Você está na página 1de 38

OS TR ÊS CÂNTICOS DO EVANGELHO:

NOTAS BÍBLICAS

ISBN:
978-85-52993-16-2

Publicado por:

Av. Higienópolis, 174, Centro


86020-908 — Londrina (PR) — Brasil
editorapadrepio.org

Autoria de Pe. Adriano Simón


e Pe. Guilherme Dorado, C.Ss.R.
Adaptação e Tradução de Douglas Abreu
Capa por Klaus Bento
Diagramação por Eduardo de Oliveira
Direção de Criação por Luciano Higuchi
Edição e Revisão por Éverth Oliveira

© Todos os direitos desta edição


pertencem e estão reservados à
Editora Padre Pio.

Com exceção de pequenos excertos utilizados em análises críticas, nenhuma


parte desta obra pode ser reproduzida, transmitida ou armazenada, em
qualquer meio ou forma, sem a autorização prévia, e por escrito, do editor.
A criação, exploração e distribuição de quaisquer edições não autorizadas
desta obra, em qualquer formato existente atualmente ou no futuro —
incluindo mas não se limitando a texto, áudio e vídeo —, é proibida sem a
autorização prévia, e por escrito, do editor.

Redempti ac vivificati Christi sanguine, Christo nihil præponere debemus,


quia nec ille quidquam nobis præposuit.
SUMÁRIO

Abreviaturas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
Bibliografia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

VISITAÇÃO DE NOSSA SENHORA (Lc 1, 39-56). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10

Visitação de Maria (vv. 39-41) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10


Saudação de Isabel (vv. 42-45). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
Cântico do Magnificat (vv. 46-56).. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14

NATIVIDADE E CIRCUNCISÃO DE JOÃO BATISTA (Lc 1, 57-80) .. . . . . . . . . . . . 23

Natividade e circuncisão (vv. 57-66) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23


Cântico do Benedictus (vv. 67-80) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25
Epílogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32

CIRCUNCISÃO E APRESENTAÇÃO DO SENHOR NO TEMPLO (Lc 2, 21-38) ���� 33

Circuncisão de Cristo (v. 21). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33


Apresentação de Cristo (v. 22ss). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34
Jesus é reconhecido como Messias (vv. 25-38) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36
ABREVIATURAS

De beata Virgine = Tractatus de beatissima Virgine Maria, A. H.


M. Lépicier (Paris, 1901)

De specialibus legibus = Fílon de Alexandria, em L. Cohn (ed.),


Philonis opera (Berlim, 1896), vol. 5

Dilucid. = Dilucidationes, M. Wouters (Madri, 1808)

Divinitas = Divinitas Domini Nostri Jesu Christi manifesta in


Scripturis et Traditione, P. Maran (Wurtzburgo, 1859)

G = texto grego

In Lucam = Expositio Evangelii secundum Lucam, Ambrósio de


Milão (ML 15)

Meg. = Megillah (Talmude), ed. William Davidson, disponível


em <sefaria.org>

MG = Patrologiæ cursus completus. Series Græca, J.-P. Migne


(Paris, 1857ss)

ML = Patrologiæ cursus completus. Series Latina, J.-P. Migne


(Paris, 1844ss)

PB I = Prælectiones Biblicæ I: Novum Testamentum, H. Simón-


–G.G. Dorado (Turim, 31930; 61944)

S = versão dos Setenta, Septuaginta

4
A BR E V IAT U R AS

STh = Summa theologiæ, Tomás de Aquino: I (ed. Leonina 4–5


[1888s]); II-II (ed. Leonina 8 [1895]); III (ed. Leonina 11
[1903], 12 [1906])

Super Matthæum, Tomás de Aquino = Lecturæ super Mat-


thæum, Id., ed. Marietti (Turim, 51951)

T = Evangelia apocrypha, C. de Tischendorf (ed.), Leipzig,


2
1876; Acta apostolorum apocrypha post Tischendorf, R. A. Lip-
sius–M. Bonnet (edd.), Leipzig, 1959

u.c. = ab Urbe condita (desde a fundação de Roma)

V = versão Vulgata

Vitis mystica = Tractatus de passione Domini, anônimo (MG 184)

5
BIBLIOGRAFIA

J. Bonsirven, Le judaïsme palestinien au temps de Jésus-Christ II: Théologie


morale. Vie morale et religieuse (Paris, 21935).

H. Didon, Jésus-Christ (Paris, 1890).

F. X. Funk (ed.), Didascalia et Constitutiones Apostolorum (Paderborn,


1905), vol. 1.

P. Joüon, L’Évangile de Notre-Seigneur Jésus-Christ. Traduction et commen-


taire (Paris, 1930).

M.-J. Lagrange, L’Évangile selon saint Luc (Paris, 1921).

Cornélio A Lápide, Commentarii in Sacram Scripturam (Lyon, 1839),


vol. 8.

João Maldonado, Commentaria in quattuor Evangelistas (Mainz, 1840),


3 vols.

Luís de Ponte, Meditationes in compendium redactæ (Bréscia, 1892).

F. Prat, Jésus-Christ, sa vie, sa doctrine, son œuvre. Trad. ing. J. J. Heenan


(Milwakee, 1950).

A. Vaccari, ‘De vi circumcisionis in Veteri Fœdere’, in: Verbum Domini 2


(1922), pp. 14-18.

6
VISITAÇÃO DE NOSSA SENHORA
1

(Lc 1, 39-56)

Visitação de Maria (vv. 39-41)


V. 39. Levantando-se (locução hebraica para dar início a
uma narração, frequente em Lucas; cf. 15, 18.20; At 10, 20; 12,
10) Maria naqueles dias, foi às montanhas (grego εἰς τὴν
ὀρεινὴν, subetende-se χώραν = à região montanhosa) com
pressa, devido à alegria que lhe transbordava do coração, e
não por duvidar das palavras do anjo. Com efeito, para onde
mais haveria de correr a que já era cheia de graça senão às
montanhas, perto do céu? (cf. Ambrósio, In Lucam, 2.19: ML
15, 1640). — A uma cidade de Judá (grego εἰς πόλιν Ἰούδα =
em certa cidade da Judeia). Nazaré está a 4 dias de viagem de
Jerusalém (cerca de 140 km).
Quanto ao lugar em que viviam Zacarias e Isabel, há diversidade de opi-
niões: alguns (sobretudo os medievais) pensam que se trata de Jerusalém;
outros (muitos nos sécs. XVI-XVII), de Hebrom, que estava nas montanhas
de Judá; outros, em vez de Judá, leem Juta ou Jutta (talvez a atual Yatta, a
cerca de 13 km ao sul de Hebrom), mencionada em Js 15, 48-60; 21, 16,
cidade sacerdotal localizada em região montanhosa. Uma antiga tradição,
nascida por volta do séc. VI, situa a casa de Zacarias em ‘Ain-Karim (cf. Js
15, 59 S), a cerca de 7 km a sudoeste de Jerusalém. É a opinião majoritária
dos palestinólogos atuais.

1. PB 6I 294-300, nn. 213-216.

7
O S TR Ê S C Â N TIC O S D O E VA NGE L HO

V. 40s. E após quatro dias de viagem, entrou na casa de Zaca-


rias e cumprimentou Isabel, como exigiam as normas de hospi-
talidade. “Veio uma parenta encontrar-se com outra, uma jo-
vem com uma idosa. Não só veio como também a saudou
primeiro. Pois convém que, quanto mais casta for a virgem,
tanto mais seja humilde. Soube ela servir aos mais velhos. Seja,
pois, mestra de humildade a que professa castidade” (Ambró-
sio, In Lucam, 2.22).

Ora, aconteceu que, apenas Isabel ouviu a saudação de Maria, o


menino saltou no seu ventre, o que se deve entender não como
um dos movimentos naturais (próprios da gestação) com que
as crianças, ainda encerradas no seio materno, devido a certas
emoções ou perturbações da mãe, às vezes parecem saltar (cf.
Gn 25, 22), mas como a alegria sobrenatural com que João,
movido pelo Espírito Santo, reagiu à presença do Redentor e
de sua Mãe virginal. Essa moção extraordinária do Espírito
Santo estendeu-se à alma não só do Precursor, mas também de
sua mãe: e Isabel ficou cheia do Espírito Santo, i.e., iluminada
com luz sobrenatural para conhecer os divinos mistérios que
se tinham realizado havia pouco em Maria. 2

2. É sentença comum entre os católicos que nesse versículo cumpriu-se o


profetizado meses antes por Zacarias (cf. Lc 1, 15): João Batista recebeu
a justificação ao ser purificado do pecado original. A razão é que a graça
santificante (que implica, entre outras coisas, o dom do Espírito Santo e a
inabitação trinitária) não pode coexistir com o pecado, quer original, quer
mortal (cf. Wouters, Dilucid., 5.1.3). Diz a esse respeito Atanásio de Alexan-
dria: “Muitos foram santos, puros de todo crime. Com efeito, Jeremias foi
santificado desde o útero (cf. Jr 1, 5), e João, enquanto ainda era gestado pela
mãe grávida, exultou de alegria à voz da Virgem deípara” (Serm. 4 contra
Arianos). O Angélico pensa o mesmo: “Encontramos que a alguns outros foi
privilegiadamente concedido santificar-se no útero, como Jeremias... e assim
como João Batista” (STh III 27, 1c.).

8
V I SI TAÇ ÃO DE NOS S A SE N HOR A

Comentando Lc 1, 15, escreve Maldonado:


Chamam-se cheios do Espírito Santo nas Sagradas Escrituras não
só aqueles a quem o Espírito é abundantemente dado, mas aque-
les a quem é dado de tal modo, que parece redundar externamen-
te em algum sinal... Neste lugar, portanto, João Batista é chamado
cheio de Espírito Santo não somente porque foi santificado no úte-
ro da mãe, mas, muito mais, porque foi santificado de tal modo
que, sendo ainda uma criança de seis meses, sentiu e indicou com
exultação o Cristo menino vir até si... É evidente, com efeito, que
o anjo quis indicar o que havia de suceder para que João, no útero,
apontasse para Cristo, e este é o sentido da partícula desde, como
se dissesse: antes que saia do útero, quando ainda estiver no útero,
como todos os antigos intérpretes expõem.

Dubium: Por que então diz o Batista (Mt 3, 14) : “Sou eu que devo ser ba-
tizado por ti, e tu vens a mim”? Se já no útero foi santificado e purificado do
pecado original, por que devia ser batizado? Responde Pedro Comestor:
“<João> compreendeu em si mesmo o gênero humano, como se dissesse: O
homem deve ser purificado por ti; ou, quanto à plenitude da purificação,
disse que ainda devia ser purificado porque, se já estava puro, também pelo
sangue de Cristo seria mais plenamente purificado, assim como alguém,
após receber um remédio eficaz, diz-se curado pela causa, mas curável pela
plenitude do efeito” (HS 33: ML 198, 1555). Com isto parece estar de acor-
do o Aquinate, ao distinguir a purificação pessoal de alguns antes do ad-
vento de Cristo e a purificação de toda a natureza após a Paixão (cf. Super
Matthæum, 3.2). Cornélio a Lápide interpreta: “Por devo, em grego está
χρείαν ἔχω, i.e., preciso, necessito ser batizado por ti, quer dizer, ser espiri-
tualmente purificado de pecados leves e aperfeiçoado por teu Espírito e
por tua graça. Não significa, pois, um dever de preceito, como se o Batista
estivera obrigado a receber o batismo de Cristo” (In Matthaeum, 3.14). Mas
a explicação pode ser mais simples. Simón Prado assim parafraseia o que
para ele significam as palavras de João: “Se algum de nós precisa ser batiza-
do, então sou eu, pecador, que devo pedir o batismo a ti, que és santíssimo
e digníssimo”. Embora santificado no ventre de Isabel, João Batista — como
todos os homens, com exceção de Cristo e de Maria Imaculada — pode ser
dito pecador por ter sido concebido em pecado, assim como a concupis-

9
O S TR Ê S C Â N TIC O S D O E VA NGE L HO

cência pode ser dita pecado, embora não o seja formalmente, na medida
em que tem origem no pecado e inclina ao pecado (cf. Concílio de Trento,
5.ª sess., 17 jun. 1546, Decreto sobre o pecado original, Cân. 5: Denzinger-Hü-
nermann 1515).

Saudação de Isabel (vv. 42-45)


V. 42. E exclamou em alta voz: Bendita és tu entre todas as
mulheres (cf. v. 28), e bendito é o fruto do teu ventre, quer dizer,
(a) isento de toda maldição e pecado, (b) cumulado de todos os
dons da natureza e da graça é o teu Filho! Alguns intérpretes
opinam que a conjunção ‘e’ não tem valor aditivo, mas explica-
tivo, i.e., equivale a ‘porque’ (ϰαί epexegético, latim et = enim),
de forma que a razão por que Maria é chamada bendita entre as
mulheres é a dignidade e santidade de Cristo, ou seja, a bênção
do Filho é causa e razão da bênção da Mãe. Com efeito, assim
como a glória dos filhos são os pais (Pr 17, 6), também a honra
daqueles redunda nestes.

V. 43. Donde (subentende-se: me vem; latim evenit, grego


γέγονεν) a mim esta dita, que (latim ut, grego ἵνα não final,
mas em lugar do inf. = a dita de vir etc.) a Mãe do meu Senhor
venha ter comigo? A pergunta, provavelmente retórica, é sinal
de um espírito humilde, maravilhado pela grandeza quase infi-
nita da Mãe de Deus (cf. STh I 25, 6 ad 4) e ciente, ao mesmo
tempo, da própria humildade e indignidade, como se dissesse:
“Como poderia eu merecer tamanha honra?”

Do v. 44 se pode concluir que a voz de Maria foi como um veí-


culo por meio do qual a graça do Espírito Santo foi concedida
a João e a Isabel, de sorte que aqui parece estar contida, de
modo mais ou menos implícito, a função mediadora de Nossa
Senhora na distribuição das graças.

10
V I SI TAÇ ÃO DE NOS S A SE N HOR A

V. 45. Ao mesmo tempo, louva a fé de Maria: Bem-aventurada


aquela que acreditou (ἡ πιστεύσασα), porque será cumprido o
que o Senhor lhe prometeu. A construção é algo ambígua, pois
não deixa claro como se deve interpretar a conjunção ‘porque’
(grego ὅτι, latim quia), i.e., se a conexão é: Bem-aventurada...
porque será cumprido, ou: Acreditaste... porque (i.e., uma vez
que) será cumprido. A primeira leitura parece ser a mais óbvia.
“Vê que Maria não duvidou”, ao dizer: Como se fará isso? [Lc 1,
34], “senão que acreditou, e por isso alcançou o fruto da fé”
(Ambrósio, In Lucam, 2.26).

Cântico do Magnificat (vv. 46-56)


A Virgem bendita não responde aos louvores e elogios da pa-
renta, senão que, movida pelo Espírito divino, entoa um hino
admirável, que é a um tempo hino de ação de graças e admirá-
vel profecia. 3

3. Não falta entre os teólogos quem queira ver no Magnificat uma base bí-
blica, ao menos indireta, para a conceição imaculada de Maria. Veja-se, por
exemplo, Lépicier, De beata Virgine, 101s, n. 12: “Tendo ouvido a beatíssima
Virgem a saudação de Isabel, entoou aquele célebre cântico do Magnificat, no
qual enaltece os atributos de Deus e, devidamente cônscia de sua humilda-
de, proclama com palavras amplíssimas sua própria excelência. Nele, entre
outras coisas, proferiu o seguinte: ‘Porque me fez grandes coisas o que é po-
deroso e cujo nome é santo’... a partir do que é possível argumentar assim: na
beatíssima Virgem, Deus manifestou sua onipotência de modo tão singular,
que a mesma Virgem bendita pode ser justamente considerada um milagre
ou, antes, o ápice de todos os milagres; ora, a divina onipotência manifesta-se
sobretudo quando Deus vence totalmente seus inimigos; logo, na beatíssi-
ma Virgem fez grandes coisas Deus onipotente, nela debelando totalmente
e superando os poderes diabólicos... Ao que se soma outro argumento... Em
seu cântico, a beatíssima Virgem expõe todos os argumentos em razão dos
quais se rebaixou, como humilde escrava de Deus, perante o anjo; ora, se ela
realmente houvera sido concebida no pecado original, com certeza o teria
reconhecido, de modo que não deveria ter dito: ‘Olhou para a humildade de
sua escrava, mas: Para a iniquidade de sua inimiga’, como todos os santos fi-

11
O S TR Ê S C Â N TIC O S D O E VA NGE L HO

a) Com respeito à composição literária, o cântico de Maria apresenta-se


metricamente estruturado, como se vê inclusive no G. Contudo, não há
entre os autores unanimidade quanto ao número de estrofes: alguns enu-
meram 4 (46b-48.49s.51ss.54s), outros 3 (46b-49.50-53.54s), enquanto al-
guns distinguem 5 dísticos (46b-47.48s.50s.52s.54s). Disputas à parte, é
suficiente apresentar as três ideias nucleares do cântico, sem levar em conta
sua estrutura métrica.

b) Pois bem, Maria α) exprime sentimentos de gratidão pelo


benefício recebido (vv. 46-50); β) bendiz e exalta a Providência
divina, que desconcerta os soberbos e exalta os humildes (v.
51ss); γ) e louva a inquebrantável fidelidade de Deus às suas
promessas (v. 54ss).

c) O cântico do Magnificat está entretecido não só de conceitos, mas tam-


bém de cláusulas, palavras e locuções tomadas de empréstimo ao AT, razão
por que se lhe pode chamar uma ressonância ou um eco de toda a poesia
lírica vetero-testamentária. O que não é de estranhar, se se recorda que os
judeus tinham o costume de expressar os próprios afetos com expressões
ou trechos de salmos. Nem se pense que o cântico é um mosaico sem figu-
4

ra; na verdade, o estro divino e o sentimento religioso, a exultação profun-

zeram e ensina a verdade, pois o início da justiça é a acusação da própria cul-


pa, segundo aquilo: ‘O justo é o primeiro a se acusar’ (Pr 18, 17 segundo V)”.
4. A principal característica dos judeus daquele tempo era, sem dúvida al-
guma, o espírito de oração (cf. Zc 12, 10). De manhã, à hora do sacrifício
vespertino, ao pôr do sol, antes e depois das refeições (cf. Dt 8, 10) etc., era
costume bendizer e rezar a Deus. Os mestres entre os fariseus aconselha-
vam orações longas e frequentes e, ao mesmo tempo, prescreviam normas
— numerosas e incômodas — sobre a posição, o lugar, o modo e o tempo
adequados à oração. As fórmulas empregadas eram sobretudo o Decálogo,
Shema‘, Tephîlla, salmos ou partes de salmos (sobretudo os Hallel, i.e., os Sl
112–117). As fórmulas não canônicas, tanto quanto as canônicas, recendem
ares de verdadeira piedade, humildade, devoção, confiança, amor e reverên-
cia a Javé. Prova de que era também muito frequente rezar sem nenhuma
fórmula prévia são as obras de Fílon de Alexandria e de Flávio Josefo, além
de muitos apócrifos, repletos de belas orações.

12
V I SI TAÇ ÃO DE NOS S A SE N HOR A

da e a inspiração lírica que o permeiam dotam-no de unidade e coerência


admiráveis, conferindo uma significação toda nova a versos aparentemen-
te desconexos.

V. 46s. α) Ação de graças. — Então Maria disse: Glorifica


(μεγαλύνει, enaltece, exalta, engrandece; cf., por exemplo, Sl 68,
31; 33, 4; At 5, 13 etc.) a minha alma (= eu, um hebraísmo) o
Senhor, e exultou (ἠγαλλίασεν, aoristo pelo presente = exulta) o
meu espírito (τὸ πνεῦμά μου = eu) em Deus, minha salvação (cf.
Hab 3, 18), i.e., meu Salvador, que me prepara a salvação. 5

Ambos os estíquios expressam a mesma ideia, recurso comu-


níssimo na poesia hebraica (chamado paralelismo sinônimo), 6

e, ao mesmo tempo, contêm uma súmula de todo o cântico: o


júbilo da alma pelos benefícios de Deus.

Vede como é contrário esse cântico ao do anjo caído: este come-


çou elevado mas caiu; antes, ruiu até o fundo do abismo. Maria,
porém, começou humilhada, por isso foi elevada às alturas. Ela
engrandece o Senhor, não a si mesma, embora tenha sido sobre-
maneira exaltada, segundo o que está escrito: “Quanto mais fores
elevado, mais te humilharás em tudo” (Eclo 3, 20), de modo que
mereceu ser elevada acima de todos os coros angélicos. O demô-
nio, pelo contrário, engrandeceu a si mesmo, por isso mereceu ser
precipitado abaixo de todas as coisas (São Bernardo de Claraval,
Vitis mystica, 25.85: ML 184, 681).

V. 48a. Dá em seguida a razão por que enaltece o Senhor com


tão ardentes louvores: Porque lançou os olhos, i.e., favorável e

5. “Esta exultação não foi um ato pontual e transitório, senão que perdurou na
Virgem à maneira de hábito por toda a sua vida” (atribuído a Alberto Magno).
6. O paralelismo sinônimo consiste em exprimir com outras palavras de
sentido equivalente uma ideia já apresentada. Trata-se de um dos recursos
estilísticos mais frequentes na poesia hebraica (cf., por exemplo, Sl 113, 1-4).

13
O S TR Ê S C Â N TIC O S D O E VA NGE L HO

benigno, dignou-se olhar para a humildade (ταπείνωσιν, vile-


za, pequenez, pessoa ou condição ignóbil, i.e., baixeza) da sua
escrava (cf. v. 38). É evidente que Maria não fala aqui da virtu-
de da humildade (de fato, seria absurdo que ela atribuísse sua
exaltação a si mesma), mas de sua própria condição, tão sim-
ples, modesta e pequena em comparação com a dignidade da
maternidade divina. Aqui, Maria exerceu sem dúvida a virtude
da humildade, mas não se referiu a ela.

V. 48b-50. Em primeiro lugar, declara a consequência (de-


senvolvida em termos proféticos) das palavras anteriores: Por-
tanto, eis que daqui (grego ἀπὸ τοῦ, latim ex hoc = desde este
momento, doravante) me chamarão bem-aventurada (i.e., me
hão de saudar como etc.) todas as gerações; não tu somente, ó
Isabel, mas os fiéis de todos os tempos me proclamarão bem-a-
venturada e celebrarão em mim a divina maternidade. — Cf.
Gn 29, 21 e 1Sm 1, 11, tão semelhantes pelas palavras, tão dife-
rentes pelo teor.

Em seguida (v. 49s), declara por que todas as gerações hão de


celebrá-la: Porque me fez, i.e., em mim grandes coisas (μεγάλα,
ou μεγαλεῖα, expressão com que S costuma verter o hebraico
ghedhōlōth = portentos, maravilhas, grandiosidades etc.), a sa-
ber: a divina maternidade, a concepção virginal e quanto delas
decorre. O que segue, desfeitos o anacoluto e os idiomatismos
hebraicos, há que ordená-lo assim: “[Fez em mim grandes coi-
sas] o que é (todo-)poderoso e cujo nome é santo e cuja mise-
ricórdia se estende de geração em geração sobre aqueles que o
temem (reverenciam)”; em outras palavras: “Fez em mim
grandes coisas Javé, Deus potente, santo e misericordioso”.

Logo, por perífrase, a fim de dar maior elegância à frase, no


lugar do nome Deus, que seria mais simples, Maria emprega os
três atributos divinos que mais refulgem nos benefícios a ela
concedidos e na obra da redenção há pouco começada: a) a

14
V I SI TAÇ ÃO DE NOS S A SE N HOR A

onipotência (o que é poderoso) porque de fato se realizaram


grandes milagres; b) a santidade (e santo, i.e., venerando,
adorável é o seu nome, o que é um idiomatismo hebraico para
referir-se à pessoa) porque a preservou imune do pecado origi-
nal e a cumulou de tantas e tão grandes virtudes; c) e a miseri-
córdia, que é perpétua e constante (de geração em geração, cf.
Is 34, 17; Sl 102, 17) para os que temem, i.e., veneram piedosa-
mente (pela observância da lei) a Deus, graças à qual se cum-
priram numa menina tão humilde todos os desejos dos santos
do Antigo Testamento e as promessas a eles feitas.

V. 51ss. β) Epinício à Providência. — Por ocasião do versícu-


lo precedente, Maria eleva ainda mais a alma para louvar a Pro-
vidência divina, que tanto se manifestou na antiga história dos
judeus e se havia de manifestar para sempre na era cristã, e cuja
norma precípua é humilhar os soberbos e exaltar os humildes.
Fez potência em seu braço, i.e., manifestou o poder de seu braço
(o braço, para os hebreus, é símbolo de poder e autoridade e
pode aplicar-se a Deus, puro espírito, por analogia de atribui-
ção imprópria, ou metafórica).

Dispersou os soberbos de coração (διανοίᾳ = de pensamento),


i.e., dissipou, frustrou os que se engrandeciam em seus pensa-
mentos, intenções ou desejos, tornando vãos e estéreis seus
projetos e maquinações; depôs do trono (δυνάστας ἀπὸ
ϑρόνων) os poderosos (por exemplo, o faraó, Nabucodonosor,
Antíoco etc.) e elevou os humildes, i.e., os de origem ou condi-
ção simples, pobre ou ignóbil (Saul, Davi etc.), o que se pode
referir, em sentido figurado, também à economia da nova lei.

Encheu de bens os famintos etc. é repetição da mesma ideia: fez


ricos aos pobres, e pobres aos ricos.

V. 54s. γ) Epinício à fidelidade divina. — Desenvolve-se a


terceira e última ideia. Maria traz à memória as promessas di-

15
O S TR Ê S C Â N TIC O S D O E VA NGE L HO

vinas acerca de Israel e afirma que elas finalmente se cumpri-


ram. Acolheu (ἀντελάβετο, auxiliou, pôs sob sua tutela e prote-
ção, i.e., tomou cuidado de) Israel, seu menino (grego παιδὸς
αὐτοῦ, latim puerum suum), i.e., seu servo (Is 41, 8s; 42, 1; 44,
1s.21; At 3, 13; 13, 26 etc.), o que se refere a um passado, não
remoto, mas próximo, imediato e quase presente (português =
“acaba de acolher”), porquanto alude ao fato da Encarnação,
com a qual é inaugurada a redenção messiânica.

Assim fez Javé, lembrado (μνησϑῆναι; em V: memorari; em


português, deve-se vertê-lo pelo gerúndio: lembrando-se, como
em fr., esp. e it.: en se souvenant, acordándose, ricordandosi) da
sua misericórdia (o possessivo falta tanto em G como em V),
i.e., mostrando não se ter esquecido de sua antiga misericór-
dia. — Conforme tinha prometido aos nossos pais (πρὸς τοὺς
πατέρας ἡμῶν), a Abraão e à sua posteridade (τῷ Ἀβραὰμ ϰαὶ
τῷ σπέρματι), i.e., aos descendentes dele para sempre.
Alguns intérpretes vinculam todos estes nomes, em oração contínua, à lo-
cução verbal tinha prometido, já que o verbo prometer, tanto em latim
quanto em grego, pode reger acusativo (ad patres, πρὸς πατέρας) e dativo
(Abraham et semini, τῷ Ἀβραὰμ ϰαὶ τῷ σπέρματι). Outros opinam que as
palavras a Abraão e à sua posteridade não são objeto indireto de tinha pro-
metido, mas um dativo livre “de interesse” (dativus commodi) referente a
lembrado de sua misericórdia, i.e., um designador secundário que expressa
o beneficiário da ação verbal: “Lembrou-se de sua misericórdia para
Abraão” etc., ou seja, em benefício, proveito, favor etc. de Abraão. Outros,
enfim, apelando para o hebraísmo subjacente, assim reconstroem a oração:
“Conforme tinha prometido [cf. v. 45] aos nossos pais, em proveito de
Abraão e de sua posteridade” (cf. Mq 7, 20).

Independentemente da ordem em que se disponham as pala-


vras, o que se afirma é que Deus começou agora (i.e., uma vez
realizada a Encarnação) a cumprir a promessa feita outrora aos
Patriarcas, segundo a qual havia de nascer da posteridade deles

16
V I SI TAÇ ÃO DE NOS S A SE N HOR A

(de Abraão etc.) aquele que traria a salvação para todos os po-
vos (Gn 17, 17; 18, 18; 22, 17s; 26, 4; 28, 14).

Essa promessa, é verdade, parece ter caído às vezes no esqueci-


mento, dadas as muitas calamidades que se abateram sobre o
povo de Israel; mas já não resta lugar para dúvidas: Javé foi fiel
à sua palavra!

V. 56. Maria ficou com Isabel cerca de três meses; depois voltou
para sua casa. Se Maria esperou o parto de Isabel ou não, nem o
texto o diz expressamente nem é unânime o parecer dos intér-
pretes. Contudo, em razão do modo como Lucas conduz a nar-
ração até o final, mesmo que passe aqui e ali ao largo da ordem
cronológica (para não falar dos deveres de piedade e caridade
que, naturalmente, ligavam Maria à sua parenta em tais circuns-
tâncias), deve sustentar-se como mais provável que a Virgem
bendita não deixou Isabel antes do nascimento de João.

Comentário espiritual (In Assump. B.M.V. [15 ago]: Lc 1, 41-50).

1) Para a meditação. Magnificat. Deus, a rigor, não pode ser nem se tornar
maior por causa dos homens ou deles receber qualquer benefício; de vários
modos, porém, é por nós engrandecido metaforicamente:

a) Quando o louvamos por palavras e ações, lhe prestamos culto em tem-


plos magníficos, o honramos com cerimônias dignas e lhe servimos com o
que temos de mais belo e sagrado.

b) Quando honramos seus servos, sobretudo os que o representam mais


expressamente, como os pobres, legados de Deus; os superiores, vigários de
Cristo; e os santos, nos quais habita o Espírito Santo, quer ainda vivam na
terra, quer reinem já com Cristo no Céu.

c) Quando levamos a muitos seu nome e sua glória; é o que fazem os que se
consagram à salvação do próximo, à instrução do povo, à educação dos fi-
lhos, à propagação da fé.

17
O S TR Ê S C Â N TIC O S D O E VA NGE L HO

d) Torna-se Deus grande em nossa alma, quando a alma mesma se faz


grande. Com efeito, assim como a imagem grande de um homem o mostra
igualmente grande, assim também a alma, que é imagem de Deus, se for
grande em virtudes e em divino esplendor, faz grande a Deus.

e) Deus torna-se grande para nós, quando somos humildes e desprezíveis


aos nossos próprios olhos. De fato, assim como às crianças, pela pequenez
de seus corpos, tudo parece maior do que àqueles que já alcançaram a de-
vida estatura, assim também as almas humildes admiram em Deus a gran-
deza, o poder, a sabedoria, a bondade, amesquinhadas pelos homens so-
berbos e cheios de si.

f) Fazemos grande a Deus, quando o preferimos com grande amor às outras


coisas, do mesmo modo como damos valor a uma pedra preciosa e a preferi-
mos ao ouro, se com ouro a compramos. Também assim Deus nos conside-
rou valiosos, pois, para nos redimir, derramou qual água o próprio sangue,
entregou sua carne, deu sua alma. Mas tu, como dás pouco valor a Deus! A
quem não duvidas preferir os prazeres dos sentidos, os fumos das honrarias
e até umas míseras moedas! (Costere, Mar., 44)

2) Para a pregação. Antes de expor um por um os versos deste cântico, hei


de considerar a) primeiro que a Virgem bendita deu esta resposta não a
Isabel, de quem ouvira tantos louvores e elogios, mas somente a Deus,
como à fonte de todas as graças pelas quais a congratulou sua parenta. Com
isso nos ensina a Virgem como nos havemos de portar com quem, por adu-
lação, nos elogia e enaltece em excesso. De fato, o meio mais seguro de fe-
char a boca aos aduladores é não lhes responder nada, mas dirigir a conver-
sa a Deus, atribuindo-lhe o que quer que haja em nós digno de louvor.

b) Em seguida, hei de considerar que a Virgem bendita, se era sempre de


pouquíssimas palavras, quer tratasse com homens, quer com anjos, expan-
dia-se não obstante, com a máxima consideração, ao falar de Deus e suas
grandezas. Assim é por natureza: “Do que abunda no coração fala a boca”
(Mt 12, 34). Ora, no mais das vezes, só falamos de coisas mundanas porque
é delas que está cheio o nosso coração. Mas se a alma se imbuir das verda-

18
V I SI TAÇ ÃO DE NOS S A SE N HOR A

des divinas e o nosso coração, ó Deus, do vosso amor, então se nos abrirá
um campo amplíssimo para falar santamente.

c) Por fim, que os dez versículos de que se compõem este admirável cântico
da Virgem, que passo a meditar, me sirvam de decacórdio, i.e., das dez cor-
das do saltério com que Davi entoava loas ao Senhor. Unirei aos de Maria
meus próprios afetos, buscando haurir das palavras dela seu verdadeiro
sentido e devoção (de Ponte, Meditationes, 341).

19
NATIVIDADE E CIRCUNCISÃO
DE JOÃO BATISTA
7

(Lc 1, 57-80)

Natividade e circuncisão (vv. 57-66)


Lucas retrata com estilo claro e simples essa alegre cena em
casa de Zacarias. Oito dias após o nascimento, reúnem-se pa-
rentes e vizinhos para felicitar a mãe e celebrar a festa da cir-
cuncisão. Todos queriam que o recém-nascido se chamasse
Zacarias, como o pai; Isabel, porém, ou por sugestão indireta
do marido, ou por revelação sobrenatural (o que parece mais
verossímil), preferia o nome de João. Apresentaram o caso a
Zacarias, o qual, pedindo um pugilar (πιναϰίδιον = tabuinha
encerada), escreveu, dizendo (hebraísmo para assim, deste
modo): O seu nome é João.

Como vissem o inesperado consenso entre pai e mãe quanto


ao nome da criança, todos ficaram admirados, por reconhece-
rem ali algum arcano desígnio de Deus. Logo em seguida, sol-
tou-se-lhe a língua a Zacarias, e ele falava, bendizendo a Deus,
i.e., entoando o hino Benedictus.

Ao verem estes sinais, os vizinhos e moradores da região foram


tomados de temor e reverência, de modo que se divulgaram
todas estas maravilhas (ῥήματα = debhārîm, i.e., palavras e fa-

7. PB 6I 302-307, nn. 218-221.

20
NAT I V I DA DE E C I RC U NC I S ÃO DE JOÃO BAT I STA

tos) por todas as montanhas da Judeia; e todos os que as ouvi-


ram puseram no seu coração (locução hebraica para pensavam
consigo, ponderavam) o que tinham visto e ouvido sobre aque-
le menino admirável, esperando dele grandes coisas: Quem
virá a ser este menino? E com razão conclui o evangelista: Por-
que a mão do Senhor era com ele, i.e., de modo único e singu-
lar manifestou-se em João a onipotência divina, que tantos e
tão grandes portentos tinha nele realizado.
Comentário espiritual (In Nat. S. Joannis Baptistæ [24 jun.]: Lc 1, 57-68).

1) Meditação. Ao Natal de Jesus Cristo precedeu em alguns meses a nativi-


dade do Precursor, João Batista, e a esta uma estupenda cópia de prodígios:
a) sua concepção deve-se antes à graça que à natureza, o que seu próprio
nome, João, i.e., graça, insinua, imposto a ele por mandado celeste; b) seus
pais eram estéreis, mas, fecundos em virtudes, impetraram do céu esta pro-
digiosa prole com santos suspiros e preces; c) o mesmo arcanjo que Deus
escolheu para anunciar à Virgem que ela daria à luz a Deus revelou tam-
bém a Zacarias a concepção de João Batista, acrescentando: “Ele será gran-
de diante do Senhor; não beberá vinho nem outra bebida inebriante; será
cheio do Espírito Santo desde o ventre de sua mãe; e converterá muitos dos
filhos de Israel ao Senhor seu Deus. Irá adiante de Deus com o espírito e a
fortaleza de Elias, a fim de reconduzir os corações dos pais para os filhos, e
os rebeldes à prudência dos justos, para preparar ao Senhor um povo bem
disposto” (Lc 1, 15ss).

2) Exame de consciência. Eis as obras da graça, alma minha! Nelas nada há


que não seja santo, nada que não seja grande, nada que não cause estupor.
Quanto menos de natureza houver em nossas ações, tanto mais conterão
elas de perfeição. Pois tudo o que provém da natureza traz em si o sabor de
sua origem e o cheiro desta sua mãe, que como um fermento corrompe até
as ações mais santas.

3) Colóquio. Não admira, Senhor, que minhas obras diante de vós tenham
em abundância tantas imperfeições e defeitos! Nascem muita vez de um
movimento cego das paixões, de um ímpeto repentino de alma, da vontade
e juízo próprios. São rebentos e frutos da natureza.

21
O S TR Ê S C Â N TIC O S D O E VA NGE L HO

4) Oração e propósito. Arrancai, benigníssimo Jesus, essa péssima raiz de


minhas imperfeições e, no lugar dela, ponde o gérmen santo da graça, para
que produza apenas flores e frutos de santidade dignos de vossos olhos e
paladar (de Ponte, Meditationes, I 489s).

Cântico do Benedictus (vv. 67-80)


O hino divide-se em duas partes: a primeira (vv. 67-75) fala do
Messias e dos bens que por meio dele nos foram dados; a se-
gunda (vv. 76-80) descreve o múnus do Precursor.
O cântico do Benedictus tem em comum com o do Magnificat a coloração
semítica e a semelhança com palavras e locuções do Antigo Testamento,
além da própria forma poética; diferem porém quanto ao estilo e ao con-
teúdo. a) Ambos os cânticos louvam a Deus pela redenção já incoada, mas
o da Virgem compreende sobretudo os privilégios particularmente conce-
didos a ela, enquanto o de Zacarias contempla os bens que redundarão em
favor de todo o povo. — b) O Benedictus, mais que a de um hino, tem a ín-
dole de uma profecia, daí que seja considerado a última profecia do Antigo
Testamento e a primeira do Novo Testamento; por outro lado, o Magnificat,
com exceção do versículo 48, consagra-se todo ao louvor de Deus. — c)
Com respeito ao estilo, o cântico de Zacarias se distingue pela extensão das
cláusulas, pela construção algo mais complicada (graças a infinitivos e acu-
sativos apostos) e por vários idiomatismos da língua grega, indício de que a
versão foi feita com relativa liberdade. — d) Com respeito à divisão métrica
do cântico, há, como no caso do Magnificat, a mesma variedade de opi-
niões. Alguns identificam 3, outros 4: 68ss.71-75.76s.79s; a maioria distin-
gue 5 estrofes de 4 (ou 6) membros: 68s.70ss.73ss.76s.78s. Para uns, há 7
longos dísticos: 68s.70s.72s.74s.76s.78s.

1.ª parte: A salvação messiânica (vv. 68-75). Zacarias procla-


ma a Deus digno de louvor pela salvação finalmente incoada
(vv. 68-69) e há muito prometida (v. 70); em seguida, descreve-
-a em si mesma (v. 71), em seu significado (vv. 72-73) e em
seus efeitos ou consequências (vv. 74-75).

22
NAT I V I DA DE E C I RC U NC I S ÃO DE JOÃO BAT I STA

V. 68s. Bendito (há que suprir o optativo εἴν = sit, aqui elípti-
co), i.e., seja louvado, por todos apregoado o Senhor, Deus de
Israel, porque visitou, olhou com misericórdia, manifestou mi-
sericórdia, e fez a redenção (λύτρωσιν) de seu povo, i.e., come- 8

çou a levar a efeito a restauração nacional (moral e religiosa) de


Israel. Diz de seu povo porque Zacarias se expressa segundo o
uso dos judeus, para os quais o Messias era o Salvador unica-
mente de Israel, e porque o povo judeu era tipo e figura do
povo cristão, i.e., da Igreja, destinada a todas as nações.
Visitou (ἐπεσϰέψατο), em S, está muita vez pelo hebraico ‫ ָּפקַד‬, lustro com
os olhos, dirijo o olhar, considero atentamente de quem terei compaixão (cf.
Rt 1, 6), ou a quem hei de punir (cf. Sl 58, 6), ou a quem escolherei em pre-
ferência aos demais (cf. Nm 27, 16). No Novo Testamento, costuma predi-
car-se de Deus em sentido positivo e equivale, pouco mais ou menos, a
“com misericórdia, olhou para os que havia de auxiliar ou prover”. Os ver-
bos ἐπεσϰέψατο, ἐποίησεν etc. declinam-se no pretérito porque, uma vez
encarado o Verbo, contempla-se (com espírito profético) a redenção como
já realizada (no passado, do cativeiro temporal dos egípcios e dos assírios;
no presente, da escravidão espiritual do demônio).

E suscitou (ἤγειρεν, fez erguer-se, despertou) um corno (chifre)


de salvação (grego ϰέρας σωτηρίας, latim cornu salutis), ou
seja, uma força salutífera ou uma potência salutar, i.e., (em fra-
se hebraica, com o abstrato pelo concreto) uma salvação pode-
rosíssima = um Salvador potentíssimo (cf. 1Sm 2, 10; Sl 17, 3).
— Corno de salvação é locução frequente entre os hebreus para
designar o Messias salvador; a metáfora inspira-se nos touros,

8. Expressões como redimir, fazer redenção, salvação, salvar etc. do AT, na


boca dos rabinos e dos israelitas em geral, significavam a restauração polí-
tico-religiosa do povo judeu por obra do Messias. Zacarias, porém, confe-
re-lhes um sentido espiritual mais profundo e adequado à real natureza da
salvação messiânica (cf. v. 77).

23
O S TR Ê S C Â N TIC O S D O E VA NGE L HO

cuja força parece concentrar-se nos chifres: quanto mais fero-


zes são, maior o ímpeto com que escorneiam.

Para nos salvar, na casa (na família, na posteridade) de seu me-


nino (παιδός, i.e., ministro, servo) Davi. O Salvador aclamado
por Zacarias é o Messias concebido no seio da Virgem, daí que
as palavras na casa de Davi pareçam conter uma alusão à ori-
gem davídica de Maria (cf., por exemplo, Rm 1, 3: Cristo nas-
ceu da posteridade de Davi segundo a carne, i.e., segundo a na-
tureza humana, com o que se afirma, por um lado, a
preexistência dele segundo a divindade e, por outro, a ascen-
dência davídica de sua Mãe, da qual tomou a carne).

V. 70. Abre-se um parêntese. O hipérbato deve ser reconstruí-


do da seguinte forma: “Conforme anunciou pela boca dos seus
santos profetas, desde o século”. O sentido é: O que sucede ago-
ra (a visita de Deus ao seu povo, o começo da redenção, o ad-
vento do Salvador) não se dá por acaso, mas para cumprir a
promessa (ἐλάλησεν, com o mesmo sentido que nos vv. 45.55)
feita outrora por Javé mediante os profetas, que existiram desde
os tempos antigos (ἀπ’ αἰῶνος = ‫מֵעֹולָם‬, cf. At 3, 21). Os profetas
são chamados santos em razão de sua especial consagração a
Deus.

O v. 71 dá seguimento ao v. 69 e explica as palavras suscitou um


corno de salvação: salvação, i.e., de nossos inimigos, pois Deus
constituiu para nós um Salvador (abstrato pelo concreto) que
nos livrasse de nossos inimigos e (com outras palavras, por pa-
ralelismo sinônimo) das mãos de todos os que nos odeiam. Os
inimigos a que primariamente se faz referência, adversários
políticos que oprimiram Israel e eram um obstáculo à instau-
ração do reino de Deus, são sobretudo os romanos e Herodes,
como se pode inferir do v. 74 e de Sl 105, 10; mas implicita-
mente se fala também da libertação dos inimigos espirituais (o

24
NAT I V I DA DE E C I RC U NC I S ÃO DE JOÃO BAT I STA

pecado, a morte e o diabo), cuja precondição, para os hebreus,


seria a libertação política.

V. 72s. Tudo isso, Javé começou a executá-lo para fazer, i.e.,


exercer (ποιῆσαι, inf. final = para que faça; ou consecutivo =
ὥστε ποιῆσαι, quase o mesmo que ποιών = exercendo assim) a
sua misericórdia a favor de nossos pais (antepassados), na me-
dida em que: a) manifestou em nós a misericórdia que prome-
tera aos nossos pais; b) ou: premiou a fé destes nos filhos; c) ou:
lançou no esquecimento os pecados dos antigos. 9

E lembrar-se (μνησϑῆναι final = para mostrar que se lembrava;


ou consecutivo = ὥστε μνησ., quase o mesmo que μνησϑείς =
lembrando-se assim) de seu testamento (διαϑήϰης = aliança,
pacto) santo, selado com os Patriarcas (Sl 104, 9ss), qual seja (v.
73): o juramento que fez a Abraão (cf. Gn 22, 16ss; 24, 7; 26, 3;
At 3, 25; Hb 6, 13), nosso pai na fé e no sangue, de (ele) nos
conceder (o pronome aparece em V: iuravit... daturum se, onde
faz as vezes de sujeito, não de objeto; é omitido por G); τοῦ
δοῦναι pode interpretar-se como objeto de ὤμοσεν = jurou dar
etc., ou como inf. final = o que ele jurou com o fim de nos dar
etc., significando assim o fim último tencionado por Deus ao
fazer as promessas a Abraão, a saber:

V. 74s. Que sem temor, confiantemente, depois de sermos li-


bertos das mãos ou do poder dos nossos inimigos (o possessivo
falta em G), o sirvamos (v. 75) em santidade (ἐν ὁσιότητι, com
verdadeira piedade para com Deus) e justiça, i.e., pela obser-
vância dos mandamentos, e isso diante dele (Javé), i.e., não si-

9. É possível que se trate de uma alusão à graça a ser concedida aos Patriarcas
no limbo, quando da descida de Cristo aos infernos. No entanto, a interpre-
tação mais óbvia de misericórdia neste contexto é fidelidade às promessas (cf.,
por exemplo, Ex 20, 6: ‫)דֶםֶח‬, de modo que os v. 72s constituem mais um caso
de paralelismo sinônimo.

25
O S TR Ê S C Â N TIC O S D O E VA NGE L HO

muladamente nem nas sombras, mas de verdade e a plena luz


(cf. v. 6), por todos os nossos dias, i.e., durante toda a nossa vida.
Eis a obra que, pela descendência de Davi, o Senhor irá levar a
cabo. Com essas palavras são claramente significadas a santi-
dade interna e a perpetuidade da Nova Aliança.
A promessa enunciada nos dois últimos vv. não consta expressamente no
Gênese, mas se depreende das outras ali contidas.

2.ª parte: O Precursor (vv. 76-79). Zacarias, dirigindo-se agora


ao filho tanto por amor de pai como por inspiração profética,
passa a falar não já do Messias, mas do Precursor.

V. 76. E tu, menino, serás chamado com justiça profeta do Al-


tíssimo (cf. 7, 26; Mt 11, 9), pois de fato hás de desempenhar
este ofício de um modo mais excelente que os outros profetas;
estes, com efeito, prenunciaram o Messias de longe, tu porém
irás adiante da face do Senhor (Javé ou Cristo), i.e., irás na fren-
te dele a preparar (ἑτοιμάσαι, para preparar) os seus caminhos,
como tinha anunciado o anjo (cf. v. 17), ou seja, a fim de dispor
pela pregação e o batismo de penitência os corações dos judeus
para o advento do Messias. No Oriente, à chegada de um rei ou
pessoa eminente, era costume mandar bater e aplainar as vias
por que iria passar o convidado (Is 4, 30). Aqui, no entanto, a
expressão caminhos se deve tomar em sentido espiritual, ob-
viamente.

V. 77. Em seguida, explica o que tinha dito: a preparar os seus


caminhos, i.e., para dar o conhecimento da salvação ao seu
povo; noutras palavras, irás adiante etc. para ensinar ao povo
qual é a verdadeira salvação (de natureza antes espiritual que
política) e a quem devem pedi-la (não a ti, mas a Cristo); pela
remissão (ἐν ἀφέσει, em remissão) dos seus pecados, i.e., para
que entendam que a salvação messiânica consiste antes de tudo
na remissão dos pecados, ou que, pelo conhecimento da salva-

26
NAT I V I DA DE E C I RC U NC I S ÃO DE JOÃO BAT I STA

ção (transmitido pela pregação), alcançarão o perdão dos pe-


cados (dispondo-se pela penitência à fé e à graça batismal de
Cristo). E, de fato, este é o ponto de partida e o tema central da
pregação de João Batista: “Fazei penitência” (Mt 3, 2; Mc 1, 4;
Jo 1, 29), i.e., arrependei-vos, para que vos possais predispor
para receber o Messias.

V. 78. A salvação antes mencionada será um dom das vísceras


de misericórdia, i.e., das miserentíssimas entranhas (Cl 3, 12),
ou (dado que as vísceras [grego σπλάγχνα, hebraico ‫]ר ֲחמִים‬, ַ
entre os hebreus, assim como em outros povos, designavam a
sede dos afetos mais ternos, como o amor e a comiseração, o
que nas línguas modernas se exprime pela palavra coração),
pelo coração compassivo ou pelo ânimo pientíssimo do nosso
Deus, nos quais (ἐν οἷς, por causa dos quais) etc., i.e., impelido
por tais vísceras de misericórdia, nos visitou (ἐπισϰέψετο; em
muitos manuscritos lê-se ἐπισϰέψεται = ‘visitará’, como o que
se aludiria, não à Encarnação já realizada, mas à manifestação
pública do Messias) o nascente do alto (ἀνατολὴ ἐξ ὕψους), i.e.,
qual um astro nascente, ou à semelhança do sol, que na aurora
parece nascer do alto céu.
Ἀνατολή, em sentido próprio, é o raiar ou despontar de algum astro no ho-
rizonte (ἀνα-τέλλω = ‘levantar’, ‘vir à luz’, ‘nascer’ etc.); em particular, desig-
na a parte oriental (latim Oriens) do céu ou da terra, i.e., o leste, ou levante;
aqui, por metonímia, significa ‘sol nascente’ (cf. para alumiar os que jazem
nas trevas etc.), como em Is 60, 3 (‫ז ֶַרח‬, cf. Is 9, 2s), onde a mesma metáfora é
aplicada ao Messias. Do alto: este sol espiritual não se ergue da parte orien-
tal do céu como o sol visível, mas do alto, i.e., ele nasce do céu (Dn 7, 13) e
desce até nós como que em via reta, por si mesmo.
10

10. Em alguns lugares do Antigo Testamento (cf., por exemplo, Jr 23, 5; Zc 3, 8;


6, 12 etc.), o Messias é chamado gérmen, termo que S verte por ἀνατολή (de
ἀνατέλλειν = nasço, surjo etc., que em grego se diz tanto dos astros quanto das
plantas). Por isso pensam alguns que Zacarias estaria aludindo a tais passagens

27
O S TR Ê S C Â N TIC O S D O E VA NGE L HO

V. 79. Nota em seguida a finalidade da visitação deste sol di-


vino: para alumiar (ἐπιφᾶναι = para que ilumine, ou, em senti-
do instransitivo, para que apareça, nasça, resplandeça), i.e.,
para trazer a salvação aos que jazem nas trevas e na sombra da
morte (cf. Is 9, 2; o texto massorético lê ‫ ַצ ְל ָמוֶת‬, mas se deve ler
‫ = ַצלְמּות‬trevas densíssimas), aos que estão sentados na densa
caligem dos erros e da corrupção moral. Estas palavras se apli-
cam muito adequadamente aos gentios, que jaziam adormeci-
dos nas trevas da idolatria.

Para dirigir os nossos pés no caminho da paz, i.e., este sol celeste
nos visita para que, iluminados por seus fulgores, possamos
palmilhar sem perigo o caminho da salvação e da felicidade
messiânica, o que se aplica primariamente aos judeus. Dada
porém a conexão com o versículo precedente, Cristo é procla-
mado Salvador tantos dos judeus quanto dos gentios, como
será dito mais tarde no cântico de Simeão: Luz para iluminar as
nações, e glória do teu povo, Israel (cf. Lc 2, 32).

do Velho Testamento para referir-se a Cristo; mas basta considerar o contex-


to (alumiar, do alto, dirigir os nossos pés no caminho) para ver a improprie-
dade dessa leitura. Outros interpretam do alto (ἐξ ὕψους) como substituição
do nome de Javé, de sorte que a locução ἀνατολὴ ἐξ ὕψους não indicaria a
preexistência de Cristo, mas significaria apenas o gérmen (= Messias) de Javé,
i.e., suscitado por Javé. No entanto, esta leitura tem por fundamento a mesma
interpretação de ἀνατολή que se viu antes ser inadmissível. É evidente, por
conseguinte, que as palavras ἀνατολὴ ἐξ ὕψους designam o Messias como nas-
cido do céu, i.e., como Deus e, portanto, como preexistente não só a João, mas
inclusive a Abraão (cf. Jo 1, 30; 8, 58). Note-se ainda que há nas palavras de
Zacarias certa comparação de Cristo e João com Moisés e Aarão. Assim pois
como Deus dissera a Moisés: ‘Repara que te constituí deus do faraó; Aarão, teu
irmão, será teu profeta’ (Ex 7, 1), assim também João é chamado profeta da-
quele que é constituído Deus... não como Moisés [i.e., apenas quanto ao poder
de fazer milagres], mas por ser verdadeiramente o Altíssimo, que brilhou qual
Nascente do alto para quem jazia nas trevas e na sombra da morte, a fim de lhe
dar a remissão dos pecados (Maran, Divinitas, 1.2.6).

28
NAT I V I DA DE E C I RC U NC I S ÃO DE JOÃO BAT I STA

Epílogo
V. 80. O evangelista compendia em poucas palavras toda a
vida do santo Precursor, da infância até o tempo da pregação.
Ora, o menino crescia em corpo e idade e se fortificava no espí-
rito, i.e., crescia em virtude e dons espirituais; e desde a juven-
tude habitou nos desertos, provavelmente no deserto da Judeia
(Mt 3, 1), na parte ocidental do Mar Morto, até o dia da sua
manifestação a Israel, i.e., até receber de Deus a ordem de pre-
gar ao povo o batismo de penitência (Lc 3, 2s).
Nem a Escritura nem a Tradição dizem com quantos anos João partiu para
o deserto. A questão deve ser abordada com equilíbrio. Talvez o único que
possa afirmar-se é que João não foi para o deserto antes da idade da razão
nem mais tarde do que o imperfeito habitava (ἦν) e toda a cláusula de Lucas
parecem exigir. Sem se pronunciarem sobre o termo a quo, Caetano e a
Lápide dão como termo ad quem o 30.º aniversário de João, baseados pro-
vavelmente nas indicações de Lc 3, 1s, que permitem estabelecer o início da
pregação evangélica ao redor de 26 d.C. (= 779 U.C.), e em Lc 3, 21: Jesus,
nascido poucos meses depois de João, tinha cerca de trinta anos quando,
uma vez batizado, começou seu ministério, i.e., tão-logo o do Precursor
chegou ao zênite (Mc 1, 5; Mt 3, 5).

29
CIRCUNCISÃO E APRESENTAÇÃO
DO SENHOR NO TEMPLO
11

(Lc 2, 21-38)

Circuncisão de Cristo (v. 21)


Uma vez que Cristo, nosso redentor e mestre, quis em tudo
assemelhar-se a seus irmãos (cf. Hb 2, 17), exceto no pecado,
convinha que se submetesse também ao rito da circuncisão.

Considerava-se que o menino, ao tornar-se membro do povo de Deus (Gn


17, 11), professava solenemente na circuncisão estar sujeito à lei (Gl 4, 3). A
circuncisão externa do corpo era símbolo e sinal da mortificação interna
da concupiscência, além de um sacramento da antiga lei pelo qual, mas em
virtude da fé no Messias futuro (como sustenta a opinião comum), os
membros do povo eleito eram purificados da culpa original. Neste misté-
12

rio, Jesus Cristo apresentou-se publicamente aos homens como pecador,


necessitado, por um lado, da purificação da culpa e, por outro, da justifica-
ção da fé (Rm 4, 11) e da mortificação da carne, dando-nos com isso exem-
plo de humildade; diante de Deus, apresentou-se como redentor, obrigan-
do-se ao cumprimento de toda a lei, a fim de nos redimir da maldição da

11. PB 6I 325-330, n. 229ss.

12. Cf. Bonsirven (21935) 168-172; STh III 70, 4; Vaccari, VD 2 (1922) 14-18.
Tenha-se presente que nada disso se encontra em escritos rabínicos. Fílon
é o único (De specialibus legibus, 2.2 = Cohn, 5 [1896] 39]) a mencionar a
mortificação da carne (ἡδονῶν ἐϰτομή); para os rabinos em geral, a circun-
cisão era antes de tudo condição sine qua non e, ao mesmo tempo, sinal da
aliança com Javé.

30
CI RCUNC I S ÃO E A PR E SE N TAÇ ÃO D O SE N HOR NO T EM PLO

lei, e derramando as primícias de seu sangue em penhor do que havia de


verter por nós na Cruz.

Como o hagiógrafo não diz onde nem como foi circuncidado o


Menino, nada a esse respeito se pode saber com certeza. Quanto
ao ritual que comumente se observava, do que se tem notícia é
do seguinte. No oitavo dia após o nascimento, os meninos eram
circuncidados, quer na casa paterna, como provavelmente foi o
caso de João Batista (Lc 1, 58s), quer na sinagoga, estando pre-
sentes ao menos dez testemunhas. Preparavam-se dois assentos,
um dos quais era ocupado pela testemunha principal (espécie de
padrinho), enquanto o segundo permanecia vazio, pois se con-
siderava ocupado pelo profeta Elias, presente à cerimônia se-
gundo a interpretação rabínica de 1Rs 19, 10. O ministro da cir-
cuncisão (hebraico môhēl), que poderia ser o pai, às vezes a
própria mãe, realizava o rito com uma lâmina de pedra (Ex 4, 25;
Js 6, 2), dizendo: “Bendito és tu, Senhor Deus nosso, que com os
teus preceitos nos santificaste e nos deste a aliança da circunci-
são”. O pai do menino (quando não fazia as vezes de ministro)
devia responder: “Bendito és tu, Senhor Deus nosso, rei do
mundo, que com os teus preceitos nos santificaste e ordenaste
que firmássemos a aliança de Abraão, nosso pai” etc. A cerimô-
nia era rematada com um banquete. Na época de Cristo, no
mesmo dia da circuncisão se dava nome ao menino, pois foi na
instituição deste rito que Deus mudou os nomes a Abraão e Sara.

Apresentação (ὑπαπαντή) de Cristo (v. 22ss)


Passados os dias da purificação deles (assim em G: αὐτῶν, e
não: eius, português dela, como em V), i.e., da Mãe e do Filho, 13

13. A lição grega contém certa impropriedade, pois não é de todo adequado
chamar ϰαϑαρισμός à consagração de um menino. Por isso, alguns intérpre-
tes leem o pronome ‘αὐτῶν’ em referência a Maria e a José, como parece exi-

31
O S TR Ê S C Â N TIC O S D O E VA NGE L HO

José e Maria levaram Jesus ao Templo para cumprir os precei-


tos da lei.
Segundo a lei de Moisés (Ex 13, 2.12.15), todo primogênito (= adaperiens
vulvam) “será chamado santo para o Senhor”, i.e., deve ser consagrado a
Deus e ao serviço do Templo, em sinal e memória daquele grande prodígio
com que Deus exterminou na mesma noite todos os primogênitos dos
egípcios. Mais tarde, introduzidos os levitas no lugar deles (Nm 3,
12s), tornou-se necessário resgatar os primogênitos pelo preço de 5 siclos
(Nm 18, 15s).

Outro preceito (Lv 12, 1ss) mandava considerar impura por 7 dias a mulher
que desse à luz um menino (por 14, se uma menina), durante os quais devia
viver separada dos outros; em seguida, tinha de permanecer em casa 33
dias (66, se desse à luz uma menina) no sangue de sua purificação, i.e., até
purificar-se do sangue, período em que não lhe era permitido tocar nada
santo nem entrar no santuário. Passados enfim os dias de impureza legal
(40 ou 80), devia levar à porta do tabernáculo (mais tarde, no Templo) um
anelo (cabrito de até um ano) em holocausto e um filhote de pomba ou
14

um pardal pelo pecado, i.e., em expiação da própria impureza. Os mais po-


bres cumpriam a lei oferecendo dois pardais ou duas rolinhas, uma em ho-
locausto, outra em sacrifício expiatório.

No quadragésimo dia após o nascimento, i.e., 32 dias depois da


circuncisão, a Sagrada Família foi ao Templo e, à Porta de Ni-

gir a construção da frase; mas dado que o varão não precisava, por prescrição
da lei, de qualquer purificação, explicam o uso do plural em sentido coletivo,
por influência das palavras subsequentes. Outros preferem simplesmente o
pronome singular, conforme muitas variantes. Seja como for, a lição grega
não deixa de ser admissível, porquanto o termo ‘ϰαϑαρισμός’, ao contrário de
‘ϰάϑαρσις’, embora se refira principalmente a Maria, pode todavia aplicar-se
ao resgate do Menino.
14. Oferecia-se o anelo não pelo filho mas pela mãe (Lv 12, 6.8). Se a Igreja, na
festa da Purificação, canta Obtulerunt pro eo [= Iesu] par turturum etc., deve-se
entender a partícula ‘pro’ (como é frequente noutros lugares) em sentido cau-
sal: propter eum, ou seja, propter partum eius, “por causa do parto dele”.

32
CI RCUNC I S ÃO E A PR E SE N TAÇ ÃO D O SE N HOR NO T EM PLO

canor (também chamada Formosa), que ficava entre o átrio


das mulheres e o dos israelitas, a Virgem Maria é recebida pelo
sacerdote hebdomadário de turno, benzida e purificada por ele
com o sangue da vítima. Em seguida, os pais do Menino entre-
garam em oferta um par de rolas, pois eram muito pobres e
não podiam oferecer em holocausto a oblação dos ricos, um
cordeiro de um ano (Lv 12, 6).

Nem Jesus nem Maria estavam estritamente obrigados a obe-


decer a tais preceitos; quiseram cumpri-los, não obstante, para
dar exemplo de humildade e da obediência devida aos ritos de
nossa religião.
Propõe o Angélico sete razões de conveniência pelas quais Cristo, embora
acima da lei, devia ser circuncidado segundo a lei (STh III 37, 1c.): para
mostrar a verdade de sua carne humana; para aprovar a circuncisão, insti-
tuída outrora por Deus; para certificar que pertencia à descendência de
Abraão, que recebera o mandamento da circuncisão em sinal da fé no Mes-
sias; para não dar aos judeus motivo de o rejeitarem como a um incircun-
ciso; para nos dar exemplo de obediência; porque, tendo assumido uma
carne de pecado (i.e., passível), não devia rejeitar o remédio pelo qual era
costume purificar a carne do pecado; g) para que, suportando em si mesmo
o peso da lei, livrasse a outros do jugo dela, como diz São Paulo: “Deus en-
viou seu Filho,... submetido a uma lei, a fim de remir os que estavam sob a
lei” (Gl 4, 4s).

Jesus é reconhecido como Messias (vv. 25-38)


1. Profeta (vv. 25-28). — Naquele tempo, havia em Jerusalém
um homem chamado Simeão. O evangelista não diz que Simeão
fosse velho, mas isso se infere do contexto e da oração. Influen-
ciados pelo Protoevangelho de Tiago (24, 4: T [21876] 48), al-
guns intérpretes o consideram sacerdote, quando não
ἀρχιερεύς, sumo sacerdote (cf. Evangelho de Nicodemos, 1, 1:
T [21876] 389), interpretação rejeitada (ao parecer, com razão)

33
O S TR Ê S C Â N TIC O S D O E VA NGE L HO

por muitos autores. Afinal, se Simeão fosse sacerdote, Lucas,


tão cuidadoso em descrevê-lo, dificilmente o teria omitido
(Graveson [1711] 198; cf. Alácio [1564] 3ss).

Segundo Lucas, Simeão era justo e timorato (εὐλαβής = temen-


te, piedoso, religioso); esperava a consolação de Israel, i.e., o
advento do Messias, destinado a consolar os que choram em
Sião (Is 61, 2); além disso, o Espírito Santo estava (permanente-
mente) nele ou sobre ele (ἐπ’ αὐτόν), quer pela graça santifi-
cante, quer (o que é mais provável por força do contexto) pelo
dom de profecia; e recebera em resposta (ϰεχρηματισμένον =
fora-lhe revelado, cf. Mt 2, 12.22) que não morreria antes de
ver o Messias na carne (ἐν σαρϰί), agrega o Ps.-Tiago (ibid.: T
[21876] 49).

V. 27. E veio no Espírito (ἐν τῷ πνεύματι), i.e., impulsionado


pelo Espírito Santo, ao Templo. E como ali estivessem o Meni-
no e seus pais, Simeão tomou-o nos braços (εἰς τὰς ἀγϰάλας).
Sinal de grande amor; recebera a promessa de ver Cristo, mas
gozou de favor ainda maior: pôde abraçá-lo!

2. Nunc dimittis (vv. 29-32). — O santo ancião, por inspiração


sobrenatural, viu o que lhe prometia a fé dos Patriarcas e, unindo
à voz dos profetas seu próprio gozo e consolação (v. 29s), cantou
a glória do Messias (v. 31s). Escreve Didon que este canto
15

sublime penetrou o mais fundo da consciência cristã, expressão


imortal da alegria dos homens de esperança que veem enfim,
com os próprios olhos, o bem em que acreditaram com a longa-
nimidade de uma fé inquebrantável ([1890] 125s).

15.É costume na Igreja, desde o séc. V, cantar nas preces vespertinas (Com-
pletório) o cântico de Simeão, no qual se sente como que ‘a melancolia de um
adeus’ (Lagrange [1921] 86; cf. Didaquê, 7.48.4, in: Funk [1906] 458).

34
CI RCUNC I S ÃO E A PR E SE N TAÇ ÃO D O SE N HOR NO T EM PLO

V. 29s. Agora, cumprida enfim a promessa, deixas ir (i.e., po-


des deixar ir) o teu servo (= a mim) em paz, ou seja, alegre, fe-
liz, satisfeito etc., porque viram meus olhos a tua salvação, i.e., o
Salvador que enviaste (por metonímia, abstrato pelo concreto).

V. 31s. Iluminado pelo Espírito, Simeão entende com clareza


que a salvação messiânica destina-se a todas as nações: que pre-
paraste (destinaste) ante a face (na presença, aos olhos) de to-
dos os povos. Embora a salvação messiânica compreenda to-
16

dos os homens, será de modo peculiar luz para as nações, com


a qual se lhes dissiparão as trevas e iluminarão com a verdade
as inteligências (para revelação, εἰς ἀποϰάλυψιν, i.e., para ilu-
minar etc.; cf. Is 42, 6; 49, 6); para os judeus será (motivo de)
glória, porque “a salvação vem dos judeus” (Jo 4, 22), e a eles
primeiro será anunciado o Evangelho, para que tenham assim
o principado de que falam os profetas. Acresce que Cristo lhes
pertence segundo a carne (cf. Rm 9, 5) e somente a eles mani-
festou sua presença visível, realizou entre eles muitos milagres
e cumpriu as profecias que lhes fizera.

3. Profecia de Simeão (v. 33ss). — V. 33. E estavam o pai dele e


a mãe admirados destas coisas que eram ditas sobre ele. Admi-
rava-se, pois, também a Virgem Maria, não porque ignorasse o
mistério, mas porque ele fora revelado de tal modo a Simeão.
Além do que, tão grandes são estes mistérios, que todas as ve-
zes que nos vêm à memória fazem surgir em nós admiração e
alegria renovadas.

16. Joüon (1930) 302, n. 31: “ϰατὰ πρόσωπον corresponde ao hebraico ‘lip̄ nê
[‫’]לִפְנֵי‬. Usa-se geralmente em sentido próprio, mas é possível que tenha tam-
bém o sentido secundário de... ‘à disposição’... A nuance insinuaria que a sal-
vação não será imposta: as nações poderão rejeitar a luz e Israel, a glória. A
ideia prepara bem o v. 34”.

35
O S TR Ê S C Â N TIC O S D O E VA NGE L HO

V. 34. E bendisse-lhes, i.e., congratulou-os; eis que foi posto


(destinado) este Menino para ruína (πτῶσιν) e para ressurrei-
ção de muitos, i.e., foi destinado a ser ocasião de queda (em
sentido espiritual) para muitos em Israel que pensam estar de
pé, mas de soerguimento para muitos que se consideravam
prostrados na terra (da ignomínia e do pecado; cf. Is 8, 14; Lc
12, 51s; Jo 9, 39); e em sinal (cf. Is 8, 18) a que se contradirá, i.e.,
de contradição (ἀντιλεγόμενον, sujeito a contradição, oposi-
ção etc.), quer dizer, muitos (em Israel) opor-se-ão a ele. Com
efeito, em toda a sua vida pública, Cristo sofreu nas mãos dos
judeus falsidades, contradições, objeções, inveja etc.; por fim,
sua Cruz e sua doutrina nunca deixaram de ser escândalo para
os judeus e loucura para os gentios (cf. 1Cor 1, 23).

V. 35. E à tua própria alma transpassará uma espada. Alguns


consideram estas palavras um parêntese, porém é mais cor-
reto considerá-las uma continuação das precedentes: A opo-
sição dos homens a Cristo será tão clara e veemente, que à
tua própria alma etc. Há que entendê-lo espiritualmente,
como transfixação da alma, não do corpo. Há que rejeitar,
ademais, a opinião de Orígenes, para quem a espada seria
figura e imagem das dúvidas de Maria quanto à divina mis-
são do Filho. Trata-se, pelo contrário, da espada da compai-
xão, i.e., dos tormentos da Teotoco ao ver Cristo rejeitado,
perseguido e condenado à morte pelos judeus, tormentos
esses que chegaram ao ápice quando se lhe transpassou o co-
ração aos pés da Cruz.

Tudo isso (oposição dos homens e Paixão de Cristo, v. 34s) fará


com que sejam revelados os pensamentos de muitos corações,
i.e., tornará manifestas as intenções de muitos ou, em outras
palavras, por qual espírito cada um é movido, de que fé está
animado etc.

36
CI RCUNC I S ÃO E A PR E SE N TAÇ ÃO D O SE N HOR NO T EM PLO

A profecia de Simeão... relaciona intimamente as dores de Maria às


perseguições de que seu Filho será objeto. A Paixão de Jesus e a com-
paixão de Maria caminham lado a lado e culminam no Calvário. As
dores de Maria terão por causa única ou principal os sofrimentos de
Jesus, e o martírio mais excruciante de Jesus será contemplar ao pé
da Cruz a dor de sua Mãe; mas como Jesus salva o mundo por seus
sofrimentos, Maria deve à espada que transpassa seu coração o estar
associada à obra redentora (Prat [1950] 94).

5. Testemunho de Ana, a profetisa (v. 36ss). — Profetisa, i.e.,


dotada de espírito profético, a saber, para edificar, consolar e
exortar (cf. 1Cor 14, 3) e também, de quando em vez, como
aqui, para predizer o futuro e manifestar o que estava oculto
(cf. 1Cor 14, 23); e esta era viúva até os oitenta e quatro anos:
17

pode ser a soma da vida toda, como sustenta a maioria, ou en-


tão o tempo transcorrido desde a viuvez; logo, se a isso se so-
mam os 7 anos de casamento e os cerca de 15 de virgindade, 18

tem-se um total de 106 anos, donde se vê que ela realmente


estava em idade muito avançada.

— E confessava ao Senhor (ἀνϑωμολογεῖτο, celebrava uma e


outra vez), i.e., louvava o Senhor (pelo advento do Messias), e
falava dele (de Jesus) a todos os que esperavam a redenção de
Jerusalém (G), onde a capital representa todo o povo de Israel.

17. Foram profetisas no Antigo Testamento Maria, irmã de Moisés (Ex 15,
20); Débora (Jz 4, 4); Holda, no tempo de Josias (2Rs 22, 14); segundo os
rabinos (Talmude, Meg., 1.14a), também Sara; Ana, mãe de Samuel (1Sm 2),
Abigail e Ester.
18.As palavras ‘desde a sua virgindade [ἀπὸ τῆς παρϑενίας αὐτῆς]’ podem
significar também ‘após a sua virgindade’, i.e., depois de ter-se casado. Po-
dem parecer inúteis ou estranhas, mas Lucas talvez queira insinuar que Ana
era ainda muito moça à época do casamento e, sendo portanto ainda jo-
vem quando da morte do marido, poderia ter-se casado de novo. O emprego
de ‘ἀπό’ corresponde ao hebraico ‘min’ com o sentido temporal de ‘depois’
(Joüon [1930] 304s, n. 29).

37
O S TR Ê S C Â N TIC O S D O E VA NGE L HO

Comentário espiritual (In Pur. B.M.V. [2 fev.], Lc 2, 22-32):

No quadragésimo dia após o nascimento de Cristo, por dupla causa subiu


Maria, Mãe de Deus, ao Templo de Jerusalém, para cumprir dois manda-
mentos da lei. O primeiro deles se refere ao oferecimento dos primogêni-
tos, o outro ao rito de purificação da puérpera. Na verdade, a nenhuma das
leis estava obrigada a Virgem Mãe; por elas, era claramente eximida. Ora,
deviam oferecer-se os primogênitos que tivessem aberto o claustro mater-
no; mas Cristo, ao sair do útero da Mãe, conservou-lhe intacto o claustro
da virgindade. Além disso, deviam purificar-se as puérperas que houves-
sem concebido por sêmen; mas a Virgem castíssima concebera do Espírito
Santo sem ajuda de varão. Quis no entanto cumprir ambos os mandamen-
tos, submetendo-se à lei comum das mulheres, de modo que, mais humilde
que todas, sem dar sinais de nada singular, brilhou como exemplo de hu-
mildade (de Costere [1859] 90s).

38

Você também pode gostar