pacto de Varsóvia. Leia obras deste tipo e lembre-se que o Estado sem
apoio da população é como a pesada e lenta força de hoplitas
espartanos sem apoio de cavalaria nem de arqueiros que foi derrotada
na Batalha de Lequeu (391 a.C.) pelo general ateniense Ifícrates e
seus escaramuçadores leves que repetidamente atacavam e corriam.

Adquira ainda técnicas que permitam que você ganhe e conserve seu
dinheiro com o máximo de autonomia e privacidade possível. O
libertário de esquerda Samuel Konkin III discorre sobre os conceitos
de contra-economia e agorismo. O primeiro refere-se à prática de
atividades pacíficas proibidas pelo Estado com intuito subversivo e o
segundo à defesa política de uma sociedade baseada em trocas
voluntárias, a ser implementada mediante técnicas de contra-
economia. Apesar dos erros crassos do agorismo konkiniano, como
incentivar atividades imorais e considerar os atuais traficantes como
potenciais libertadores, algumas técnicas agoristas podem ser
extremamente valiosas à causa da contra-revolução anarcocapitalista.
Um exemplo são as criptomoedas, cuja natureza técnica propicia a
preservação dos valores contra a sanha confiscatória estatal. Contudo,
não caia na armadilha da salvação pela tecnologia, pois ela também
pode ser usada para o mal, como no caso do transumanismo
(movimento que prega a modificação do corpo humano). Exemplos
adicionais de agorismo legítimo incluem a redução do consumo, a
priorização de empresas locais e a reserva pessoal de metais preciosos
como o ouro, reduzindo assim o imenso poder financeiro e cultural
dos bancos e corporações lobistas e fortalecendo a poupança
individual, familiar e local.

Nos 36 estratagemas, um clássico militar da China antiga, lemos:


“Mate com uma faca emprestada”. Com base nisso, o historiador
Rodrigo Souza Neves desenvolveu sua teoria do agorismo cínico, que
preconiza o uso justo e virtuoso da legislação positiva estatal para
atacar inimigos da liberdade, proteger aliados ou simplesmente expor
as contradições do próprio positivismo legal, doutrina que nega a Lei
Natural e baseia a conduta humana apenas nas leis escritas, para
nulificar leis injustas. Um exemplo magnífico é uma academia de
ginástica que se manteve aberta durante o lockdown imposto pelo
tiranete João Doria Jr. em 2020 valendo-se de um CNPJ de clínica
médica.

Uma forma interessantíssima de agorismo cínico é o agorismo


político. Utilizar o enorme poder e influência das estruturas políticas
para propagar a verdade, mitigar a agressão estatal contra inocentes,
redirecionar o báculo do governo contra os criminosos e até contribuir
para desmantelar parte da máquina monopolista não apenas é legítimo
como é um
dever moral
daqueles vocacionados para tanto. O anarcocapitalista deve votar e
participar da política, se alistar nas Forças Armadas ou prestar
concurso para magistratura, conquanto sua conduta não contrarie a Lei
Natural.

Sobre eleições, escreve Rothbard: “Em um ambiente de coerção


estatal, votar não implica consentimento voluntário. Na verdade, se o
Estado nos concede uma escolha periódica de um soberano, por mais
limitada que esta escolha possa ser, certamente não pode ser
considerado imoral fazer uso dessa escolha limitada para tentar
reduzir ou se livrar do poder do Estado”.

Certa vez participei de um debate sobre a legitimidade do voto para


um anarcocapitalista. Meu contendor, oposto à ideia, afirmou que o
jogo político destrói a malha da cooperação social. Embora isto quase
sempre aconteça em algum grau, nada esgarça mais o tecido social do
que a passividade diante das injustiças concretas perpetradas com este
exato intuito pelos engenheiros sociais.

Sobre candidaturas e funcionalismo público, Walter Block


recomenda que se retire das burocracias todos os recursos que elas
poderiam usar para financiar a própria expansão. Um político
anarcocapitalista, por exemplo, deve votar contra a existência do
fundo partidário mas, uma vez que este exista, deve tomar dele o
máximo de recursos para se reeleger, evitando que o pagador de
imposto sofra, além do roubo tributário, a ameaça representada pelo
financiamento de um político socialista.

Se o poder político cair nas suas mãos por qualquer motivo, faça
como Santa Isabel de Aragão, rainha de Portugal, que encarou seu
coroamento como um meio dado por Deus para realizar boas obras.
Em O que deve ser feito, Hoppe recomenda especialmente a
ocupação de espaços na política local,
como um município, de forma a viabilizar
um corpo político intermediário
concretamente anarcocapitalista.
Ao mesmo tempo, o autor recomenda o boicote social e a remoção
física de elementos revolucionários negando a eles o acesso às
comunidades assim restauradas.

É preciso lembrar que os ativistas de esquerda estão, ipso facto,


incitando a violação de propriedade privada e a corrosão do tecido
social. Não devem ser tolerados. Processe-os judicialmente e
denuncie-os à polícia (pode ser a estatal mesmo) sempre que eles se
puserem em seu caminho, pois eles farão bem pior com você e sua
família caso tomem o poder.

Lembre-se de que o caos alimenta as potestades desordenadas, logo


contribua com o policiamento local no combate aos crimes reais. O
historiador militar Jonathan House observa que a melhor tática que
existe é a da combinação das armas. Use todas as armas que puder
contra o esquerdismo e a tirania e não deixe que a guerra de narrativas
te convença a abdicar de alguma delas. O aparato tirânico não se
resume ao Estado, mas engloba artistas, intelectuais e empresários que
são, frequentemente, inimigos mais formidáveis que um ditador.

É exatamente por isso que o corporativismo e o fascismo são


sistemas condenados desde o princípio. Um de seus defensores,
Oswald Mosley, defendia que as corporações limitassem a livre
iniciativa de forma a alinhá-la aos melhores interesses da nação. Mas
quem garante o alinhamento das corporações? O livre mercado é a
verdadeira espada de Dâmocles2 na cabeça dos líderes empresariais. O
poeta Fernando Pessoa definia o socialismo como o corporativismo de
uma única corporação, mas a melhor definição seria a ausência da
possibilidade de concorrer com as corporações existentes. Não se
deixe enganar, portanto, pela história de vida aparentemente virtuosa
de um bilionário que enriqueceu, na verdade, devido às regulações
estatais contra seus concorrentes.

O filósofo Lao Zi, que viveu na China do século VI a.C.,


recomendava a inação e o abandono da vida social como única forma
de se contrapor ao despotismo. Isto é omissão. É fazer a vontade do
inimigo, que não dorme. O Padre Antônio Vieira (século XVII) é
quem acerta ao dizer que Portugal nunca foi livre quando dependia de
homens do tipo “havemos de fazer”, mas se libertou tão logo foi
agraciado com homens de ação.

Não dê ouvidos aos populistas que acusarem você de populismo por


querer defender o povo.

O colapso das nações vem sempre


acompanhado por uma legião de moderados
que confundem prudência com tibieza,
suficientemente temerários para atacar a figura do herói, porém
covardes demais para criticar o status quo.

Todo povo precisa de heróis. Não bastava ao Rei Hrothgar e seus


homens debaterem e beberem pacificamente em seu hall de hidromel.
Eles seriam destruídos pelos trolls se não fosse pela intrepidez de
Beowulf, protagonista do poema épico de mesmo nome.
Interessantemente, este herói mitológico gauta não teria obtido êxito
sem as armas que recebe de presente, representativas da somatória dos
esforços de tantos trabalhadores anônimos no bojo da civilização.

Faça a sua parte, por menor que seja, mas com virtude heróica. Seja
quem Deus quer que você seja, dizia Santa Catarina de Siena, e
incendiará o mundo.

Uma forma de heroísmo ao alcance de todos é a desobediência civil.


A tirania estatal se perpetua através de uma cadeia de obediência às
ordens injustas que só pode ser rompida por atos de bravura
desobediente. Há situações difíceis mas nada muda o fato de que
“fonte turva e manancial contaminado: tal é o justo que cede diante do
ímpio” (Pr 15, 26). Subterfúgios como “eu estava cumprindo a lei” ou
“eu estava cumprindo ordens” são piores que a maldade assumida,
pois servem apenas para promover, nas palavras de Hannah Arendt, a
banalização do mal.

As leis humanas justas, por si só, não tornam o homem justo, mas as
injustas podem levar até mesmo as pessoas de reta intenção, como nos
lembra o ensaísta Henry David Thoreau, a se tornarem agentes da
injustiça. A falha em praticar a desobediência civil pode,
frequentemente, configurar uma cooperação ilícita com o mal.

A sã doutrina católica tipifica as seguintes modalidades de


cooperação com o mal:
I. Cooperação formal: quando aquele que coopera com o mal partilha da intenção imoral. É
sempre ilícita. Exemplo: um policial que cumpre uma ordem injusta como confiscar
mercadoria de um ambulante, mesmo que ele não concorde com a ordem, pois ele tem a
intenção confiscatória.

II. Cooperação material: quando a cooperação se dá sem a intenção. É dividida em:

a. Imediata: quando a cooperação é com o ato imoral em si, não podendo se dar de forma
indiferente. É sempre ilícita. Exemplo: um instrumentador de uma clínica de homicídio
intrauterino (aborto), mesmo que ele seja contra este sacrifício de bebês às forças do
inferno.

b. Mediata: quando a cooperação cria condições que propiciam o ato, podendo ser:

i. Próxima: quando a conexão material-temporal com o ato é estreita. É sempre ilícita.


Exemplo: um recenseador que levanta dados para o fisco, mesmo que ele seja contra
impostos. As informações poderiam ser levantadas para fins bons como defesa civil, logo o
ato em si é indiferente, mas a conexão direta com cobradores de impostos o torna ilícito.

ii. Remota: quando a conexão material-temporal com o ato é tênue. Será lícita quando todas
as condições abaixo forem cumpridas:

1. O ato do cooperador é bom ou indiferente (não é ilícito em si).

2. Há retidão de intenção.

3. A finalidade boa não é pretendida pelo cooperador como consequência do mal decorrente
da ação imoral com a qual ele coopera (pois seria uma forma de utilitarismo).
4. O mal que o cooperador deseja evitar é suficientemente grave para justificar sua
cooperação com uma ação imoral.

Esta exposição é necessária pois o anarcocapitalista, não sendo um


revolucionário, muitas vezes precisa cooperar licitamente com o mal.
Um exemplo disto é a necessidade de cooperar com a estrutura estatal
federal para combater o globalismo, que é a integração política
mundial em detrimento do direito dos povos, que segue de sua
dignidade intrínseca, à governança própria. Deste ius gentium (direito
das gentes), o teólogo Francisco de Vitória valeu-se para se opor à
escravidão indígena, e sua defesa, atualmente, repousa na capacidade
de dissuasão estratégica das nações.

Para conter o grande mal globalista, o anarcocapitalista brasileiro,


por exemplo, deve apoiar a criação de um programa nuclear militar
nacional, ainda que isto envolva a cooperação indireta com males
como a tributação e o aumento da popularidade de um político
estatista. O ditador soviético Joseph Stalin, após conseguir suas
bombas atômicas, redigiu um documento pregando o desarmamento
nuclear mundial mediante um organismo internacional de controle.
Convenhamos que a intenção deste tipo de facínora é o monopólio da
força e não a paz. Algumas pessoas podem objetar que bombas
atômicas aumentariam a assimetria de poder do Estado contra o povo,
mas ocorre o contrário. A proliferação nuclear permite que pequenas
nações intimidem a liderança de coalizões inteiras.

O anarcocapitalista deve ser patriota,


afinal a sociedade por ele defendida não é
um mundo sem fronteiras,
mas um complexo caleidoscópio de fronteiras locais muito bem
definidas e guardadas, dentro das quais o indivíduo está protegido
contra a socialização de recursos escassos resultante da convivência
forçada que o Estado promove. Elas seriam resultantes dos laços
comunitários naturais, mais permanentes, e dos contratos, mais
contingentes.
As delimitações artificiais impostas pelo Estado procuram dissolver
estas fronteiras espontâneas para centralizar o poder. Foi o caso das
reformas promovidas pelo legislador ateniense Clístenes no século VI
a.C. Ele dividiu a pólis em 3 zonas (urbana, rural e litorânea) e cada
zona em 10 grupos, para em seguida centralizar a autoridade em
“tribos” atribuindo à jurisdição de cada uma delas um grupo de cada
zona. Assim, ele destruiu a coesão e a identidade particular das
localidades, diminuindo qualquer chance de resistência.

É localmente que a cultura floresce. Procure reaver a coesão cultural


do seu entorno através do estreitamento das relações pessoais, do
resgate da história local e da rejeição dos estilos de vida globalizantes.
O filósofo Nikolai Berdyaev nota que é impossível haver uma cultura
internacionalista. Oponha-se, portanto, às políticas de livre imigração
e fronteiras abertas, mas não ao livre comércio internacional pois ele
permite que sua nação receba fluxo de capital, forje sua indústria no
fogo da competição e seja bem servida de produtos e serviços.

Entretanto, Santo Tomás de Aquino recomenda que a atividade dos


mercadores internacionais seja moderada pela preservação da cultura
local e pelas necessidades de segurança. Rejeite ainda o nacionalismo
laico. Deve-se afirmar o vigor local dentro das fronteiras, observa o
Padre Julio Meinvielle, mas sem perder de vista a missão cristã de
promover o bem comum temporal que se estende ao estrangeiro.

O patriota deve lutar para libertar seu povo das amarras do Estado. O
desmantelamento da estrutura burocrática estatal deve acontecer
mediante uma transição ordeira para a iniciativa privada. A
previdência social, por exemplo, é um grande esquema ponzi
(investimento fraudulento no qual o retorno dos entrantes antigos
advém da entrada de novos e não de produtividade real) que
desencoraja a poupança e o fortalecimento das famílias. Uma forma
de liquidá-lo com a devida contenção de danos é abrir o capital dos
ativos estatais leiloando-os aos investidores privados dispostos a
assumi-los. A receita levantada seria então distribuída pro rata aos
aposentados e pessoas em vias de se aposentar (com prioridade para
os mais velhos) trazendo-se a previsão de fluxo de pagamentos a valor
presente e levando-se em conta a perspectiva deflacionária decorrente
de uma concomitante desestatização da moeda, o que economizaria
recursos já que a deflação é a melhor forma de aposentadoria.

A desestatização dos logradouros públicos se daria pela combinação


de revogações de regulações arbitrárias e reconhecimento jurídico dos
direitos naturais dos usuários locais aos bens em questão. Isto
possibilitaria o ressurgimento de uma elite natural local que
conquistaria o direito de administrá-los à medida que servissem
virtuosamente à justiça devida à comunidade. Seria o equivalente
mercadológico do cursus honorum, o caminho percorrido pelos
magistrados romanos na administração pública, que ganhavam
responsabilidades proporcionais aos méritos demonstrados.

As qualidades necessárias para liderar e para discernir os líderes


corretos a serem obedecidos são indissociáveis. É por isso que na
Academia Militar das Agulhas Negras lê-se: “Cadetes, ides comandar,
aprendei a obedecer”. Quando São Paulo nos exorta, em Romanos 13,
a obedecer às autoridades constituídas, pois que são instituídas por
Deus, fica claro que

a injustiça não pode gozar de autoridade;


logo, é preciso discernir aquelas que são justas para que tenhamos
liberdade (que é a capacidade de bem agir) na condução das nossas
vidas. A instrução de Jesus Cristo de dar a César o que é de César e a
Deus o que é de Deus evidencia que a legitimidade de toda autoridade
terrena está sujeita ao primado da Lei Natural.

Por fim, lembre-se que a luta é árdua e que a vitória prometida não
pertence a este mundo. Não deposite esperanças em líderes terrenos
nem em sistemas políticos ou econômicos. Lemos em Salmos 145, 3:
“Não coloqueis nos poderosos a vossa confiança, são apenas homens
nos quais não há salvação”. Combata o bom combate e guarde a fé em
Deus até o fim da corrida. Como escreve meu tio-bisavô, o professor e
poeta Álvaro de Magalhães:
Imita no combate o ímpeto do mar. Porfia, solitário. E sobrepõe na
vida, à glória de vencer, a honra de lutar.
NOTAS DE RODAPÉ
1 Ao longo do livro, usarei “Estado” com letra maiúscula para me referir à governança
monopolista, aquela que não reconhece autoridade que a preceda, e portanto, por definição,
corrompida.

2 Conta-se que na corte do Rei Dionísio II de Siracusa, havia um bajulador chamado


Dâmocles, a quem o monarca ofereceu ocupar o trono por um dia. O cortesão prontamente
aceitou e viu-se cercado de luxos e belas mulheres. Notou, porém, que sobre sua cabeça pendia
uma espada sustentada por um fio tênue, o que o fez desistir de bancar o soberano. A arma
representa os enormes riscos e responsabilidades inerentes às posições de comando.

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