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Plano de Formação Bíblica Evangelhos Sinóticos e Atos dos Apóstolos

Bloco I
Temas introdutórios
Plano de Formação Bíblica Evangelhos Sinóticos e Atos dos Apóstolos

Bloco I: Temas Introdutórios

Índice

Apresentação ................................................................................................................... 3

Tema 1. EVANGELHO E EVANGELHOS ................................................................ 4


1. Evangelho antes de Jesus.......................................................................................... 4
a) Na cultura grega ................................................................................................... 4
b) No Antigo Testamento ......................................................................................... 5
2. Evangelho a partir de Jesus ...................................................................................... 6
a) Evangelho pregado por Jesus ............................................................................... 7
b) Evangelho sobre Jesus.......................................................................................... 7
c) Gênero literário “evangelho” ................................................................................ 8
d) O que são os evangelhos?..................................................................................... 9

Tema 2: HISTÓRIA DA INVESTIGAÇÃO .............................................................. 10


1. A “questão sinótica” ............................................................................................... 10
a) O "fato sinótico" ................................................................................................. 10
b) Núcleo comum dos Evangelhos Sinóticos ......................................................... 10
c) Dados do problema ............................................................................................. 11
2. Várias tentativas para uma solução ........................................................................ 12
a) Hipótese da dependência mútua ......................................................................... 12
b) Hipótese das duas fontes .................................................................................... 12
c) Hipótese do Mateus aramaico ............................................................................ 13
d) Hipótese da documentação múltipla .................................................................. 13
3. Principais contribuições da crítica literária para a exegese .................................... 14
a) Crítica da Forma (FG) ........................................................................................ 14
b) Crítica da Redação (RG) .................................................................................... 18
c) Novos métodos de análise sincrônica ................................................................. 19
4. Mudança de perspectiva na exegese católica dos sinóticos .................................... 19
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Apresentação

Os evangelhos segundo Mateus, Marcos e Lucas foram chamados de "sinóticos"


porque, dadas suas semelhanças, podem ser impressos em três colunas paralelas e lidos
em "sinopse" (da palavra grega syn-opsis = vista do todo).

Os estudos bíblicos modernos mudaram surpreendentemente a maneira como lemos


e estudamos estes evangelhos. Houve uma mudança de perspectiva que não tem
paralelo nos estudos do Novo Testamento.

O que aconteceu? Passou-se a considerar que os três primeiros evangelhos não


apenas dão notícias para reconstruir a história de Jesus, mas "fazem" teologia. Ou seja,
além de preservar a memória histórica de Jesus, eles interpretam sua figura e sua
mensagem à luz da ressurreição, com a "maior compreensão" que o Espírito lhes
concedia, tendo em conta a vida das comunidades cristãs: “escolhendo algumas coisas
entre as muitas transmitidas por palavra ou por escrito, sintetizando umas,
desenvolvendo outras, segundo o estado das igrejas” (Dei Verbum, 19).

O estudo dos sinóticos é uma aventura fascinante que, ao mesmo tempo, requer um
esforço considerável. Fascinante, porque oferece o acesso mais direto a Jesus de Nazaré,
à sua personalidade humana e religiosa, à sua reivindicação messiânica, à aventura
espiritual que envolveu seus discípulos e marcou o início do cristianismo. É trabalhoso,
pois exige um estudo aprofundado dos vários aspectos trazidos à luz pelo método
histórico-crítico e pelas mais recentes abordagens exegéticas.

Nossa abordagem dos evangelhos não começa do zero. Nem do ponto de vista da
pesquisa científica, nem, muito menos, do ponto de vista da fé. Antes de nós, houve
gerações de crentes e estudiosos, de irmãos e irmãs de diferentes confissões que
viveram e estudaram profundamente o Evangelho; gerações de exegetas e teólogos que
interpretaram e buscaram incansavelmente os múltiplos significados dos textos
sagrados.

TEMAS INTRODUTÓRIOS – 3
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Tema 1. EVANGELHO E EVANGELHOS

A palavra euaggelion é usada para designar os primeiros quatro livros do Novo


Testamento (NT). Já nos manuscritos antigos existem títulos sobrescritos formados pela
preposição grega kata seguida pelo nome do suposto autor (por exemplo, kata Markon -
"Segundo Marcos"). Todavia, estes títulos não pertencem aos autores originais, mas a
copistas posteriores que identificaram um "gênero" comum nos quatro livros designados
pelo termo euaggelion.

Este termo, porém, já estava em uso nas comunidades cristãs muito antes dos quatro
evangelhos serem escritos. No total, o termo aparece 76 vezes no NT e Paulo o utiliza
em cerca de 60 passagens, sendo ele quem mais o usa. Mesmo assim, a palavra era já
conhecida antes dele. Vejamos, portanto, a história do termo e seus significados
fundamentais.

1. Evangelho antes de Jesus

a) Na cultura grega

Na cultura greco-helenística euaggelion designa qualquer coisa ligada a um


euaggelós, isto é, àquele que traz boas notícias, o mensageiro do bem:
 a mensagem de alegria que é anunciada
 a recompensa que se recebe por ter trazido boas notícias
 uma "boa notícia" em particular, ou seja, aqueles eventos que têm uma
ligação com o imperador: nascimento, coroação, vitória...

A este propósito, temos um testemunho relevante na inscrição de Priene (9 a.C.), que


anunciava o início do novo calendário no dia do aniversário do imperador, onde o termo
aparece duas vezes:
Augusto, tendo aparecido, superou as esperanças de seus
antecessores; a boa notícia de todos (euaggelia pantôn) não só foi
além dos benefícios daquele que o precedeu, mas não deixou
nenhuma esperança para que aqueles que o seguiram o superassem, e
o dia do aniversário do deus foi para o mundo o início da boa notícia
(tôn euaggeliôn) ligada a ele.

Devemos notar que, enquanto nos escritos do NT o termo sempre aparece no


singular (= a proclamação cristã é fundamentalmente única!), aqui ele está no plural.
Além disso, também no grego da LXX aparece sempre no plural.

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O termo euaggelion, no singular, além do significado "recompensa por notícias",


que é encontrado duas vezes em Homero, Odyss. 14, e duas vezes em Plutarco Agesil.
33; Demetr. 17, tem seu testemunho mais antigo, no sentido de "bom anúncio", nas
obras de Flávio Josefo (Guerra 2, 42; 4, 618 etc.)

O uso helenístico de euaggelion representava um termo apropriado para designar o


anúncio do nascimento de Jesus, mas também o de sua morte e ressurreição e a alegria
que está à base da nova religião cristã.

No NT, entretanto, o uso do termo evangelho não coloca sua raiz na matriz greco-
helenística, mas remonta ao AT e ao judaísmo tardio. De fato, os autores do NT
escrevem em grego, mas com o pano de fundo e tendo em mente a grande tradição
judaica bíblica. Para entender o significado do termo, portanto, não basta recorrer ao
dicionário grego e aos testemunhos greco-helenísticos. É essencial descobrir o
significado bíblico e, em particular, o significado que ele recebe no Dêutero-Isaías.

b) No Antigo Testamento

O conjunto dos termos relacionados tem a ver com a raiz bsr: mebasser (o portador
de um ditoso anúncio, o mensageiro de uma mensagem alegre) e tem diferentes
significados: profano, religioso, escatológico.
Em outras palavras, há um significado equivalente ao encontrado entre os gregos:
uma mensagem de alegria e a notícia da vitória (cf. 1Sm 31,9; Sl 68,12; em 1Sm 4 o
termo mebasser anuncia a derrota).
Cortaram-lhe a cabeça e despojaram-no das suas armas, e os enviaram à
redondeza, pelo território dos filisteus, para anuncia a notícia em seus
templos e ao povo (1Sa 31,9).

O Senhor deu uma ordem, o anúncio de um exército numeroso (Sl 68,12).


Há também um significado religioso que não é encontrado na cultura grega e que é o
mais relevante para o uso do Novo Testamento. Este significado não aparece no
substantivo, mas no verbo e no particípio dele derivado (mebasser). Encontramo-lo
sobretudo no profeta Isaías, a partir do capítulo 40, onde se anuncia o fim do exílio e a
consolação de Israel.
Sobe a um alto monte, mensageira de Sião; eleva a tua voz com vigor,
mensageira de Jerusalém; eleva-a, não temas; dize às cidades de Judá: "Eis
aqui o vosso Deus!" (Is 40,9).

Primícias de Sião, ei-las, ei-las aqui, a Jerusalém envio um mensageiro (Is


41,27).

Como são belos, sobre os montes, os pés do mensageiro que anuncia a paz,
do que proclama boas novas e anuncia a salvação, do que diz a Sião: "O teu
Deus reina." Eis a voz das tuas sentinelas; ei-las que levantam a voz, juntas

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lançam gritos de alegria, porque com os seus próprios olhos veem a Iahweh
que volta a Sião. Regozijai-vos, juntas lançai gritos de alegria, ó ruínas de
Jerusalém! Porque Iahweh consolou o seu povo, ele redimiu Jerusalém.
Iahweh descobriu o seu braço santo aos olhos de todas as nações, e todas as
extremidades da terra viram a salvação do nosso Deus (Is 52,7-10).

O espírito do Senhor Iahweh está sobre mim, porque Iahweh me ungiu;


enviou-me a anunciar a boa nova aos pobres, a curar os quebrantados de
coração e proclamar a liberdade aos cativos, a libertação aos que estão
presos (Is 61,1).
Nesses textos, os termos que estamos estudando indicam:
 proclamação da salvação
 início da época salvífica (da ação salvífica de Deus)
 boa notícia que introduz o tempo salvífico.
Estes são textos muito importantes, que preparam o terreno para o significado do
Novo Testamento. A Bíblia Grega da LXX traduz o termo hebraico bissar com
euaggelizomai e mebasser com euaggelizomenos (o termo euaggelion não se encontra
na LXX).
Observamos por um momento Is 40,9-10 onde a LXX introduz, pela primeira vez, o
verbo euaggelizomai e tentemos entender a diferença em relação ao significado greco-
helenístico.
Sobe a um alto monte, Sião, mensageira boas novas; eleva a tua voz com
vigor, mensageira de boas novas, ó Jerusalém; eleva-a, não temas; dize às
cidades de Judá: "Eis aqui o vosso Deus! Eis aqui o Senhor Iahweh: ele vem
com poder, o seu braço lhe assegura o domínio. Eis com ele o seu salário,
diante dele a sua recompensa.” (Is 40,9-10)
Sião é uma mensageira (mebasséret) que corre à frente para levar a boa notícia. Ela
não diz: “Vencemos!” “A escravidão acabou!” “Vamos para casa!” Sua boa notícia soa
assim: "Eis que o Senhor nosso Deus está vindo com poder". O conteúdo de seu anúncio
é bastante diferente do significado militar ou político do termo evangelho no ambiente
helenístico de então. Não se diz: "Estamos voltando", mas "Eis nosso Deus". Ele é
aquele que está realmente retornando a Jerusalém....
A boa nova é o retorno de Deus que traz de volta os exilados. Ele retorna como um
rei vitorioso e como um pastor que cuida dos menores do rebanho, dos mais fracos.

2. Evangelho a partir de Jesus


Como apresentado pelos Evangelhos Sinóticos, Jesus atribui a si mesmo o trabalho
do mensageiro da alegria conhecido no AT. Os sinóticos o apresentam em continuidade
com os textos do profeta Isaías: o arauto que anuncia a boa nova (Evangelho) de Deus
(Mc 1,14-15).

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Ele se apresenta como enviado "para evangelizar os pobres" (Lc 4,18 citando Is 61,1
conforme o texto da LXX: euaggelisasthai ptôkhois), cumprindo a expectativa do
tempo da salvação ("hoje se cumpriu aos vossos ouvidos essa passagem da Escritura"
Lc 4,21).

Aos enviados do Batista ele responde que, através dele e de sua obra, "os pobres
recebem a boa nova" (cf. Mt 11,5 = Lc 7,22).

a) Evangelho pregado por Jesus

Jesus proclama o Reino (basileia) de Deus; ele proclama a boa nova de que o desejo
salvífico de Deus se aproximou:
Depois que João foi preso, veio Jesus para a Galileia proclamando o
Evangelho de Deus: “Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo.
Arrependei-vos e credes no Evangelho” (Mc 1:14-15)

Jesus pede conversão e confiança no Evangelho que proclama e, por outro lado,
mostra, através de seus atos, a poderosa intervenção de Deus em favor do povo aflito.

Segundo Lc 4,18-19, ele se apresenta como aquele que anuncia a boa nova aos
pobres e assim cumpre a missão de consolação e libertação anunciada por Is 61 (cf. Mt
11,5 = Lc 7,22).

b) Evangelho sobre Jesus

Após a ressurreição e Pentecostes, os discípulos pregaram o cumprimento do


Evangelho anunciado por Jesus; eles anunciaram que a intervenção salvífica de Deus
havia acontecido na vida, morte e ressurreição de Jesus. Tem início, assim, o
"Evangelho sobre Jesus", a verdadeira pregação da comunidade pós-Pascoal.

Em Atos 5,42 encontramos a expressão "a Boa Nova do Cristo Jesus". Os


evangelistas/evangelizadores, no início da igreja, são os pregadores da palavra (Atos
21,8; 2Tm 4,5). Paulo também se expressa com um vocabulário que se refere à
comunicação oral da mensagem de Jesus.

O evangelho de Jesus inclui as ações salvíficas de sua morte e ressurreição, mas


também de sua vida e de seus ensinamentos. As cartas de Paulo pressupõem, de fato,
que os fiéis conhecem os principais acontecimentos da vida de Jesus (cf. Rm 1,2ss; 8,4;
Gl 3,1; 1Cor 11,23s; 15,1s) e algumas de suas palavras (cf. 1Ts 5,1-6).

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c) Gênero literário “evangelho”

Em um terceiro nível, o termo euaggelion designa um conjunto de escritos com


características comuns, ou seja, um "gênero literário". Como os quatro livros atribuídos
respectivamente a Mateus, Marcos, Lucas e João passaram a ser chamados de
"evangelhos"? É lógico que não foi por acaso. Se esses escritos são chamados
"evangelhos" é porque, sobretudo, a comunidade cristã viu neles uma profunda
continuidade com o Evangelho que ela proclama.
Duas notas surpreendentes:
 Nos antigos manuscritos não lemos: "o Evangelho de Mateus, de Marcos, de
Lucas...", mas "o Evangelho segundo (katà) Mateus...", uma formulação que
parece sublinhar a viva consciência da origem oral dos evangelhos: a
pregação dos seguidores.
 Embora todos os quatro escritos sejam conhecidos, prevalece o uso do termo
no singular (por exemplo, em Eusebius euaggelion designa a coleção dos
quatro evangelhos: Hist. Eccl. V, 24,6).

A ligação com a característica "oral" do Evangelho se nota facilmente nos


evangelhos. Mas como explicar a passagem do gênero oral para o gênero literário?

A certeza mais difundida entre os exegetas é que Marcos é o criador deste novo
gênero literário que liga estreitamente a narrativa sobre Jesus com a boa nova:
"Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus". (Mc 1,1).

Marcos teria dado forma literária à tradição sobre Jesus, construindo, ao mesmo
tempo, um relato e um novo anúncio.

No mundo helenístico existem narrativas populares que relatam os feitos de homens


famosos (praxeis). No judaísmo encontramos os "Ditos dos Pais" (Pirkeh Abot) e, acima
de tudo, o hagadah pascal. Mas estas são apenas pequenas semelhanças.
Se compararmos o gênero "evangelho" com a biografia clássica de Plutarco ou
Suetônio, aparecem claramente duas grandes diferenças:
 a pessoa do autor não está em primeiro plano
 a narração da vida e obra do protagonista (Jesus) não coincide
necessariamente com uma biografia completa e coerente (em Marcos falta
tudo o que diz respeito à vida antes do ministério público).
De acordo com E. Schweizer, Marcos teria feito uma síntese original de três
componentes do cristianismo primitivo, ligados respectivamente a três contextos:
 Ensinamento (predominante no mundo judaico): Jesus visto como rabino (Q
e o Evangelho de Tomé).
 Os milagres (predominantes em ambiente sírio, nas regiões do nordeste da
Palestina até o Eufrates): Jesus visto como o "theios aner", homem divino,
taumaturgo.

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 O mistério da morte e ressurreição (predominante em âmbito helenístico


familiarizado com as religiões de mistério): o cristianismo é apresentado
como uma religião de iniciados, centrada no mistério da morte e ressurreição
de Cristo.

A combinação desses três elementos - ensino, milagres e liturgia - mostra que eles
não estão dissociados e que não deve prevalecer um único aspecto. O Evangelho é
ensino, mas é também uma manifestação do poder de Deus, e uma religião com seus
mistérios e iniciação, mas não é só isso.

Em todo caso, a opinião mais difundida é que antes da obra de Marcos não havia
nenhum relato de Jesus chamado "evangelho". Marcos é o primeiro a inserir a narrativa
no próprio anúncio. O Evangelho do Filho de Deus, crucificado e ressuscitado, é
entendido como a história de Jesus de Nazaré. O anúncio da salvação pregado, o
kerygma, a chamada a crer em Jesus Cristo, é ampliado até chegar ao ponto de se tornar
o relato de uma vida.

d) O que são os evangelhos?


O Evangelho é a boa nova de Jesus: sua pessoa, sua vida e seus ensinamentos.
 O Evangelho é a forma oral da pregação cristã.
 Os evangelhos são também a experiência dos discípulos de Jesus, a
caminhada de fé daqueles que o seguiram. Em outras palavras, a experiência
da igreja primitiva.
 Os evangelhos são os relatos da vida, morte e ressurreição de Jesus. São
assim chamados porque a comunidade cristã percebeu neles uma estreita
conexão com a pregação de Cristo e seus seguidores.

Nascidos do "Evangelho", os evangelhos estão intrinsecamente orientados para a


"evangelização", para que a boa nova da salvação chegue a todo o mundo.

A resposta é complexa e deve conter todos esses elementos. Os evangelhos, como


memória, referem-se ao passado e falam de Jesus e seus primeiros seguidores; como
anúncio, são uma esperança e um apelo para os leitores; ou seja, falam de nós.

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Tema 2: HISTÓRIA DA INVESTIGAÇÃO

1. A “questão sinótica”

a) O "fato sinótico"

O tema de nosso estudo são os três evangelhos mais antigos, chamados de


Evangelhos Sinóticos. A designação "sinótico" foi introduzida por J. J. Griesbach que,
em 1774, mandou imprimir a primeira Synopsis Evangeliorum, destacando assim a
semelhança única destes escritos.

Estamos diante de um fenômeno literário único: três livros tão semelhantes e ao


mesmo tempo tão diferentes. Nas passagens paralelas, os 3 evangelhos, às vezes,
concordam de forma impressionante, mesmo na ordem das palavras. Por outro lado, em
outros momentos, o mesmo episódio da vida de Jesus é contado de formas muito
diferentes (cf. Mt 5,3-12 e Lc 6,20-26).

b) Núcleo comum dos Evangelhos Sinóticos


Dos três Evangelhos Sinóticos, Mc é o mais curto: 661 versos (sem levar em conta o
apêndice de Mc 16,9-20).

O material comum é distribuído da seguinte forma:


 material da tripla tradição (TT): 330 versos.
 material da dupla tradição (DT):
o Mt – Mc (178 versículos)
o Mc – Lc (100 versículos)
o Mt – Lc (230 versículos)

O material TT é predominantemente de caráter narrativo e segue este esboço


comum:
 Pregação do Batista, batismo e tentações de Jesus: como um tríptico
apresentando o ministério de Jesus.
 Atividade e o ensinamento de Jesus na Galileia
 Viagem e o ministério de Jesus em Jerusalém
 Narração da paixão e anúncio da ressurreição.

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É possível também observar que os eventos da vida de Jesus são organizados em


uma perspectiva geográfica: da Galileia a Jerusalém.

O fato sinótico foi notado há muito tempo e tem recebido várias propostas de
soluções históricas:
 A solução radical de Marcião: ele resolve o problema eliminando os dois
primeiros evangelhos e mantendo apenas Lucas.
 Solução de Taciano: harmonização dos quatro evangelhos, reduzindo-os a um
(Diatéssaron).
 A solução de Santo Agostinho: harmonização formal (De consensu
Evangelistarum libri IV).
 A solução das sinopses modernas: a primeira é a de Griesbach (Halle, 1776).

Os autores antigos não consideravam o fato sinótico como um problema e


acreditavam que poderia ser resolvido em termos de concordância e dependência: os
evangelhos teriam sido escritos na ordem em que são encontrados no cânon: Mt, Mc,
Lc. Marcos abrevia Mateus e Lucas, ao contrário, o alarga.

c) Dados do problema

A "questão sinótica" é um tema bastante moderno e surge a partir da percepção, ao


mesmo tempo, de coincidências e divergências. As coincidências entre os três primeiros
evangelhos são muito numerosas para serem atribuídas ao acaso. Elas não dizem
respeito apenas aos episódios, mas inclusive à ordem das palavras...

Entretanto, o problema não está nas coincidências ou nas divergências, mas sim no
entrelaçamento das concordâncias com as divergências:
a) Concordância
 de conteúdo: especialmente no material comum
 de estrutura: presença de um esquema comum
 de léxico: até a identidade verbal

b) Divergência
 de conteúdo: especialmente no material DT
 de estrutura: comparar Lc 4,16-30 com Mt 13,53-58 e Mc 6,1-6:
respectivamente no início e no final do ministério na Galileia
 de léxico: no contexto de fórmulas e estruturas fixas (ver Mt 23,13 e Lc
11,52).

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O problema poderia ser formulado da seguinte forma: como explicar essas


semelhanças e diferenças?

2. Várias tentativas para uma solução

a) Hipótese da dependência mútua

Esta hipótese teve seu primeiro defensor em Santo Agostinho. Marcos teria resumido
Mateus; Lucas o teria expandido. Quanto a Marcos, ele teria seguido Mateus como um
copista literal que faz um resumo ("Marcus eum subsecutus tamquam pedisequus et
breviator eius": De consensu evangelistarum 1, 2). Essa tese influenciou muito a
história da interpretação, até ser derrubada pela hipótese das duas fontes.

Griesbach propõe uma hipótese semelhante à hipótese agostiniana, de dependência


mútua. O primeiro Evangelho é Mt, Lc depende de Mt e Mc é a síntese dos dois. Esta
hipótese é capaz de explicar muito bem o material comum e as coincidências, mas não
as divergências. Esta hipótese foi apresentada por W.R. Farmer (The Synoptic Problem,
London/New York 1964). Em referência a esta hipótese, alguns aspectos podem ser
contestados: por que Mc dispensa material importante de Mt e Lc? Por que Mc usa um
grego de nível inferior ao de Mt?

b) Hipótese das duas fontes

É aceita desde 1800 (H. J. Holtzmann 1832-1910) e, com várias modificações, é


considerada válida hoje em dia na medida em que é capaz de explicar, sem muitas
complicações, o entrelaçamento de semelhanças e diferenças. Esta hipótese se baseia no
fato de que Mt e Lc não dependem diretamente um do outro, mas de suas próprias
fontes em relação ao material independente e, para o material comum, de duas fontes
que são Mc e Q (Quelle = fonte).

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A hipotética "fonte Q" seria constituída pelos logia.

Esta hipótese não resolve todos os casos de coincidências e divergências, mas negá-
la parece complicar ainda mais a solução do problema.

c) Hipótese do Mateus aramaico

Esta proposta é apoiada por Vaganey e tende a harmonizar a hipótese das duas fontes
com o testemunho de Papias. A hipótese desdobra o processo de formação dos
evangelhos em 7 etapas (passos):
 1º: a catequese oral (Pedro e os outros apóstolos).
 2º: os primeiros escritos evangélicos
 3º: nascimento de Mateus aramaico (= Mtar)
 4º: tradução de Mtar para o grego (= Mtg)
 5º: nascimento de Marcos (do Mtg e da pregação de Pedro)
 6º: nascimento de Mateus (com material do Mtg, Mc e fontes próprias)
 7º: nascimento de Lucas (com material do Mtg, Mc e fontes próprias).

d) Hipótese da documentação múltipla

É uma proposta defendida por Boismard, que diz que não é óbvio considerar Marcos
como uma fonte em si (isto já havia sido dito por H. Marsh, um estudioso de
Cambridge, em 1798). Por outro lado, parece que para explicar alguns textos de Marcos
é necessário pressupor pelo menos a fusão de dois documentos pré-sinóticos (por
exemplo, Mc 3,31-35; 5,21-43; 10,23-27).

Boismard propõe quatro documentos (A, B, C e Q), ou seja, uma fonte principal para
cada evangelho: documento A (ambiente palestino, judaico-cristão) para Mateus;
documento B (prorrogação e reinterpretação de A, vindo de um meio pagão-cristão)
para Marcos; e documento C (também de origem palestino) para Lucas.

Estes documentos dão origem, respectivamente, a uma Marcos intermediário, um


Mateus intermediário e um Proto-Lucas. Integrados com as outras fontes, eles
acabariam se tornando os evangelhos atuais. De acordo com Boismard, os três editores
finais pertenceriam à mesma escola lucana, da qual viria a afinidade entre os três
evangelhos. Esta teoria é muito complexa.

A hipótese de J. Carmignac, apresentada no pequeno volume La naissance des


évangiles synoptiques (Paris: O.E.I.L., 1984), merece uma menção à parte. Carmignac

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parte de uma "retroversão" (do grego para o hebraico) porque ele sustenta que os
evangelhos foram escritos na língua semítica. Ele concorda com a hipótese de que o
primeiro evangelho foi o de Marcos, mas está convencido de que foi escrito em
hebraico. Em uma etapa posterior teria aparecido a "Coleção de Ditos", que teria
servido como uma fonte comum para Mateus e Lucas (o equivalente à fonte “Q”, como
proposto pelos alemães). Portanto, a posição de Carmignac não é substancialmente
distante da hipótese das 2 fontes.

É útil ver concretamente como estas várias hipóteses funcionam, aplicando-as a um


texto de TT, como a cura do epiléptico (Mt 17,14-21; Mc 9,14-29; Lc 9,37-43) ou à
narração da multiplicação dos pães.

3. Principais contribuições da crítica literária para a exegese

A exegese busca o significado do texto em seu contexto: o que o autor quer dizer
com certa palavra ou expressão? A crítica literária faz parte do método exegético
"histórico-crítico", um método que tem um lugar privilegiado no mundo exegético, visto
que é o mais utilizado.

O percurso exegético de alguém que deseje estudar os sinóticos deve proceder de


forma oposta a sua gênese. Enquanto o movimento genético é descendente, de Jesus
para os evangelhos, a exegese tem que seguir o caminho ascendente: dos evangelhos
para Jesus.

No que diz respeito ao estudo, as três fases de desenvolvimento são apresentadas


nesta ordem:
 os evangelhos em sua forma final
 a pregação da comunidade primitiva
 Jesus, origem e cumprimento do Evangelho.

Nesta empreitada, hoje estamos mais conscientes do papel fundamental da


comunidade primitiva, graças às contribuições da Formgeschichte (FG), a "história das
formas".

a) Crítica da Forma (FG)

Imediatamente após a Primeira Guerra Mundial, na década de 1920, nasceu na


Alemanha a chamada Formgeschichte (FG). O novo método nasceu em confronto com
a teologia liberal, que acreditava que a biografia de Jesus poderia ser reconstruída com
base nos Evangelhos Sinóticos, especialmente em Marcos. Os pioneiros da FG
chegaram à mesma descoberta: por trás dos evangelhos não está a "história de Jesus"

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que a teologia liberal pensou que poderia reconstruir (cf. as obras de Reimarus, Paulus,
Strauss), mas a pregação da comunidade pós-pascal.

A FG tenta ir além das fontes literárias, buscando compreender o ambiente de


origem do texto, para estudar as formas de traição oral que geraram texto que temos, por
meio de uma dupla investigação:
 análise estética ou formal
 análise sociológica ou funcional

Há quatro etapas fundamentais na FG:


1. isolar as microunidades
2. classificar as microunidades do ponto de vista formal
3. rastrear cada forma até seu respectivo Sitz im Leben (situação na vida,
contexto)
4. unificar as microunidades a fim de obter delas informações sobre a vida
da comunidade.

De um ponto de vista formal, procedemos distinguindo e classificando as diversas


formas de acordo com o fato de serem materiais narrativos ou discursivos.

Material narrativo

Narrações breves e animadas


 paradigmas: para Dibelius, teria servido de exemplo na pregação cristã;
 apotegmas: para Bultmann porque, como ele explica: "em sua redação
são bastante semelhantes às narrativas da literatura grega, que são
tradicionalmente chamadas de apotegmas".

As narrativas mais difundidas


 romances, lendas, mitos (Dibelius)
 milagres, histórias, lendas (Bultmann)

Histórias de paixão

Material discursivo (classificação de Bultmann)


 Apotegmas
o a) de controvérsias
o b) didáticos

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 Logia (diferente dos apotegmas porque são menos elaborados)


a) ditos de sabedoria
b) ditos proféticos
c) ditos sobre a lei
d) ditos na primeira pessoa
 Parábolas

Cada uma dessas formas é caracterizada por uma série de elementos comuns. Por
exemplo, a forma milagre é reconhecível por esta série de elementos (ver Mc 1,40-45 e
8,22-26):
 encontro (ou apresentação) da pessoa doente
 pedido de cura
 comando (ou gesto) de quem cura
 efeito da cura sobre a pessoa doente
 reação das pessoas presentes.

A forma de disputa/controvérsia tem o seguinte esquema (ver Mc 11,27-33):


 pergunta dos adversários
 contra pergunta de Jesus
 resposta de compromisso por parte dos adversários
 resposta de Jesus (ou recusa de resposta) sobre a base anterior
 resposta dos adversários.

Um milagre que destaca a supremacia de Jesus na controvérsia com os adversários é


considerado um apotegma (Bultmann). A cena narrada serve de moldura para um dito
importante; este milagre é narrado exatamente para poder dizer o outro. Assim, na cura
do paralítico, o ponto central é a questão: "Quem pode perdoar pecados senão Deus?
(ver Mc 2,1-12 e paralelos).

Em Betsaida (Mc 8,22-26), Jesus pega o cego, leva-o para fora da aldeia, põe saliva
em seus olhos, interroga-o e, notando o efeito parcial, repete a intervenção até que o
homem doente veja claramente. Se compararmos este relato com Mc 10,46-52, notamos
diferenças notáveis: no primeiro caso todos os elementos fundamentais da forma
"milagre" estão presentes, no segundo, ao contrário, faltam quase todos: falta o gesto e
as palavras de quem cura e, acima de tudo, falta o efeito sobre as pessoas. O confronto
nos permite concluir que Marcos narrou a cura do cego de Jericó não tanto como um
milagre, mas como uma história de discipulado (Mc 10,52). De fato, uma vez
recuperada a visão, Bartimeu segue Jesus no caminho que conduz a Jerusalém,
expressão técnica para definir o discipulado.

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As diversas formas não surgem por acaso, mas são geradas com uma função
específica. A análise sociológica deve explicar a respectiva função identificando o
ambiente vital original (Sitz im Leben). Esta operação é o cerne da FG.

Avaliação da FG

O valor principal da FG é que ela mostrou claramente que a tradição sinótica teve
sua origem e tomou sua forma na comunidade cristã primitiva, passando da pregação de
Jesus para a pregação sobre Jesus.

A existência da tradição oral anterior pode ser intuída a partir dos sinais de
fragmentação:
 os evangelhos são compostos de "episódios" breves, às vezes unidos em
cenas
 estes episódios são bem delimitados e podem ser divididos em vários
perícopes (pericoptein = cortar) sem perder o significado e o fio da narração
 a ligação narrativa é muito frágil e, às vezes, artificial; o mesmo episódio é
colocado em contextos diferentes (ver a visita de Jesus a Nazaré, ambientada
no final do ministério na Galileia por Mc e Mt e no início por Lc).

A tradição oral e a fragmentação caminham de mãos dadas e revelam um uso


pastoral, ligado às necessidades da comunidade.

Os principais limites da FG são os seguintes:


 minimiza o papel dos evangelistas; eles são reduzidos a compiladores de
tradições, de materiais que já possuíam uma unidade formal própria. A FG
deixa sem resposta a questão de como aconteceu a passagem do material oral
para a forma literária do gênero "evangelho"
 a FG não conseguiu reconstruir o Sitz im Leben geral; concentrou-se na
análise estética, mas não teve sucesso na análise sociológica
 Finalmente, a FG compromete a referência ao passado, a dimensão histórica,
sobretudo porque o material do evangelho é atribuído simplesmente à
comunidade primitiva:
o vista como uma coletividade anônima
o sem consciência historiográfica
o preocupada em enfrentar seus próprios problemas e necessidades.

A comunidade primitiva não é uma "testemunha" que se refere a Jesus, mas uma
espécie de "barricada" entre os evangelistas e Jesus. Bultmann retém que não é, de
forma alguma, possível ir dos evangelhos até Jesus histórico. Esta posição cética (não
compartilhada por outros estudiosos anglo-saxões, ver Taylor e Dodd) foi contestada
pelos discípulos de Bultmann, especialmente por Käsemann e Bornkamm.

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b) Crítica da Redação (RG)

A reação às lacunas da FG não demorou muito a aparecer. Na verdade,


imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, surgiu a Redactiongeschichte (RG), ou
seja, a "crítica da redação". O novo método valoriza a contribuição pessoal do
evangelista no trabalho de redação e a sua orientação teológica. A RG devolve aos
evangelistas a dignidade de autores e "teólogos".

Entre os pioneiros da RG, lembramos:

G. Bornkamm para os estudos sobre Mateus (1948-59), H. Conzelmann para Lucas


(Die Mitte der Zeit. Studien zur Theologie des Lukas, Tübingen 1954); W. Marxen
quanto ao que concerne Marcos (Der Evangelist Markus. Studien zur
Redaktionsgeschichte des Evangeliums, Göttingen: 1956; 21959); W. Trilling, para a
teologia de Mateus (Das wahre Israel. Studien zur Theologie des Matthäus-
Evangeliums, München 3 1964).

Desde o início, a RG adotou uma abordagem de tipo diacrônica, procurando separar


os elementos redacionais dos tradicionais. Gradualmente, porém, o foco foi se
deslocando cada vez mais para o estudo do conjunto, como uma totalidade que encontra
sentido na estrutura dos vários elementos, passando, assim, a uma abordagem
sincrônica.

O processo de redação é caracterizado por dois aspectos essenciais: fidelidade à


tradição e atualização na perspectiva particular de cada evangelista. A presença do
material comum atesta a ligação com a tradição. Por outro lado, os evangelistas não são
simplesmente compiladores de tradições, mas verdadeiros autores. O trabalho de
redação compreende omissões e adições, mudanças de lugar, retoques, releituras e
reinterpretações teológicas. A partir do conjunto da composição literária, podemos
compreender a intenção teológica de cada evangelista.

Observações

Revalorizar a atividade editorial dos evangelistas e seu trabalho como "autores" não
deve levar a um menosprezo da tradição. Os evangelistas não são "livres" para escrever
o que querem, mas coletaram e ordenaram escrupulosamente as tradições já existentes.
Um exemplo significativo é o prólogo de Lucas:
Visto que muitos já tentaram compor uma narração dos fatos que se
cumpriram entre nós — conforme no-los transmitiram os que, desde o
princípio, foram testemunhas oculares e ministros da Palavra — a mim
também pareceu conveniente, após acurada investigação de tudo desde o
princípio, escrever-te de modo ordenado, ilustre Teófilo, para que verifiques
a solidez dos ensinamentos que recebeste (Lc 1,1-4).

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c) Novos métodos de análise sincrônica

Na última etapa do desenvolvimento da RG, realiza-se de maneira decidida o estudo


da composição literária tal como a encontramos. O documento da Pontifícia Comissão
Bíblica "A Interpretação da Bíblica na Igreja" (1993) fala dos novos métodos de
análise literária, que gradualmente tomaram seu lugar, ao lado do método histórico-
crítico, e que tornam possível captar aspectos que tinham permanecidos escondidos.
Embora considere o método histórico-crítico como a peça principal da engrenagem, o
documento sublinha que nenhum método científico, de fato, "está à altura de
corresponder à riqueza total dos textos bíblicos".

O documento da Comissão apresenta sobretudo três métodos de análise literária que


foram desenvolvidos recentemente: análise retórica, análise narrativa e análise
semiótica. São apresentadas as principais características, aspectos positivos e limitações
inevitáveis de cada método.

A análise retórica é apresentada como "nova", no sentido de seu uso sistemático


para a interpretação da Bíblia. Mas há pelo menos dois tipos de análise retórica usados
pelos exegetas de hoje: retórica clássica, enraizada na cultura greco-romana, e retórica
bíblica, baseada na cultura semítica. A análise retórica parte da capacidade persuasiva e
convincente da linguagem e tenta descobrir os elementos eloquentes e significativos de
um discurso completo.

A análise narrativa tem sua força na natureza de grande parte da Bíblia que se
apresenta como uma narração, como história da salvação. Os evangelhos também são
apresentados como uma sequência narrativa da vida, morte e ressurreição de Jesus.
Mas também sob o dominador comum da análise narrativa, são propostos diferentes
métodos de análise e reflexão teológica. O texto é visto dentro de uma perspectiva
dinâmica, como um "tecido" (textus significa precisamente tecido) de tensões que são
criadas, desenvolvidas e resolvidas; entre os papéis dos vários personagens estão os
pontos de vista do narrador e do leitor. Aquele que narra a história tende a envolver o
ouvinte/leitor no mundo de sua narração, em seu sistema de valores.

A análise semiótica tem já um certo percurso histórico, pelo menos de vinte anos, e
é utilizada por muitos estudiosos da Bíblia. O texto é tomado como um todo que não
precisa de elementos externos para ser compreendido (autor, destinatários, história da
redação), pois tem seu significado na rede de relações entre os vários elementos.

4. Mudança de perspectiva na exegese católica dos sinóticos


A comunidade cristã sempre leu os evangelhos e os comentou, embora o seu estudo
científico tenha começado propriamente no século XX e em ambiente protestante.

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Alguns aspectos que hoje são amplamente aceitos na exegese católica não gozavam do
mesmo juízo no início do século passado e nem mesmo 50 anos mais tarde.

A fim de observar a mudança de perspectiva na exegese dos Sinóticos, convém


observar suas linhas gerais. Os marcos mais significativos da aceitação dos métodos
histórico-críticos foram a encíclica Divino Afflante Spriritu (30/9/1943) e a Instrução da
Comissão Bíblica sobre a verdade histórica dos evangelhos (21/4/1964). Na segunda
fase, o documento mais significativo é A Interpretação da Bíblia na Igreja (1993) que,
embora admitindo a necessidade do método histórico-crítico, o declara insuficiente.

A Constituição Dei Verbum está entre os documentos mais apreciados e mais


trabalhados pelo Concílio Vaticano II. Na DV 18 e 19 encontramos resumidas quatro
afirmações fundamentais para a exegese dos Evangelhos Sinóticos:
1. Origem apostólica: os evangelhos têm sua raiz na pregação e tradições dos
apóstolos, garantidas pela luz do Espírito Santo
2. Valor histórico: os evangelhos são documentos historicamente aceitáveis na
medida em que transmitem fielmente (não literalmente!) o que Jesus fez e
ensinou
3. Dimensão teológica: os evangelistas releram os acontecimentos históricos com
"uma maior compreensão", à luz da ressurreição de Cristo, como o cumprimento
das promessas salvíficas.
4. Pregação: os evangelistas têm em mente "a situação das igrejas" e se propõem a
avivar a fé e o seguimento de Jesus.

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