Você está na página 1de 35

Avenida Higienópolis, 174, Centro

86020-908 — Londrina/PR
editorapadrepio.org

AUTOR IA
Douglas Abreu
JUDAS NO INFER NO: CAPA
NOTAS BÍBLICAS Klaus Bento
DIAGRAMAÇÃO
© Todos os direitos desta edição Eduardo de Oliveira
pertencem e estão reservados à
Editora Padre Pio DIR EÇÃO DE CR IAÇÃO
Luciano Higuchi
Redempti ac vivificati Christi sanguine, Christo nihil EDIÇÃO E R EVISÃO
præponere debemus, quia nec ille quidquam nobis præposuit. Éverth Oliveira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Abreu, Douglas
Judas no inferno [livro eletrônico] : notas
bíblicas / Douglas Abreu. – 1. ed. –
Londrina, PR : Instituto Padre Pio, 2023.
2023.
PDF
Bibliografia.
ISBN: 978-85-52993-12-4
1. Catolicismo 2. Teologia cristã I. Título.
23-178772 CDD-230

Índices para catálogo sistemático:


1. Teologia cristã 230
SUMÁRIO

SE JUDAS FOI CONDENADO AO INFERNO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5

I. Denúncia do traidor .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6

II. Prenúncio da condenação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

III. Jesus o exclui da oração sacerdotal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

IV. Desespero de Judas .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

V. Pecados de Judas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

VI. Objeções . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18

VII. Respostas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20

Apêndice . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28
SE JUDAS FOI CONDENADO
AO INFERNO

Tese: Que Judas esteja no inferno é verdade de fide


divina contida formalmente na Escritura em termos
equivalentes.1

Prova-se por análise de testemunhos da Escritura, em particu-


lar I. Jo 13, 1-21; II. Mt 26, 22-25; III. Jo 17, 12; IV. Mt 27, 3-10
e V. dos pecados que se lhe imputam em diversas passagens.

1.Além de ser confirmada pela Tradição, sobretudo pela interpretação unâ-


nime dos Padres, e corroborada pelo testemunho da Liturgia e o parecer
constante de teólogos e exegetas. Por isso é parte do magistério ordinário,
exercido pela proposição indireta de uma doutrina expressa na praxe ou na
vida da Igreja. E embora a Liturgia não possa criar dogmas, é todavia ex-
pressão autêntica da fé, portanto fonte autorizada para identificar em quais
verdades crê a Igreja Católica.

5
I. Denúncia do traidor
( Jo 13, 1-21)

V. 1a. Não falo de todos vós, como se todos houvésseis de


imitar meus exemplos. — De fato, sei os que escolhi para o
apostolado ou, segundo alguns, para a bem-aventurança.2 Em
todo o caso, a intenção primária destas palavras é manifestar
aos Apóstolos que Cristo sempre conhecera a qualidade ín-
tima deles (cf. v. 19), como se dissesse: “Sei e soube quem e

2. É mais provável a primeira alternativa. A razão é que a culpa da conde-


nação é inteira de Judas, não de quem o escolheu; cf. Santo Tomás de Aqui-
no, De Ver. 6, 2 ad 11: “A presciência do abuso da graça não foi causa da
reprovação de Judas, a não ser talvez por parte do efeito, embora Deus não
negue a graça a ninguém que a queira receber”; além disso, quando fala da
eleição e predestinação à glória, Jesus costuma atribuí-la antes ao Pai que a
si mesmo, por ser ela parte primária da Providência, a qual se diz da primei-
ra hipóstase por apropriação. Nesse sentido, a exceção feita em Não falo de
todos vós […] não se refere à predestinação, mas à infidelidade de Judas à
vocação apostólica e à observância das palavras de Cristo, a quem trairia dali
a pouco. Foi por isso excluído da oração: α. Guardaram tua palavra; β. Con-
heceram verdadeiramente etc.; γ. É por eles que eu rogo, Pai, guarda em teu
nome aqueles que me deste; δ. Para que eles tenham em si mesmos a plenitude
do meu gozo; ε. Que os guarde do mal; ζ. Santifica-os pela verdade, Para que
sejam verdadeiramente santificados etc. (Jo 17,9.11.13.15.17.19 etc.). Ora, α.
Judas não guardou a palavra do Pai, porque caiu em pecado; β. não o conhe-
ceu verdadeiramente, porque naufragou na fé; γ. não foi guardado, porque
não era um dos que o Pai confiara ao Filho (v. 12: Conservei os que me deste,
exceto etc.); δ. não teve em si a plenitude do gozo de Cristo, porque morreu
amargurado; ε. não foi guardado do mal, porque, invadido pelo demônio,
cometeu livremente grandes males; ζ. não foi santificado na verdade, por ter
sido mentiroso, ladrão, traidor etc.

6
I . D en ú n c i a d o t r a id o r

quais escolhi por Apóstolos; sei e soube os que seriam dignos


e indignos, os que haviam de perseverar e os que não; sei e
soube os que cumpririam o que acabo de dizer, como sei e
soube que Judas, por mim eleito, não o há de cumprir, mas
será meu traidor. Não o escolhi por ignorância, como se des-
conhecesse que me trairia; antes, pelo contrário, o soube e
previ perfeitamente, para servir-me de sua malícia em ordem
ao bem comum”, isto é, “para que por ele se cumprisse minha
paixão e por esta, a salvação e redenção dos homens” (Corné-
lio a Lapide, In Ioh. 13, 1, p. 1072).

V. 1b. Porém, para que se cumpra a Escritura: O que come o pão


comigo etc. A proposição, no original, está incompleta, razão
por que há de subentender-se: a) “porém, escolhi um que se-
ria traidor, para que se cumpra” etc., b) ou, guardada a cone-
xão com os vv. precedentes, “por isso vós estais limpos, mas
não todos”, isto é, “porém, um de vós é criminoso, para que
se cumpra” etc. — A Escritura é tirada de Sl 40, 10, onde o
autor sagrado lamenta a perfídia de um amigo, provavelmente
Aquitofel, que traíra Davi juntando-se a Absalão (cf. 2Sm 15,
12.31ss; 16, 20; 17, 1ss); τυπικώς refere-se a Judas, “cujo tipo
foi Aquitofel como Davi o foi de Cristo” (Cornélio a Lapide,
ibid.). Com efeito, também Aquitofel, que fora conselheiro de
Davi (cf. 1Cr 17, 31), suicidou-se (cf. 2Sm 17, 23), prefigurando
assim a morte de Judas, que fora Apóstolo de Cristo.

Sobre isso escreve Cornélio a Lapide, parafraseando o Senhor:

Eu sabia que Judas seria traidor, e no entanto o escolhi como


Apóstolo, para que por ele se cumprisse minha paixão e, con-
seqüentemente, a Escritura, que a previu a ela e ao seu modo,
isto é, que teria início pela traição de um de meus familiares
e domésticos (a saber, Judas), que abusou perfidamente de
minha amizade e familiaridade para me trair; mas eu o quis
permitir para da malícia dele tirar um grande bem, a redenção

7
J U DA S N O I N F ERN O: N OTA S B Í B LI CA S

do mundo, assim como permiti a queda de Lúcifer e de Adão


para daí realizar a encarnação (ibid.).

V. 19ss. O Senhor prenuncia a traição de Judas, para que não


pen­sem os discípulos que Ele será traído sem conhecimento ou
consentimento. — Desde agora (latim amodo, grego ἀπ” ἄρτι =
desde este tempo) vo-lo digo, antes que suceda, para que, quan-
do suceder, creiais que eu sou quem disse ser, isto é, o Filho de
Deus. — Jesus, prestes a manifestar o crime de Judas, turbou-se
em seu espírito, isto é, sentiu forte dor e, ao mesmo tempo, justa
indignação, e protestou (ἐμαρτύρησεν = afirmou abertamente):
Um de vós me há de entregar a meus inimigos.

8
II. Prenúncio da condenação
(Mt 26, 22-25)

V. 22. Eles, muito tristes, cada um começou a dizer: Porventura


sou eu, Senhor?3 — V. 23. Ele respondeu: O que mete comigo a
mão no prato, esse me entregará. — V. 24. O Filho de homem vai
certamente (à morte, não coagido mas por vontade própria),
como está escrito dele, isto é, para que se cumpram os vaticí-
nios que o prenun­ci­am. — Mas ai daquele homem por quem
será entregue o Filho de homem! Ameaça o traidor, se acaso for
possível dissuadi-lo do crime. “Nem uma nem duas vezes cor-
rigido afasta o pé da traição, senão que a paciência do Senhor
lhe alimenta o descaro, e ele acumula para si um tesouro de ira
para o dia da ira (cf. Rm 2, 5). Prediz-se-lhe a pena, para que
corrijam os suplícios anunciados aquele a quem não vencera a
vergonha” (São Jerônimo, In Matth. 16, 24: PL 26, 194).

— Melhor fora a tal homem que não tivesse nascido, isto é,


melhor lhe fora morrer no ventre e ser privado da glória que
nascer e condenar-se aos tormentos. Para alguns, Jesus estaria
pondo essas palavras na boca de Judas, por ser verossímil que
o traidor, pouco antes de suicidar-se, as tenha dito ou pensado
em sinal de desespero. No entanto, é mais conforme ao contex-
to que o sentido seja: “Seria melhor que Judas não tivesse exis-
tido, antes que sofrer os tormentos eternos do inferno”, pois

3.Cf. Santo Tomás de Aquino, STh II-II 108, 4 ad 5: “Pelo pecado de Judas
turbaram-se os demais Apóstolos, assim como pelo pecado de um é punida
a multidão, a fim de inculcar [sua] unidade”.

9
J U DA S N O I N F ERN O: N OTA S B Í B LI CA S

“se diz […] que é muito melhor não existir do que existir mal”
(São Jerônimo, ibid.), isto é, na condição de condenado. — V.
25. Judas, o traidor, tomou a palavra e disse: Sou eu porventura,
Mestre? Pergunta-o não por ignorá-lo, mas para averiguar com
cinismo se Jesus realmente sabia do crime a ser cometido e
para afastar de si, traiçoeiro que era, a suspeita dos discípulos.
Jesus respondeu-lhe, provavelmente em voz baixa, para que o
não ouvissem os demais (cf. Jo 13, 23-30):4 Tu o disseste.

4. Cf. Id., STh II-II 33, 7 ad 2: “O Senhor, enquanto Deus, conhecia o pecado
de Judas como público, por isso podia imediatamente proceder a manifestá-
-lo. No entanto, não o manifesta, mas com palavras obscuras o advertiu de
seu pecado”.

10
III. Jesus o exclui da oração sacerdotal
(Jo 17, 12)

V. 12. Enquanto estive com eles, guardei-os em teu nome, isto


é, na confissão de teu nome, ou sob a tua proteção, e nenhum
deles se perdeu, exceto o filho da perdição (ὁ υἱὸς τῆς ἀπωλείας
= o filho da destruição; cf. 2Ts 2, 3), Judas Iscariotes, condena-
do à morte eterna, cumprindo-se a Escritura, qual seja: Sl 40,
10: “Até o meu amigo, em quem eu confiava, que comia o meu
pão, levantou contra mim o seu calcanhar”, e 18, 6ss: “Suscita
um ímpio contra ele, e esteja um acusador à sua direita. Quan-
do for julgado, seja condenado, e seja vã a sua súplica. Sejam
abreviados os seus dias, e ocupe outro o seu posto”.

N.B. — Na Vulgata, em vez de “posto”, lê-se “episcopado”


(episcopatum eius accipiat alter), no que pode ver-se uma
referência a Matias, que substituiu Judas no colégio apos-
tólico, como narra o livro de Atos (cf. 1, 12-26), que cita ex-
pressamente esses dois salmos (cf. 1, 20).

Comentando essa passagem de João, escreve Cornélio a Lapi-


de: “Nenhum deles se perdeu, exceto o filho da perdição, a saber,
Judas, que pelos crimes de furto e traição foi destinado à per-
dição e à geena. Com efeito, a palavra filho, quando unida a um
genitivo de pena ou prêmio, significa o mesmo que digno, réu
ou destinado; assim, filho de morte ou da geena é réu de morte
ou da geena. Daí se vê que Cristo, aqui, não orou por Judas,
senão que o excluiu, como se ele já estivesse, por sua culpa,
perdido e separado tanto de si e de sua família quanto do gru-

11
J U DA S N O I N F ERN O: N OTA S B Í B LI CA S

po e do consórcio dos Apóstolos.5 De fato, ele já se afastara de


Cristo a fim de o entregar aos judeus, quer dizer, Judas não era
do número daqueles que eram teus [do Pai], eleitos por ti e da-
dos a mim por ti, senão que, por avareza, se perdeu ao me trair,
por isso passou de minha mão para o número dos réprobos”
(In Ioh. 17, 12, p. 1130).

Comentando o mesmo lugar, diz Knabenbauer: “Por que é


chamado filho da perdição? Tens a razão disso em: Melhor fora
a tal homem que não tivesse nascido (Mt 26, 24). Ele mesmo
preparou sua morte e perdição (cf. Jo 6, 71: Falava de Judas,
filho de Simão Iscariotes, porque era este que o havia de entregar,
não obstante ser um dos doze), o que Deus providente quis dei-
xar consignado na Escritura. Acrescenta-se isto para significar
que ele não pereceu de modo algum por incúria de Cristo nem
porque a proteção de Cristo, exercida por doutrina e presen-
ça, não fora eficaz o bastante; mostra-se neste lutuoso exemplo
que é necessária para a salvação a diligente cooperação com a
graça” (In Ioh. 12, 17, p. 493).

5. Cf. Id., STh III 81, 2 ad 1: “Cristo fala aos discípulos, de cujo colégio foi
Judas quem se separou, e não Cristo quem o excluiu. E por isso Cristo, de
sua parte, também com Judas bebeu vinho no reino de Deus, mas o próprio
Judas repudiou esse convívio”.

12
IV. Desespero de Judas
(Mt 27, 3-10)

Esse tristíssimo episódio, que tocava de perto as igrejas palesti-


nas, só é recordado por Mateus. Duvidam alguns se ele ocorreu
no lugar e no tempo em que é narrado pelo evangelista, isto é,
após a segunda reunião do sinédrio, ou mais tarde, a saber: de-
pois do inquérito de Pilatos, do pronunciamento da sentença
ou, talvez, do início da execução. A primeira opinião parece
mais provável.

V. 3s. O que costuma acontecer a alguns criminosos aconte-


ceu também a Judas depois de trair Jesus: perpetrado o crime,
logo reconheceu a enormidade de sua culpa e começou a ser
cruelmente atormentado pela própria consciência. Vendo pois
o traidor que Jesus fora condenado à morte (pelo sinédrio ou
por Pilatos), tocado de arrependimento (latim pœnitentia duc-
tus, isto é, não porque se retratasse, com pedido e esperança
de perdão, mas porque doía-se de remorso),6 tornou a levar as

6. Cf. Id., Catena in Matth. 27, l. 1.: “Orígenes: Assim como àquele que pri-
meiro teve a mulher de seu pai e depois se arrependeu deste mal […] depois
o diabo quis exagerar esta mesma tristeza, para que a própria tristeza, feita
mais abundante, absorvesse o entristecido; algo semelhante sucedeu em Ju-
das: de fato, depois que ele se arrependeu, não guardou seu coração, mas re-
cebeu mais abundante tristeza do diabo, pois o queria absorver [na tristeza];
donde se segue: Retirou-se e foi pendurar-se de um laço. Se no entanto tivesse
procurado fazer penitência e observado o tempo da penitência, talvez tivesse
encontrado aquele que diz: Não quero a morte do pecador” (Ez 33, 11)”; Cor-
nélio a Lapide, In Matth. 27, 4, p. 51, afirma que a penitência de Judas não

13
J U DA S N O I N F ERN O: N OTA S B Í B LI CA S

trinta moedas de prata aos príncipes dos sacerdotes, e aos an-


ciãos, reunidos de novo não se sabe por quê, dizendo: Pequei,
entregando o sangue justo (ἀθῷον = inocente, inofensivo), isto
é, um homem justo à morte. É surpreendente a resposta dos
sinedritas: Que nos importa? Isso é contigo, como se o crime
de quem traiu não fôra também dos que condenaram à morte.

V. 5. Instigado pelo demônio que nele residia, o infeliz Judas


entrou no Templo e, tendo atirado no (ou contra o) santuá-
rio as trinta moedas, como se quisesse rescindir o contrato de
venda, ou em sinal de ira e desespero, pois a quem desespera
pouco se lhe dá dos bens temporais,7 retirou-se e foi pendurar-
-se de um laço. Pedro complementa o relato: “Tendo caído de
cabeça [πρηνής = caído do alto], rebentou pelo meio, e todas
as suas entranhas se derramaram” (At 1, 18). — Assim concilia
Maldonado ambas as narrativas: “É mais provável que Judas se
tenha amarrado antes pela corda em algum lugar alto e dali se
arremessado, como se costuma fazer aos condenados à forca,
lançados abaixo de certa altura com a corda ao pescoço, a fim
de morrerem estrangulados mais rápido; depois, ou a corda se
rompeu, e ele caiu contra o chão, derramando as entranhas; ou,
ainda suspenso, inchou a tal ponto, que, não de imediato mas
após algum tempo, rebentou pelo meio, pois todos os enforca-
dos costumam inchar sobremaneira”.

foi verdadeira e genuína, “porque esta inclui a esperança do perdão, da qual


Judas careceu, mas coacta, excruciante e desesperada, como a nascida da má
consciência, que atormenta e remói os condenados, que são atormentados
no fogo da geena”. É isso o que significa o grego μεταμεληθείς usado por Ma-
teus (forma do verbo μεταμέλομαι), distinto de μετανοέω (donde μετάνοια),
que significa arrependimento salutar.
7. Cf. Santo Tomás de Aquino, Super Matth. 27, l. 1.

14
V. Pecados de Judas

1. Murmuração e simulação (Mt 26, 8): “Vendo isto, os dis-


cípulos indignaram-se (Marcos: alguns), dizendo: Para que
foi este desperdício? Porque este bálsamo podia vender-se por
bom preço, e dar-se aos pobres”. — 2. Avareza e furto. João
atribui estas palavras a Judas e acrescenta que o traidor as dis-
se, “não porque se importasse com os pobres, mas porque era
ladrão”, dominado pelo amor ao dinheiro, “e, tendo a bolsa”
em que guardava o dinheiro dos Apóstolos, “roubava o que se
lançava nela”. Avarento, levou a mal não que se vertesse o un-
guento do vaso, mas que lhe escorresse o preço pelas mãos.

3. Infidelidade (Jo 6, 64). Terminado o sermão eucarístico, di-


rigiu-se Jesus aos Apóstolos porque diziam entre si: “Dura é
esta linguagem; quem a pode ouvir?”, e lhes revelou que mes-
mo entre eles havia alguns incrédulos. “Com efeito, Jesus sabia
desde o princípio quais eram os que não criam, e quem ha-
via de o entregar”, isto é, Judas. Em seguida, deu a razão dessa
incredulidade: “Por isso eu vos disse que ninguém pode vir a
mim”, isto é, crer em mim e em minhas palavras, “se lhe não for
concedido por meu Pai”, e manifesta, após a profissão de Pedro,
que um deles era desertor em seu coração, posto permanecesse
no grupo (cf. v. 66): “Não fui eu que vos escolhi, a vós os doze?
E contudo um de vós é” já agora “um demônio”. João explica:
“Falava de Judas, filho de Simão Iscariotes”, que já vacilava na
fé, “porque era este que o havia de entregar, não obstante ser
um dos doze” (v. 70s).

15
J U DA S N O I N F ERN O: N OTA S B Í B LI CA S

4. Traição (Mt 26, 14ss): “Então um dos doze, que se chamava


Judas Iscariotes, foi ter com os príncipes dos sacerdotes e disse-
-lhes: Que me quereis vós dar, e eu vo-lo entregarei? Ajustaram
trinta moedas de prata.8 Desde então buscava oportunidade
para o entregar”; v. 47ss: “Eis que chega Judas, um dos doze,
e com ele uma grande multidão com espadas e varapaus, en-
viada pelos príncipes dos sacerdotes e pelos anciãos do povo.
O traidor tinha-lhes dado este sinal: Aquele a quem eu der um
ósculo, é esse; prendei-o. Aproximando-se logo de Jesus, disse:
Salve, Mestre. E deu-lhe um ósculo”.

5. Suicídio e impenitência (Mt 27, 3ss): “Vendo que Jesus fora


condenado, tocado de remorsos”, isto é, reconhecendo o seu
pecado, mas sem pedir nem esperar o perdão de Deus, “tornou
a levar as trinta moedas de prata aos príncipes dos sacerdotes
e aos anciãos, dizendo: Pequei, entregando o sangue inocen-
te. Mas eles disseram: Que nos importa? Isso é contigo. Então,
tendo atirado as moedas de prata para o templo, retirou-se e
foi pendurar-se de um laço”.9 — 6. Possível sacrilégio. Embo-
ra seja questão controversa, muitos e graves autores, entre os

8.Cf. Id., STh II-II 118, 8c.: “Se o dolo for cometido por obra, então, se for
contra coisas, será fraude; se for, porém, contra pessoas, traição, como se vê
em Judas, que por avareza traiu a Cristo”; cf. De malo 13, 3c.
9. Cf. Nicolau Orano, Hom. 38, em Conciones triginta de Iudæ proditoris
apostasia. Montibus, apud Lucam Riuium, 111, p. 344: “Vede neste maldito
como ao pecado responde a pena. Com efeito, procurou a própria morte
e extinguiu de todo a vida o que, traidor da Vida e seguidor da morte, se
empenhou em acabar com a Vida verdadeira e essencial. Porque levantou-se
impiamente o ímpio [discípulo] contra o Mestre piedosíssimo e inocente, e
contra o Humilde inchou-se soberbamente, por isso fez-se réu de morte eter-
na, de modo que rebentou ao meio, derramadas as vísceras. Era justo, pois,
que morresse sufocado pela efusão das entranhas e do sangue o que tivera
sede de derramar sangue [alheio]”.

16
V. P e ca d o s d e J u da s

quais Santo Tomás de Aquino,10 defendem que Judas teria re-


cebido a Eucaristia na Última Ceia junto com os outros Após-
tolos, o que acrescentaria aos pecados antes enumerados o de
sacrilégio pela comunhão indigna.11

10. Cf. Santo Tomás de Aquino, STh III 81, 2c.: “Deve-se dizer que o que
Hilário sustentou em Sobre Mateus, [a saber:] que Cristo não deu a Judas seu
corpo e sangue, teria de fato sido conveniente, considerada a malícia de Ju-
das. Mas porque Cristo devia ser para nós exemplo de justiça, não convinha
ao seu magistério separar Judas, pecador oculto, da comunhão dos demais
sem acusador e prova evidente, para não dar com isso exemplo aos prelados
da Igreja para agirem assim, nem para que Judas, exasperado, tomasse daí
ocasião de pecar. E por isso se deve dizer que Judas, com os outros discípu-
los, recebeu o corpo e o sangue do Senhor, como diz Dionísio no livro Da
hierarquia celeste e Agostinho em Sobre João”; Super Matth. 26, 2, n. 2179:
“Quando diz a seus discípulos, pergunta-se se Judas ali estava. Todos dizem
que [Cristo] deu ao mesmo tempo a todos, e também a Judas, e isto para o
demover a pecar por sua benignidade. Igualmente, para dar à Igreja a lição
de que, enquanto fosse pecador oculto, não estaria proibido de receber este
sacramento: aos homens, com efeito, não compete julgar do que é oculto.
Hilário diz aqui que Judas não estava, porque já saíra. E quer prová-lo por
aquilo que se diz em Jo 13, 25, quando pediram os discípulos: Senhor, quem
é esse?, aos quais disse: É aquele a quem eu der o bocado que vou molhar. Por
isso mostra que ele já tinha saído. Mas se deve sustentar antes o que dizem
os outros”.
11.Ensina a doutrina católica que um só pecado mortal não perdoado
quanto à culpa é suficiente para condenar a alma ao inferno; ora, ainda que
Judas se tivesse arrependido do pecado de traição, não consta que se tenha
arrependido de outros, e o arrependimento, como se sabe, deve ser universal,
ao menos virtualmente.

17
VI. Objeções

Obj. 1. São formalmente reveladas, ou constituem objetos per


se da fé teologal, as verdades que por si e diretamente nos orde-
nam à vida eterna e nas quais consiste primariamente a bem-a-
venturança; ora, que Judas se tenha condenado não nos ordena
por si e diretamente à vida eterna nem se conta entre os misté-
rios sobrenaturais que esperamos ver no céu; logo, que Judas se
tenha condenado não é verdade formalmente revelada.

Obj. 2. Considera-se formal mas implicitamente revelada toda


verdade contida em termos equivalentes em uma revelada for-
mal e explicitamente 1. como parte essencial na essência (p.
ex., “Cristo é homem”, então “Cristo tem alma racional”), 2.
como singular no universal (“Todos pecaram em Adão”, en-
tão “Davi pecou em Adão”), 3. como a definição no definido
(“Cristo é homem”, então “Cristo é animal racional”), 4. como
o relativo em seu correlativo (“Cristo é filho de Maria”, então
“Maria é mãe de Cristo”), 5. ou como o oposto em seu oposto
imediato (“Em Deus há três pessoas”, então “Em Deus não há
nem apenas duas nem quatro pessoas”).

Mas é evidente que de nenhum desses modos se pode dizer que


a proposição “Judas foi condenado” esteja formal porém impli-
citamente revelada em locuções como Melhor fora a tal homem
que não tivesse nascido, retirou-se e foi pendurar-se de um laço
etc., das quais só parece concluir-se por via de discurso, o que
é próprio do revelado virtualmente; ora, o revelado virtual, a
modo quer de inclusão quer de conexão, não constitui objeto

18
V I . O b j e çõ es

de fé, se a Igreja não o declara tal; logo, parece que a proposição


“Judas foi condenado” não se pode considerar de fé.

Obj. 3. Como atesta Agostinho (cf. De Hær. 18), os chamados


cainitas pensavam haver em Judas algo divino e consideravam
um grande benefício o que, para os cristãos, parecera sempre
crime de perfídia e traição. Afirmavam que a Judas fora de al-
gum modo revelado o quanto aproveitaria ao gênero humano a
paixão de Cristo, por isso decidiu entregá-lo aos judeus para o
crucificarem. Logo, ao menos por certo ângulo, há razões para
pensar que o ato de Judas ou não foi crime, mas cooperação
positiva e meritória com a economia salvífica, ou, se o foi, teve
sua gravidade atenuada pela boa intenção.

19
VII. Respostas

Ad 1.um Deve-se dizer que algo pode ser objeto de fé teolo-


gal num duplo sentido: 1.º propriamente (per se), quando recai
apenas sob o hábito da fé e por isso não pode ser crido senão
por fé divina: são os mistérios sobrenaturais quoad substan-
tiam, que necessariamente e quoad omnes recaem sob o objeto
formal-motivo da fé teologal; 2.º contingentemente (per acci-
dens), quando per se recai ou pode recair sob o conhecimento
natural, mas é crido por fé por quem carece de tal ciência: são,
de regra, os preâmbulos da fé.

Mas algo pode ser dito objeto de fé per accidens de um du-


plo ângulo: a) em sentido estrito, por comparação ao objeto
formal-motivo, caso em que corresponde a quanto recai con-
tingentemente sob o objeto formal quo da fé, embora seja cog-
noscível pela luz natural da razão sem revelação divina; b) em
sentido lato, por comparação ao fim próprio da fé, caso em que
corresponde a quanto contribui contingentemente para que o
viador tenda de modo eficaz à bem-aventurança, sem que lhe
seja absolutamente necessário conhecê-lo para alcançá-la.

Daí se segue que todo objeto per accidens da fé por referência


ao objeto formal-motivo é sempre per se por referência ao fim
(p. ex., o conhecimento de que Deus é, seja por via natural ou
por revelação, é sempre e absolutamente necessário para a sal-
vação). Nada impede, porém, que um objeto per accidens por
referência ao fim seja per se relativamente ao objeto formal-
-motivo, como o segredo dos corações ou os fatos históricos

20
V I I . R es p o s ta s

relatados na Escritura (p. ex., que Salomão é filho de Davi e


Betsabé), objetos materiais per se de fé com respeito ao formal
quo, mas que podem ser per accidens com respeito ao fim no
sentido assinalado. Ora, que Judas se tenha condenado consta
na Escritura formal mas implicitamente, isto é, æquivalenter,
como foi demonstrado na exposição dos textos. Logo, é objeto
per se de fé com res­pei­to ao formal quo, embora se possa con-
siderar per accidens com respeito ao fim.

Corolário. — Negar um objeto material per se quanto ao for-


mal-motivo mas per accidens quanto ao fim não é de si here-
sia, se a Igreja nunca o declarou fide tenendum, embora seja
pecado contra fidem; indiretamente, porém, implica heresia,
porquanto supõe a negação de uma verdade de fé divino-ca-
tólica, qual seja, a inspiração e a inerrância da Escritura.

Ad 2.um Deve-se dizer que, se em teoria é fácil demarcar as di-


ferenças entre revelado formal-implícito e revelado implícito-
-virtual, não o é na prática distinguir um do outro.12 Com efei-

12. Ao que se soma certa imprecisão terminológica, pois não falta entre os
teólogos quem chame revelado formal-implícito ao que outros chamam im-
plícito-virtual. A dificuldade agrava-se quando se consideram algumas pro-
priedades da linguagem humana, capaz de conotar in concreto, em virtude
do contexto elocucional e de sinais paralinguísticos, mais do que (e às vezes
até contra) o denotado pelas palavras tomadas isoladamente, das quais só
poderia derivar-se in abstracto por ilação. Assim, p. ex., C. Mazzella, De vir-
tutibus infusis. Romæ, 1879, p. 247s, n. 448: “Embora aquele que diz algo
explicite não tencione necessariamente dizer as coisas virtualiter ali contidas,
todos concedem que a intenção dele pode referir-se também a elas. Essa in-
tenção pode ser conhecida já porque o falante emprega aqueles sinais que,
apesar de significarem em si mesmos só, p. ex., a essência de alguma coi-
sa, não obstante, por força de uso comum e da acepção dos ouvintes, sig-
nificam também o que se segue a tal essência; já porque concorrem aquelas
circunstâncias pelas quais se torna manifesto que o falante quis manifestar
tanto o objeto quanto as coisas com ele conexas. Neste caso, dado que Deus
fala aos homens de modo adequado a eles [isto é, por acomodação ao modo

21
J U DA S N O I N F ERN O: N OTA S B Í B LI CA S

to, o que para uns não passa de relação de continência, graças à


qual as verdades explícita e implícita são objetivamente uma só
e a mesma, a outros pode parecer uma relação de inclusão, na
qual a verdade formaliter explícita e a virtualiter implícita não
são objetivamente uma só e a mesma, senão que se distinguem
como a premissa da conclusão, isto é, exprimem conceitos ob-
jetivos diversos mas relacionados vi conexionis.

Noutras palavras, apesar de o revelado formal-implícito di-


ferir do implícito-virtual em que este é termo de discurso
propriamente ilativo, enquanto, para conhecer a equivalência
entre o primeiro e o revelado formal-explícito que o contém,
basta explicar os termos em que esta é enunciada, há que re-
conhecer que “discurso meramente explicativo não é o mes-
mo que discurso fácil e óbvio. Às vezes, para constatar que
uma passagem discursiva do implícito para o explícito é me-
ramente explicativa, exige-se longa e complexa investigação,

humano de expressar-se], as coisas que não são o mesmo com um objeto


explicitamente revelado, mas somente com ele conexas, consideram-se ditas
por Deus não per se mas per accidens, ou seja, atendendo às circunstâncias.
Assim, p. ex., se a quem perguntasse se Judas está no inferno ou São Pedro
no céu eu respondesse: Aquele morreu desesperado, este foi martirizado por
Cristo, terias razão em pensar que eu disse que Judas está no inferno e São
Pedro no céu, conquanto o estar no inferno seja apenas conseqüência da
morte em desespero e o estar no céu, conseqüência do martírio. Daí que os
Wirceburgenses, que ensinam o mesmo, se valham deste exemplo: “Se ao que
perguntasse se o sacrifício da Missa é um culto agradável a Deus alguém res-
pondesse: Cristo mesmo o instituiu, com isso estaria dizendo implicitamente
que sim, é agradável a Deus, conquanto essa complacência seja só um termo
com o qual se conecta a instituição de Cristo; é assim que São Paulo [cf. 1Cor
15], com base na ressurreição de Cristo enquanto causa exemplar e meritó-
ria, prova ser de fé que todos hão de ressuscitar”. Contudo, alguém poderia
dizer que, dadas as circunstâncias concorrentes na locução divina, as coisas
conexas com um objeto explicite revelado nele estão contidas formaliter, pois
o que Deus pretende dizer e, portanto, o que está formalmente contido na
locução divina não deve coligir-se unicamente dos sinais, mas dos sinais com
as circunstâncias em que são empregados”.

22
V I I . R es p o s ta s

como se vê na interpretação de alguns textos da Sagrada Es-


critura, como o do primado de Pedro, o do pecado original, o
da instituição do sacramento da Penitência. E, não obstante,
a finalidade da interpretação é estabelecer qual é o sentido
tencionado por Deus inspirante, isto é, o que Deus revelou
formal mas implicitamente”.13

É necessário, por conseguinte, distinguir o que há de objetivo


na revelação (quoad se) do que há de subjetivo no conheci-
mento (quoad nos) que dela temos. Ora, o que há de objetivo
na revelação é o modo de determinada doutrina manifestar-se
ou estar revelada, isto é, implícita ou explicitamente. No entan-
to, a determinação desse modo depende da parte subjetiva do
nosso conhecimento, ou seja, pode ser realizada ou sem qual-
quer raciocínio, ou por discurso fácil, ou mesmo por longa e
complexa investigação, ainda que a doutrina em si esteja reve-
lada formal mas implicitamente.14

N.B. — De resto, nada obsta a que uma mesma verdade


esteja revelada na Escritura de modos diversos, pois o que
está explícito num lugar pode estar implícito em outro, e
o que se vê sem discurso naquele pode ser justificado dis-
cursivamente a partir deste. Assim, p. ex., a doutrina da du-
pla vontade e operação de Cristo, definida no Concílio de
Calcedônia contra os monotelitas, pode considerar-se for-
maliter explicite revelada à luz do testemunho da Escritura
(cf. Mt 26, 39; Mc 7, 24; Lc 17, 42; Jo 5, 30; 6, 3; Hb 10, 7; Jo
10, 1; 12, 49; 14, 31), mas também formaliter implicite como
parte essencial na essência, pois se Cristo é um com o Pai
(cf. Jo 10, 30), isto é, Deus e, não obstante, se fez carne (cf.
Jo 1, 14), isto é, homem, então à duplicidade de naturezas

13. I. Filograssi, De sanctissima Eucharistia: Quæstiones dogmaticæ selectæ.


8.ª ed., Romæ, apud Ædes Universitatis Gregorianæ, 195, p. 33.
14. Cf. Id., p. 33s.

23
J U DA S N O I N F ERN O: N OTA S B Í B LI CA S

corresponde a de vontades e operações. A mesma doutrina


pode ainda ser inferida ao modo de virtual-inclusivo por
demonstração propter quid, em que a maior é imediatamen-
te revelada e a menor, de razão natural:

(1) A pessoa do Verbo encarnado subsiste em duas nature-


zas intelectuais íntegras, a divina e a humana;
(2) ora, a cada natureza intelectual compete, para sua in-
tegridade, a própria potência apetitiva racional, isto é,
uma vontade;
(3) logo, a cada uma das duas naturezas em que subsiste
a pessoa do Verbo encarnado compete a própria po-
tência apetitiva racional, isto é, tem Ele duas vontades,
uma divina e outra humana;
mas também pode ser provada por demonstração quia a pos-
teriori:
(1) A Escritura atesta direta e imediatamente operações
de dupla ordem em Cristo, em virtude da qual produz
inconfuse efeitos próprios de Deus (p. ex., milagres) e
próprios do homem (p. ex., alimentar-se);
(2) ora, sendo as operações mais manifestas quaod nos do
que as naturezas de que procedem, é pelo conhecimen-
to daquelas que chegamos a conhecer estas;
(3) logo, devem-se atribuir a Cristo duas naturezas incon-
fusas e, por conseguinte, dois princípios distintos de
volição e operação, um da divindade e outro da huma-
nidade assunta.

Além disso, na interpretação de uma locução divina há que


atender tanto aos sinais que a expressam quanto à intenção
que a motiva, intenção que se dá a conhecer no contexto em
que é expressa por tais sinais. “De fato, pode acontecer de um

24
V I I . R es p o s ta s

falante ter a intenção de significar, insinuando-o por suas pa-


lavras, algo mais do que o denotado por elas, quando toma-
das abstratamente. Se tal intenção se manifesta pelas circuns-
tâncias, então se deve dizer que aquele sentido [adicional],
embora extrapole as regras de explicação gramaticais, está na
verdade contido formalmente nas palavras proferidas. Pois a
lei suprema da justa interpretação é que se atribua ao falante
a intenção de manifestar por suas palavras, devidamente con-
sideradas as circunstâncias, tudo o que de fato quis manifes-
tar por meio delas”.15

Donde se vê que a equivalência entre os revelados formal-ex-


plícito e formal-implícito não tem necessariamente de ser clara
e imediata para todos, mas pode ser obscura e mediata, isto é,
identificável por análise dos sinais da locução divina no con-
texto em que são empregados, mesmo que, para isso, se deva
recorrer a “longa e complexa investigação”. Assim, p. ex., Santo
Tomás de Aquino, Super Matth. 26, l. 2, ao determinar o senti-
do de Melhor fora a tal homem que não tivesse nascido:

Dizem alguns que ao inexistente não se aplica pena, por isso


dizem que é melhor simplesmente não ter sido, o que é con-
tra o Apóstolo (cf. Rm 9,11s.20s). Donde, segundo Jerônimo,
deve dizer-se que [Cristo] fala segundo o modo comum de fa-
lar, isto é, “[bom =] menor dano”, quer dizer, “maior tormento

15. Van Noort, Tractatus de fontibus revelationis. 3.ª ed., Hilversum in Hollan-
dia, 1920, n. 103, apud Id., p. 35. A interpretação da Escritura, além de pre-
servar o sentido que a Igreja mesma atribui aos textos, não contradizer a
interpretação unânime dos Padres em matéria de fé e moral e conformar-se
à analogia da fé, deve ainda levar em conta o contexto não só dos textos par-
ticulares, mas de toda a Escritura, que do primeiro v. do Gênese até o último
do Apocalipse conforma uma unidade de sentido: “Começando por Moisés,
e discorrendo por todos os profetas, explicava-lhes o que dele se encontrava
dito em todas as Escrituras” (Lc 24, 27).

25
J U DA S N O I N F ERN O: N OTA S B Í B LI CA S

sente [Judas] que se não tivesse nascido”.16 E a isto parece fazer


referência o que se diz em Ecle 4, 2: “Felicitei mais os mortos
do que os vivos”. E isto é contra Agostinho em Sobre o livre-
-arbítrio. O que nada é não pode ser objeto de eleição; ora, o
que escolhemos, [escolhemos por julgá-lo] mais próximo da
felicidade; mas o que nada é não é próximo da felicidade.
Que se há de dizer, pois? Acaso pode alguém querer mais
não ser que ser apenado? Por isso se deve dizer que não ser
pode tomar-se duplamente: ou em si mesmo, ou por compa-
ração a outro. Em si mesmo, digo que [não ser] não é objeto de
eleição, como diz Agostinho; mas por comparação a outro o é,
como diz Jerônimo. Porque isto [não ser] não é algo na natu-
reza; mas, segundo a apreensão da alma, é considerado algo,
como, p. ex., não estar sentado. Ora, a eleição versa sobre o que
é apreendido, por isso que o carecer de um mal considera-se
um bem. Quando, pois, [o homem] escolhe [não ser], não em
si mesmo, mas enquanto exclui [algum] mal, então há eleição,
como diz o Filósofo […]. Portanto, diz [Agostinho] que aquilo
que mais afasta do mal é considerado mais próximo da feli-
cidade; donde, ao febricitante o não estar com febre parece a
felicidade, porque lhe parece não ser miseravelmente; logo, é
melhor não ser que ser miseravelmente.

Por último, que Judas se tenha condenado esteja implicitamen-


te contido em Saiu e foi pendurar-se de um laço, não é menos
evidente pela força das palavras que pelo modo de continência,
a saber: como singular no universal. Com efeito, todo o que
morre impenitente condena-se ao inferno, segundo aquilo: “Se
não fizerdes penitência, todos perecereis do mesmo modo” (Lc
13, 3); “Se a árvore cair para a parte do meio-dia, ou para a do

16. A razão é que, “morto no ventre da mãe, teria incorrido somente na pena
de dano, com os infantes incircuncisos no limbo; mas agora há de incorrer
também em tal e tamanha pena de sentido no inferno” com os condenados
(Caetano, In Matth. 26, 24).

26
V I I . R es p o s ta s

norte, onde cair, aí ficará” (Ecle 11, 3) etc.; ora, Judas morreu
impenitente, como se vê pelo gênero de morte — suicídio, pe-
cado em si gravíssimo — e pelas circunstâncias em que se ma-
tou, isto é, sem haver impetrado perdão, como o confirmam as
palavras acima expostas Nenhum deles se perdeu, exceto o filho
da perdição etc.; logo, Judas condenou-se ao inferno.

Ad 3.um Deve-se dizer que, apesar do bem oriundo da morte


de Cristo e de o mesmo Cristo ter-se entregado livremente a
ela por nós, não se pode escusar Judas de pecado gravíssimo.
Porque, com efeito, para que fosse louvável e isento de culpa o
ato de Judas, que traiu o Senhor, devera o próprio Judas, por
um lado, querer entregar Cristo aos judeus para que, pela mor-
te dele, fosse salvo o gênero humano, assim como Cristo queria
padecer e morrer por todos os homens; e, por outro lado, ter o
consentimento do Senhor, pois ninguém tem direito a dispor
da vida alheia. Ora, não foi essa a intenção de Judas, pois não
traiu Jesus pelo mesmo fim por que Ele desejava morrer, mas
por um oposto ao dele, a saber, por avareza, conforme Mt 26,
14s, para o que jamais teve nem poderia ter qualquer autoriza-
ção. Conseguintemente, da traição de Cristo não pôde colher
bem algum para si mesmo. Não traiu o Senhor para salvar o
gênero humano, mas para dar morte a Ele. Tampouco o en-
tregou para satisfazer ex officio à vontade do Mestre, mas para
aplacar a própria avareza e a inveja dos judeus.

27
Apêndice
Espicilégio de exemplos

Dante, Inferno XXXIV, 55-63:17

Da ogni bocca dirompea co’ denti


Un peccatore, a guisa di maciulla,
Sì che tre ne facea così dolenti.
A quel dinanzi il mordere era nulla.
Verso il graffiar, che tal volta la schiena
Rimanea della pelle tutta brulla.
Quell’anima lassù che ha maggior pena,
Disse il Maestro, è Giuda Scariotto,
Che il capo ha dentro, e fuor le gambe mena.

De cada boca esfacelava a dente


um pecador, ripando-lhe a medula,
e a cada um de três punha dolente.
Era ao da frente a mordedura nula
à esfola comparada, que a carena
sem pele em carne viva toda ondula.
«É a alma que há no cimo maior pena»,
o mestre diz, «Judas Iscariote:
cabeça dentro, as pernas desordena.

17. Tradução portuguesa extraída de: Dante Alighieri, A Divina Comédia (Tra-
dução de Vasco Graça Moura). São Paulo: Editora Landmark, 2005, p. 305.

28
Ap ên di c e

Giovanni da Serravalle, OFM, Translatio et commentum in


Divinam Comediam. Prati, Giachetti, 191, p. 41 (= Inferno
XXXIV, 61-63):

No meio da boca, que é o ponto mais alto, está Judas Iscariotes,


para denotar que, assim como Lúcifer foi o primeiro traidor
contra Deus, de quem recebera tantos benefícios, assim era
conveniente que punisse aquele que também traiu seu próprio
Mestre, que era Deus e homem.

Barthélemy Durand, OFM, Fides vindicata III, §2 (Avignon,


1709, p. 466):

Dirão: “Judas fez penitência”, baseados em Mt 27, 3 […], e por


isso, dado que pecou traindo a Cristo, não deve considerar-se
condenado, pois a penitência apaga o pecado, Deus perdoa aos
penitentes e Cristo pediu perdão por Judas Iscariotes como o
pediu pelos pérfidos judeus, quando disse: Pai, perdoa-lhes.
Respondo negando a suposição, isto é, que Judas tenha
feito verdadeira e sincera penitência, a qual apaga os pecados
e conduz à vida eterna, como lemos no Cân. 36, d. 3, de pœ-
nitentia, onde se diz: “Judas arrependeu-se, porém mal, pois
prendeu-se de um laço; arrependera-se também Esaú, e até
mais do que ele, mas tampouco se arrependeu [verdadeira
e sinceramente], pois suas lágrimas não eram de penitência,
mas de alma conturbada e de eterna indignação”.
Esta resposta aos hereges é corroborada por outra autorida-
de do Direito Canônico, a qual se encontra no Cân. 3 da mesma
distinção, onde se lê acerca do traidor: “A Judas de nada apro-
veitou ter feito penitência pela qual não pôde corrigir o crime.
Se alguma vez um irmão peca contra outro de modo que possa
emendar o pecado cometido, pode-se-lhe dar o perdão divino;
se, no entanto, permanecem [sem correção] as obras [más], é vã
a penitência. É isto o que se diz no Salmo sobre o infelicíssimo
Judas. E a oração dele torna-se pecado, de forma que não só não
pode emendar o crime de traição, senão que lhe acrescentou o

29
J U DA S N O I N F ERN O: N OTA S B Í B LI CA S

de seu próprio homicídio”. E no Cân. 39: “Foste, ó Judas, mais


perverso e mais infeliz do que todos, pois a penitência te não
chamou de volta para o Senhor, e o desespero arrastou-te até o
laço. Tivesses tu esperado consumar-se o teu crime, quando o
sangue de Cristo enfim se derramara por todos os pecadores, e
te não apressarias em suspender-te de laço mortal”.
Tampouco foi perdoado, embora Cristo tenha rezado por
Judas como rezou pelos pérfidos judeus. Porque não todos
mas só os verdadeiramente contritos e penitentes alcançaram
o perdão e a remissão dos pecados. Com efeito, o perdão do
pecado não se dá senão a quem se emenda, como afirma a
quinta regra de direito […]. Em Judas, porém, não houve si-
nal algum de emenda nem da verdadeira e sincera penitência,
sem a qual todos os pecadores hão de perecer.

Juan Martínez Silíceo, De divino nomine Iesus, cap. 14 [f.10r]‒


[f.10v] (ed. UPSA [s.d.], p. 163):

Porque pronunciaram os demônios o nome de Jesus, por isso


conseguiram tudo o que pediram ao Senhor, e não somente
entraram nos porcos, mas, feitos como que senhores deles, os
trucidaram, sufocando-os na água. Não tenho dúvida de que
Judas Iscariotes não se houvera enforcado se, após vender o
Senhor, tivesse usado o nome de Jesus, quando disse: Pequei
entregando sangue justo (Mt 27, 4), mas dissesse: “Pequei entre-
gando o sangue de Jesus” (desde que pronunciasse este nome
com fé, esperança e caridade).

Bartholomæus de Barberiis, OFM, Glossa in universam Scrip-


turam. Lyon, vol. 4, p. 376 (= São Boaventura, In II Sent. d. 29,
a. 2, q. 1 ad 1):

A eleição de Deus não leva em conta os deméritos futuros, mas a


idoneidade presente. E Judas Iscariotes, que foi o traidor. Mais uma
vez se propõe esta questão: por que o escolheu Cristo, se sabia que
havia de tornar-se mal e ser condenado? Eis outro grandíssimo

30
Ap ên di c e

mistério concernente à matéria da predestinação: Deus, ao confe-


rir a graça, não leva em conta os pecados futuros, mas a idoneida-
de presente à graça, razão por que concede no tempo a graça aos
precitos, e com isto se manifesta a liberalidade e sabedoria de Deus
e se condena ao mesmo tempo a ingratidão e injustiça do homem
que, sem motivo, se afasta de tão benigno benfeitor.

Sebastian Heinrich Penzinger, Bonus Ordo, III [= Domingo da


Sexagésima], conceito 2 (Sulzbach, 1692, vol. 1, p. 15):

Um de vós, disse o Senhor na última ceia aos discípulos reu-


nidos, um de vós é um diabo (Jo 6, 71), o que é o mesmo que
dizer que “um de vós é um condenado, rejeitado, reprovado”;
está fora de dúvida que este diabo, condenado, rejeitado e re-
provado foi Judas Iscariotes; mas por quê, por qual culpa foi
rejeitado e reprovado? Direis que pela comunhão indigna,
talvez. Mas atentai a que, enquanto o Senhor profere contra
Judas esta sentença de reprovação: é um diabo, Judas não tinha
ainda comungado, ainda não tomara o corpo de Jesus. Logo,
outra é a causa e a culpa da reprovação de Judas. Direis então
que Judas foi reprovado porque traiu e vendeu o Mestre, ou
porque se prendeu de um laço; mas nada disto se havia con-
sumado quando Jesus reprovou Judas. Outro pois há de ser
o crime pelo qual Judas foi reprovado e condenado. E qual
será ele? Eu o digo: porque Judas era surdo aos zelosíssimos
sermões, exortações e palavras de Cristo. Com que ênfase, na
última ceia, não fala e prega Jesus aos Apóstolos: Ai do homem
por quem for entregue o Filho de homem. Melhor lhe fora não
ter nascido (Mt 26, 24)! Tais palavras deviam por certo ter le-
vado Judas a mudar sua má intenção, mas era surdo a esta en-
fática exortação; nem sequer lhe parecia que eram dirigidas a
ele essas palavras. E esta surdez de Judas às palavras de Jesus é
a causa fundamental e a culpa da condenação de Judas. Não
ouvir a palavra de Deus, não gravar no coração suas piedosas
exortações nem a elas se conformar é sinal manifesto de con-
denação eterna.

31
J U DA S N O I N F ERN O: N OTA S B Í B LI CA S

Pelbartus de Themeswar, OFM, Sermones de Sanctis, Pars Hie-


malis, pro sancto Matthia, Serm. II:

Eis, ó cristão, que enorme espetáculo! Vede como Judas, após ter
sido chamado, se tornou ingrato e, tendo recebido a remissão de
seus pecados, caiu depois em outros maiores, por isso deu fim à
vida desesperado […]. Primeiro, porque os maus cristãos, como
outro Judas, estão deformados pela ignomínia da apostasia, pois
Judas foi considerado apóstata da fé, e estes também, se não pela
incredulidade do coração, ao menos pela das obras. Mas que é
apostasia? […] É o afastamento temerário do estado de fé e de
obediência eclesiástica, ou da religião cristã. Destas palavras de-
preende-se que são três as espécies de apostasia […]. Na primeira
[a fide] estão todos os hereges e quem quer que renegue a fé, como
Juliano e muitos outros, como Judas […]. A segunda é a ignomínia
da abnegação. Com efeito, o mau cristão, como outro Judas, nega
Cristo, seu Deus, ao menos por obras, como diz o Apóstolo (Tt 1,
16): “Confessam conhecer a Deus, mas o negam pelas obras” […].
Terceira ignomínia, da traição, pois todo mau cristão, como outro
Judas, é considerado traidor de Cristo, porque entrega ao diabo a
casa de Cristo, isto é, o seu coração, do qual o expulsa pelo peca-
do, crucificando-o em si mesmo. Hb 6, 6: “Crucificam novamente
a Cristo em si mesmos”. Por fim, tal [cristão], como outro Judas,
serve-se dos recursos de Cristo, de quem recebe sustento, agasalho
e todo bem, e não obstante não se peja de o ofender […]. Quarta
ignomínia, da derrisão, pois o mau cristão, como outro Judas, é
justamente vituperado e escarnecido por todos, qual um monstro
ridículo, porque é em parte cristão, em parte pagão, em parte bru-
to, em parte diabo, e até pior que um diabo […]. Sexta ignomínia,
da destruição, pois o mau cristão, como outro Judas, perde toda a
graça, todo o mérito e todo o bem que alguma vez adquiriu, por-
que o pecado dá morte a tudo. E tudo o que aproveita aos bons
[cristãos] prejudica o mau, como é patente no caso da recepção
da Eucaristia e dos outros sacramentos. Quem, com efeito, comer
indignamente, tornar-se-á réu do corpo e do sangue de Cristo,
como Judas […]. Sétima ignomínia, da condenação, pois assim

32
Ap ên di c e

como Judas deu indício manifesto de sua condenação, quando se


prendeu a um laço e rebentou ao meio, espalhando-se-lhe todas
as vísceras em que concebera a iniquidade; assim também o mau
cristão carrega claramente consigo o juízo da própria condenação,
a menos que se converta pela penitência, já que a sua própria fé
católica sustenta que irão para o fogo eterno os que obrarem o mal.

G. W. Leibniz, Confessio philosophi, em R. C. Sleigh Jr. (ed.),


Papers Concerning the Problem of Evil, 1671-1673, p. 34):

Teólogo. Concedes, pois, não haver nada sem razão [suficiente].


Filósofo. Como o não concederia? embora não veja o porquê
desse esforço para confirmar tão clara proposição.
T. Só mais um pouco, e verás claramente como se tece daí uma
intrincada corrente de dificuldade. Pois bem, então Judas foi
condenado.
F. Quem o ignora?
T. E o foi decerto por alguma razão.
F. Já sabes que nisto estamos de acordo.
T. Qual foi então a razão?
F. Penso que seu estado ao morrer, ou seja, o ódio a Deus em
que morreu, no qual consiste a natureza do desespero. Isso é o
bastante para condenar-se. Pois a alma, enquanto se separa do
corpo, não tem mais acesso a novas sensações, por isso insiste
apenas em seus derradeiros pensamentos; daí que não mude,
mas aumente o estado em que morreu. Ora, ao ódio a Deus,
que é sumamente feliz, se segue a máxima dor, pois ódio é dor
pela felicidade [alheia], assim como amar é alegrar-se pela fe-
licidade do amado, logo a maior de todas. Ora, a máxima dor
é a miséria, ou condenação. Por isso, quem, ao morrer, odeia a
Deus, condena-se a si mesmo.

33
J U DA S N O I N F ERN O: N OTA S B Í B LI CA S

J. Knabenbauer, SJ, Commentarius in Evangelium secundum


Matthæum. 3.ª ed., Paris: P. Lethielleux, 1922, p. 43:

Era Judas bom ou mau ao ser eleito? — Responde Francisco de


Toledo: Não se deve dizer que Judas, quando foi eleito, era mau,
como sustentam alguns, pensando ser essa a opinião de Agosti-
nho (cf. Tract. 27 in Ioh.), porque este, na verdade, não diz isso,
mas que Judas foi eleito, embora Cristo soubesse que ele se torna-
ria mau. Por outra parte, que Judas ainda fosse bom, ensinam-no
Cirilo (IV, 3 = In Ioh. 6, 71s: PG 73, 632) e Jerônimo (Contra Pelag.
III 3, n. 6: PL 23, 7). Outros se perguntam por que Jesus teria es-
colhido para o apostolado aquele que sabia ser seu futuro traidor.
Ora, poder-se-ia perguntar igualmente, responde Toledo, por que
Deus criou os anjos que sabia haviam de converter-se em demô-
nios; por que criou Adão, se previra seu pecado; por que faz os
homens que prevê se hão de condenar etc. Basta-nos saber que
Deus não criou nenhum homem ou anjo para que peque ou faça
o mal. Deve-se atribuir exclusivamente ao vício deles e à culpa do
livre-arbítrio que caiam em pecado; Deus, porém, usa o mal deles
para o bem. Da traição de Judas, com efeito, da qual o próprio
Judas foi causa livre e voluntária, Deus se serviu como de certo
“instrumento” para a morte do Filho, como também se serviu do
ódio e da iniquidade dos judeus, para que Cristo, morto por eles,
vencesse a nossa morte com a sua (cf. In Ioh. 6, n. 36; 12, n. 20).18
Por que Jesus lhe permitiu traí-lo? — Dão-se várias razões.
Diz, p. ex., Santo Ambrósio: “Elegeu-se também a Judas, não
por imprudência mas por providência. Quão grande é a Verda-

18. A rigor, é impróprio dizer que Deus se valha de um mal moral como
“meio” ou “instrumento” para obter certo bem. É mais adequado dizer que
Deus se aproveita do fato de um mal moral (previsto e não impedido) ter-se
produzido como de uma ocasião favorável, mas não necessária nem condi-
ção sine qua non, para obter certo bem. Noutras palavras, nenhum mal de
culpa é em si mesmo meio ou condição sem a qual Deus não possa obter um
determinado bem, ainda que Ele, por ocasião de tal mal, possa obter tal bem.
Assim, p. ex., entre o mal da traição de Judas e o bem da redenção de Cristo
há conexão causal de facto, mas não de iure ou simpliciter necessária.

34
Ap ên di c e

de, que nem um ministro adversário a pode enfraquecer; quão


grande é a bondade do Senhor, que preferiu arriscar conosco
mais o seu juízo que o seu afeto! Assumira ele a fragilidade do
homem, e por isso não recusou tampouco este lado da fraqueza
humana: quis, pois, ser abandonado, quis ser traído, quis ser en-
tregue por um de seus Apóstolos, para que, abandonado por um
amigo, traído por um amigo, suportes pacientemente que erras-
te em teu julgamento, e assim perdeste teu benefício”. Nestas
palavras Toledo identifica quatro causas finais: a) para mostrar
a firmeza da doutrina de Cristo, em si mesma tão sólida, que,
ainda que caia um dos Doze, nem por isso se torna menos digna
de fé; b) para mostrar a grandeza de sua caridade para conosco,
tão intensa, que não se negou nem a escolher para Apóstolo a
quem sabia havia de perder-se nem a fazer o possível para o sal-
var, preferindo o amor à consideração dos homens, isto é, quis
antes ser tido por tolo ou imprudente, como se não soubesse da
sorte final de Judas, que não amá-lo e fazer quanto podia para
o salvar; c) para que, tendo assumido nossa fraqueza, passasse
também pelo que é maximamente próprio dela: ser abandona-
do, traído e entregue pelo melhor amigo; d) para nos dar exem-
plo de paciência, isto é, para que suportemos pacientemente es-
tas três coisas, se porventura um amigo ou alguém de confiança
nos trair: α. que erramos ao escolher tal amizade, β. perdemos os
benefícios que lhe tivermos feito, γ. e fomos traídos.19

19. Outros autores propõem outras razões mais, p. ex.: e) para mostrar que
não é a dignidade de estado que santifica o homem, mas a correspondência
à graça; f) para mostrar que em toda multidão há sempre algum mau, inclu-
sive na Igreja; g) para que ninguém, por melhor que seja entre os santos, se
fie muito de si mesmo, porque todos, enquanto vivem, podem cair; h) para
mostrar que Deus dá graças e confere às vezes dignidades eminentes, mesmo
sabendo que o homem irá abusar do livre-arbítrio e se perderá por causa
destes mesmos dons: de sua parte, com efeito, Deus concede as graças ne-
cessárias, mas não impõe ao homem necessidade alguma, senão que o atrai
e urge, sem porém coagi-lo.

35

Você também pode gostar