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Faculdade Dehoniana

Teologia Sistemática I: Cristologia


Anderson Macedo Inácio de Oliveira
01/06/2023

CRISTOLOGIA LEONINA E O DOGMA DE CALCEDÔNIA

Em nosso tempo, quando falamos de dogma pensamos em um conceito bem definido e


claro, mas não foi assim deste o começo. O dogma, como conhecemos hoje, levou um longo
caminho para ser compreendido como tal, caminho este cheio de obstáculos, desafios e crises. A
palavra dogma, propriamente dita, não significava credo definido como regra de fé que deveria ser
aceita e confessada, antes tratava-se de preceitos, sejam evangélicos ou artigos de fé ainda em
gérmen. Entretanto, a realidade posteriormente significada pelo dogma já existia. Havia um
consenso cristão, ao menos em uma proclamação querigmática da fé, baseada na Tradição, em
que aqueles que se convertiam e eram batizados eram chamados a professar tal querigma.
Somente nos séculos IV e V irão surgir os grandes concílios e as grandes definições mais
elaboradas da fé, isto é, os dogmas.1
Por sua natureza conceitual como entendemos hoje, os dogmas tiveram – e tem até hoje
– a função de guardar a ortodoxia cristã, isto é, aquilo que foi revelado e ensinado por Jesus Cristo
e pelos apóstolos sem alterações e de forma precisa, afim de afastar “falsos doutores” (2Pd 2,1)2 e
também a gnose, ou seja, a falta de definição, sem o qual não se pode aderir a um corpo de doutrina
positivamente, aquela deixada por Cristo. Desta forma, o dogma tem a função de se opor ao que
será denominado por heresia (do grego hairesis), termo que sofrera alteração de seu significado
primeiro, assim como a palavra dogma. Antes, heresia designava “seita” ou “facção”, mas aos
poucos tomará a conotação pejorativa para se referir às falsas doutrinas ou meias doutrinas a
respeito da fé cristã ortodoxa. Aqueles que aderirem às heresias serão conhecidos como heréticos,
e suas doutrinas tomaram um nome derivado de seus autores.3
Já no primeiro século da era cristã é possível entrever a preocupação dos primeiros bispos
e padres com a harmonia e a correta adesão da fé. São Paulo escreve aos gálatas contra os
judaizantes, isto é, judeus que distorciam aquilo que o próprio apóstolo ensinou em sua viagem
missionária à Galácia (Cf. Gl 1, 8). Inácio, bispo de Antioquia, fala em um escrito da preocupação
com a comunidade em manter-se unida “em torno de seu bispo, presbíteros e diáconos” e “abster-
se de toda planta estranha, que é a heresia”.4 Com a expansão do cristianismo, expandir-se-á

1 Cf. SESBOÜÉ, Bernard. O Deus da salvação: séculos I-VIII. 2002, p. 48.


2 A versão dos textos bíblicos deste trabalho foram todos retirados da obra de Leão Magno: sermões, utilizada e
referenciada no trabalho em questão.
3 Cf. SESBOÜÉ, Bernard. O Deus da salvação: séculos I-VIII. 2002, p. 48-50.
4 Id., p. 49.
também as interpretações sobre tal doutrina. Iniciadas sempre por alguém que se confessa cristão,
as heresias começarão a ter adeptos, pois aqueles que as disseminam não pregam sem convicções
e algum conhecimento. Dado os mistérios envoltos à pessoa, vida e obra de Jesus muitos serão
aqueles que buscarão explicações teológicas acerca destes mistérios.
Uma heresia que foi diretamente responsável pelo dogma cristológico mais importante, que
definiu a natureza de Jesus Cristo, é a heresia monofisista. Esta, iniciada por Cirilo de Alexandria,
defendia que Jesus, após sua encarnação, constituía-se de uma única natureza (do grego mono
phísis), pois falar de duas naturezas, que será a afirmação do dogma, seria defender a existência
de dois Filhos. Esta premissa será defendida por muitos após Cirilo, tendo destaque um de seus
discípulos e amigo, Êutiques. Superior de uma comunidade monástica em Constantinopla, Êutiques
carregava boa reputação de santidade, apesar de não gozar de grande inteligência, reconhecido
por tal déficit como “velhote ignorante, estúpido, imprudente e obstinado”. Apesar de defender o
mesmo princípio ciriliano, Êutiques era mais obtuso ao defender o seguinte: “Reconheço que o
Senhor era de duas naturezas antes da união, mas após a união só reconheço uma única
natureza”.5
Sua defesa irredutível ignorava a união de duas naturezas na pessoa de Cristo encarnado,
isto é, duas naturezas distintas em uma única hipóstase, afirmação esta que significa dizer que
Cristo é consubstancial a Deus (à natureza divina) e consubstancial à natureza humana, sem
mistura e sem confusão. Para Êutiques, a natureza humana é totalmente absorvida pela natureza
divina, restando apenas, de forma distinta, esta última natureza em Jesus. Certamente, sua heresia
atrairá adeptos, mas também os defensores da sã doutrina. Em 448, Flaviano, patriarca de
Constantinopla, convoca um sínodo e convida Êutiques para ser julgado acerca de sua doutrina.
Este recusa-se aceitar seu erro e garante para si a excomunhão. Irredutível, ele recorre a Roma,
onde se encontra o papa Leão Magno, e a Alexandria, onde está Dióscoro, sucessor de Cirilo.6
Fazendo campanha em favor de sua tese, Êutiques consegue convencer Teodósio II,
imperador, de um novo concílio, que seria realizado em Éfeso. Neste, pretende que todos aqueles
contrários à sua tese sejam condenados, em especial Flaviano, patriarca de Constantinopla,
favorável a tese das duas naturezas. Neste contesto, o papa Leão I envia representantes pontifícios
para participarem do concílio, acompanhados de um Tomo a Flaviano, onde expôs o mistério da
encarnação contra Êutiques. Em 449 se encontram, portanto, para a execução do concílio. Tudo
acontece favoravelmente a Êutiques, que no contexto, tem a maioria a seu lado. Por fim, acontece
uma confusão, Flaviano é deposto e os anatematismos a favor da tese de Êutiques são aclamados.7
Quando a informação de todo o acontecido chega aos ouvidos do pontífice romano, este
não hesita em afirmar: “Não foi um julgamento, foi um latrocínio”8. Desta forma, Leão quer convocar
um novo concílio para esclarecer as coisas, pede este a Teodósio que não dá ouvidos. Entretanto,

5 Ibid., p. 336.
6 Cf. ibid., p. 337.
7 Cf. ibid., p. 338.
8 Ibid.
com a morte acidental deste, o novo imperador, Marciano, aceita a convocação de Leão e um novo
concílio é marcado. Para ter acontecido em Nicéia, por questões de logística, o concílio é transferido
para Calcedônia, mais próximo de Constantinopla, e no ano de 451 realiza-se a reunião dos bispos.
Enfim, o tomo escrito por Leão a Flaviano ganha relevância. E qual é, então, o conteúdo desta carta
e o que de tal relevância disse Leão para ter posto uma pedra sobre a questão cristológica?
Acompanhemos.
Leão inicia a carta denominando o acontecido em Éfeso de “escândalo (...) contra a
integridade da fé”. Prossegue acusando Êutiques de “mestre do erro” e afirmando que seus erros
são provenientes de sua falta de bom senso, por não ter ouvido os profetas, as escrituras, os
evangelhos, os apóstolos e, por fim, algo muito relevante, o sensus fidei, isto é, “a profissão de
todos os fiéis”, que seria: “Creio em Deus Pai todo poderoso e em Jesus Cristo, seu único Filho,
nosso Senhor, concebido pelo poder do Espírito Santo e nascido da Virgem Maria.”9. Esta formula
será a tese desenvolvida ao longo de sua carta. Mais adiante, Leão afirma que o pecado e o seu
autor, o demônio, só poderiam ser vencidos se Jesus, o Filho legitimo de Deus, assumisse
verdadeiramente a natureza humana, pois o pecado e a morte não poderiam contaminar tal pessoa
divina.10 Prossegue trazendo comprovações escriturísticas sobre a natureza humana do Filho,
citando termos como “segundo a carne” (Rm 1,1), “descendência” (Gn 12,3; 22,18), “Deus conosco”
(Is 7,14), “nasceu-nos um menino (...) cujo nome é: (...) Deus forte...” (Is 7,5) entre outras citações.
Leão afirma que a concepção de Jesus foi obra divina, mas que sua concepção não gerou
um novo gênero de humanidade, mas a mesma que deveria ser redimida11, aquela afirmada no
prologo de João: “o Verbo fez-se carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). Enfim, um mesmo mediador
entre Deus e o homem. O que garantiu a ausência do pecado em Jesus, ainda que feito
completamente homem, foi justamente ter permanecido completamente divino, pois neste não
poderia haver tal mancha. Sua humanização se deu por pura compassividade, não por “deficiência
de poder”. 12 Leão mescla, com erudição, argumentos e meditações a respeito das duas naturezas,
fala da divindade e humanidade com poesia. Cita novos argumentos escriturísticos demonstrando
que, segundo a ação competente, uma natureza agia, e a outra participava passivamente. Quanto
aos milagres, agia a divindade, quanto os opróbios recebidos, agia a humanidade.13 Como uma
conclusão de uma primeira parte, Leão resume seus argumentos da seguinte maneira: “não é
próprio de uma só e mesma natureza chorar por comiseração o amigo morto e após a remoção da
pedra do sepulcro de um defunto de quatro dias, despertá-lo redivivo, somente emitindo uma
ordem.”14
Concentrado a demonstrar a distinção das naturezas em Jesus, passa agora a demonstrar
a coabitação das duas naturezas, distintas, em uma única pessoa, a de Jesus Cristo. Para isso,

9 MAGNO, Leão. Leão Magno: sermões. 1996, p. 202-203.


10 Cf. id., p.204.
11 Cf. ibid., p. 205.
12 Ibid., p. 206.
13 Cf. ibid., p. 208.
14 Ibid.
Leão interpreta aquelas passagens em que Jesus se iguala ao Pai e outras que se põe menor que
o Pai. Para o pontífice, a divindade permite a igualdade, e a humanidade permite a Jesus diminuir-
se diante de Deus, o Pai. Coloca, também, como argumento a profissão do apóstolo Pedro na
divindade de Jesus, tendo este apenas experimentado sensivelmente sua humanidade: “e vós,
quem dizeis que eu sou?”, ao que Pedro respondeu: “Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo” (Mt
16,15-16), afirmação que transparece na mesma pessoa, Jesus, aquele de Nazaré, o mesmo
Messias e Filho de Deus, isto é, a mesma pessoa, humana e divina.15 Leão ainda avança na
argumentação, agora se apoiando no mistério da Paixão.
Para ele, a paixão de Jesus e sua ressurreição demonstram factualmente a carne de Jesus,
isto é, sua humanidade, pois ao aparecer ressuscitado aos discípulos faz questão de lhes mostrar
o lado e as chagas afim de que acreditem, mais claramente, que ele é o mesmo que conviveu com
eles ao longo de suas vidas: “vede as minhas mãos e os meus pés, sou eu mesmo; apalpai-me e
observai que um espírito não tem carne nem ossos, como vedes que eu tenho” (Lc 24,39). Enfim,
negar a encarnação do Filho divino de Deus é negar sua paixão corpórea.16 Foi pelo sangue humano
de Cristo o nosso resgate, sangue humano de uma pessoa divina. Termina, finalmente, professando
a fé no que no inicio apresentou e ao longo da carta defendeu: “A Igreja católica vive de tal fé e nela
progride: não há em Cristo Jesus humanidade sem verdadeira divindade, nem divindade sem
verdadeira humanidade.”17
Leão conclui a carta apelando para que o processo de julgamento retome e que se houver
arrependimento da parte de Êutiques, que seja tratado com misericórdia, mas do contrário, seja
tratado como herege. Apresenta aqueles que ele envia como seus representantes para o julgamento
e confia o caso à misericórdia de Deus. Assim, termina a carta que seria para toda a posteridade
um tratado cristológico sobre as duas naturezas da única pessoa de Jesus Cristo.18 Esta carta, de
tamanha envergadura teológica será para o concílio de Calcedônia uma de suas balizas. Não lida
antes no concílio oriental de Éfeso devido a emboscada sofrida por Flaviano, é lida agora em alto e
bom tom diante do imperador Marciano e dos patriarcas das três igrejas orientais, juntamente com
os representantes do pontífice romano. Ao final do concílio calcedônio o credo cristológico é
reestabelecido sob a defesa das duas naturezas e uma pessoa:
Esta é a fé dos Padres. Esta é a fé dos apóstolos. Todos nós cremos assim! Nós, ortodoxos, cremos
assim. Anátema a quem não crê assim! Foi Pedro que, por Leão, disse essas coisas. Os apóstolos
ensinaram assim. Leão ensinou piedosamente e com verdade. Cirilo ensinou assim. Eterna memória
de Cirilo! Leão e Cirilo deram os mesmos ensinamentos. Anátema a quem não crê assim! Essa é a
verdadeira fé.19

Entretanto, a decisão deste concílio não ficará sem opositores ao longo da história,
permanecendo ainda por várias décadas uma discussão quase interminável sobre a linguagem e
sobre o conteúdo do dogma, causando à Igreja universal verdadeiros cismas, permanentes até os

15 Cf. ibid., p. 209.


16 Cf. ibid., p. 210-211.
17 Ibid., p. 211.
18 Cf. ibid., p. 212-213.
19 SESBOÜÉ, Bernard. O Deus da salvação: séculos I-VIII. 2002, p. 344.
nossos dias. As igrejas orientais nunca foram plenamente favoráveis ao dogma, desenvolvendo ou
retomando credos próprios e antigos, heréticos sob o ponto de vista ocidental. Interessante perceber
que ainda hoje proclamamos nos dias mais solenes o credo niceno-constantinopolitano que afirma:
“e se encarnou pelo Espírito Santo na Virgem Maria e se fez homem.”20, este também proclamado
pelas igrejas orientais, mas que diverge quanto ao conteúdo teológico da mesma afirmação de fé.
Não negam a encarnação, mas divergem no como se deu este mistério.
Certamente, o mistério da encarnação não encontrará em nossas limitações humanas
unanimidade conceitual, talvez sejamos sempre divididos em tais questões, mas as ideias, inclusive
teológicas, ganham força quando há um testemunho coerente e como afirmou o Santo Padre Bento
XVI: “Em virtude desta fé cristológica ele [Leão Magno] foi um grande portador de paz e de amor.
Mostra-nos assim o caminho: na fé aprendemos a caridade. Aprendemos, portanto, com São Leão
Magno a crer em Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, e a realizar esta fé todos os dias
na ação pela paz e no amor ao próximo”.21

REFERÊNCIAS

BENTO XVI. Audiência geral (online). Roma: Sala Paulo VI, 2008. Disponível em:
<https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/audiences/2008/documents/hf_ben-
xvi_aud_20080305.html>. Acesso em: 20 de abril de 2023.

DENZINGER, Henrici. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral da Igreja


católica (online). 2005. Disponível em: <
https://apostoladonovosmares.files.wordpress.com/2016/05/compc3aandio-dos-sc3admbolos-
definic3a7c3b5es-e-declarac3a7c3b5es-de-fc3a9-e-moral.pdf>. Acesso em: 20 de abril de 2023.

LEÃO MAGNO, São. Leão Magno: sermões. São Paulo: Paulus, 1996. (Patrística, vol. 6)

SESBOÜÉ, Bernard. O Deus da salvação: séculos I-VIII. 2 ed. São Paulo: Loyola, 2005. (Tomo I)

20 DENZINGER, Henrici. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral da Igreja católica (online).
2005, §150. Disponível em: < https://apostoladonovosmares.files.wordpress.com/2016/05/compc3aandio-dos-
sc3admbolos-definic3a7c3b5es-e-declarac3a7c3b5es-de-fc3a9-e-moral.pdf>. Acesso em: 20 de abril de 2023.
21 BENTO XVI. Audiência geral (online). 2008. Disponível em: <https://www.vatican.va/content/benedict-
xvi/pt/audiences/2008/documents/hf_ben-xvi_aud_20080305.html>. Acesso em: 20 de abril de 2023.

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