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PRÓLOGO DE SÃO JOÃO:

NOTAS BÍBLICAS

ISBN:
978-85-52993-15-5

Publicado por:

Av. Higienópolis, 174, Centro


86020-908 — Londrina (PR) — Brasil
editorapadrepio.org

Autoria de Pe. Adriano Simón


e Pe. Guilherme Dorado, C.Ss.R.
Adaptação e Tradução de Douglas Abreu
Capa por Klaus Bento
Diagramação por Eduardo de Oliveira
Direção de Criação por Luciano Higuchi
Edição e Revisão por Éverth Oliveira

© Todos os direitos desta edição


pertencem e estão reservados à
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Redempti ac vivificati Christi sanguine, Christo nihil præponere debemus,


quia nec ille quidquam nobis præposuit.
SUMÁRIO

Abreviaturas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4
Bibliografia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4

I. O LOGOS ANTES DA ENCARNAÇÃO (1, 1-5).. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12


A) Em si mesmo (v. 1s). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12
B) Em relação às criaturas (v. 3ss). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16

II. O LOGOS A PARTIR DA ENCARNAÇÃO (1, 6-13).. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21


A) O Precursor (v. 6ss).. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21
B) O advento do Verbo e a resposta dos homens (vv. 9-13).. . . 22

III. O LOGOS ENTRE OS HOMENS (1, 14-18). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27


ABREVIATURAS

G = texto grego

Meta. = Metaphrasis = Μεταβολή του Κατά Ιωάννην


Ευαγγελίου, Nono de Panópolis, em F. Passovius
(ed.), Leipzig, 1834

MG = Patrologiæ cursus completus. Series Græca, J.-P.


Migne (Paris, 1857ss)

S = versão dos Setenta, Septuaginta

V = versão Vulgata

BIBLIOGRAFIA

J. B. Franzelin, Tractatus de Verbo Incarnato (Roma, 21874).

Cornélio A Lapide, Commentarii in Sacram Scripturam (Lyon, 1839),


vol. 8.

João Maldonado, Commentaria in quattuor Evangelistas (Mainz,


1840), 3 vols.

*A. Puech, Histoire de la littérature grecque chrétienne (Paris, 1928),


vol. 1.

J.-M. Vosté, ‘De baptismo, tentatione et transfiguratione Iesu Christi’,


in Studia Theologiæ Biblicæ Novi Testamenti II (Roma, 1934).

I. Wapelhorst, Compendium Sacræ Liturgiæ juxta Ritum Romanum


(Nova Iorque, 111931).

4
N
ão há cristão que não admire a simplicidade literária
e, ao mesmo tempo, a sutileza e sublimidade incom-
paráveis do prólogo de João, conciso e imponente logo
na primeira linha, como um raio fulgurante — filho do trovão!
(cf. Mc 3, 17) — a cortar os céus de cima a baixo. Nenhum ou-
tro evangelista nos poderia introduzir tão solenemente à vida
de Cristo senão o que repousou sobre o peito dele na Última
Ceia e dali sorveu os mais profundos mistérios. 1

1. Finalidade. — O ponto de partida dos Evangelhos canô-


nicos, como se sabe, depende do objetivo que movia cada um
dos evangelistas a pegar da pena. Como o de João era atestar
e afirmar a divindade de Cristo contra as heresias então nas-
centes, fez preceder o seu Evangelho da solene confissão des-
te dogma, entrando em combate apenas descido à campa e,
como diz Maldonado, degolando os adversários já nas pri-
meiras palavras.

Por isso, enquanto Mateus e Lucas dão início à narrativa evan-


gélica a partir do nascimento de Jesus, e Marcos a partir do
ministério público, como se seguissem o Senhor como quem
anda em companhia de outro homem, João, ao contrário, abre
asas de águia e eleva-se por sobre as criaturas e o tempo, trans-
cendendo inclusive as hierarquias angélicas e as ordens das po-

1. Se Jesus aparece por todo o IV Evangelho e é revelado como autor da salva-


ção humana, no qual é necessário crer para ter a vida eterna, então o prólogo
de João — compêndio da fé cristã, chave e fundamento da sagrada Teologia
— pode considerar-se uma antecipação de todo o Evangelho pneumático.

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PRÓL O GO DE S ÃO JOÃO

testades invisíveis, para contemplar Cristo como Verbo em


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sua preexistência eterna. Volteando sereno entre o céu e a ter-


ra, descreve em somente 18 vv. o influxo do Logos sobre a cria-
ção inteira, em particular sobre os homens, desde o princípio e
ao longo dos séculos, até chegar à plenitude dos tempos.

Não é só da divindade de Jesus, por conseguinte, que fala este


prólogo, mas dos principais elementos da cristologia ortodoxa.
Ensina que o mesmo que se encarnou no tempo é Deus eterno,
criador do universo, autor da graça e da ordem sobrenatural, a
quem se deve o culto supremo de adoração; o qual, não obstan-
te, é distinto do Pai por quem é gerado, subsistindo como Ver-
bo e Filho unigênito dele (cf. Franzelin, 60). Daí ser acertado
dizer que o proêmio de João é a chave e contém como que o
fundamento de toda a sagrada Teologia, o que explica por que
os cristãos sempre o leram e meditaram com a máxima vene-
ração, a ponto de a liturgia romana ter-lhe reservado por sécu-
los um lugar de destaque. No rito tridentino, o prólogo do

Evangelho de S. João é lido no fim <da Missa> por preceito de S.


Pio V (antes, era recitado à vontade, segundo o costume), a fim
de imprimir mais profundamente na alma os mistérios nele con-
tidos, isto é, da Santíssima Trindade e da Encarnação; e porque
contém uma súmula de todos os bens que pelo sacrifício de Cris-
to recebemos e em Cristo possuímos, Ele, que é a fonte da vida,
luz do mundo, cheio de graça e de verdade. Também se recorda ao
sacerdote quem e quão benigno é o hóspede que acaba de receber,
a saber: o Verbo feito carne, que se dignou vir não só ao mundo,
mas também à sua alma (Wapelhorst, 449s).

2. Estrutura literária. — Não só a grandeza do tema como


a forma literária, a força ínsita às palavras e a sucessão ritma-

2. Cf. Agostinho, In Ioan. Tract., 36.1.

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PRÓL O GO DE S ÃO JOÃO

da de ideias dão a essa contemplação teológica a forma de um


hino sublime, cravejado porém de riquezas dificílimas de
compreender. Fiel às leis da poesia hebraica quanto ao ritmo
e à estrofação, o prólogo compõe-se de estíquios (στίχοι) bre-
ves e solenes, repletos de conceitos teológicos e dispostos em
parataxe, de molde a se explicarem uns aos outros por para-
lelismo antitético e a se vincularem entre si sem solução de
continuidade por paralelismo “climático”, em virtude do qual
o termo conclusivo de cada estíquio serve de princípio à pro-
posição seguinte.

A escolha das palavras é tão profunda e tão fecunda, que um


mesmo vocábulo, de maneira gradual e quase imperceptível,
parece às vezes fluir dessa para aquela acepção, envolvendo si-
multaneamente em diversos mistérios a inteligência do leitor,
sem que se possa — e, talvez, nem se deva — estabelecer onde
ou como se passa de um para outro, o que não impede, todavia,
de lhe descobrir o princípio subjacente de ordem e unidade.

3. Estrutura teológica. — Em que pese a variedade de divi-


sões propostas pelos autores, o tema central aparece com clare-
za desde o início: o Verbo em si mesmo e enquanto vida e luz
dos homens, isto é, a transcendência sobre-humana de Cristo e
sua importância na história da salvação, como se a João inte-
ressasse responder sobretudo a três questões: 1.ª Quem é Jesus
Cristo (vv. 1-5)? — 2.ª Que benefícios trouxe ao mundo (vv.
14-18)? — 3.ª Como foi recebido pelos homens (vv. 6-13)?

O nexo lógico-literário entre os vv. que dão resposta a essas


perguntas sugere, entre outras possíveis, a seguinte divisão: o
Verbo I. antes da Encarnação e II. a partir dela, o que corres-
ponde grosso modo ao critério de distribuição dos artigos de fé
(credibilia), isto é, do que é objeto de fé divina per se ou princi-
palmente, quer por constituir a vida eterna ou bem-aventuran-
ça essencial quando visto intuitivamente, a saber, a própria di-

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PRÓL O GO DE S ÃO JOÃO

vindade (cf. Jo 17, 3), quer por conduzir os homens a ela, ou


seja, Deus encarnado, Jesus Cristo, por quem temos acesso à
glória dos filhos de Deus (cf. Rm 5, 2; Jo 14, 6).

Logo, assim como os artigos de fé se distribuem em duas séries,


uma relativa à divindade, outra à humanidade do Verbo encar-
nado, também o prólogo de João se divide em duas seções
principais, uma referente ao Verbo em si mesmo, outra ao Ver-
bo encarnado, indo por via compositiva do que em si é mais
simples ao que é mais complexo, como das causas para os efei-
tos.

4. Divisão. — Na consideração do

I. Verbo antes da Encarnação (vv. 1-5),


deve-se tratar primeiro do que lhe compete diretamente ou per
se primo, isto é, seu mesmo ser divino, e só em seguida do que
dele se predica relativamente, isto é, seu agir ou operar ad ex-
tra, que, se bem tenha por termo algo criado, é não obstante
idêntico à substância divina.

Assim, a primeira seção do prólogo, concernente ao Verbo em


si mesmo, subdivide-se em outras duas: quoad esse (1-2), quan-
to ao ser próprio do Logos, e quoad operari (3-5), quanto a
suas operações transitivas.

A. Quanto ao ser próprio, procede o evangelista por dupla via:

a) em primeiro lugar, estabelece an sit, isto é, a preexistên-


cia do Verbo (1a) como hipóstase distinta de Deus Pai (1b);

b) em segundo, determina quid sit, esclarecendo que, em-


bora distintos, são consubstanciais (1c), razão por que a
preexistência de Cristo às criaturas supõe-no coeterno a
Deus (2).

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PRÓL O GO DE S ÃO JOÃO

B. Quanto ao agir próprio, procede novamente por dupla via,


com base num fundamento per se, qual seja a obscuridade do
objeto. Por isso refere em primeiro lugar o efeito natural pró-
prio do Verbo, que é o ser (esse) natural comum a todo o cria-
do (3); em segundo, o efeito sobrenatural, que é o ser sobrena-
tural de santificação nesta vida pela graça (4-5), possível apenas
à criatura racional.

a) Acerca do primeiro, isto é, do esse naturale, põe o modo


de sua produção, ou seja, o Verbo enquanto

1) causa eficiente universal (3a), por um lado,


2) e causa exemplar e quasi-instrumental do Pai (3b),
por outro.

b) Acerca do segundo, isto é, do esse supernaturale, consi-


dera-o

1) primeiro diretamente, em sua causa última, isto é, a


vida mesma do Verbo (4a);
2) depois indiretamente, com base num fundamento per
accidens, isto é, a vida do Verbo participada aos homens
(4b) mas por eles rejeitada de facto, e assinala por último
a causa (5b) e o efeito (5b) disto.

Daí passa à consideração da divindade encarnada ou humana-


da, isto é, do

II. Logos divino a partir da Encarnação (vv. 6-18),


procedendo de maneira proporcional em duas outras seções.
Na primeira (6-13), fala da Encarnação em seu anúncio, pois a
fé vem pela audição (fides ex auditu); na segunda (14-18), do
advento efetivo do Logos na carne.

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PRÓL O GO DE S ÃO JOÃO

A. Acerca do primeiro, isto é, do anúncio público do mistério, põe

a) em primeiro lugar a figura de João Batista (6-8), Precur-


sor e núncio imediato da Encarnação, apresentando

1) a origem divina de sua mensagem (6),


2) a natureza de sua missão (7)
3) e sua condição inferior e subordinada à de Cristo (8);

b) em segundo lugar, os destinatários gerais da mensagem


(9-13), isto é, a disposição dos homens para receber o Ver-
bo encarnado

1) tanto remota (in abstracto), na ordem da graça sufi-


ciente (9),
2) quanto próxima (in concreto), na ordem da graça efi-
caz (10), distinguindo a última em

α) inapta, por culpa atual dos incrédulos (11),

β) e apta, própria de quantos, pela fé como por sua


causa, recebem a graça de adoção filial como certo
efeito dela (12), o que exige explicar como se há de
entender isso,
— removendo de tal filiação toda origem humana
ou natural (13abc),
— a fim de estabelecer seu caráter eminentemente
sobrenatural (13d).

B. Acerca do segundo, isto é, do advento do Logos ao mundo,


considera

a) inicialmente a Encarnação em si mesma (14-15), deter-


minando

1) o fato (14a),

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PRÓL O GO DE S ÃO JOÃO

2) o modo (14b)
3) e a credibilidade do mistério por referência,

α) primeiro, ao testemunho apostólico (14c), corro-


borado à luz dos sinais externos da glória do Verbo,
especialmente
— os milagres (14c)
— e a inspiração interna da fé (14d);

β) segundo, ao de João Batista (15).

b) Por último, considera a Encarnação em seus efeitos salví-


ficos (16-18), distribuídos em três classes, sc.:

1) espirituais, provenientes da graça capital de Cristo (16);


2) morais, fruto da superioridade da nova economia,
isto é, da lei nova sobre a antiga (17);
3) e intelectuais, graças à plenitude da revelação sobre-
natural,

α) necessária à salvação dos homens (18a),

β) mas inacessível a eles sem um Mestre que a ensine


(18bc),

γ) e isso perfeitamente (18d).

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I. O LOGOS ANTES DA
ENCARNAÇÃO (1, 1-5)

A) Em si mesmo (v. 1s)


V. 1. Descreve-se a vida eterna do Verbo em três passos distin-
tos, mas perfeitamente articulados:

a) No princípio (ἐν ἀρχῇ), isto é, no início do tempo ou quando


as coisas começaram a ser (= 17, 5.24: πρὸ τοῦ τὸν ϰόσμον
εἶναι, ou ἀπ’ ἀρχῆς de 1Jo 1, 1; 2, 13s), já era (ἦν, literalmente =
existia, tinha existência) o Verbo. 3

Desde a antiguidade se nota o paralelismo entre estas palavras e as primei-


ras do Gênesis. Atente-se porém a duas diferenças. — 1) A palavra ἀρχή:
Moisés fala do princípio do tempo como do termo a quo (da criação), ao
passo que João dele fala como de certo termo ad quem ou, antes, ponto
imaginário que exclui todo e qualquer termo (seja a quo, seja ad quem),
pois se ἀρχή conota dimensão temporal, o imperfeito era (ἦν) leva para
além dos limites do tempo, imergindo o leitor na eternidade. — 2) As pala-

3. A esta interpretação, defendida pela maioria dos autores, preferem outra


os que, com São João Crisóstomo, entendem por princípio não o início da
criação, mas “o princípio absoluto da eternidade, isto é, o princípio antes de
todo princípio, princípio que é a própria eternidade do ser divino” (Vosté,
34); logo, Jo estaria referindo-se explicitamente não só à preexistência, mas
à eternidade mesma do Verbo. Como diz *H.-C. Puech, “pouco importa que
as palavras no princípio designem o momento da criação ou tenham um sen-
tido mais amplo, equivalente, em suma, a desde toda a eternidade. Porque é
esta última ideia a que está, no fundo, implicada na fórmula” (Histoire, 135).

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PRÓL O GO DE S ÃO JOÃO

vras criou e era: a primeira traz consigo a noção de tempo, enquanto a se-
gunda indica eternidade; com efeito, dado que João não diz que o Verbo
“foi criado”, mas apenas que “era” e que por ele todas as coisas foram criadas,
é evidente a intenção de afirmar a eternidade do Verbo.

Nono de Panópolis expõe o inciso ‘in principio’ de cinco modos


por meio de cinco epítetos, dos quais um se segue do outro em
ordem: No princípio, primeiro, isto é, intemporal; segundo, coe-
tâneo ao Pai; terceiro, igual ao Pai em natureza; quarto, incom-
preensível; quinto, inefável, e os quatro decorrem do primeiro:

Ἄχρονος ἦν ἀϰίχητος ἐν ἀρρήτῳ λόγος ἀρχῇ,


ἰσοφυὴς γενετῆρος ὁμήλιϰος υἱὸς ἀμήτωρ...

Atemporal, incompreensível, no inefável princípio era o Verbo,


ao que o gera igual por natureza e idade, Filho não-materno...
(Meta. Α, p. 3)

b) E o Verbo estava junto de Deus, não “em Deus” (ἐν τῷ Θεῷ),


o que daria a entender certa confusão ou absorção, nem “ao
lado” (μετά ou σύν), o que significaria mera coexistência exter-
na, mas πρὸς τὸν Θεόν, junto do Pai, o que implica a um tempo
proximidade, relação e distinção. Daqui infere a maioria dos
autores a consubstancialidade do Verbo, por um lado, e a dis-
tinção de pessoas, por outro, pois quem está junto de outro é
pessoa distinta dele. Toledo assim o expõe:

O Verbo não era solitário, mas referia-se ao próprio Deus, de


quem era Verbo, pois sem falante não há palavra. Tampouco
estava disjunto ou separado de Deus, pois o verbo intelectual
não se separa do intelecto de que é verbo. Não, porém, como
coisa adjacente ou inerente, mas como algo subsistente, distin-
to do próprio Deus, de quem era Verbo.

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PRÓL O GO DE S ÃO JOÃO

A preposição πρός, usada com verbos de movimento, significa


tendência, donde inferem alguns que o evangelista empregou
propositalmente esta partícula com um verbo estativo, ou de
repouso (era), a fim de exprimir simultaneamente a perma-
nência do Verbo no seio do Pai e sua inefável tendência a ele.
Essa interpretação, aceite por não poucos autores, alguns deles
bons conhecedores do grego, é admissível, embora uma maio-
4

ria interprete a locução πρὸς τίνα, usada com verbos estativos


ou de repouso, como equivalente a παρὰ τίνι, o que aliás é feito
alhures pelo próprio João (e.g., v. 18: εἰς; 1Jo 1, 2; cf. Jo 17, 5).

c) Terceiro e último passo da gradação: E Deus era o Verbo


(ϰαὶ Θεὸς ἦν ὁ Λόγος), isto é, o Logos era Deus (de natureza
divina). O Logos eterno, consubstancial ao Pai, tem a plenitude
da divindade, e não certa participação. É, portanto, verdadeira-
mente Deus.

A omissão do art. def. (ὁ) antes de Θεός significa que α) o termo tem fun-
ção de predicado, não de sujeito, e é posto no início da frase seja para enfa-
tizar a natureza divina do Verbo (cf. 4, 24: πνεῦμα ὁ Θεός), seja ainda por
recurso literário (paralelismo “climático”); β) o evangelista não emprega

4. Eutímio: “Não disse que estava num lugar, pois não pode estar conti-
do num lugar o que não pode ser circunscrito [isto é, abarcado, limitado].
Nem que <estava> em Deus, para que ninguém imaginasse logo no início
uma confusão de pessoas, mas que <estava> junto de Deus, ou junto do
Pai, para que se veja o que é próprio das hipóstases [ἵνα τε παραστήσῃ τῶν
ὑποστάσεων] e que são inseparáveis Pai e Filho”. Westcott: “A frase ἦν πρός
(V erat apud) é notável. Encontra-se também em Mt 13, 56; Mc 6, 3; 9, 19; 14,
49; Lc 9, 41; 1Jo 1, 2. A ideia que ela transmite não é a de simples coexistência,
como a de duas pessoas contempladas separadamente em companhia (εἶναι
μετά: 3, 25 etc.), ou unidas sob uma noção comum (εἶναι σύν: Lc 22, 56), ou
(por assim dizer) em relação local (εἶναι παρά: 17, 5), mas como estando (em
certo sentido) direcionadas a e reguladas por aquilo em virtude do qual a
relação é estabelecida”.

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PRÓL O GO DE S ÃO JOÃO

com o mesmo sentido, nesta e na proposição anterior, a palavra Θεός: na-


5

quela, denota uma hipóstase divina (isto é, o Pai, daí a presença do art., τὸν
Θεόν), nesta expressa tão somente a natureza ou essência divina (= Deus,
não como nome próprio, mas da natureza em que subsiste o Verbo).

Logo, já no primeiro versículo se afirma a) a eternidade do


Verbo, b) sua personalidade distinta da do Pai e c) sua con-
6

substancialidade com ele.

V. 2. Este (grego οὗτος), isto é, o Verbo era… Colige, “como


que em epílogo, o que dissera nas três primeiras” proposições

5. Sobre a dupla forma Θεός e ὁ Θεός, escreve Westcott, em The Epistles of


St. John (Londres, 1905) 165ss, que a primeira fórmula indica a natureza di-
vina, enquanto a segunda, “o Deus pessoal que se nos revelou numa relação
pessoal conosco”.
6. Dubium: “A eternidade é duração infinita, desprovida de princípio e fim;
por que então se lhe atribui aqui um princípio? — Resp.: A causa é a debi-
lidade do intelecto humano, que não pode compreender a eternidade nem
concebê-la distintamente senão por comparação ao tempo, razão por que
concebe a eternidade como duração coexistente a todo tempo presente, fu-
turo e pretérito, não só verdadeiro mas também imaginário, de modo que
precede e antecede todo o tempo. O sentido é, pois: No princípio, isto é, antes
de todo tempo, inclusive do que com a mente se pode imaginar, inventar e
conceber, era o Verbo... Por este motivo João repete quatro vezes o imperfei-
to: No princípio, diz, era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus, e o Verbo
era Deus. Ele estava no princípio junto de Deus, para que, em qualquer tempo
que penses, saibas que nele já havia o Verbo... [P]ortanto, ‘princípio’ toma-se
aqui em sentido relativo, isto é, enquanto diz respeito a todos os tempos,
porquanto os antecede de longe a todos eles... [A] eternidade, que está toda
em um único agora, ou em um único ponto de duração do tempo, abrange
e compreende todo tempo pretérito, presente e futuro, e em muito o supera,
antecede e transcende... [P]ara concebermos e exprimirmos que alguma coi-
sa não começou no tempo, mas é eterna e existe desde a eternidade, dizemos
que existia no princípio de toda duração e da eternidade, com o que não
significamos outra coisa senão que ela existiu sempre, existiu desde a eterni-
dade, existiu desde toda a eternidade etc. É neste sentido que João diz: ‘No
princípio era o Verbo’, e o salmista: ‘Contigo está o principado, no dia do teu
nascimento’ (Sl 109, 3)... Por conseguinte, ‘princípio’ denota aqui não algum
início, mas a eternidade em si mesma” (a Lapide).

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PRÓL O GO DE S ÃO JOÃO

(Tomás de Aquino, Super Ioan. I l. 2). Trata-se de certa pausa


na exposição a fim de preparar, como ponto de transição, os
versículos seguintes.

B) Em relação às criaturas (v. 3ss)


Até agora, falou-se do Verbo em si, antes que o mundo existis-
se; agora, fala-se de sua relação com as coisas criadas, a saber:

a) Com a criação em geral (v. 3)


V. 3. Todas as coisas (πάντα = todas e cada uma, mais forte e
expressivo que τὰ πάντα = tudo, o mundo inteiro), sejam elas
quais forem, “do anjo ao verme” (Agostinho), por ele (δι’
αὐτοῦ, mediante ele) foram feitas (ἐγένετο, têm ser; cf. Cl 1,
16s). A Deus se atribui o termo ἦν, que indica ser de modo
permanente, enquanto as criaturas se dizem feitas, ἐγένετο, o
que significa vir do não-ser ao ser (por participação). Tudo
pois quanto existe, isto é, tem razão de ente, deve sua existência
e suas perfeições ao Verbo.

De que natureza foi o papel do Verbo na obra da criação? A causalidade


criadora do Pai costuma vir expressa pela preposição ‘ἐϰ’ (e.g., Rm 11, 36;
1Cor 8, 6; 11, 12), enquanto a do Verbo é designada pelas preposições διά
(com genitivo) e ‘ἐν’ (e.g., 1Cor 8, 6; Cl 1, 6; Hb 1, 2), que denotam agente
intermédio (mas não necessariamente instrumental). Ora, que o Logos
não seja instrumento em sentido próprio, é evidente porque o Verbo era
Deus; mas pode ser causa exemplar e quasi-instrumental da criação: (a)
exemplar porque, sendo ele a Imagem do Pai (Cl 1, 15) contém eminenter a
forma de todas as coisas; (b) eficiente e quasi-instrumental, na medida em
que produz e reflete ad extra estas formas ou tipos de perfeição.

Repete-se a mesma ideia, agora em forma negativa, por parale-


lismo antitético: E sem ele não foi feito nada (grego οὐδὲ ἕν,

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PRÓL O GO DE S ÃO JOÃO

nem uma coisa sequer) do que foi feito. Trata-se de locução


enfática (cf. Is 39, 4; Jr 42, 4).

b) Com os homens, em particular (v. 4s)


V. 4. Em primeiro lugar, diremos algumas palavras sobre a pon-
tuação deste versículo e, em seguida, sobre sua interpretação.

α) Há três lições variantes sobre a divisão dos vv. 3-4, das quais
a primeira e a última são as principais:

1) ...foi feito nada. O que foi feito, nele era vida.


2) ...foi feito nada. O que foi feito nele era vida.
3) ...foi feito nada do que foi feito. Nele era [= estava] a vida.

Nas duas primeiras lições, as palavras “o que foi feito” (grego ὃ


γέγονεν. latim quod factum est) dão início a um novo período;
na terceira, estão vinculadas às precedentes.

1) A primeira lição, na qual há um ponto final depois da pala-


vra nada e uma vírgula após a segunda ocorrência da locução
foi feito, é a que conta com testemunhas mais numerosas e mais
antigas. Contudo, é interpretada de diversas maneiras tanto
pelos Padres como por autores mais recentes. Em geral, está de
acordo com Agostinho: “Tudo o que foi feito, antes de ser feito,
desde a eternidade é vida no Verbo, assim como uma casa, an-
tes de ser construída, vive na mente do artífice”. Bela e profun-
da doutrina, mas aparentemente estranha ao contexto e ao res-
tante do IV Evangelho.

2) Da segunda lição abusaram maniqueus, gnósticos e arianos


para sustentar que nem tudo foi feito pelo Verbo, ou que algo
do Verbo foi feito no tempo.

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PRÓL O GO DE S ÃO JOÃO

3) A terceira, que separa por pontos os vv. 3-4, tem a seu fa-
vor muitos Padres gregos e conta com a aprovação de vários
expositores e críticos: “Tem um sentido melhor e mais fácil”
(Maldonado), isto é, torna coerente e natural a sucessão de
ideias: “Este era no princípio” (v. 2), “todas as coisas foram
feitas por ele” (v. 3), “nele estava a vida” (v. 4). Vejam-se as
palavras de João paralelas a estas: “Deu-nos a vida eterna e...
esta vida está em seu Filho” (1Jo 5, 11). O acréscimo do se-
gundo que foi feito, mais do que repetição inútil, serve, como
já dito, de reforço enfático.

β) Nele estava a vida. Até agora, João disse: O Verbo era Deus,
por ele todas as coisas foram criadas. E prossegue: O Verbo
era vida e luz para os homens. No Verbo, princípio da cria-
ção, estava a vida como em seu domicílio, em sede própria
ou, melhor, como em sua fonte e manancial. Não se trata aqui
da vida divina em si mesma, própria de Deus (talvez por isso
não diga: “O Verbo era vida”), mas de vida comunicável,
como fica claro pelo que segue (cf. 5, 26). O Verbo, por con-
seguinte, era o princípio e a fonte da vida, não da vida em
sentido circunscrito (isto é, nem só natural, nem só sobrena-
tural), mas da vida simpliciter, isto é, da vida enquanto tal, de
qualquer ordem ou natureza. Seja como for, o que se tem
diante dos olhos, antes de tudo, é uma forma mais nobre de
vida, qual seja a moral e sobrenatural.

E a vida era a luz dos homens, isto é, a vida que estava no Verbo
era comunicada aos homens como luz (metaforicamente), isto
é, como princípio de iluminação. No mundo físico, a luz dissi-
pa as trevas e permite andar com segurança (cf. 11, 9); do mes-
mo modo na ordem humana, na ordem moral e sobrenatural,
da qual aqui se trata. A luz derivada do Verbo para os homens
é, por um lado, a luz natural do intelecto, em virtude da qual os
homens podiam preservar-se do erro, tanto ético como religio-

18
PRÓL O GO DE S ÃO JOÃO

so, e levar uma vida verdadeiramente humana, e, por outro, é


também a revelação sobrenatural, pela qual fossem conduzi-
dos à vida eterna. Logo, toda luz que tiveram os homens, inclu-
sive os de épocas passadas, para pensar retamente (eticamente)
e fazer o bem; toda revelação sobrenatural feita às primeiras
gerações e a Israel (por Moisés e pelos profetas); tudo isso,
numa palavra, receberam-no do Verbo (João, é claro, fala por
apropriação), tudo era comunicação da vida existente no Ver-
bo (cf. 1Cor 10, 4).
Esta parece ser a interpretação mais provável dessa difícil passagem. Desde
Maldonado, os intérpretes católicos comumente entendem vida e luz em
sentido ético-espiritual. Os antigos a entendiam também como a luz natu-
ral por que discernimos entre o bem e o mal, o verdadeiro e o falso. Mas,
como no versículo seguinte, as trevas hão de tomar-se em sentido moral,
assim como a luz neste versículo. Não se trata, pois, da luz que é princípio
de visão (conhecimento), mas da que é princípio de vida.

V. 5. Em si e por si, o Verbo era luz para todos; mas, em reali-


dade, essa luz (τὸ φῶς) oriunda do Verbo brilha nas trevas, isto
é, emite seus raios entre homens tenebrosos, obnubilados por
erros e pelas paixões, e por isso as trevas, isto é, os homens de
tal condição, não a compreenderam, não a aceitaram nem re-
ceberam, mas a desprezaram.

João refere-se diretamente aos homens nascidos antes da En-


carnação do Verbo. Emprega porém o tempo presente (φαίνει)
porque tem diante de si também o estado do mundo posterior
à vinda de Cristo. Quão poucos receberam a luz (os princípios
da reta razão, a voz da consciência, a revelação primitiva) do
Verbo! Com razão o Apóstolo Paulo (cf. Rm 1, 18ss; 3, 9-12)
podia dizer do mundo pré-cristão o que já dissera o salmista
(cf. Sl 13, 1ss; 52, 2ss).
N.B. a) Há quem o restrinja ao tempo pós-Encarnação: Os judeus (= as
trevas) não quiseram receber o Verbo encarnado (= a luz), ideia repetida

19
PRÓL O GO DE S ÃO JOÃO

nos vv. 10-11, já sem metáfora e noutro tempo verbal. — b) Hoje em dia,
muitíssimos autores, trazendo de volta à vida a interpretação de Orígenes
de alguns Padres gregos, dão ao verbo ϰατέλαβεν (latim comprehenderunt)
o sentido de coibir, sufocar, vencer etc., de forma que o sentido é: As trevas,
isto é, os homens maus, apesar de tentarem, não conseguiram suprimir ou
apagar a luz (cf. Sb 7, 20 V). Tal interpretação contém não só a ideia de re-
jeição à luz, como a primeira, mas também a de luta, sobre o que acrescenta,
por último, o triunfo da luz: As trevas não prevaleceram, o que, por sua vez,
pode entender-se ou aorística (a luz brilha, as trevas não puderam prevale-
cer) ou historicamente (como no texto).

20
II. O LOGOS A PARTIR DA
ENCARNAÇÃO (1, 6-13)

O
evangelista contempla agora a vinda do Verbo ao
mundo, ainda não em concreto, mas como que meta-
fisicamente, quanto ao resultado último de seu ad-
vento: ao Logos–luz, presente no mundo, não o receberam os
homens; suscitado então por Deus, João Batista veio mostrar-
-lhes o que sozinhos não estavam vendo (v. 6ss). A luz do Ver-
bo por fim vem ao mundo. Mas o escritor sagrado não pode
não recordar o que deixara escrito no v. 3: em verdade, o Verbo
já estava no mundo, porém em vão (v. 9s); nem feito homem
foi reconhecido e recebido pelos seus (v. 11). Mas aos que o
reconheceram e receberam, com que abundância de bens os
enriqueceu (v. 12s)!

A) O Precursor (v. 6ss)


Ao começar a falar da Encarnação do Verbo, João menciona
primeiro o Precursor. Apareceu (latim fuit, grego ἐγένετο =
existiu, houve) um homem enviado por Deus, isto é, um lega-
do de Deus (cf. 3, 28; Mt 11, 10) que se chamava João Batista.
Este veio em testemunho, eis a razão geral da legação do Batis-
ta, servir de testemunha e, em espécie, dar testemunho do Ver-
bo–luz, a fim de que, por seu testemunho, todos, não só os ju-
deus, cressem (causa final) na luz, isto é, no Verbo oculto sob
carne humana.

21
PRÓL O GO DE S ÃO JOÃO

Invoca uma testemunha conhecida e de grande autoridade, já


tendo, porém, indicado muitas diferenças entre João e o Verbo:
(i) João ἐγένετο, o Verbo ἦν; (ii) João é homem, o Verbo, Deus;
(iii) João foi “enviado por Deus”, o Verbo “estava junto de
Deus”. Chega inclusive a dizer: Não era ele (João) a luz, mas
[veio elíptico] para dar testemunho da luz. Mais adiante (cf. 5,
35), João será chamado λύχνος, lâmpada ou lucerna cuja luz
não é própria, mas recebida de outro.
Pelo modo como aqui e alhures (cf. 1, 15.19-27.29-34; 3, 26-31; 10, 14) se
fala do Batista, desde há muito têm notado os expositores (Cirilo de Ale-
xandria e quase todos depois dele) a preocupação do evangelista em definir
claramente a diferença entre Jesus e João, “como se quisesse corrigir uma
falsa opinião a respeito deste”. Muitos sustentam que a isso deram causa os
discípulos do Batista ainda vivos em tempos de João. Sobre eles algo sabe-
mos por At 19, 1ss, e o Ps.-Clemente, em Recog. I 60 (MG 1, 1240b), nos faz
saber que para ao menos um deles o Batista era o Messias. Pensam ainda
alguns autores que João teria em mente alguns mandeus do séc. II, cujos
escritos enalteciam o Precursor em excesso, a ponto de impugnarem Jesus.
Mas nenhuma das hipóteses está demonstrada.

B) O advento do Verbo e a resposta dos homens


(vv. 9-13)
V. 9. Do Precursor torna o evangelista para o Verbo, e assim
como afirmara não ser aquele a luz, assim diz deste: Era a luz
verdadeira (ἦν τὸ φῶς τὸ ἀληϑινόν = a luz de verdade, no sen-
tido de genuína, autêntica, etc., por oposição a imperfeita; não
é o mesmo que φῶς ἀληϑές = luz verdadeira no sentido de
veraz, verídica, por oposição a mentirosa, falsa, falaz etc.), isto
é, não por participação, como a luz natural, mas por essência,
e superior a qualquer outra; que ilumina, que por si mesma é
apta para iluminar todo homem que vem ao (G omite este)
mundo pelo nascimento. Trata-se de locução enfática para sig-

22
PRÓL O GO DE S ÃO JOÃO

nificar que todos, sem qualquer exceção, podem ser ilumina-


dos por esta divina luz.

Os exegetas são hoje quase unânimes em ler ἐρχόμενον, inter-


pretado no gênero neutro (latim veniens), não como particípio
predicativo de ἄνϑρωπον (latim hominem, como em V), mas
como atributo do verbo ἦν: “Era a luz de verdade, que ilumina
todo homem, que vinha”, isto é, que estava para vir a (este)
mundo, o que em português equivale, pouco mais ou menos, a:
“Era a luz vindoura... que ilumina” etc. Embora desconhecida
dos antigos, essa lição torna o texto mais coerente, além de
concordar perfeitamente com o estilo de João (cf., para o per-
feito perifrástico, 1, 28; 2, 6; 3, 23; 10, 40; 11, 1; 13, 23; 18, 18.25;
para o conceito, 6, 14; 11, 27; 12, 46; 16, 28; 18, 37 etc.).
Do primeiro modo, exalta-se a singular dignidade do Verbo, por oposição
ao Precursor, assim como seu influxo e ação universais sobre os homens: o
Verbo, por ser luz genuína, ilumina com sua luz (em sentido composto, isto
é, com a luz natural da razão, com a sobrenatural da graça, com a da revela-
ção divina, com a doutrina evangélica etc.) a absolutamente todos; do se-
gundo, assinaladas em oblíquo as mesmas ideias, propõe diretamente o
autor sagrado uma nova, qual seja a vinda iminente do Logos ao mundo.

V. 10s. A menção ao advento visível do Verbo ao mundo traz


de volta à mente do hagiógrafo a presença antecedente do mes-
mo Verbo no mundo e o resultado infrutífero dela. À lembran-
ça deste resultado segue-se espontaneamente (por antecipa-
ção) a imagem do exíguo sucesso do novo advento aos seus: Já
estava no mundo (físico, no universo), e (na verdade, inclusive
= latim immo, grego ϰαίγε) o mundo foi feito por ele (cf. v. 3),
quer dizer: O Verbo veio ao mundo, mas nem por isso penses
que ele aqui nunca estivera; desde o dia da criação já estava no
mundo, “como causa eficiente e conservadora” (Tomás de
Aquino, Super Ioan. I l. 5). No entanto (ϰαί adversativo), o
mundo, isto é, os mundanos, homens afastados de Deus, não o

23
PRÓL O GO DE S ÃO JOÃO

(αὐτόν, isto é, Λόγον) conheceu nem por presença, nem por


operação, nem pela luz interna de que está naturalmente dota-
da a alma humana.

N.B. Dizemos que Deus está presente

1.º Por essência e imensidade em todas as coisas, como Criador da or-


dem natural e, portanto, Causa primeira que comunica a perfeição do ser a
todas as criaturas, de maneira contínua e ininterrupta. Por essa modalidade
de presença, Deus se diz presente em absolutamente todos os entes do uni-
verso, dos minerais mais simples até os demônios e condenados no inferno.

2.º Por inabitação em todos os justos, sejam homens ou anjos, como


Autor da ordem sobrenatural e, portanto, como Pai e Amigo. Deus só se diz
presente, por essa segunda modalidade, nas criaturas racionais elevadas a
um princípio de vida divina por obra da graça santificante, que é uma qua-
lidade habitual criada que confere à alma humana ou à substância angélica
uma participação verdadeira na natureza de Deus, unindo-as a Ele de ma-
neira muito mais íntima do que a propiciada pela presença de imensidade.

3.º Por união pessoal ou hipostática, em virtude da qual assume para


si uma natureza criada (isto é, a santíssima humanidade de Nosso Senhor),
unindo-a sem confusão nem mistura à sua própria pessoa divina. Trata-se da
união mais íntima possível, por isso mesmo indissolúvel. Em Cristo, Deus
não está presente apenas como a Causa que lhe sustenta no ser a huma-
nidade nem apenas pela graça santificante, mas como a pessoa ou, se se
prefere, o eu de Jesus. Nele, não há uma pessoa ou eu humano, senão que
todas as suas ações e palavras procedem verdadeiramente do Filho eterno,
assim como, mutatis mutandis, nossas ações e palavras procedem de nós e
nos são atribuídas como à sua fonte ou origem pessoal.

Não só isso. Veio, ainda por cima, para o que era seu (εἰς τὰ
ἴδια) — isto é, para o mundo, que, criado por ele, era proprie-
dade sua —, agora visivelmente, pela Encarnação. Com isso
não se choca, senão que o inclui, a interpretação por muitos
adotada segundo a qual se trataria aqui da Palestina e do povo
judeu, um povo particular e consagrado ao Senhor (cf. Dt 7, 6;

24
PRÓL O GO DE S ÃO JOÃO

14, 2 etc.). Mas, miseravelmente, os seus, os judeus (ou ainda:


os homens) não o receberam, isto é, não quiseram reconhecê-lo
como Deus ou como Verbo encarnado, pois amavam antes as
trevas do que a luz (cf. 3, 19).

Os verbos conhecer e receber têm aqui sentido mais forte que o


habitual: receber, no versículo seguinte, é explicado como “crer
no nome [dignidade] dele” (do Verbo encarnado); crer, por seu
turno, tem no léxico joânico o sentido de reconhecer a dignida-
de divina de Cristo e a ele se entregar por inteiro, sem qualquer
exceção, de mente (pela fé) e coração (por amor efetivo). O
mesmo vale para conhecer.

V. 12s. Nem todos, porém, se portaram do mesmo modo com


o Verbo encarnado. Houve quem o recebesse, isto é, que acre-
ditasse nele, em sua dignidade supra-humana. A estes, não im-
porta quantos fossem (latim quotquot), quer judeus, quer pa-
gãos de qualquer idade e condição, deu-lhes o poder (ἐξουσίαν)
ou a faculdade de tornar-se filhos de Deus, isto é, participantes
da natureza divina. O homem, por sua própria natureza, não é
filho de Deus, mas simples criatura. No entanto, pode tornar-
-se filho de Deus por participação. E essa graça suprema, deve-
-a ao Filho de Deus natural. Numa palavra, mostra aqui João a
grande benevolência de Deus para com os homens: Jesus os
eleva pela graça ao que ele mesmo é por natureza, e Deus Pai os
aceita e acolhe como objeto de seu amor pessoal (cf. 1Jo 3, 1s).
Jesus não trouxe um dom externo, mas algo maximamente ín-
timo: o amor paterno de Deus, com o qual nos abraça como a
verdadeiros filhos.
Sobre o que propriamente significa a ἐξουσία dada aos fiéis pelo Verbo, não
há unanimidade entre os intérpretes. Certamente algo menos que δύναμις
(capacidade, virtude inata) e que a própria dignidade filial, mas algo mais
que um puro título jurídico ou um mero privilégio, conquanto haja quem
assim a traduza. Etimologicamente, ἐξουσία é o mesmo que poder ou fa-

25
PRÓL O GO DE S ÃO JOÃO

culdade (livre) de fazer ou ter alguma coisa. Aos homens, portanto, é ofere-
cida a filiação divina, mas está em poder deles aceitar ou não essa suprema
benevolência de Deus (cf. Concílio de Trento, 6.ª sess., De iust. cân. 4: Den-
zinger-Hünermann 1554). É pela fé que se adquire tal poder, o qual porém
não é levado a efeito sem a infusão da graça habitual, a única que nos pode
tornar participantes da natureza divina (cf. 2Pd 1, 4). Logo, a fé que é causa
da justificação e da filiação divina é a que opera pelo amor (cf. Gl 5, 6), isto
é, a fé viva, ou formada pela caridade.

Esta filiação divina, confiada embora à liberdade humana, é


em si mesma sobrenatural e supõe uma nova geração (cf. 3, 7),
cujo modo é descrito primeiro negativa, depois positivamente:
Os quais filhos de Deus nasceram não do sangue (V: ex sangui-
nibus, isto é, de sêmen humano) nem da vontade da carne (=
concupiscência) nem da vontade de varão (= do desejo, mais
veemente nos homens, de gerar filhos e propagar a espécie),
mas de Deus; esta geração, por conseguinte, não é de modo al-
gum carnal, mas toda pura e espiritual, tendo por autor unica-
mente a Deus.
Justino (?), Irineu, Tertuliano, Ambrósio e Agostinho, além da versão pe-
shita e do códice veronense da Vetus Latina, trazem outra lição: o qual (no
sing.) nasceu não do sangue, mas de Deus (ὅς... ἐγεννήϑη), na qual o evange-
lista não se estaria referindo à regeneração espiritual dos cristãos, mas à
atividade física de Cristo, “o qual nasceu não do sangue... mas da Virgem
por obra do Espírito Santo” (Ambrósio). Sem embargo, toda a tradição dos
códices e os demais expositores apresentam a lição de V; as razões internas
aduzidas por alguns não demonstram a autenticidade da variante.

26
III. O LOGOS ENTRE
OS HOMENS (1, 14-18)

E
nuncia-se em termos expressos o mistério da Encarna-
ção (v. 14). O evangelista e seus contemporâneos con-
templaram a glória do Verbo encarnado (v. 14b), a quem
o Batista lhes apontara (v. 15). Os homens, desde então, têm
recebido abundantes graças (v. 16), bens muito superiores aos
dados por meio de Moisés (v. 17) e que de ninguém mais além
de Cristo poderiam receber (v. 18). Aqui, de modo particular,
nota-se o evangelista tomado de profundos sentimentos.

a) Fato e testemunhas da Encarnação (v. 14s)


V. 14a. Ápice do prólogo, anuncia em tom solene o que já fora
antecipado no v. 11, embora abstratamente, evento estupendo
e quase inacreditável, acima de toda e qualquer expectativa,
além de sinal da benignidade de Deus para com os homens: o
mesmo Verbo, que é desde sempre, espírito e princípio da vida,
transcendente a toda criatura e luz dos homens, se fez carne!
Não diz tão somente “se fez homem”, conquanto seja isto o que
significa, mas “carne”, sinédoque frequentíssima na Escritura,
usada aqui de propósito para que o leitor veja por entre as li-
nhas a verdade da natureza assunta ou, segundo outros, a con-
descendência do Verbo divino; mas, antes de tudo, a máxima
oposição entre o que o Verbo é por natureza (Deus) e o que se
dignou ser no tempo (homem), por um lado sublime, por ou-
tro finito e frágil!

27
PRÓL O GO DE S ÃO JOÃO

O se fez (latim factum est, grego ἐγένετο) não diz que o Verbo se
tenha mudado ou convertido em carne (como em 2, 9, aplicado
à água transformada em vinho), mas que uniu a si uma natureza
humana, sem no entanto perder o que era: Deus (cf. v. 1).
Leão Magno, Ep. 35: “...nem o Verbo se mudou em carne, nem a carne no
Verbo, mas ambas permanecem em um só, e um só é em ambas, não divi-
dido pela diversidade, não confuso por causa da mistura, nem um da parte
do Pai e outro da parte da mãe, mas o mesmo, em um modo da parte do
Pai, antes de todo início, em outro da parte da mãe, ao fim dos séculos, para
ser ‘mediador de Deus e dos homens, o homem Jesus Cristo’ (1Tm 2, 5), em
quem habitasse ‘a plenitude da divindade corporalmente’ (Cl 2, 9); pois é
elevação de grau do assumido, não de quem assume, o fato de que ‘Deus o
exaltou…’ (Fl 2, 9ss)” (Denzinger-Hünermann 297).

O Verbo não só se fez carne, senão que habitou em nós, isto é,


entre nós, veio conviver conosco no nosso próprio meio. — A
expressão ἐσϰήνωσεν, ao pé da letra, significa “armou a tenda”.
Com esta belíssima imagem, inspirada em costumes nômades, retrata-se o
íntimo relacionamento do Verbo com os homens e sua passagem transitó-
ria pelo mundo, mas sobretudo, por força da alusão ao tabernáculo da reu-
nião (σϰήνη), no qual Deus habitava no meio dos filhos de Israel como em
casa própria (cf. Ex 25, 8; 29, 45; Sl 77, 60), a humanidade assunta do Verbo,
a carne de Cristo, apresentada qual sede e presença da divindade entre os
homens, o que vem reforçado pelo fato de que, assim como no Antigo Tes-
tamento a presença de Israel era indicada pela nuvem (Shekhînah, cf. Ex 24,
16; 40, 32; Nm 9, 15ss; Lv 16, 2; 1Sm 8, 10-13 etc.) chamada glória do Senhor,
do mesmo modo a manifestação do Verbo é acompanhada por uma glória
e majestade únicas, visíveis a todos, como logo em seguida acrescenta o
evangelista.

V. 14b. E vimos (ἐϑεασάμεϑα, contemplamos com os nossos


próprios olhos; cf. 1Jo 1, 1), isto é, nós os Apóstolos, ou todos
os que dele nos acercamos (pl. literário, como em 1Jo 1, 1?), a
sua glória (δόξαν αὐτοῦ), o esplendor de seu poder e de sua
virtude (cf. 2, 11), radiante nos milagres, na doutrina, no modo

28
PRÓL O GO DE S ÃO JOÃO

de vida; numa palavra, vimos sinais externos de sua divindade;


glória como de Filho unigênito do Pai (ὡς μονογενοῦς παρὰ
πατρός, isto é, que a ele pertence, ou também: que dele proce-
de). É uma repetição para esclarecer a grandeza da glória de
Cristo, como se João dissesse: “Glória, digo, como a que con-
vém ao Unigênito de Deus”. A partícula ὡς (latim quasi = por-
tuguês ‘como’, ‘como que’) não significa comparação, mas iden-
tidade (cf., e.g., Mt 7, 29; Rm 6, 13; 1Cor 2, 3.5; 2Cor 2, 17; Gl 3,
16 etc.)
Alguns autores vinculam do Pai não a unigênito, mas a glória, de modo que
o sentido seria: “Vimos a glória dele, glória que, como Unigênito, tem [re-
cebe] do Pai”.

Cheio de graça e de verdade. Primeiro diremos algumas pala-


vras sobre a construção da frase, depois sobre sua interpretação.

α) A dificuldade se deve a que nem o latim plenum nem o gre-


go πλήρης (nominativo masc.) concordam com qualquer dos
substantivos precedentes. 1) Para alguns, refere-se por cons-
trução irregular a “vimos a sua glória, cheia de…”; 2) para ou-
tros, a Verbo, como se de um nominativo absoluto se tratasse;
3) muitos o vinculam com o possessivo (latim eius, grego
αὐτοῦ), quer como aposto irregular no nominativo, o que não
é estranho ao estilo de João (cf., e.g., Ap 1, 5; 2, 20; 3, 12; 7, 4; 8,
9; 9, 14; 14, 12; 20, 2, mas nenhuma vez no Evangelho), quer
como nome indeclinável na linguagem coloquial, o que aliás
não é tão incomum; 4) outra solução é considerar as palavras
“e vimos... do Pai” um parêntese inserido em: “E o Verbo se fez
carne, e habitou entre nós,... cheio de...”.

β) Como quer que se resolva a questão gramatical, o que se diz


é que o Verbo se deu a conhecer cheio de graça e de verdade, isto
é, não só, como muitos afirmam, de misericórdia (= benigni-
dade) e de verdade (= fidelidade, imutável propensão aos ho-

29
PRÓL O GO DE S ÃO JOÃO

mens; do hebraico ‫חסֶד ֶואֱמֶ ֽת‬,


֥ ֶ cf. Ex 36, 6; Sl 84, 11), mas ainda
mais, pois graça é abundância de dons espirituais, tanto para si
mesmo (pois nele habitava corporalmente a divindade [cf. Cl
2, 9], e sobre ele, enquanto homem, foi derramada toda a ple-
nitude das graças, tanto das gratis datæ, ou carismas, como da
gratum faciens, ou santificante) quanto para os outros (cf. v.
16); e verdade, no léxico joânico, significa o verdadeiro conhe-
cimento de Deus, que dele procede e a ele conduz (cf. 8, 46s;
18, 37), estimação verdadeira e correta das coisas (espirituais),
autêntica notícia das coisas celestes e, por conseguinte, concei-
to justo e adequado das coisas terrenas.
Cheio de graça foi Samuel (cf. 1Sm 3, 20), Maria é chamada a cheia de graça
(cf. Lc 1, 28) e o mesmo título é dado em honra a Estêvão (cf. At 6, 8); mas
ninguém, além do Filho de Deus, é chamado cheio de graça e de verdade; de
ninguém, além dele, se diz termos recebido graça sobre graça e, por ele,
ter-nos sido trazida a graça e a verdade (cf. Jo 1, 17). Aos demais santos,
deu-se a graça segundo certa medida, e foi dele que a receberam. Cristo
Jesus abunda em graça, que dele dimana e da qual ele mesmo é fonte e dis-
pensador.

V. 15. Ao testemunho dos Apóstolos agrega o evangelista ou-


tro, acima de qualquer suspeita: o de João Batista, investido
por Deus desta missão, como ficou dito (cf. v. 6ss). João dá tes-
temunho dele e clama (ϰέϰραγεν, perf. com sentido pres. = en-
toa em alto e bom tom), dizendo: Este era aquele dea quem eu
disse (ὃν εἶπον = ὑπὲρ οὗ εἶπον = de quem eu disse, como no v.
30): O que há de vir depois de mim a pregar é mais do que eu
(grego ‘ἔμπροσϑέν μου γέγονεν’; em V, ‘ante me factus est’,
não porque tenha sido feito ou criado antes de João, mas por-
que o antecedia e superava em grau e perfeição). Assinala em
seguida a razão disso: porque existia (em sentido temporal:
πρῶτος = πρότερος) antes de mim, isto é, porque antes de João
existir já Cristo existia (era, ἦν, cf. v. 1) com existência pré-ter-
rena ou atemporal, pois sobre a mera precedência de nasci-

30
PRÓL O GO DE S ÃO JOÃO

mento não se fundaria uma real excelência ou prelação. Dá-se,


pois, um resumo dos testemunhos do Batista sobre Jesus, o
Messias, que o evangelista desenvolve mais à frente (cf. 1, 35ss)
acrescidos de circunstâncias e detalhes históricos.

b) Benefícios da Encarnação (v. 16ss)


Referido de passagem o testemunho dos Apóstolos e do Pre-
cursor, continua o evangelista, e não o próprio Batista, como
disseram alguns antigos (e.g., Clemente de Alexandria, Oríge-
nes, Teodoro de Mopsuéstia), a contar-nos os bens trazidos ao
homem pelo Verbo encarnado.

V. 16. Cristo, fonte de graça e de verdade. — E (‘et’ explica-


tivo, em V; ὅτι, em G = pois que) todos nós (aqueles de quem
se fala no v. 14: vimos) participamos da sua plenitude de graça
e de verdade (cf. v. 13) como de um pélago inexaurível, e efeti-
vamente recebemos graça por graça (latim ‘gratia pro gratia’,
grego ‘χάριν ἀντὶ χάριτος’), isto é, graça sobre graça (= χ. ἐπὶ
χάριτι), uma série contínua de graças a suceder-se umas às ou-
tras, profusão abundantíssima de dons espirituais a jorrar in-
cessantemente (cf. Fl 2, 27) ou, mais simplesmente, a graça (o
estado de graça) correspondente à graça dele.

V. 17. Cristo, autor da nova economia. — Dá agora a razão


de haver dito: Todos nós participamos da sua plenitude… Antes
fora dada a Lei, mas não a graça: Porque a lei foi dada (ἐδόϑη,
como algo extrínseco) por Moisés, isto é, pelo ministério de
Moisés, porém a graça e a verdade foi feita (ἐγένετο, latim ‘fac-
ta est’ = teve ser, foi produzida, ou melhor: foi trazida) por Jesus
Cristo. Que os homens disponham da graça de Deus a operar
neles interiormente, que sejam por fim iluminados pela verda-
de autêntica e plenamente saciante, tudo isso vem de Cristo,
não de Moisés. Logo, estabeleceu-se ex integro uma nova or-

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PRÓL O GO DE S ÃO JOÃO

dem, na qual Jesus Cristo sucedeu a Moisés, a graça à Lei, o


estado de favor e amizade ao de sujeição, a realidade às pro-
messas.

V. 18. Cristo, exegeta de Deus. — Por fim, explica João de


que modo nos foi dada a verdade (cf. v. 17), o conhecimento
autêntico das realidades divinas, por meio de Jesus Cristo, es-
tabelecendo para isso três fatos: (1) A Deus (Θεόν, sem art. = a
natureza de Deus, a divindade, e não: o Pai) ninguém entre os
homens jamais viu (cf. 4, 24a); consequentemente, ninguém
viu o que há em Deus para que pudesse transmitir aos homens
o conhecimento das coisas divinas; (2) mas o Filho unigênito,
ou melhor, segundo o G mais provável: Deus unigênito
(μονογενὴς Θεός, sem art. = um Deus, Filho único), que está
no (εἰς com acus. = ἐν com dat. na língua helen.) seio do Pai
(τὸν ϰόλπον, literalmente: no peito, parte da frente do tórax),
isto é, no segredo do Pai, a quem está unido o mais intimamen-
te possível e por quem é amado mais do que todas as outras
coisas (subentende-se: ‘por isso conhece perfeitamente todos
os mistérios’), (3) foi ele (ἐκεῖνος enfático = este mesmo), o
Unigênito, quem no-lo enarrou (ἐξηγήσατο, interpretou com
clareza, isto é, deu a conhecer de modo suficiente os arcanos da
divindade), o que, na falta de complemento, há de referir-se a
quanto diz respeito ao conhecimento íntimo de Deus (cf. 15,
15). No Unigênito, pois, temos aquele que revela a Deus,
ἐξηγητὴς τοῦ Θεοῦ.

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