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O CRISTIANISMO PRIMITIVO

Por Jones Mendonça

1. Introdução

Caso leiamos todo o evangelho de Lucas e o livro de Atos (que é continuação do


primeiro – compare Lc 1,3 com At 1,1), teremos visto de maneira resumida o relato do
nascimento do cristianismo. Essa história se inicia com o anúncio do nascimento de
Jesus (Lc 1:26), e termina com a chegada de Paulo em Roma como

prisioneiro e missionário (At 28,16; 28,31). Mas o que aconteceu depois disso? Algumas
tradições antigas afirmam que Paulo teria sido martirizado por decapitação pelo
imperador Nero, entre 60-63 d.C (Tert., De praesc. Haer. 36,3). Pedro teria sido vítima
de uma morte mais trágica: a crucificação invertida (Eus., HE 3,1).

Apesar da morte de Paulo e de Pedro, o cristianismo, que inicialmente era considerado


pelos romanos como uma seita judaica, continuou sendo pregado pelo mundo da
época, mesmo diante das mais cruéis perseguições. São famosas as investidas do
imperador Nero e Domiciano dirigidas aos cristãos. Há relatos de que Nero tenha
crucificado e queimado vários cristãos, alguns deles sendo usados como tochas humanas
para iluminar as estradas romanas e outros lançados aos cães, servindo com espetáculo
público. Tácito nos conta (An. 15,44) que, no reinado de Nero, morreu grande multidão
de cristãos. Essa perseguição aos cristãos durou cerca de 250 anos. Mas elas tiveram
um resultado inverso do esperado, pois contribuiu para que o cristianismo se difundisse
com maior intensidade. Como disse Tertuliano, escritor cristão do século II d.C.: “o
sangue dos mártires é a semente da igreja” (Apol 50).

2. O Novo Testamento: a tradição dos apóstolos é documentada por escrito.

Ao contrário do que muita gente pensa, os relatos da vida de Jesus não foram sendo
escritos enquanto ele vivia. Quando lemos, por exemplo, o prefácio do terceiro
evangelho, percebemos que Lucas tinha a intenção de relatar algo que já havia sido
pregado pelos apóstolos em suas viagens missionárias, mas que só agora começava a ser
registrado por escrito:

“a mim também pareceu conveniente, após acurada investigação de tudo desde o


princípio, escrever-te de modo ordenado, ilustre Teófilo, para que verifiques a
solidez dos ensinamentos que recebeste” (Lc 1.3-4).

Apesar de não sabermos quem era Teófilo, percebemos pelo tratamento que recebeu de
Lucas (ilustre), tratar-se de alguma pessoa importante da sociedade da época. Teófilo
havia se convertido ao cristianismo por meio da pregação dos primeiros cristãos e
queria saber os detalhes da vida e obra daquele em quem depositara sua fé.

Note que os primeiros evangelhos foram escritos cerca de 30 anos depois da ascensão de
Jesus. Após terem recebido do mestre a missão de evangelizar as nações, os apóstolos
começaram a pregar as boas novas de Cristo transmitindo-as baseados naquilo que
viram e ouviram (essa era a famosa “tradição dos apóstolos”). Nasciam assim os
Evangelhos, relatos da vida de Jesus feitos por seus discípulos.

As cartas de Paulo dirigidas às comunidades de Corinto, Tessalônica, Éfeso, Filipos,


Roma, Colossos e da Galácia foram sendo escritas à medida que ele viajava pelas
diferentes regiões do Império Romano. Essas cartas (também chamadas de epístolas)
foram sendo redigidas numa época em o evangelho era pregado por testemunhas vivas
do ministério de Jesus. Além de Paulo, o apóstolo “nascido fora do tempo” (1 Co 15,8),
temos também epístolas redigidas por Tiago, Judas, Pedro e João. Isso sem falar
na epístola aos Hebreus, cujo autor nos é desconhecido e no polêmico livro do

Apocalipse, atribuído a João.

3. Qual o conteúdo central do Novo Testamento?

A palavra evangelho significa boa nova, anúncio de salvação. O evangelista Marcos, por
exemplo, dá a sua obra o título de “Início do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”
(Mc 1.1). Nesse mesmo sentido João conclui o seu evangelho: “Estas coisas foram
escritas para que creiais que Jesus é o Cristo, filho de Deus, e para que, crendo, tenhais
a vida em seu nome” (Jo 20.31). A pregação dos apóstolos segue na mesma linha, não só
afirmando a messianidade de Jesus, mas também a sua ressurreição: “Deus ressuscitou
a este Jesus do que todos nós somos testemunhas” (At 2.32). A esperança de seu retorno
era o que dava força a igreja para perseverar na doutrina dos apóstolos, mesmo que o
preço dessa fidelidade tivesse que ser pago com a própria vida. Difundir a nova e
revolucionária mensagem do cristianismo num mundo pagão seria uma tarefa
espinhosa. Se os judeus consideravam o sacrifício vicário (vicário = substitutivo) de
Jesus um “escândalo”, os pagãos a consideravam “loucura” (1 Co 1,23). Mas esse é um
assunto que será abordado na próxima lição.

Figura:
LA HIRE, Laurent de
Jesus aparecendo às Três Marias
1650
Óleo sobre tela, 398 x 251 cm
Museu do Louvre, Paris

O CRISTIANISMO E AS PRIMEIRAS HERESIAS

Aula II (lição anterior: O Cristianismo primitivo)


1. Introdução
O cristianismo defrontou-se com um mundo onde predominava a cultura greco-romana.

O politeísmo, as religiões de mistério, as inúmeras

correntes filosóficas, o culto ao imperador, tudo isso tornava a propagação do


cristianismo algo bastante complicado. Era comum os pagãos confundirem o
cristianismo com o judaísmo, sendo visto como uma religião composta por infiéis à
tradição judaica. Ao repudiarem tanto a tradição greco-romana como a tradição judaica,
os cristãos colocavam-se à margem da sociedade. Para Luciano de Samosata (125 –
192 d.C), por exemplo, os cristãos eram pessoas convencidas de que “viverão
eternamente [...] e, desde que abjuraram os deuses da Grécia, adoram um sofista
crucificado”. Apesar de mal compreendida por judeus e pagãos, a fé cristã conseguiu
transpor os obstáculos. Mas essa não foi uma tarefa fácil.

2. O cristianismo e a influência pagã


Na religião romana não havia a idéia de um Deus único, criador e que desejava se
relacionar com os seres humanos. O povo cultuava os mortos, que depois de
sepultados eram “alimentados” com vinho ou comida: “a bebida penetrou na terra,
meu pai a recebeu” (Ésquilo, Coéforas, 162), dizia uma mulher do primeiro século. Uma
vez sepultado, o homem nada tinha a esperar, nem recompensas nem punição. Os
mortos eram considerados criaturas sagradas e venerados como deuses.

Já entre os sábios gregos havia a crença em Deus, mas era um Deus indiferente
em relação a vida do homem na terra. Não era um deus que respondia as orações ou que
se compadecia com o sofrimento do ser humano. O culto doméstico romano e as
correntes filosóficas que eram populares na
época não eram capazes de satisfazer a obsessiva busca pela solução do problema da
morte. Havia um forte anseio por um Deus que se pudesse amar, que protegesse

nesse mundo e ao mesmo tempo garantisse a salvação eterna.

É nesse terreno fértil que surge o cristianismo. Jesus prega um Deus próximo, que

deseja se relacionar com o homem e que promete vida eterna aos que o buscam. Se
entre os judeus o cristianismo não foi bem aceito, já que esperavam um messias político,
entre os pagãos ele foi mal compreendido. Fronton (século II d.C) mestre de dois

imperadores, acusava os cristãos de imolarem e devorarem crianças nas cerimônias

de iniciação, de adorarem a cabeça de um burro e praticarem incestos após os


banquetes. O texto de Jo 6:53 onde Jesus diz “se não comerdes a carne do filho do
homem [...] não tereis vida em vós mesmos”, foi interpretado literalmente, por isso a
idéia de que comiam a carne de crianças. O costume dos cônjuges tratarem-se como
“irmãs” e “irmãos” fez surgir o boato de que praticavam incestos. A igreja nascente
começava a sentir a necessidade de homens instruídos que defendessem a fé
cristã frente às críticas dos filósofos e do paganismo.

3. Os primeiros apologistas
Diante de todos esses mal entendidos, a comunidade cristã percebeu ser necessário
discutir questões envolvendo a sua fé e a cultura pagã. Os primeiros cristãos, por
exemplo, se negavam a participar de cerimônias civis, nas quais se ofereciam

sacrifícios e juramentos aos deuses. Também não serviam ao


exército, porque podiam se ver obrigados a matar alguém
ou oferecer sacrifícios a César (havia na época o culto ao imperador). Essa postura gerou
vários problemas, levando os pagãos a se referirem constantemente aos cristãos como
pessoas anti-sociais e ignorantes. Por não reconhecerem os deuses do Estado, nem

o culto do imperador, foram considerados como ímpios e até mesmo ateus (Just.,
Apol. 1,6, 13; Mart. S. Polyc. 9). A necessidade de um posicionamento claro e bem
definido em relação à postura que o fiel deveria ter frente aos mais diversos
questionamentos se acentuava a cada dia. Para piorar, havia ainda a ameaça das várias
doutrinas vindas do oriente e dos judaizantes, que insistiam na observância da

lei mosaica. Surgiam assim os primeiros apologistas, homens instruídos e

determinados a defender a fé cristã. Justino Mártir (100-165), Irineu (140-200),

Clemente de Alexandria (160-215), Tertuliano (160-220), Orígenes (185-254),

Jerônimo (345-419) e Agostinho de Hipona (354-430) tiveram uma postura


decisiva no combate a essas correntes. Veja abaixo duas dessas ameaças:

a) Gnosticismo (do gr. gnostikos – “aquele que conhece”) –Religião

extremamente sincrética (absorvia doutrinas de outras religiões). Para os

gnósticos o mundo material fora criado por um deus mau, chamado

Demiurgo. Conseqüentemente não poderiam admitir que Jesus tivesse um


corpo físico, já que seria incompatível uma divindade habitar um corpo feito
de matéria. Eles também enfatizavam que o corpo é a prisão da alma,

sendo toda a matéria criada essencialmente má. Havia nos primeiros


séculos mais cristãos gnósticos do que se pode pensar.
b) Maniqueísmo – Doutrina de origem persa fundada por Mani (216-

276). Mani enfatizava a luta incessante entre o bem e o mal. Todo o

universo teria princípios igualmente eternos: a luz e as trevas, que se


combateriam incessantemente. Adão e Eva seriam filhos de dois demônios
Asqualun e Namrael. Ainda assim, os primeiros humanos carregariam

dentro de si uma porção da luz divina. O maniqueísmo pregava a

abstinência sexual aos que desejassem ser verdadeiros crentes, já que


viam na procriação uma maneira de prolongar o cativeiro da luz.

Tanto o gnosticismo como o maniqueísmo pregavam o dualismo, ou seja, a

oposição entre duas realidades distintas: o espírito e a matéria. A Bíblia nunca


situou o pecado na matéria, seja no corpo humano, nos animais ou nos minerais. A
criação é boa. A oposição existente na Bíblia é entre a carne (gr. sars), que representa

a inclinação humana para o mal e o espírito, que é o canal de ligação entre o homem e
Deus. É possível ver resquícios dessas duas doutrinas em alguns segmentos do
cristianismo atual, quando notamos, por exemplo, um rigor exagerado com o corpo,
como se nele estivesse presente a semente do mal.

No século IV os problemas que os cristãos enfrentavam com a perseguição iriam acabar,


já que o cristianismo passou a ser protegido pelo Estado. Mas a união entre Estado e

religião traria novos problemas. Esse será o tema da próxima lição.

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