Você está na página 1de 48

1

PROTESTANTES – EVANGÉLICOS: BUSCANDO ENTENDER

Martin N. Dreher1

O cristianismo jamais foi uniforme. Nos primórdios, Jesus teve que mediar entre
seus primeiros seguidores. As epístolas do Novo Testamento são testemunho eloquente
das tensões da primeira e da segunda geração. Há judaizantes, helenistas, gnósticos,
apocalípticos, tentativas de encarnar a presença de Deus em Jesus de Nazaré nos mais
diferentes contextos e linguagens. No segundo século, a situação era tão preocupante
que lideranças cristãs tiveram que formular divisores de água através dos quais
pudessem dizer quem era cristão ou não cristão. A cruz era de tal maneira escandalosa
que muitos a negavam por não conseguirem aceitar um Deus que se encarnasse nas
condições humanas ou por consider o Deus de Jesus incapaz de criar o mundo no qual
vivemos. No primeiro momento, o Espírito Santo não estava em discussão. Por isso, a
Regra de Fé, da qual resultaram dois Credos, foi suficiente. Ela acentuou Deus como
Criador, a Cruz e a Morte do Jesus ressurreto. Além disso, a formulação de um Cânone
bíblico estabeleceu que, doravante, tudo o que cristãos afirmassem teria a Bíblia como
norma e nada do que afirmassem poderia estar acima do Cânone. O Jesus da Regra de
Fé seria o fio condutor para sua leitura. No século 16, Lutero diria que a Bíblia seria
manjedoura, na qual Jesus estaria deitado. Se não o encontrássemos, só teríamos palha.
Sua leitura de Jesus, no entanto, não foi consenso entre todos os cristãos, como também
não o havia sido nos séculos anteriores. Até seus dias e, de forma modificada, após eles,
o Estado determinou quem era Jesus e como deveria ser entendido. No século terceiro,
discutia-se a relação de Jesus com o Pai, buscando manter o monoteísmo. Querendo
valer-se do cristianismo como base do Império Romano, Constantino I convocou um
Concílio em sua residência de verão, em Nicéia (325). Os bispos presentes
apresentaram-lhe série de moções, contendo fofocas de uns contra os outros.
Constantino recebeu as moções e mandou queimá-las. Queimadas as moções, ordenou o
estudo da relação de Jesus com o Pai. Como não obtivessem consenso, introduziu ele
próprio no novo Credo a fórmula homoousios=consubstancial com o Pai. Depois, mandou
publicar o Credo de Nicéia como lei imperial. O mesmo aconteceu com as resoluções dos

1
Doutor em Teologia pela Universidade de Munique/Alemanha.
concílios posteriores, algumas por pressão de monges armados de porretes, como o
acontecido em Éfeso. Quem não concordou, foi para o exílio, como os monofisitas, que
sobreviveram entre os árabes e ali preservaram Aristóteles. Outros fizeram missão entre
os godos e preservaram, assim, sua fé ariana, segundo a qual a divindade de Jesus foi
estabelecida quando de sua adoção pelo Pai. Tradições gnósticas foram preservadas
entre nômades da Península da Arábia e, depois, incorporadas ao Islã. Nas fronteiras do
Império Romano houve desde Teodósio, a partir de fevereiro de 390, cristianismo dito
uniforme, “católico”. Fora das fronteiras a questão era outra.

Quando os francos arianos estabeleceram hegemonia no Ocidente, após longo e


conturbado processo que levou ao final do Império Romano no Ocidente, a única
instituição que permanecera relativamente intacta fora a Igreja Romana. Após o
casamento de Clóvis, rei dos francos, com a princesa católica Klothilde, os francos
assumiram o catolicismo ocidental e passaram a conquistar seus vizinhos e a submetê-los
à fé de Clóvis e de Klothilde. Esse procedimento foi chamado de “missão”, conceito
inexistente no vocabulário cristão até então. Cristianizar passou a ser conquistar e
submeter espiritualmente os vencidos ao Jesus guerreiro. Voltar-se contra Jesus, não
aceitá-lo ou desviar-se do conceito cristológico estabelecido pelo Estado significava
voltar-se contra decisões imperiais, voltar-se contra o Estado.

A passagem e a penetração do cristianismo para diferentes contextos e culturas


significaram tradução. Assim, a fé cristã foi traduzida do contexto hebraico/aramaico, para
o grego-helenista, depois para o romano e, a seguir, para o germânico. Todas essas
traduções significaram transformações: Ruah, a terceira pessoa da Trindade, por
exemplo, era feminina; quando passou a ser Pneuma virou neutra e, finalmente, ao ser
Spiritus passou a ser masculina. Com isso, a visão legada da Trindade foi a de um Deus
totalmente masculino. Muito cedo, figuras exponenciais do cristianismo passaram a
substituir as antigas divindades egípcias, asiáticas, gregas, romanas ou germânicas.
Todas, assim como Jesus, assumiram a auréola de Mithras, o deus Sol. Os anjos do
Antigo Testamento, que não tinham asas, assumiram as asas do helenismo e, depois,
passaram a ser idênticas às Valquírias germânicas, seres alados, que carregavam os
guerreiros mortos ao Walhall, o céu germânico, ou aos guerreiros árabes levados ao
sétimo céu da tradição islâmica. Aos poucos todas essas tradições, com maior ou menor
intensidade, passaram a fazer parte do imaginário e das convicções das populações que
designamos de europeias.
De modo geral, a religião permeava toda a vida da sociedade. Não havia
separação entre religião e mundo. Religião era base da sociedade. Casar, caçar, pescar,
guerrear não eram questões distintas da religião. Caça, casamento, pesca e guerra eram
acompanhados de ritos. Nada era feito sem rituais religiosos. Os seres humanos antes de
pensarem o mundo e suas ordens pensavam o sobrenatural e entendiam seu mundo a
partir do sobrenatural. Por isso, quando povos estavam em guerra, seus deuses estavam
guerreando entre si. Quando se tornaram cristãos, santos guerreavam entre si. Essas
reflexões e observações são importantes para compreendermos o cristianismo formado
no período anterior à reforma religiosa do século 16. Nesse longo período, exceção feita
aos três primeiros séculos, a igreja não tinha membros, para usar expressão ainda usual
aos nossos ouvidos. Igreja era questão do rei, príncipe ou imperador. A religião dele era
imposta aos súditos. Por causa do rei, a religião era questão do povo. Igreja era parte da
sociedade. Nela inexistia a dimensão da escolha. Por isso, também era desconhecido o
conceito “conversão”. A religião era parte integrante da cultura. Não necessitava de uma
instituição independente para sua reprodução. Todos partilhavam a mesma visão comum
do mundo. Mistérios e dogmas faziam parte da vida das pessoas. Também a crença no
sobrenatural fazia parte de suas vidas. Como parte integrante da sociedade, a igreja
concedia proteção do maligno sobrenatural, assim como concedia bênção sobrenatural.
Céu, inferno, purgatório, limbo e paraíso faziam parte do dia-a-dia. Essas pessoas
prémodernas eram cristãs, mas não eram cristãs num sentido moderno: não pertenciam a
uma denominação. Igreja era parte do sistema feudal.

O rei franco Pepino doou, em 755/56, os territórios que conquistou aos langobardos
ao bispo de Roma, Estevão II (752-757). Doravante, os papas também seriam senhores
feudais que entenderiam os bispos como seus súditos e estes fariam o mesmo em
relação aos párocos. Com isso, iniciava-se processo que dominaria boa parte do que
designamos de Idade Média, a luta entre Império e Sacerdócio. Nela buscava-se decidir
quem era o detentor do poder no ocidente: o imperador ou o papa?

Desde Gregório VII (1073-1085), a igreja ocidental se transforma em igreja de


clérigos. O próprio papado transforma-se em domínio absoluto, passando o próprio papa
a ser definido como igreja e a igreja como o papa. No fundo, a pretensão papal não era
apenas a de dominar sobre a instituição igreja, mas sobre todo o mundo. Tal pretensão foi
formulada por escrito por Bonifácio VIII na bula “Unam Sanctam”, de 1302: o poder
temporal está sujeito ao poder espiritual, pois o papa tem seu poder diretamente de Deus.
Para ampliar seu poder, a igreja papal necessitava de dinheiro, arrecadado a partir de
tributos dos Estados Pontifícios, de juros tomados de estados vassalos (Nápoles e
Inglaterra, por exemplo), do óbolo de Pedro, proveniente da Polônia e da Hungria, e de
impostos para as cruzadas. Depois vieram tributos oriundos do provimento de cargos
eclesiásticos. Elemento importante nesse fiscalismo papal foram, desde o século 13,
financistas italianos. Eles concediam créditos, quando o dinheiro não entrava a tempo. Ao
mesmo tempo, cursos de direito desenvolvem-se em centros de estudos na Itália e neles
o papa passa a ser definido, sempre mais, como legislador supremo.

Aos poucos foi surgindo forte clamor por reforma. As críticas se voltavam contra o
excessivo centralismo. Em 1324, Marsílio de Pádua afirmava, em seu “Defensor Pacis”
que a igreja de seu tempo nada tinha a ver com a igreja de Cristo. O papa só seria
detentor de poder espiritual e não de poder temporal. Marsílio de Pádua e Guilherme de
Ockham (+ 1349) faziam parte de movimento de pobreza que criticava a igreja rica que
nada mais teria a ver com o pobre de Nazaré e situam-se em corrente que vem de Pedro
Valdo, passa por Francisco de Assis e vai encontrar expressão nas ordens mendicantes.
Influenciado por Marsílio, Ockham defendeu que o poder do imperador, do rei, vem de
Deus e que a finalidade da igreja não é o poder, mas o serviço. Nega a plenitude do poder
do papa. A igreja é para Ockham uma comunidade espiritual.

A luta por poder no seio da igreja enquanto instituição feudal levou a que, em 1378,
houvesse dois papas: Urbano VI, em Roma e Clemente VI, em Avignon. Nesse contexto,
foi desenvolvida a teoria conciliar, sancionada no Concílio de Constança (1414-1418).
Duas teorias eclesiológicas se defrontariam doravante: a papalista e a conciliar. No
tocante a uma reforma, contudo, nada foi feito. A instituição igreja continuou a ser cabide
de emprego para os filhos mais jovens da nobreza. Seu estilo de vida era idêntico ao de
suas famílias, o que seria motivo de muitos escândalos. A massa do clero, entretanto,
vivia na miséria. Outro descompasso que se tornava flagrante era que enquanto os leigos
tinham sempre melhor formação, era má a formação do clero.

Contra as pretensões papais voltou-se Felipe, o Belo, aproveitando-se da situação


de intrigas existente em Roma. Bonifácio VIII foi preso, em 1303. Libertado, não resistiu e
faleceu poucos dias após. Em 1305, um francês foi eleito papa, passando a residir, desde
1309, em Avignon. Por 70 anos os papas aí residiriam. Todos eles eram franceses e
obedientes aos reis franceses. O breve relato relativo a essa situação quer destacar fato
novo a emergir no ocidente: começam a surgir os estados nacionais. É verdade que
desde 1378, os papas voltam a residir em Roma, mas foram eleitos anti-papas por quatro
décadas. A situação criada também levou a um abalo nas finanças papais, tornando
Roma dependente dos territórios italianos e alemães.

O que descrevemos acima é indicativo de que profundas transformações estavam


a ocorrer no campo político europeu. Realmente, desde 1300 havia tendência de os
estados se emanciparem de Roma. Desde 1450 tornou-se patente que os senhores
territoriais buscavam aumentar seu poder sobre a igreja. Com o surgimento dos estados
nacionais, primeiro em Portugal e, depois, na França, estava em curso a “nacionalização”
das igrejas. Nos dois séculos seguintes, presenciamos o surgimento de igrejas nacionais
em Portugal, França, Espanha, Inglaterra ou em territórios da Europa central. O exemplo
mais claro é, inicialmente, o galicanismo, surgido nas discussões entre Felipe o Belo e
Bonifácio VIII. De fato, desde a transferência da sede do papado para Avignon surgiram
tendências separatistas, onde se estabeleceu que nenhuma pessoa poderia ser julgada
por motivos religiosos fora da Inglaterra e que os dízimos não seriam mais enviados a
Roma. Em 1438, No Sínodo de Bourges, os franceses se tornaram independentes de
Roma. Como não havia primaz, como na Inglaterra, o rei passou a ser chefe da Igreja,
nomeando todos os bispos e abades desde 1516.. Henrique VIII seguiria esse exemplo,
aplicando-o à Inglaterra.

Na Península Ibérica, já desde o século XIV, os reis de Aragão retiveram os


dízimos. Em 1479, com o casamento de Fernando e Isabel, o controle sobre a igreja seria
maior. Desde 1478, os reis espanhóis nomeiam inquisidores e Ximenez de Cisneros
implanta reforma eclesiástica que afeta a disciplina, impõe visitações e faz profunda
reforma na Universidade de Alcalá. Temos aqui o nascedouro da reforma do catolicismo
romano no século XVI. Por isso, acentuamos já aqui que a reforma religiosa do século
XVI não é evento intra-protestante, mas diz também respeito ao catolicismo e ao
anglicanismo. Como a reforma religiosa dependeu do surgimento dos estados e das
igrejas nacionais, podemos entender por que movimentos como aqueles desencadeados
por John Wiclif (1320-1384) e por Jan Hus (1370-1415) tiveram apenas sucessos parciais.

Os fracassos das tentativas de reforma encontraram válvula de escape na


religiosidade. A religiosidade popular, aliás, quase sempre é expressão de resistência à
instituição religiosa ou ao estado. Destaque merece a mística. Ela tem seu radical no
verbo grego myein, que significa silenciar. O místico silencia, mira seu interior e
acompanha a dor do Cristo crucificado. Desse silêncio e introspecção vem a força para a
resistência. Muitos professores universitários do final da Idade Média eram místicos.
Também a radicalidade de um Thomas Müntzer tem raízes místicas. Por ser individual,
fugia ao controle eclesial. A mística teve importantes expoentes, como o Mestre
Eckehardt (1260-1327), e encontrou expressão em movimentos como os Irmãos e as
Irmãs do espírito liberto. Importante centro da mística foram os Países Baixos. Aqui
surgiram os Irmãos da Vida Comum, iniciadores da Devoção Moderna. Copistas e
professores eram leigos que queriam expressar que a vida cristã pode ser vivida com
perfeição no quotidiano e não apenas na vida reclusa. Eles deram importante contribuição
para a interiorização da vida religiosa. Na “Imitação de Cristo”, cuja autoria é, geralmente,
creditada a Tomás a Kempis, temos expressão escrita dessa piedade. A “Imitação” é
talvez o livro cristão que mais edições teve, após a Bíblia. Vivendo em comunidades de
leigos e de leigas, os Irmãos da Vida Comum também atuaram como professores. A
importância dessa atividade fica evidente quando observamos relação de alguns de seus
alunos: Erasmo de Rotterdam, Nicolau Copérnico, Adriano VI, papa e, antes, preceptor de
Carlos V, Martim Lutero, Alberto Dürer. Sua marcante influência na Universidade de Paris
pode ser aquilatada, quando comparamos três de seus estudantes, colegas de estudo:
Inácio de Loyola, João Calvino e Nicolás Durand de Villegaignon. O colégio jesuíta e o
colégio calvinista têm o mesmo modelo comum. Em ambos foram formados os
missionários guerreiros dos primórdios da Modernidade. O livro de cabeceira de Loyola foi
a “Imitação de Cristo”.

Mas não foi apenas a mística que se fez presente. Havia muitas práticas que se
convencionou designar de “crendice” e que não deixaram de se fazer presentes ao longo
dos últimos quinhentos anos, ressurgindo com vigor no alvorecer no século 21. Bruxas,
duendes, magias, alquimias, astrologia estavam presentes neste mundo e também
aparecem nos textos dos teólogos do século 16. Dois dominicanos, Heinrich Krämer e
Jakob Sprenger, receberam, em 1484, a autorização de Inocêncio VIII para acabar com a
bruxaria no bispado de Constança. Para sistematizarem os procedimentos contra bruxas
e bruxos, formularam o “Martelo das Feiticeiras”. Não foi a Idade Média quem mais
exterminou bruxos e bruxas, mas a Idade Moderna. Quase até o final do século 18,
mulheres e homens foram entregues à fogueira. Católicos, Anglicanos, Luteranos e
Calvinistas, indistintamente, e, depois deles, os Puritanos entregaram pessoas à fogueira,
em nome de Jesus.

O mundo dos séculos 15 e 16 também se encontrava sob o impacto do avanço dos


turcos. As muitas guerras, as alianças entre príncipes cristãos, o próprio papa e o turco,
os cadáveres que ficavam insepultos, gerando epidemias provocaram expectativa de fim
de mundo e renovaram a apocalíptica. O impacto foi tão grande que a morte passou a ser
representada na arte, como o podemos constatar na produção de um Alberto Dürer. A
insegurança também se refletiu no que era cantado. Quando Francisco I, o papa e os
turcos se coligaram contra Carlos V, Lutero compôs o hino “Deus o teu Verbo guarda a
nós, combate o papa, e o turco atroz que a Jesus Cristo, o Filho Teu quer derrubar do
trono seu.” Como as principais lideranças não serviam mais como modelo, a devoção
centrou-se em relíquias, no rosário tomado do islã e popularizado por Domingos de
Gusmão, na mariologia, no culto a novos santos. Houve formação de muitas irmandades.
Não se construiu grandes templos, mas as famílias se dedicaram à construção de capelas
e de “seus altares”, do que procedeu o surgimento de muitos altares laterais nas igrejas.
Em tudo isso se evidencia tendência à apropriação do sagrado.

No mundo da emergente reforma protestante e católica e, do surgimento do mundo


evangélico não pode ficar excluída a expansão européia através do Atlântico, a conquista
espiritual dos povos do continente americano e a conversão forçada de um universo
formado por 300.000 judeus. Em 31 de março de 1492 foi concluída a reconquista dos
territórios ocupados pelos árabes na Península Ibérica, com a tomada de Granada. Na
mesma data foi ordenada a expulsão de 300.000 judeus. Metade dos judeus migrou para
Portugal, a outra metade para os Países Baixos. Em Portugal, em 1497, Dom Manuel, o
Venturoso, ordenou a expulsão dos judeus. Houve conversão forçada. Para que não
voltassem a judaizar, os judeus conversos, também designados de cristãos-novos,
receberam sobrenomes que facilitassem o controle sobre sua ortodoxia. Esses
sobrenomes lembram árvores, animais, metais preciosos. Para sobreviver, os cristãos
novos que formaram base significativa da população brasileira aprenderam a representar
religião, mas nos legaram sinais de sua resistência: a pomba, símbolo de Israel, está
presente na bandeira do Divino Pai Eterno (Javé); velas continuam a ser acesas ao
entardecer de sexta-feira, saudando o sábado; as casas são limpas na sexta-feira, dia em
que também se troca a roupa de cama. Para mostrar que é bom cristão, o brasileiro se
persigna desesperadamente. Nas áreas rurais, deixa porcos correrem livremente ao redor
de sua casa, para comprovar que não é judeu. Os descendentes dos cristãos-novos
formaram, ao lado de indígenas e de africanos, as massas com as quais o cristianismo
europeu não dialogava. No século 19 as ordens religiosas católicas chegadas para
restaurar o catolicismo e as missões protestantes diriam que no Brasil só existia
paganismo.
Na verdade, o que descrevemos até aqui mostra que desde 1300 está começando
a acontecer profunda ruptura no Ocidente. Se até agora a religião era base da sociedade,
doravante esta base serão o Estado e o Mercado. O final do século 15 e a primeira
metade do século 16 mostrarão em algumas áreas que sob a influência do humanismo e
do renascimento se respirou ares de limitada tolerância, como o podemos observar em
obras como O Príncipe de Maquiavel ou no Elogio da Loucura de Erasmo e mesmo nos
textos de Lutero. Depois, o Estado se mostraria onipresente, determinando a religião,
também através da inquisição, e apoiando-se sempre mais no mercado. Desde 1300, a
monarquia universal e o papado universal estão em franco declínio. Como o universal vai
desaparecendo, o particular vai crescendo. Por isso é que desde a reforma religiosa do
século 16 vamos entender cristianismo como uma idéia de adesão a uma comunidade de
fé. Isso é novidade em termos de cristianismo, em termos de religião, mas faz parte
daquilo que denominamos de mundo moderno. A cultura passa a se secularizar. A religião
deixa de ser base da sociedade, substituída por Estado e mercado. São esses dois que
organizam a sociedade. Isso leva alguns estudiosos a afirmar que o cristianismo é a
religião da saída da religião. A religião migra da infra-estrutura para a supra-estrutura. O
mundo no qual o protestantismo vai se gestar será uma sociedade atéia, habitada por
crentes. Antes o mundo era crente, pois quando a religião é base da sociedade não há
opção: todos são crentes.

Em função dessa alteração profunda, a religião deixa de ser uma questão social
para ser questão pessoal, passando o conceito “conversão” a adquirir um significado todo
especial. Característicos para essa situação são os metodistas. Eles se organizam no
seio de uma Igreja de Estado e propõem a organização de comunidades com método no
seio de uma igreja de massas: a Igreja Anglicana. Comunidade é idéia central na
Modernidade. Com isso, estou sinalizando que na passagem da Antiguidade para a
Modernidade há uma mudança qualitativa de religião, mas também devo dizer que na pré-
modernidade, a religião era ar que se respirava. A pessoa nascia, vivia e morria na
religião. Não se concebia vida sem Batismo, casamento e enterro cristão. A religião
estava ligada organicamente à sociedade. A religião era forte, mas a instituição religiosa
era fraca. Na Modernidade isso vai ser diferente. Aqui religião é questão de opção, pois a
conversão é abandono da tradição. Deixa-se a lei dos pais para entrar na lei dos crentes.
Daí brota e surge a importância da comunidade institucional. Ela é instituição em oposição
a outras instituições, também em relação ao mundo. Para isso, ela tem que ser forte. Ela
vai receber a tarefa de reproduzir a religião. Não podemos entender as profundas
mudanças pelas quais passou o cristianismo no Brasil e na América Latina sem levar em
conta esse fato. Até meados do século 19, a situação da religião no Brasil era,
majoritariamente, de pré-modernidade. Buscou-se aqui manter a universalidade que se
particularizava na Europa, mesmo que sob característica de Modernidade, segundo a qual
o Estado controlava a religião com a finalidade de controle social. Desde meados do
século 19, com a penetração de imigrantes europeus e, depois, com o ingresso de
missões religiosas, a Modernidade penetra no Brasil. Não se pode mais segurar a
aspiração universal presente desde o século 16 que clama pelo direito de opção, palavra
que no vocabulário religioso é traduzida por “conversão”. As histórias eclesiásticas
confessionais vão narrar as “perseguições” que sofriam os que deixavam a religião dos
pais para entrar na religião dos crentes! Aqui, talvez, é importante lembrar a luta pelo
direito à opção travada no século 16 pelos anabatistas. Eles não fazem parte de nossa
memória evangélica ou protestante. Ao se negarem a pedir o Batismo para seus bebês e
se rebatizarem em idade adulta, quiseram sinalizar que o Estado não tinha o direito de
interferir nas consciências. A história da modernidade é a história da luta pela liberdade
de consciência, pelo direito de opção, pelo direito de conversão. Não é por acaso que a
modernidade tenha sido o período da história da humanidade em que mais se queimou
“bruxas” e “bruxos” e em que mais se perseguiu dissidentes políticos e religiosos. Como
base da sociedade, Estado e mercado não admitiam os que tivessem pensamento
autônomo, também dentro das denominações. Infelizmente, as lutas travadas pelos
anabatistas do século 16 e suas conquistas nem sempre foram preservadas em muitas
denominações, na quais não há espaços para dissidentes e suas opções.

Foi nesse contexto que surgiram protestantes e evangélicos. Esses dois conceitos
são polissêmicos. Quando pronunciados são ouvidos e entendidos pelos ouvintes e pelos
que os emitem nas mais diferentes acepções. Exemplifico. Sou descendente de
imigrantes alemães chegados ao Rio Grande do Sul em 1825. Eles fizeram parte do
primeiro grupo de dissidentes religiosos a se instalarem de forma permanente no Brasil.
Pela Constituição Imperial, outorgada em 1824, tinham o status de “tolerados”. Desde a
Europa designavam-se a si mesmos de “evangélicos”. Na minha infância, numa pequena
localidade do interior do Rio Grande do Sul, somente existiam evangélicos (luteranos) ou
católicos. Já me encontrava em plena adolescência, quando em minha localidade surgiu a
primeira comunidade da Igreja Evangélica Assembléia de Deus. Agora existiam dois tipos
de “evangélicos”. Doravante, éramos evangélico-luteranos. Alguns anos mais tarde, já
adulto, fui comprar sapatos na “Loja Neves”. Quando entrei, o senhor Neves, o
proprietário, estava lendo a Bíblia. Perguntei se era evangélico. Ele respondeu que sim.
Disse que também era. Ele: “De que igreja?” Respondi que frequentava o templo da Igreja
Luterana. Ele: “Pensei que fosse protestante”. As experiências e os diálogos falam por si.
Conceitos devem ser esclarecidos também para a compreensão dos textos que perfazem
o presente volume.

As origens do conceito “protestantismo” estão ligadas à Dieta de Espira, de 1529.


Em 1526, uma primeira Dieta de Espira delegara a questão religiosa decorrente do
movimento deflagrado pelo monge agostiniano-eremita Lutero (1483-1546), aos
estamentos, em responsabilidade “diante de Deus e do Imperador”, até que fosse
possível a realização de um concílio. Essa resolução foi a base legal para a expansão do
movimento reformatório e para a criação das futuras igrejas territoriais. De fato, a maior
expansão da reforma situa-se entre a Dieta de Worms, de 1521, e a Dieta de Augsburgo,
de 1530. A situação alterou-se, porém, com a vitória de Carlos V sobre o rei francês,
Francisco I, e seu aliado, o papa. Tal vitória fez com que o partido católico voltasse a ter
influência na Alemanha, chegando a ter maioria na segunda Dieta de Espira, realizada em
fevereiro de 1529. O arquiduque Ferdinando, representando seu irmão Carlos V,
conseguiu apresentar uma proposição que eliminava a resolução de 1526. A própria Dieta
reagiu a essa proposição, proibindo a introdução de inovações no tocante à missa e
eliminando a resolução de 1526. Além disso, posicionou-se contra os “sacramentários”,
ameaçando as cidades do sul da Alemanha, partidárias de Ulrico Zwínglio. Em 19 de abril,
cinco príncipes da “nova fé” e 14 cidades apresentavam uma solene “Apelação” e um
protesto formal e oral, resumindo a “Apelação”, fato que lhes valeu o título de
“protestantes”. Uma minoria protestara por questões de fé, pois “em questões que dizem
respeito à honra de Deus e à bem-aventurança da alma, cada um deve responsabilizar-se
a si mesmo diante de Deus e prestar contas, não se podendo, portanto, ninguém
desculpar com ação ou decisão de uma minoria ou de uma maioria.”

Com esse protesto de leigos, pela primeira vez, tornou-se evidente a cisão
confessional em âmbito jurídico. Os católicos falavam em nome do império, os dissidentes
falavam em nome da consciência. Os conceitos “católico” ou “protestante” passaram a
designar partidos políticos.

Deve-se, contudo, observar que em decorrência de formulações de Friedrich Daniel


Schleiermacher (1768-1834), o conceito “protestantismo” ficou sendo designativo para
uma conformação histórica do cristianismo. Dizia Schleiermacher que a característica do
protestantismo era que ele “fazia depender a relação do indivíduo com a Igreja de sua
relação com Cristo.” Para o catolicismo, valia o oposto: da relação do indivíduo com a
Igreja dependia sua relação com Cristo. A questão, porém, é simples demais, pois o que
designamos de protestantismo não cabe nesse esquema, mesmo que Schleiermacher
tenha feito uma observação importante ao tematizar cristologia e eclesiologia como
características de grupos.

Paul Tillich (1886-1965) procurou falar de um “princípio” e de uma “concretização”


do protestantismo, levando em conta sua pluralidade e sua diversidade. Verificou que o
protestantismo apresenta uma realidade religiosa, social, política e cultural muito
diversificada e que diversificadas são suas formas. Com isso, protestantismo é também
uma forma cultural. Em termos da história das confissões cristãs, jamais será possível
determinar em definitivo o que é protestantismo. Como, por exemplo, no anglicanismo, o
protestantismo também se manifestará em uma denominação que em si não é
protestante. Existe certa unidade protestante, apesar da infinidade de denominações e
divisões de ordem teológica. Penso, por exemplo, nas discussões que se seguem desde
o Colóquio Religioso de Marburgo, de 1529. Existe uma unidade protestante, apesar de
divisões de ordem religiosa. Penso, ainda, nas manifestações batista-espiritualistas,
metodistas de reavivamento, separatistas etc. Também aí existe uma unidade
protestante, apesar das divisões confessionalistas. Da mesma forma, penso em vétero-
luteranos e outros. Existe uma unidade protestante apesar das divisões políticas e sociais.
Por fim, lembro das consequências da revolução inglesa do século 17. A unidade
protestante está em movimento que constantemente se quer orientar no Evangelho, mas
no qual a violenta discussão teológica pela descoberta da verdade leva à divisão da
unidade. Essa mesma discussão teológica pela descoberta da verdade levou o
protestantismo como um todo a se distanciar do catolicismo romano, mesmo que haja
graduações nesse distanciamento.

Já o conceito “evangélico” tem pelo menos duas vertentes. Uma tem sua origem na
Reforma alemã, outra tem sua raiz na Inglaterra. Na vertente alemã, “evangélico” é um
conceito normativo. Quer caracterizar a doutrina concorde com o Evangelho. Esse é o
ponto de partida de Lutero para usar o conceito. Como houve controvérsia em relação à
doutrina, surgiu a pretensão de que evangélico é aquilo que é cristão. Foi dessa maneira
que Lutero entendeu o conceito e recusou-se a entendê-lo como designação de um
partido, o que aconteceu com os dissenters ingleses do século 17 que eram “evangélicos”
para se diferenciarem da Igreja da Inglaterra. Foi por isso que Lutero também rejeitou a
designação “luterano”, surgida no século 16, e que até o século 18 era sinônimo de
“evangélico”. A designação “luterano” foi usada por João Eck desde 1519, em sentido
polêmico. Eck foi o oponente de Lutero no Debate de Leipzig.

O conceito “evangélico” passou a ser usado especialmente no sudoeste alemão,


não tendo, no entanto, um significado jurídico ou legal. Conotação jurídica só tinha o
conceito “reformatório”, que pretendia expressar a renovação da Igreja a partir da Palavra
de Deus. Nesse sentido, era idêntico a “evangélico”. O conceito “reformado” na era das
discussões confessionais ficou reservado aos calvinistas. Só mais tarde, o termo
“evangélico” adquiriu um significado jurídico ou legal. Pode-se, no entanto constatar que
os territórios e cidades que haviam “protestado” em 1529 relutavam muito em aceitar
designações coletivas para caracterizar seu grupo. Quando a Paz da Westfália (1648)
reconheceu os calvinistas como aparentados dos de confissão augustana (luteranos),
passou-se a usar o nome “evangélico” como designação coletiva para luteranos e
calvinistas no continente europeu. Em 1653, ambos foram unidos no Corpus
Evangelicorum e com este conceito deu-se a luteranos e calvinistas o status de religião
lícita dentro do Sacro Império Romano Germânico. Desde então, o conceito tornou-se
determinante no contexto da Reforma alemã.

Em 1817, foi criada por decreto do rei da Prússia a chamada União Prussiana:
reformados e luteranos foram unidos em uma “Igreja Cristã Evangélica”. As comunidades
nela congregadas foram designadas de “evangélicas”. Na época, negou-se a
possibilidade de a designação querer ser um novo partido confessional, mas se afirmou a
origem na Reforma do século 16. Para diferenciar os “evangélicos” unidos por decreto,
passou-se a usar as expressões evangélico-luterano ou evangélico-reformado. Mesmo
assim, o mero uso do conceito “evangélico” passou a designar com o tempo uma nova
confissão ou denominação, qual seja: a Igreja Unida.

No século 16, a rigor, a Inglaterra não experimentou reforma religiosa. A falta de


herdeiro homem levou Henrique VIII a reacentuar as tradições da Igreja da Inglaterra e a
corresponder à tendência do surgimento das igrejas nacionais. Em oposição à Igreja
Anglicana desenvolveu-se um movimento político e religioso que ficou conhecido sob o
nome de puritanismo. Os puritanos eram não-conformistas que julgavam a Igreja
Anglicana instituição, cuja vida não correspondia à Bíblia. A Bíblia estava no centro das
reivindicações dos puritanos e era entendida como norma para toda a vida, envolvendo
família, profissão, Estado e a relação do ser humano com Deus. Os puros (=puritanos)
eram pessoas da baixa nobreza, dos estamentos médios. O que mais os irritava eram os
favorecimentos na corte e os desacertos financeiros. Queriam que a vida pública da Igreja
fosse aliviada dos resíduos de catolicismo que continuavam a existir nela. Queriam
praticar a “fé bíblica”. Quando a pressão do Estado ficou mais forte contra eles, os mais
radicais decidiram emigrar para uma terra que, continuando inglesa, não limitasse a
liberdade de fé. Por isso, em 4 de dezembro de 1620, 30 “pais peregrinos”, viajando no
navio Mayflower, chegaram aos Estados Unidos.

Enquanto movimento religioso, o puritanismo foi minoria. Despertamento para a


leitura da Bíblia e vida de oração, para vida em ação a partir da fé em Deus e em sua
palavra jamais foi questão que dissesse respeito a massas. Mas o puritanismo possuía
uma dinâmica que deixou efeitos morais. Dele provém um senso pragmático da realidade:
uma aceitação ingênua (naif), irrefletida da palavra bíblica e de sua aplicação à vida; um
moralismo utilitarista; a rejeição de qualquer especulação teórica. Destaque merece a
difusão da doutrina da predestinação calvinista, acontecida no Puritanismo e através dele.
O Puritanismo tem uma postura muito positiva em relação à multiplicação do dinheiro e
gosta de palavras bíblicas como “Era Abraão muito rico; possuía gado, prata e ouro”
(Gênesis 13,2) e “O Senhor era com José, que veio a ser homem próspero” (Gênesis
39,2). Elas lhe confirmam a bênção de Deus. Transferida para toda a nação, a ideia da
predestinação se fez sentir no sentimento inglês de ser “o povo eleito” de Deus com a
missão de conquistar o mundo. Tal convicção transferiu-se, também via Puritanismo, para
os Estados Unidos da América do Norte.

O puritano sempre acentuou a necessidade de santificação da razão através do


ouvir a palavra de Deus. Foi por isso que a leitura diária da Bíblia passou a fazer parte da
vida de lares ingleses, mas também de indivíduos. Esse costume também explica a larga
difusão que obteve a obra do pobre John Bunyan (1628-1688): A progressão do peregrino
desta vida para a que há de vir. Fazendo uso da alegoria, o livro de Bunyan descreve a
vida de uma pessoa cheia de escrúpulos (Christian = cristão) que parte para uma viagem
em direção ao reino eterno da graça celestial, ao qual chega, afinal “no vale da sombra da
morte”. Três temas são tratados no livro: o despertamento da consciência, a experiência
da graça e a luta da fé. Os diversos estágios da viagem são narrados: é a viagem do
cristão que tem diante de si o alvo escatológico. Bunyan escreveu a maior parte de seu
livro na prisão. Nele expressa a confiança da pessoa cheia de fé. Também faz correções
à imagem que se tem do Puritanismo: o puritano Bunyan canta, faz música e dança.
Soldado no exército puritano, convertido por batistas, tornou-se um pregador ambulante e
criou um tipo de pregador até hoje fácil de encontrar nas esquinas e nas praças.

Mesmo fragmentado em muitos grupos e partidos, o Puritanismo foi sempre origem


de reavivamentos. Esses reavivamentos, aliás, são a base do moderno movimento
ecumênico. “Reavivados” de diversas denominações mantinham contato entre si e
rompiam as barreiras denominacionais. O mais antigo movimento surgido do puritanismo
dos congregacionais e batistas são os Quakers. Fundador desse grupo é George Fox, um
sapateiro místico. Fox rejeitava as confissões formuladas, usadas nas grandes
denominações: a ortodoxia não está nos credos. Também rejeitava os sacramentos. Não
se preocupava em reformar a Igreja. Aos 19 anos (1643), após experiências
desagradáveis com a embriaguez de dois puritanos, saiu da casa paterna no condado de
Leicester e peregrinou pela Escócia e pela Irlanda. Ali ocorreu sua conversão. Pregou,
teve ouvintes e aqueles que o ridicularizaram, foi perseguido e surrado. Quanto mais
apanhava, mais firme ficava em suas convicções. Desde 1648, passou a afirmar que fora
vocacionado para ser apóstolo e como tal foi aceito. Anunciava que a verdade não se
encontra em fórmulas eclesiais, em confissões e credos; a verdade não está em sermões,
em conferências. Tudo isso é traição das revelações do Espírito Santo. É ele que se torna
palavra no interior do ser humano. Fox lembra um pouco Thomas Müntzer. Ao pregar, se
deixava levar de tal maneira pelo entusiasmo que começava a tremer. Todo o seu corpo,
na verdade, tremia. Seus adversários apelidaram-no de quaker, quacre = tremedor. Ele
aceitou o apelido e deu-lhe um fundamento bíblico nas palavras de Paulo em Filipenses
2.12: “Desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor.” A partir de 1652, seu grupo
começou a tremer. Surgiram adeptos na Inglaterra, na Alemanha e até nas colônias
inglesas.

O grande impulsionador da missão quacre foi William Penn (1644-1718), filho de


um almirante inglês. Tornou-se quacre aos 12 anos. Se pai mandou encarcerá-lo para
demovê-lo da idéia. Após a morte do pai, herdou fortuna considerável. Com parte desse
dinheiro, 16 mil libras esterlinas, comprou da coroa inglesa área de terras entre
Connecticut e Maryland. Ai criou um estado democrático exemplar que recebeu o nome
de Pensilvânia e que teve como capital a cidade de Filadélfia, a cidade do amor fraterno.
Nesse estado, os princípios quacres foram concretizados. Penn estava convicto de que o
ser humano é bom por natureza e nisso espelha uma nova convicção que começa a
surgir em nível mundial. A luz divina que está no interior permite-lhe ouvir a voz de Deus.
Isso é humanismo cristão. Desse humanismo cristão, também vem de sua convicção de
que não podem existir classes sociais, de que todas as convicções religiosas devem ser
toleradas, inclusive os católicos (!), de que a escravidão deve ser eliminada, de que não
se deve prestar serviço militar. Há em Penn um profundo pacifismo altruísta. É desse tipo
de pensamento que brotou, no século 19, o livro que preparou nos Estados Unidos da
América do Norte o fim da escravidão: A Cabana do Pai Tomás. Sua autora, Harriet
Beecher-Stowe (1811-1896), era quacre. Em Londres, outra quacre, Elisabeth Fry, iniciou
em 1812 o trabalho cristão em presídios femininos. De sua atuação, brotaram incontáveis
obras diacônicas, tanto católicas quanto protestantes.

Culto era, para os quacres, silenciar diante de Deus, sem liturgia, sem cânticos,
esperando pelo chamado do Espírito Santo. É importante conhecermos as origens do
pensamento puritano. Ele molda e conforma o mundo evangélico que tem suas raízes na
Inglaterra, em oposição ao anglicanismo, penetra nos Estados Unidos e, a partir dali,
penetra na America Latina no século 19. Quem traz esse mundo evangélico para o Brasil
são missionários congregacionais e batistas, mas também presbiterianos e metodistas.
No século 20, suas idéias se farão presentes também na onda pentecostal aqui chegada,
acrescida das influências do mundo afro-americano. Buscar entender conceitos como
“protestante” e “evangélico” e saber diferenciá-los de acordo com sua origem histórica
permite leitura e compreensão mais aprofundada do fenômeno religioso cristão.

Nossa exposição no esforço de auxiliar na compreensão do mundo protestante-


evangélico em sua complexidade, contudo, não se encerra no século 17. É necessário
verificar que no século 18 se desenvolveram duas importantes correntes de pensamento
que foram acrescidas ao cristianismo, o Pietismo e a Ilustração. No século 19, após a
derrota dos exércitos napoleônicos, um espírito de Restauração e de Romantismo
idealizou a Reforma do século 16, reavivou expectativas do mundo evangélico de origem
inglesa e do Pietismo. O Liberalismo continuou presente, mas, ao lado, contando
especialmente na Europa com a presença de novo agente histórico sob a forma do
operariado, manifestaram-se o socialismo e o comunismo. O mundo protestante-
evangélico em parte adaptou-se em parte apôs-se, radicalmente, ao novo, preparando o
breve século 20 e as situações com as quais nos deparamos no século 21.

Pietismo e Ilustração devem ser considerados duas faces da mesma moeda,


cunhada para novo período da história do cristianismo no Ocidente. Nele, há numerosos
indicadores religiosos, políticos, sociais e intelectuais sinalizando um novo espírito. No
início do período pode ser situado um teólogo, Felipe Jacó Spener. Em seu final,
encontramos um filósofo: Imanuel Kant. Em 1675, Spener publicou um livreto: Desejos
Piedosos; em 1793, Kant publicou A Religião nos Limites da Razão Pura.

Ouso afirmar que Pietismo e Ilustração são irmãos, dos quais o Pietismo é o mais
velho. Surgiu no século 18 e ressurgiu de forma explosiva no século 19. Acentuou e
acelerou a individualização e a interiorização da vida religiosa, desenvolvendo novas
formas de piedade pessoal e de vida em sociedade. Também provocou mudanças na
teologia e na igreja. Não esteve restrito a um país ou a uma denominação. É, talvez, o
primeiro movimento transconfessional, perpassando todas as denominações.

No entanto, Pietismo e Ilustração devem ser compreendidos a partir do contexto de


seu nascedouro no século 17. Ao acentuar o individualismo e a espiritualização da fé, o
Pietismo procurou superar o Confessionalismo, por ele considerado estéril em
consequência das discussões escolásticas, das hierarquias, da frouxidão ética. O
Confessionalismo é o movimento que se seguiu às reformas religiosas do século 16.
Salvo raras exceções, engessou as principais descobertas dos reformadores,
promovendo acirradas discussões entre denominações. Por causa de seu extremo
dogmatismo, levou o Pietismo a acentuar a Teologia da Experiência contra a Teologia do
Saber. Lutou pela regeneração pessoal contra a preocupação com o dogma correto, que
levava a controvérsias nada edificantes. Por isso, os pietistas foram incansáveis em
afirmar o pecado pessoal, a conversão provocada pelo Espírito Santo e a manifestação
deste acontecimento em vida santificada. Houve períodos em que o acento na vida
santificada era um chamado por perfeição, pois se a relação íntima com Deus não
culminasse em santificação, a fé seria mera aparência. Tudo isso levou a que nos círculos
pietistas surgisse uma série de frases de efeito, nas quais se dizia que “vida é melhor que
doutrina”, “religião é questão de coração e não de cabeça”, “tornar-se, não ser”, etc.
Acentuava-se também a internalização da fé contra a exteriorização representada por pia
batismal, púlpito, confessionário e altar. Ao acentuarem aspectos da reforma radical do
século 16, os pietistas entendiam-se como uma continuação da Reforma. Para eles, a
doutrina fora reformada. Importava, agora, reformar a vida.

Para os pietistas, o ideal de perfeição dever-se-ia manifestar em renovação


espiritual e ética. Ambos estão centrados no indivíduo. Em razão desse acento, houve
alteração na concepção de igreja no Pietismo. Os reformadores do século 16 haviam
acentuado o lado “objetivo” da igreja: Palavra e Sacramentos. Neles se tem a verdadeira
igreja. O Pietismo acentuou o lado “subjetivo” da Igreja: a congregação, a comunidade,
entendida como somatório de indivíduos. Com isso, foi estimulada a tendência ao
separatismo e à formação de conventículos, designados de igrejinhas na Igreja. Como a
Igreja centrada em Palavra e Sacramentos estava ligada ao Estado, muitas vezes surgiu
entre pietistas o acento radical na separação entre Igreja e Estado. O acento na
renovação ética gerou uma série de iniciativas para a renovação da sociedade. Como,
porém, o Pietismo acentuava a necessidade de renovação do indivíduo, a tônica sempre
foi a de que a renovação da sociedade depende da renovação do indivíduo. Com isso, as
propostas de reforma social jamais foram além de obras de caridade, individuais ou na
forma de livres associações. Finalmente, ao criticar o que chamava de formalismo da
Ortodoxia, o Pietismo acentuou a recepção do Espírito Santo e a experiência religiosa.
Com o tempo, porém, viu-se confrontado com a pergunta: Como separar o Espírito de
outros “espíritos”? Felipe Jacó Spener já propusera o uso da razão para tal. Foi o que o
Pietismo acabou fazendo. Com isso, encontramos no Pietismo as raízes do incipiente
Racionalismo. Isso evidencia que o ilustrado/ilustre, aquele que usa a razão, não precisa
deixar de ser pietista; nenhum pietista precisa renunciar à Ilustração. Foi, por isso, que o
Pietismo acentuou a educação e, em consequência, não foi por acaso que importantes
figuras da Modernidade se originaram no Pietismo. Basta citarmos nomes como Lessing,
Kant, Schiller, Goethe, Fichte e Schleiermacher.

Antes de nos voltarmos à Ilustração de forma mais detalhada, seja observado que
o que descrevemos como Pietismo não é propriedade de protestantes/evangélicos. O
mesmo sentimento e o mesmo movimento estão também presentes no mundo católico-
romano, basta lembrar a piedade que encontramos no culto ao sagrado Coração de
Jesus.

A Ilustração funcionou como eco e acentuação de muitas das ênfases pietistas:


orientação para o futuro, cristianismo não-dogmático, centralidade da experiência
humana, leitura histórica da Bíblia. Foi contra o uso da Bíblia como espécie de florilégio,
do qual os ortodoxos retiravam comprovações para suas afirmações dogmáticas, que os
pietistas acentuaram a necessidade do estudo dos textos bíblicos a partir de seu contexto
histórico e a necessidade de se fazer estudos filológicos. Com isso, passaram também a
fazer crítica textual. São, por isso, os fundadores do método histórico-crítico e da moderna
ciência histórica. Todos os grandes exegetas dos séculos 19 e 20 têm suas raízes no
Pietismo. Isso também vale para Rudolf Bultmann. Mas não foi apenas o Pietismo o pai
da Ilustração. Houve outros fatores históricos fundamentais para seu surgimento. As
cidades mercantis enriquecidas passaram a ter consciência de sua importância e
começaram a se valer de critérios racionais e não-religiosos em sua economia. O acento
na experiência prática possibilitou o avanço da ciência e da tecnologia e do uso racional
dos recursos da natureza. A reflexão pragmática e racional também se fez presente na
análise da sociedade, política, direito e nas constituições dos países.

Não se olhava mais para o passado com seus modelos clássicos, mas para o
futuro da humanidade. O ser humano seria capaz de tudo, bastava investir na educação.
Lessing (1729-1781), Rousseau (1712-1778) e Pestalozzi (1746-1827) são exemplos
desse acento. Com pietistas, fundaram-se centros de formação de professores, as
escolas normais. Foram, no entanto, as experiências feitas na guerra de emancipação
contra a Espanha que fizeram da Holanda chão propício para a gestação do primeiro
sistema filosófico moderno. Foi aí que haviam aportado os dissidentes religiosos do
século 16, foi aí que aportaram os intelectuais refugiados de toda a Europa, fazendo dela
a primeira pátria da Ilustração. Ali, o francês René Descartes (1596-1650), discípulo de
jesuítas, colocou a dúvida radical como princípio do conhecimento e do
autoconhecimento: Penso, logo sou. A filosofia deixava de ser “serva da Teologia” para se
tornar uma ciência autônoma, fundamentada em observações empíricas e em princípios
racionais. Será por acaso que após Descartes os grandes nomes da filosofia são
protestantes ou judeus?

Na Inglaterra, as discussões teológicas e confessionais levaram a que se pensasse


que a razão fosse mais importante do que disputas religiosas. Daí resultou o deísmo com
proposições que buscaram um fundamento sólido para a religião, de modo que qualquer
pessoa a pudesse aceitar e a partir dela viver. A proposta era simples: 1. Existe um Deus;
2. Deus deve ser servido; 3. Tal serviço acontece por meio de virtude e piedade e não
através do rito; 4. Deve-se deixar o erro de lado e fazer o bem; 5. Deve-se esperar
recompensa divina aqui e no além. Ela também podia resumir-se a algumas palavras: 1.
Deus; 2. liberdade moral; 3. imortalidade. Ou com John Locke (1632-1704) podia-se
afirmar que o cristianismo se baseia em tolerância, virtude e moralidade. Quando os
teólogos aplicaram os princípios deístas a seus sermões, estes passaram a ser meros
discursos morais: “A pessoa virtuosa se levanta cedo; por isso, as mulheres foram cedo
ao sepulcro de Jesus, na manhã da Páscoa. Levantemo-nos cedo, sejamos virtuosos!”

Na tentativa de harmonizar razão e revelação, os deístas reduziram o cristianismo


ao que consideravam ser nele o essencial. Houve um reducionismo que, contudo,
julgavam necessário em razão da crescente diversidade e pluralidade do cristão. Para
eles, as verdades da fé jamais podem se opor à razão. Foi, por isso, que leram
criticamente a Bíblia, vendo nela uma fonte para o estudo da história e da moralidade da
Antiguidade. A Bíblia deixava de ser vista como testemunho a respeito da revelação na
História. Submetidos à razão, milagres, ressurreição, Trindade foram inacessíveis para
ela e, em decorrência, considerados inautênticos.

A crítica mais contundente à religião, mas também à glorificação da razão foi feita
por David Hume (1711-1776). Em seus escritos, atacou os argumentos deístas que
buscavam comprovar que o cristianismo era racional. Se para os deístas a fé cristã era
racional em função dos milagres, da harmonia da natureza e do senso comum da
humanidade, Hume fez uma crítica radical a essa argumentação. Milagre e harmonia da
natureza se excluem. Além do mais, não há evidência histórica para o “senso comum” da
humanidade. Milagres são contrários à experiência humana. Além disso, a experiência
humana é de que há falsos testemunhos a respeito de milagres. Para Hume, o
conhecimento vem da experiência empírica. As verdades metafísicas e teológicas não
são lógicas nem derivadas, nem passíveis de teste na experiência empírica. Também o
argumento do senso comum não é aceitável: os deuses primitivos nada mais são do que
uma crassa revelação antropomórfica; sua atuação cheia de falsidades e truques e sua
falsa moral nada refletem de senso comum.

A crítica derradeira à religião, feita por Hume, foi fatal: a religião só desvia a atenção
do ser humano do que realmente acontece na vida. Sua preocupação com salvação é
estreita e egoísta. Só leva a debates e provoca rancores e perseguições. A religião não
tem qualquer base ou fundamento. Ela se baseia na fé, e fé nada é.

Na França, onde a Igreja esteve profundamente ligada ao antigo regime, foi


profunda a inimizade entre religião e ilustrados. François-Marie Voltaire (1694-1778) foi
um dos pioneiros na luta pela liberdade de opinião, por tolerância e por direitos humanos.
Para Voltaire, Deus é um pressuposto importante para a preservação da moral, dos bons
costumes e ajuda a prevenir a anarquia. Foi, por isso, que escreveu: “Se Deus não
existisse, seria necessário inventá-lo”. Com essa frase voltava-se contra a nova geração
de pensadores franceses que negava a existência de Deus.

Denis Diderot (1713-1784) e Jean d’Alembert (1717-1783) editaram, no século XVIII,


35 volumes da Encyclopaedia, obra maior do racionalismo francês. Na Encyclopaedia
está presente todo o fascínio relativo ao progresso das ciências naturais: O progresso das
ciências naturais e o crescente controle sobre a natureza trarão, no futuro, a eliminação
das desigualdades entre as nações, a igualdade dos povos e a perfeição da humanidade.
Esse otimismo se expressa em duas obras de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778).
Segundo ele, a pessoa é boa ao nascer, mas a sociedade, a cultura, o Estado e a religião
a pervertem. No Contrato Social, apresentou, por isso, um ideal: o Estado, baseado na
ordem natural de uma democracia, a cujo serviço está a religião civil. No Émile,
apresentou o ideal de uma educação elementar racional de acordo com a natureza.

Na Alemanha a Ilustração tem que ser tratada à parte do restante da Europa. Na


Alemanha, a relação entre revelação e razão não está prenhe de tensões e de oposições
como no restante da Europa. Antes, pode-se falar aqui de uma relação complementar.
Pode-se também dizer que a ilustração alemã não teve aquela animosidade crítica em
relação à Igreja, que podemos encontrar em outras regiões. Há razões históricas e
teológicas para a peculiaridade alemã. Na base das razões históricas está a Guerra dos
Trinta Anos. Essa guerra impediu o desenvolvimento dos territórios alemães, se
comparado ao do restante da Europa. A divisão política, cultural e religiosa da região fez
com que a ilustração alemã se desenvolvesse, basicamente, em territórios protestantes,
em suas universidades e nas cortes. Quase todos os principais representantes da
ilustração alemã, em consequência, são professores universitários e grupos dirigentes do
absolutismo esclarecido. Além disso, Pietismo e Ilustração surgiram quase que
simultaneamente nos territórios alemães. Os ataques do Pietismo à Ortodoxia prepararam
o caminho para as sugestões práticas de reforma que seriam feitas pela Ilustração.

Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) é um exemplo para o que vínhamos dizendo.


Ele buscou comprovar a compatibilidade entre fé e razão, entre razão e revelação, entre
Filosofia e Teologia, entre corpo e alma. Estes pares devem ser vistos em harmoniosa
conexão. Para que haja esta harmonia, é, porém, necessário que se distinga entre
verdades eternas e verdades atuais. Das primeiras verdades fazem parte a geometria, a
sabedoria, a bondade e o poder de Deus. Nelas não há contradição entre revelação e
razão, pois para a razão essas verdades são conceitualmente necessárias. Mesmo que,
dessa maneira, a revelação seja subordinada à razão e a Teologia à Filosofia, há uma
ordem maior que pode irromper através das leis da natureza.

Leibniz também se aventurou no campo da Teodicéia, que trata de justificar Deus


face ao mal que há no mundo, buscando tornar a questão da Teodicéia plausível através
da tese de que este nosso mundo é “o melhor de todos os mundos possíveis”. O mal está
baseado no fato de o ser finito ser restrito. Contudo, a razão reconhece o bem e o divino
como estruturas essenciais do mundo. Vemos, nessas formulações, que Leibniz tem uma
visão otimista do mundo: pecado é apenas o bem imperfeito.

Teólogos que acompanharam a reflexão de Leibniz buscaram apresentar um


cristianismo não-dogmático, mas ético. Aqueles que atuavam no ministério da pregação
buscavam apresentar uma interpretação sócio-ética do cristianismo. Jesus passou a ser o
grande mestre da sabedoria e da virtude, um precursor da Ilustração que quebrou as
cadeias do erro. Cuide-se: do erro, não do pecado!

Mas a ilustração alemã não ficou só nisso. Houve também colocações críticas em
relação à Igreja. A principal delas veio de Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781), que
publicou os Fragmentos Anônimos, também conhecidos como Fragmentos de
Wollfenbüttel. Esses Fragmentos são da autoria de Samuel Reimarus (l694-1768),
partidário do deísmo inglês e leitor crítico da Bíblia. Em seus textos, Reimarus faz
observações críticas a respeito da autoria dos escritos bíblicos, aponta para contradições
existentes nos evangelhos e levanta a tese de uma origem fraudulenta do cristianismo.
Esse teria sua origem em uma grande fraude dos discípulos. Quando falira o
messianismo político de Jesus, os discípulos fabricaram a ressurreição para sobreviver a
seu desapontamento e para serem aceitos pelo mundo. Quando publicou os Fragmentos,
Lessing pensou que estava desencadeando uma discussão construtiva acerca da
essência do cristianismo. O que aconteceu foram ataques sem fim contra Lessing. Em
seu decurso, a Ortodoxia foi ridicularizada. Em contrapartida, a Teologia teve que
desenvolver o método histórico-crítico de leitura dos textos bíblicos, depois eficazmente
aplicado a todos os textos históricos.

Na ilustração alemã, mais e mais, o cristianismo foi reduzido à moralidade. Tal


redução atingiu seu auge em Immanuel Kant (1724-1804). Suas origens estão no
Pietismo. Com o apoio de seu pastor, em Königsberg (hoje: Kaliningrado/Rússia), Kant
ingressou aos 8 anos em uma escola pietista. Nesta escola, descobriu e viu-se
confrontado com o aspecto mais negativo do Pietismo: legalismo e hipocrisia. A partir das
experiências feitas na escola pietista deve ser entendida sua aversão à emoção religiosa
e seu distanciamento de oração, cântico sacro e cultos religiosos. Seus estudos
teológicos foram mínimos. Kant não tinha grande interesse na leitura de teólogos
contemporâneos. Sua principal obra teológica foi escrita aos setenta anos: A Religião
Dentro dos Limites da Simples Razão. Para escrevê-la, valeu-se de seu velho catecismo.
Ele lhe deu as lembranças de cristianismo, com as quais então discutiu.

Kant lutou por autonomia, uma autonomia que é obediência à lei interna da razão.
Isso fez dele o campeão da crítica. Tudo deve ser submetido à crítica: “Ousa ser sábio!”
Toda a forma de heteronomia e de teonomia, imposta por pais, sociedade, Igreja ou Deus,
tem que ser criticada, submetida à crítica. Inclusive a razão deve ser submetida à crítica,
para que possa ter certeza de si mesma.

O filósofo de Königsberg não negou a existência de Deus, mas afirmou que não há
argumentos teóricos que possam provar sua existência. Deus não pode ser conhecido
pela razão. Na Crítica da Razão Pura disse, por isso, que para se poder crer, ter fé, é
necessário colocar o conhecimento de lado. A fé racional de Kant baseia-se na “razão
prática”, na moralidade.

Em Kant, a religião é um sistema moral, baseado na máxima: “Eu devo; por isso,
posso”. O ser humano não pode ser responsabilizado enquanto não for considerado
capaz de fazer algo na situação em que se encontra. Qualquer pessoa sensível pode
verificar a verdade do imperativo categórico (“Eu devo; por isso posso”) e praticá-lo. Tudo
é dever. Também a fé e o dever fazem o bem. Para fazer o bem, para exercer
moralidade, não se necessita de igreja. A fé eclesiástica não acompanha a razão pura.

Ao limitar o cristianismo à moralidade, Kant pôs fim aos princípios básicos da


Reforma do século XVI: somente Cristo, somente a fé, somente a graça, somente a
Escritura. Se para os reformadores as boas obras brotam da graça, Kant começa com as
boas obras. Todos os temas teológicos são lidos a partir delas: Jesus Cristo não é um
redentor, mas um arquétipo moral de vida divina, que deve ser imitado pelas pessoas.
Deus não desce ao ser humano; o ser humano deve subir em direção a Deus. O ser
humano é autônomo, e essa autonomia é destruída por aquilo que na fé cristã se
denomina de graça. Se Deus perdoa, a humanidade não é livre. Kant alia-se a Pelágio, a
Erasmo e a Armínio. Mas Kant não conseguiu resolver um problema: o que fazer com o
“mal radical”? Em sua radicalidade, o mal é irracional. O que fazer nesse caso com a
razão somente, a razão pura? O próprio Kant complica sua visão otimista do ser humano
ao não resolver o problema do “mal radical”. Na sequência, houve aqueles que dialogam
com os ilustrados, outros se fecharam a eles. Essas duas posturas marcaram o século 19
e tiveram profundas consequências para a compreensão do mundo
protestante/evangélico.
Tanto na História quanto na Teologia, designa-se o século 19 como o “século longo”,
deixando-o iniciar com a Revolução Francesa, em 1789, e concluir com o início da
Primeira Guerra Mundial, em 1914. Nestas duas datas encontram-se assinalados dois
acontecimentos que marcaram a cultura do Ocidente e as igrejas cristãs. Elas são
acompanhadas na História da Igreja e da Teologia pela publicação de duas obras de dois
teólogos protestantes. Em 1799, Friedrich Daniel Schleiermacher publicou Sobre a
Religião: discursos dirigidos a seus cultos depreciadores. Nesses discursos temos a
afirmação romântica do liberalismo. Em 1919, Karl Barth publicou seu Comentário aos
Romanos, rejeitando o liberalismo.

Se observarmos a História da Teologia, temos que afirmar que o século 19 é


formado por uma série de movimentos teológicos defensivos, apologéticos e reacionários.
A Ilustração e o incremento das ciências naturais formularam uma série de questões que
tiveram que ser respondidas pelos que se ocupavam com a revelação de Deus em Jesus
de Nazaré. Tanto a Revolução Francesa quanto a Revolução Industrial formularam
relevantes questões quanto à importância da igreja para a sociedade e para a cultura.
Schleiermacher cristalizou-as nas perguntas: Será que o cristianismo será doravante
associado ao obscurantismo? Será que o estudo das ciências naturais será identificado
com descrença? Ser cristão significará sacrificar o intelecto?

Ludwig Feuerbach, um filósofo alemão, mostrou a problemática na qual a Teologia


se encontrava quando afirmou que a “rainha das ciências” estava despida, sem roupas,
pois Teologia nada mais é do que Antropologia. As coisas se complicaram ainda mais
quando um discípulo radical de Hegel, David Friedrich Strauss, descreveu o Deus-homem
como um mito. Com isso, a imagem histórica que a fé fazia de Jesus parecia ruir ante a
análise histórico-crítica. Karl Marx disse que este mito nada tinha de bom, pois era ópio
que anestesiava a mente do povo.

A Igreja ocidental, dividida, grosso modo, em católicos romanos e protestantes, e


que ressurgira na Idade Média após os ataques dos bárbaros, voltava a se confrontar com
a mesma barbárie. As respostas à “barbárie” foram distintas. Enquanto o catolicismo
romano trancava todas as portas e janelas aos ataques da modernidade, o
protestantismo, mesmo que não de todo imune a essa tentação, encontrou em seu meio
pessoas dispostas a partirem para a ofensiva e dialogarem com os bárbaros. O papado
apostou no antimodernismo e no ultramontanismo, procurando expulsar de seu meio o
mundo moderno, já que não podia destruí-lo. No mundo protestante, desenvolveu-se uma
teologia apologética preocupada com a essência do cristianismo e que procurava
demonstrar que o cristianismo, em sua essência, não é contrário ao mundo moderno, mas
contribuiu com o melhor que tinha para formá-lo. No campo social, católicos e
protestantes deram o melhor de si através de associações que se ocupavam com os que
ficavam à margem do processo modernizador, tentando diminuir o crescente fosso entre
Igreja e massas.

A Revolução Francesa provocou mudanças muito profundas. Em razão delas, os


anos ao redor de 1800 foram um ponto vertical na história da humanidade. Neles,
aconteceram a queda e o fim do Estado absolutista. Surgiu a República, que transferiu o
poder da aristocracia para a burguesia, mas também despertou as massas. A Revolução
Francesa não permitiu mais que se erradicassem o conceito e o sentimento da soberania
das massas, da democracia. Os conceitos de liberdade, igualdade e fraternidade
espalharam-se por toda a Europa e também se transferiram para as Américas.

Da Revolução Francesa brotou o fenômeno do nacionalismo. Povos dedicaram-se e


devotaram-se a uma luta de vida e morte por suas pátrias. A reestruturação da Europa
revolucionária, mas também da América Latina emancipada foi acompanhada por uma
profunda transformação econômica e social. O desenvolvimento da técnica e a
industrialização modificaram profundamente a vida dos povos nas cidades e nos campos.
Técnica e industrialização foram acompanhadas pelo crescimento do proletariado e da
explosão urbana. Surgiram problemas antes não existentes. Além disso, formou-se uma
coletividade de massas, que, através do movimento socialista, buscou poder político e
participação nas decisões do mundo urbano. Em meados do século 19, o movimento
operário recebeu orientação de Karl Marx e Friedrich Engels com literatura e panfletos
próprios.

Nos meios intelectuais, a Revolução Francesa foi recebida com uma gratidão
entusiasmada ou rejeitada por causa do sofrimento que causava: idéias que tinham suas
raízes na Idade Média, no Renascimento e na Ilustração puderam ser concretizadas, mas
o avanço da Revolução com a ditadura sanguinária e a subjugação violenta das
populações européias à França levaram a reações contrárias a ela e levantaram o clamor
por uma restauração das condições anteriores à Revolução. Assim, todo o século 19 está
entre revolução e restauração. Todo ele está amarrado ao que foi desencadeado pela
Revolução Francesa. Essa Revolução Francesa e tudo o que decorreu dela afetaram
profundamente a existência das igrejas. Acelerou-se o processo de dissolução do poder
das igrejas: o secularismo adonou-se da classe média alta, criando a saturação específica
na qual a Igreja se encontra nos tempos contemporâneos. Por outro lado, a
industrialização e a consequente degradação das condições de vida trouxeram desafios
para as igrejas, às quais elas só souberam responder de forma inadequada. Elas não
souberam responder à alienação urbana.

Essa situação espelhou-se na vida das igrejas e forneceu a temática de suas


preocupações. Durante o longo século 19, Igreja e Estado ficaram discutindo sobre
escolas, matrimônio, moral pública, nacionalismo e ciência. É importante considerar que o
nacionalismo e o secularismo não pretenderam exterminar a Igreja, mas adequá-la à
razão do Estado e estabelecer a razão sobre a revelação em prol do bem comum da
sociedade. Os líderes da Restauração enfatizaram a autoridade da Igreja, como garantia
da tradição e da legitimidade, mas fizeram-no por razão de estado e não permitiram à
igreja que expressasse opiniões políticas. Guilherme II da Prússia não foi o único a
expressar que os pastores devem atender as almas dos crentes e praticar a caridade,
mas deixar a política de lado, pois ela não lhes diz respeito. Frases semelhantes
continuam a ser expressas por líderes de Estado e de igrejas no século 21.

Com a Revolução Francesa surgiu uma nova percepção de História. As antigas


concepções mecanicistas foram deixadas de lado na leitura da humanidade e da
sociedade. Revolução foi identificada com evolução. Formulou-se a convicção de que a
vida humana, individual ou social, só pode ser compreendida no contexto do
desenvolvimento histórico. Esta convicção recebeu o nome de historicismo. O historicismo
é a mais original das contribuições do século XIX para a secularização e é marca
registrada de nosso conceito atual de cultura. Em decorrência, a Igreja passou a ser
considerada um fenômeno da História da Cultura – e não mais uma mediadora da
revelação.

A nova leitura da História com o advento do historicismo levou a uma cosmovisão


que via os fatos a partir de seu desenvolvimento, propiciando o surgimento dos
fenômenos modernos do Relativismo e do Niilismo. Se no século 17 se discutia a relação
entre fé e razão, no século 19 passou-se a discutir a relação entre fé e História.

Profundamente ligada ao antigo regime, a igreja também experimentou o fim do


absolutismo. Dissolveu-se a profunda ligação entre igreja e Estado. Após a queda de
Napoleão, contudo, houve a necessidade de reorganizar a Europa. Esta reorganização
esteve sobre a influência do que se designou de Romantismo. O Romantismo foi a
idealização do passado, utilizado como referência para a reconstrução do mundo. Nas
regiões em que dominava o catolicismo, idealizou-se a Idade Média, vista como o período
em que o mundo era governado pela igreja (Papa). Aí imperavam ordem e moralidade.
Caso o mundo voltar a seguir o Papa, sairemos do caos. Karl Ludwig von Haller (1768-
1854), convertido ao catolicismo, formulou a ideologia restauracionista para os regimes
contra-revolucionários. A partir dos seis volumes de Restauração da Ciência Política
(1816-1826), os conservadores partiam do pressuposto de que apenas a igreja católica,
com o apoio da autoridade política, seria capaz de manter a integridade da sociedade.

No período da Restauração, o catolicismo experimentou uma renovação análoga à


do reavivamento protestante. Formava-se novamente uma cultura cristã uniforme.
Novalis, apelido de Friedrich von Hardenberg (1772-1801), descreveu a utopia dos anos
de ouro do mundo medieval na obra Cristianismo ou Europa. Essa renovação da
consciência católica estava convicta de que somente um papado fortalecido poderia
renovar a Igreja Católica e, consequentemente, a civilização ocidental. No lado
protestante/evangélico surgiu convicção semelhante. No entanto, o paradigma não foi
buscado na Idade Média, mas na Reforma do século 16 e no Pietismo. Como o foco de
nossa exposição está nos protestantes/evangélicos, seja aqui apenas apontado para o
fato de que o comportamento da Igreja Católica frente aos grandes desafios do século 19
não foi muito diferente do mundo evangélico. Houve renovação da piedade medieval e
organização da piedade das massas: devoção eucarística, devoção ao sagrado coração e
devoção mariana. Houve profunda luta contra o liberalismo e o nacionalismo. Em 1864,
um Syllabus de Erros condenou racionalismo, indiferentismo, socialismo, comunismo,
sociedades bíblicas, independência do Estado em questões culturais e educacionais. No
Syllabus, o catolicismo ultramontano, identificado e comprometido com a Restauração,
rejeitou a sociedade moderna, a separação de Igreja e Estado, a liberdade religiosa, a
educação pública sem controle eclesial e proclamou a autoridade da hierarquia católica
para regulamentar a coisa pública. Toda a legislação concernente a matrimônio civil e
divórcio não seria aceita até que estivesse de acordo com o direito canônico.

Todo esse desenvolvimento teve seu desfecho no Concílio Vaticano I, 1869-1870.


Este concílio definiu o episcopado universal do papado e a infalibilidade do papa. Com
essas palavras está expresso o poder jurisdicional do papa sobre toda a igreja. O papa é
infalível em questões doutrinais, quando fala ex cathedra, no exercício de sua função
magisterial referente à fé e à moral. A decisão infalível do papa é válida para todo o
mundo e tem sua base legal no poder decisório do papa, não no consentimento da igreja.
Assim, o catolicismo romano transformou-se em monarquia absoluta, sem restrição
constitucional. Sua voz em favor dos operários viria cinquenta anos após o Manifesto
Comunista de Marx e de Engels. Os esforços feitos no sentido de um maior diálogo com o
mundo moderno foram condenados como “modernismo” e todos os teólogos católicos
tiveram que prestar o juramento antimodernista de 1910, e que só foi revogado em 1967.
“Modernismo” eram as mais variadas idéias e teorias científicas, como a teoria da
evolução e os avanços nos estudos relativos à Bíblia e apoiados na crítica textual.

Novos impulsos na reflexão teológica do mundo protestante/evangélico, após a


hecatombe que fora a Revolução Francesa encontramos na figura de Friedrich Daniel
Ernst Schleiermacher (1768-1834). Schleiermacher descendia de teólogos reformados,
calvinistas. Seu pai fora capelão no exército da Prússia, mas esteve fortemente
influenciado pelo pensamento pietista. Do Pietismo, Schleiermacher recebeu a percepção
da riqueza da individualidade religiosa e da comunitariedade da fé. Schleiermacher
tornou-se pastor e professor universitário. Suas obras teológicas vão da obra-prima
apologética Sobre a religião: aos cultos dentre seus desdenhadores (1799) até a
dogmática A fé cristã (1821-1822). Schleiermacher levou a sério as críticas que a
Ilustração dirigiu à religião de um modo geral e ao cristianismo em particular. Para ele, a
fé deixa de viver quando busca proteger-se na defensiva e no isolamento.

Nos dias de Schleiermacher, a Ilustração e seu Idealismo acentuavam a liberdade e


a autonomia do ser humano. Aliando-se aos cientistas naturais, os filósofos devotaram-se
à experiência empírica e reduziram o discurso sobre o supranatural a um discurso sobre o
natural. Falar de Deus e da revelação era descrever as capacidades humanas.
Schleiermacher enfrentou essas formulações e tendências. Assim como seus
contemporâneos, também partiu da experiência empírica. No entanto, ao invés de
acentuar a liberdade, falou acerca da dependência humana. A experiência de Deus não
depende de qualquer abstração intelectual ou de alguma compulsão ou de piedade, de
crença em coisas incríveis. Ela se orienta pela experiência de dependência do próprio ser
humano. Daí também a definição que Schleiermacher dá sobre a fé: Fé é a consciência
de ser absolutamente dependente ou, o que é a mesma coisa, de estar em relação com
Deus. A fé cristã não consiste da crença em determinadas doutrinas, de viver de
determinada maneira ou de ter experiências que aqueçam o coração, mas, antes de viver
em relação com Deus. Esta relação está centrada em Jesus de Nazaré, o redentor, que
não é objeto da fé, mas mediador da fé que se concretiza no discipulado dos crentes: a
igreja.

Se em Schleiermacher temos uma figura isolada dando novos impulsos à reflexão


teológica, naquilo que se chama de Reavivamento temos um movimento de grande
significado. Na realidade, é um movimento religioso transconfessional, que teve início na
Inglaterra e nos Estados Unidos. Nos primórdios do século 19, o Reavivamento era
Awakening, Erweckung, Réveil.

Os principais impulsos para o surgimento do Reavivamento parecem provir do antigo


movimento pietista. No entanto, foi um movimento pluriforme e multifacetado. Essa
pluriformidade teve, porém, aspectos comuns: oposição à Ilustração e à religião da razão;
a pecaminosidade do ser humano diante de Deus; o despertar para uma nova vida pela
graça de Cristo somente; experiência pessoal de novo nascimento, com o fim de
reestruturação da sociedade (da soma dos convertidos surge uma nova sociedade);
crescente atividade social e esforços missionários para a expansão da fé cristã. Produto
concomitante do movimento foi a apropriação da Bíblia pelo povo cristão e, daí
decorrente, a formação de associações livres para atividades comuns. Assim, o
Reavivamento também rompeu os muros das denominações.

Na Inglaterra, o Reavivamento alcançou seu auge no Metodismo. Seu impacto foi


tão grande que, por muito tempo, se afirmou que o movimento metodista teria sido a
última grande forma de a Igreja emergir na história do cristianismo. O pai do metodismo é
o reverendo anglicano John Wesley (1703-1791), mas a seu lado ainda devem ser
mencionados George Whitefield (1714-1770) e Charles Wesley (1707-1788). Em 1729, os
irmãos Wesley fundaram uma associação de estudantes em Oxford. Sua vida piedosa,
que se orientava por regras claras, e a ênfase que davam à santificação renderam-lhes o
gracejo de serem “metodistas”.

John Wesley pôde fixar a data de 27 de maio de 1738, às 20h45min, como o


momento de sua conversão. Esta foi consequência de pregação moraviana e da leitura do
prefácio do comentário de Lutero aos Romanos. A experiência de conversão de Wesley
tornou-se modelar para a pregação do Reavivamento e encontrou em seu irmão Charles
e em Whitefield seus principais pregadores, atingindo a Inglaterra, a Escócia e a Irlanda.
Nessa pregação havia o chamado a um discipulado pessoal de Jesus Cristo,
consequência de conversão, de dependência e de experiência da graça. Pessoas assim
atingidas e com tal experiência formavam comunidades. Característico do metodismo é o
ministério do pregador leigo. Dele vieram impulsos para a política social inglesa. Tendo
sido, por muito tempo, um movimento no seio da Igreja Anglicana, o metodismo se
separou dela após a morte de Wesley.

No entanto, não podemos dizer que nada restou do movimento do Reavivamento na


Igreja Anglicana. Nela existe, em consequência do movimento, a Low Church (“Igreja
Baixa”), que se diferencia da High Church (“Igreja Alta”). Da Low Church vieram
importantes impulsos para a abolição da escravidão.

Em oposição ao Reavivamento, mas também como resposta ao declínio na vida da


Igreja, como reação ao liberalismo teológico e como decorrência do Romantismo e de sua
redescoberta do mundo medieval, surgiu o Movimento de Oxford (1833-1845). Este
movimento defendeu a Igreja da Inglaterra como instituição divina, batalhou pela
sucessão apostólica e pelo Livro de Oração Comum como regra de fé. Um dos principais
líderes do Movimento de Oxford, John Henry Newmann (1801-1890), converteu-se ao
catolicismo romano e foi feito cardeal em 1879, por Leão XIII. Seus escritos exerceram
influência no Anglicanismo e no Catolicismo e formaram uma ponte significativa para o
diálogo ecumênico.

Para entender as correntes da teologia protestante do século 19, é necessário


perceber que a mesma é filha da Ilustração, dos impulsos de Schleiermacher e do
Reavivamento. Um filósofo, porém, jamais deve ser esquecido. Sem ele não podemos
entender a evolução do pensamento teológico, mas também seus descaminhos: Georg
Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831).

O que se destaca em Hegel é sua compreensibilidade e sua profundidade. Ele faz


parte do Idealismo. Em seu pensamento temos a culminância de uma era que tinha
suprema confiança no pensamento racional do ser humano. Hegel montou um sistema
filosófico do qual pensava que se poderia compreender com ele toda a realidade. Sendo
assim, procurou transcender não só os interesses analíticos da Ilustração, mas a própria
realidade. Segundo ele, a divisão da realidade em partes nos possibilita um conhecimento
válido, mas não atinge o todo. Podemos dissecar um animal, vamos entender suas
partes, mas não vemos mais o animal. A verdade não está em particularidades, mas no
todo. Daí também a lapidar sentença de Hegel: Die Wahrheit ist das Ganze (A verdade é
o todo). Hegel rejeitou, então, a lógica aristotélica, segundo a qual “A” não é “não-A”, e
atestou a natureza dialética da realidade, na qual tudo é visto em seu oposto: tese,
antítese e síntese. A síntese transforma-se em nova tese, à qual se apresenta uma
antítese, que é transcendida em nova síntese, e assim por diante. A realidade é um
processo histórico, no qual o Absoluto (os teólogos diriam “Deus”) chega a sua auto-
realização em nossa razão (que não precisa ser necessariamente a nossa, mas a de
Hegel!). A história é vista como um processo dialético, uma evolução até o seu
cumprimento. Quem entra no trem da história participa de seu alvo.

A história é inteligível, racional. Por isso, Hegel escreveu no prefácio à Filosofia do


Direito: Tudo o que é real é racional e tudo o que é racional é real. Essa sentença não é
muito confortável para quem sofre as antíteses da história, mas, segundo Hegel, a vida
tem que “sofrer feridas” para ser reconciliada com sua unidade. O ardil da razão provoca
sofrimentos e inversões em seu nome. Oculta-se e revela-se em suas formas empíricas
imanentes, para que o Espírito possa chegar à auto-realização por meio do processo de
alienação e de reconciliação. O desafio posto aos teólogos foi a aplicação desse sistema
ao problema da teodicéia e da superação do abismo existente entre razão e revelação.

As influências de Hegel foram múltiplas. Um de seus alunos virou-o de cabeça para


baixo, afirmando que o lugar de se falar de realidade não é o Idealismo, mas o
Materialismo. Foi por isso que Ludwig Feuerbach (1804-1872) pôde afirmar: O ser
humano é o que come. Karl Marx (1818-1883), Friedrich Engels (1820-1895) e Wladimir
Iljitsch Uljanow Lenin (1870-1924) desdobraram as concepções de Hegel no materialismo
dialético e aplicaram-no à sociedade e à política, afirmando que nosso objetivo não é
entender a história, mas transformá-la. David Friedrich Strauss (1808-1874) aplicou a
lógica de Hegel ao estudo histórico de Jesus de Nazaré e chegou à conclusão de que
este é um mito. Sören Kierkegaard (1813-1855) rejeitou todo o sistema de Hegel por amor
ao indivíduo solitário que se confronta com o Outro, Deus, infinita e qualitativamente
diferente. O grito de Kierkegaard só foi ouvido no século 20.

Feuerbach e Strauss, porém, provocaram furor entre os teólogos de seus dias.


Feuerbach influenciou Marx, Nietzsche, Freud e Buber, acusou a Teologia de haver
matado Deus e de haver divinizado a humanidade. Por isso, interpretou o cristianismo
como uma projeção dos temores e dos desejos humanos. Ao escrever, em 1841, A
essência do Cristianismo, Feuerbach afirmou que Deus nada mais é do que a projeção da
personalidade do ser humano e que o começo, meio e fim da religião é o ser humano. Ao
mesmo tempo, porém, asseverava que a negação do sujeito, Deus, não significava a
negação dos predicados (sabedoria, amor, justiça). O ateu real reconhece Deus
teoricamente e, depois, vive como se ele não existisse. Sua intenção de resgatar a fé das
abstrações dos filósofos e dos teólogos não foi aceita.

Strauss provocou uma tormenta com seu livro Vida de Jesus (1835). Afirmou que o
Cristo dos Evangelhos não é histórico, mas mitológico. Jesus foi um mestre humano que
ensinava o amor a Deus e ao próximo. Foi a igreja que acresceu a idéia do Deus-homem
a Jesus. Strauss fez uso da lógica hegeliana. O Deus-homem é a síntese da dialética de
Deus (tese) e ser humano (antítese): a dialética do sobrenatural e do natural leva ao
mitológico. É óbvio que a transformação da cristologia em mitologia levou a muitas
reações.

A questão da relação entre fé e história, formulada por Strauss, foi objeto de estudo
por parte de Martin Kähler (1835-1912). Em sua obra O assim chamado Jesus histórico e
o Cristo histórico-bíblico (1892), Kähler afirmou que a base da fé cristã não é o Jesus
histórico, mas o Cristo pregado e testemunhado pela comunidade. A tentativa de
descrever o Jesus histórico é um equívoco metodológico e teológico. É um equívoco
metodológico, porque os Evangelhos são para a pregação da igreja antes de serem
fontes, recursos históricos para uma biografia de Jesus. Em termos teológicos, a
comunidade cristã não se centraliza no querido Jesus que partiu, mas no Cristo vivo do
presente. Para Kähler, o Cristo pregado é o Jesus terreno. A certeza da fé, porém, não
pode repousar sobre os resultados da pesquisa histórica. Ao retirar a fé do emaranhado
da pesquisa histórica empírica, Kähler ofereceu elementos para a resposta dos teólogos
que tiveram que responder ao colapso do liberalismo após a Primeira Guerra Mundial.

A Teologia Liberal tem suas raízes na Ilustração. No século XIX, porém, ela centrou-
se na temática de fé e história. Como é possível continuar a existir cristianismo, se o
microscópio e o telescópio não nos dão uma evidência de Deus? Para responder a
perguntas como essa, os liberais concentraram-se, então, em estudos históricos. Como
Jesus foi uma figura histórica, é acessível à pesquisa como qualquer outro personagem
histórico. Por isso, os teólogos liberais lançaram-se ao estudo histórico-crítico do Novo
Testamento para encontrar o Jesus “real”, “verdadeiro” e sua mensagem por trás dos
acréscimos da dogmática. Os liberais distinguiram, então, entre a religião de Jesus e a
religião sobre Jesus. A fé cristã foi reduzida à mensagem de Jesus sobre o reino de um
Deus do amor.

O próprio estudo histórico-crítico da Bíblia levou à destruição da Teologia Liberal.


Johannes Weiss (1863-1914) e Albert Schweitzer (1875-1965) evidenciaram em seus
estudos que Jesus não era inglês nem alemão, que seu pensamento não equivalia ao
pensar e ao agir de um gentleman. Para Weiss e Schweitzer, a partir de uma perspectiva
moderna, Jesus não era um gentleman, mas um fanático religioso que esperava pelo fim
iminente do mundo.

Mas, antes que despontassem as pesquisas de Weiss e de Schweitzer, surgiram


nomes como os de Albrecht Ritschl (1822-1889), Adolf von Harnack (1851-1930) e Ernst
Troeltsch (1865-1923). Ritschl esteve sob a influência de Kant e de Schleiermacher. Para
ele, o cristianismo é um fato histórico mediado pela experiência pessoal do crer. O Novo
Testamento dá testemunho a respeito da revelação que Jesus fez do Reino de Deus,
como sendo o alvo ético de todo o gênero humano. Jesus é o arquétipo da humanidade
reconciliada e unida no Reino de Deus. A redenção pessoal e a formação de comunidade
no Reino de Deus são a consequência da transformação e do retorno da vontade humana
à vontade de Deus. Os temas clássicos da dogmática (pecado, juízo, ira de Deus,
trindade, cristologia) e as expressões dos credos e das confissões são cascas que
encobrem o cerne do Evangelho.

As idéias de Ritschl foram acompanhadas pelo historiador Adolf von Harnack, que
pode ser considerado o mais notável teólogo de seus dias. Mesmo sem expressar
concordância com sua interpretação, devemos considerar magistral seu esforço em torno
da recuperação do pensamento da Igreja Antiga. Harnack advogou um cristianismo não-
dogmático. Queria um cristianismo liberado dos acréscimos doutrinais feitos pelas
gerações que se seguiram à primeira geração de cristãos e que transformaram a religião
de Jesus, entendida como o Reino do amor de Deus, em religião acerca de Jesus, um ser
preexistente que expia vicariamente os pecados. O cerne do cristianismo está envolto em
lixo metafísico. O dogma cristão é obra do espírito grego sobre a base do Evangelho. Esta
tese é desenvolvida nos sete volumes da História do Dogma (1886-1890). Harnack
separa o cerne do Evangelho de sua casca helenista e procura recuperar o cristianismo
para seus contemporâneos.

Quando, em 1900, escreveu Das Wesen des Christentums, que podemos traduzir
por “A essência do cristianismo” ou “O que é cristianismo?”, Harnack procurou tornar o
cristianismo plausível para o mundo moderno, reduzindo a fé à paternidade de Deus, à
fraternidade do gênero humano e ao valor infinito da alma humana. No prefácio à
reedição de 1964, Rudolf Bultmann nos dá conta de que, até 1927, o livro de Harnack
alcançara 14 edições alemãs e fora traduzido para 14 idiomas. O livro transpira otimismo
e confiança no progresso. Nesse otimismo e confiança, procurou trazer a proclamação
bíblica para os dias presentes no início do século 20. Esse otimismo de Harnack e sua
confiança no progresso tornaram-se sempre mais problemáticos à medida que se foi
descobrindo o caráter estranho da mensagem bíblica em seu confronto com o mundo
moderno.

Quem mais refletiu sobre a relação entre fé e história foi Ernst Troeltsch, citado,
mencionado e discutido até o presente. Troeltsch continua atual, pois centrou suas
pesquisas na relação entre cristianismo e cultura moderna, entre revelação e história,
entre liberdade pessoal e condicionamentos sociais. Sua obra sobre as relações entre
cristianismo e cultura, A doutrina social das igrejas cristãs, de 1912, é sempre
mencionada. Troeltsch historiciza todo e qualquer pensamento. Não há nada que escape
ao condicionamento histórico: Senhores, tudo oscila!, dizia a conservadores. Não hesitava
em chocar. E chocou até mesmo seus companheiros, que buscavam tirar a casca para
chegar ao cerne do Evangelho: por baixo da casca não há cerne eterno, não-histórico.
Tudo o que existe persiste em condições históricas. Ao escrever Die Absolutheit des
Christentums (O Absolutismo do Cristianismo), em 1902, Troeltsch comprovou que o labor
histórico não pode reivindicar a superioridade de uma religião sobre outra. Troeltsch
descobriu que o método histórico, quando aplicado à Bíblia, à história da Igreja e à
Teologia, não comprova revelação nem fé.

A Teologia tinha que reiniciar sua reflexão: o liberalismo não era a solução. A
contrapartida, porém, também não foi solução. Ela se manifestou na reação católica
romana, já descrita, e na reação protestante conservadora, conhecida como
fundamentalismo. A melhor solução só veio após a Primeira Guerra Mundial.

Quem se ocupa com a temática fundamentalismo avança por um território


escorregadio. Quanto mais cresce o caudal da literatura acerca do fundamentalismo,
tanto mais difusos se tornam os contornos do conceito e da própria questão. Grupos
protestantes de cristãos conservadores deram a si mesmos essa designação no início do
século 20, nos Estados Unidos da América do Norte. Entre 1909 e 1915, foi publicada nos
Estados Unidos uma série de textos, com edição superior a 3 milhões de exemplares,
com o título The Fundamentals – a Testimonium to the Truth (Os fundamentais – um
testemunho em favor da verdade). Do título dessa série saiu o nome de um movimento
formado no último terço do século 19 por grupos de cristãos conservadores evangelicais.
Este foi crescendo, principalmente graças ao suporte financeiro de leigos bem
estabelecidos.

Os fundamentalistas viam-se como contra-ofensiva a um modernismo que, assim


diziam, havia se apossado do mundo protestante/evangélico. Particularmente, esse
fundamentalismo primeiro entendia-se como contra-ofensiva a uma Teologia orientada
pelo método histórico-crítico, que estava interpretando os conteúdos da fé, especialmente
os textos bíblicos, a partir de uma perspectiva histórico-crítica. O protestantismo, esse o
seu pecado, estava se aliando à ciência moderna. Frente a esse modernismo, os
fundamentalistas opuseram seus “fundamentals” (fundamentais). Fundamentals eram os
conteúdos de fé, verdades absolutas e intocáveis, que deveriam ficar imunes à ciência e à
relativização por meio do método histórico.

Foi assim que alguns temas passaram a ser considerados fundamentals: a


inerrância verbal, literal, da Bíblia; a afirmação da verdadeira divindade e do nascimento
virginal de Jesus, seu sacrifício expiatório vicário, através do seu sangue derramado, e
sua ressurreição corporal; a segunda vinda de Cristo à terra, na época vista como
iminente, com sinais apocalípticos, ou com o retorno para um reino milenar, intermediário;
negativa de aceitação dos resultados da ciência moderna quando não correspondiam ao
que designavam de “fé bíblica”; exclusão do status de verdadeiro cristão de todos aqueles
que não aceitavam esse fundamentalismo.

Os fundamentals acima descritos destacam dois aspectos distintos do movimento


fundamentalista. No fundamentalismo temos, em primeiro lugar, oposição e reação contra
transformações da religião determinadas pela Modernidade. O fundamentalista quer
defender sua verdade religiosa, que se vê ameaçada pelos “poderes” da Modernidade,
designados de pluralismo, relativismo, historicismo e destruição de autoridades. Ele não
pretende a modernização da religião, mas fundamentação religiosa, explícita, da
Modernidade. O mundo ocidental, por exemplo, tem que ser recristianizado. A esse
aspecto devemos acrescentar, em segundo lugar, outra característica do
fundamentalismo. Ela trata da relação entre religião e política. Os adeptos do movimento
fundamentalista estavam convictos desde o início de que a política deveria ser cristã: o
mundo ocidental tem que voltar a ser cristão. Nesse aspecto, os fundamentalistas se
distanciavam de seus pais quietistas. Em consequência, exigiam que o Estado
defendesse, nas escolas públicas, sua concepção bíblico-fundamentalista do ser humano.
No estado norte-americano do Tennessee, o professor de biologia Scopes teve que se
defender em juízo da acusação por parte de fundamentalistas de que transmitira a seus
alunos a teoria da evolução das espécies de Charles Darwin. Bem ao estilo
fundamentalista, Scopes acabou sendo advertido pelo tribunal. No caso de Scopes,
evidencia-se que, para o fundamentalismo, a verdade religiosa é pressuposto para a ação
política. Seu alvo é a sociedade perfeita. Ora, nesse aspecto, o fundamentalismo teve no
Syllabus papal um grande companheiro. Ambos são filhos da mesma época.

O adepto do movimento fundamentalista reporta-se à tradição religiosa pré-iluminista


e sabe-se carregado por um fundamento que precede e que crê ser “mais forte” do que a
questionável orientação pelo “humanismo secular”. Num mundo no qual a autoridade
desmorona, o fundamentalista se sabe abrigado por uma autoridade que escapa à dúvida,
à problematização e à dissolução modernas.

A visão de história do fundamentalismo olha para o tempo em que se vivia de acordo


com a vontade de Deus, mira o futuro escatológico e apocalíptico e apresenta uma
possibilidade de interpretação e de absorção coerente do presente. Em sua crise, o
presente é prenúncio da salvação que vem e sua garantia, justamente por causa dos
sinais de sua decadência.

Por causa de sua importância para o comportamento ético individual, pode-se


nominar a conversão como outra característica do fundamentalismo. Ela está relacionada
à garantia de uma postura fundamentalista frente às experiências de crise do mundo
moderno. A experiência da conversão é norma de vida em muitos movimentos
fundamentalistas. Ela tem significado como orientação e sentido para a vida. Por causa
da conversão, a biografia do convertido adquire contorno e segurança. Ela pode ser
estruturada a partir da conversão. “Conversão” significa, numa perspectiva
sociopsicológica, saber a que lugar pertencemos em consequência de nossa biografia.

A Primeira Guerra Mundial afetou todas as áreas imagináveis, e não só na Europa.


Tudo o que fora arquitetado em termos de organização da sociedade ruiu. A concorrência
entre as nações européias levou à morte em massa nos campos de batalha e conduziu ao
colapso da civilização européia. Todo o otimismo liberal, que dizia que com essa guerra
se poria fim a todas as guerras, sucumbia ante os ataques com gás. O otimismo
antropológico chegava ao fim e, com ele, todo o otimismo da teologia liberal. Longe de
terminar com a possibilidade do surgimento de um novo conflito, a Primeira Guerra
Mundial criou as condições para o surgimento de Adolf Hitler (1889-1945) e da Segunda
Guerra Mundial.

O fim da guerra trouxe também consigo a necessidade de uma nova


regulamentação para as relações entre Igreja e Estado. Surgiram claras separações entre
Igreja e Estado. As igrejas deveriam ter gestão própria. Círculos protestantes
conservadores, porém, protestaram, o que impediu a real separação entre Igreja e
Estado. As igrejas passaram a regulamentar suas questões internamente, mas
continuaram a ter o status de corporações de direito público, recebiam sustentação do
Estado através do imposto eclesial e tinham assegurada a continuação do ensino
religioso nas escolas públicas.

Envolvidos por uma ideologia que ligava trono e altar, antes da Primeira Guerra,
pastores e teólogos pouco fizeram contra o crescente nacionalismo. Antes, e em sua
maioria, o apoiaram. Majoritariamente apoiaram os fascismos. O pastor e teólogo Karl
Barth (1886-1968), porém, foi a voz mais clara contra o fascismo, aliando-se a ele aqueles
pensadores que apoiavam a “teologia dialética”.

A reconstrução da vida eclesiástica européia após a Segunda Guerra Mundial


esteve ligada a um dos mais significativos eventos da História da Igreja no século 20: o
movimento ecumênico. Este tem suas origens no século 19, na cooperação entre as
igrejas que atuavam em campos missionários e na diaconia. Temos aqui as origens do
Conselho Mundial de Igrejas.

No início da Primeira Guerra Mundial, houve teólogos que esperavam uma


renovação religiosa. No primeiro ano de guerra, as igrejas realmente lotaram; no segundo,
esvaziaram. A esperança de que o materialismo e o socialismo desaparecessem foi
frustrada; os operários também não retornaram à Igreja. A guerra levou a uma alienação
em relação às igrejas. Os pastores pregavam a uma classe média conservadora e seu
discurso a ela se adaptou.

De outro lado, começaram a ecoar vozes que apontavam para novas possibilidades
na Teologia. O prelúdio dessa nova Teologia foi dado com a obra de Rudolf Otto (1869-
1937), A idéia do sagrado, publicada em 1917 e que, em 1930, já alcançava sua 22ª
edição. Otto apresentava uma nova compreensão de Deus: Deus não é mais visto como
extensão da humanidade, mas como o “totalmente outro”, com o qual as pessoas se
encontram no mysterium tremendum et fascinosum (mistério tremendo e fascinoso).
No entanto, a mais importante reorientação teológica após a Primeira Guerra
Mundial foi a Teologia Dialética que tem a cara de Karl Barth (1886-1968). Após os
estudos teológicos, tornou-se pastor numa comunidade operária em Safenwil, Suíça. Ali
teve que descobrir que a Teologia Liberal de nada lhe servia na prática pastoral, pois
nada dizia para os problemas da vida real. Via os baixos salários dos operários, ficava
atônito ao descobrir que seus paroquianos ricos não viam nenhuma contradição entre fé
cristã e exploração. O contexto fez de Barth um radical em sentido teológico, pessoal e
político. Tornou-se social-democrata, o que lhe valeu o codinome de “pastor vermelho”.
Quando teve que pregar, descobriu que a Bíblia era – no contexto da teologia que lhe fora
transmitida pelo liberalismo – um mundo novo e estranho. No início da Primeira Guerra
Mundial, teve mais uma decepção: descobriu que grande parte de seus professores
teológicos assinara a “Declaração de Intelectuais Alemães” em apoio ao “imperador e à
pátria”. Essa descoberta significou para ele a bancarrota do liberalismo sob o ponto de
vista político, social, ético e religioso.

Outra descoberta importante foi a obra de Fjodor Dostojewski (1821-1881). Ela foi
apresentada a Barth por Eduard Thurneysen (1888-1974), com o qual Barth combateu a
Teologia Liberal, buscando no diálogo com a Bíblia novos impulsos para a pregação.
Desse diálogo e da pregação resultou, em 1919, a primeira edição do comentário de
Barth aos Romanos. A segunda edição é de 1922. Nela, especialmente, apresenta-se
uma ruptura radical e total com a Teologia Liberal e com qualquer forma de
antropocentrismo e de experiência religiosa. A Bíblia é a Palavra de Deus transcendente,
que se revela na morte e na ressurreição de Jesus Cristo. É Palavra que vem de fora e
contra o mundo. Nesse sentido, toda e qualquer religião, inclusive a cristandade, é uma
empreitada humana sujeita ao juízo de Deus. Nesse aspecto, Barth não trouxe novidade.
Ele foi eco do pastor luterano dinamarquês Sören Kierkegaard (1813-1855). Kierkegaard
atacara Hegel e o cristianismo burguês, enfatizando a “diferença qualitativa infinita” entre
Deus e o gênero humano. A Bíblia discute com o mundo religioso, inclusive o cristão.

Barth e Thurneysen tiveram cedo o apoio de outros pensadores, como Emil Brunner
(1889-1966), um suíço que responsabilizou Schleiermacher pela miséria na qual se
encontrava a Teologia; Friedrich Gogarten (1887-1969), um alemão que se destacou na
pesquisa de Lutero; Rudolf Bultmann (1884-1976), alemão e exegeta do Novo
Testamento, que se tornou conhecido em razão de seu programa de demitologização;
Paul Tillich (1886-1965), um alemão que teve que deixar a Alemanha, em 1933, e se
radicar nos Estados Unidos da América do Norte, onde se tornou uma figura exponencial,
especialmente por sua Teologia Sistemática. Comum entre esses pensadores que
recebem um denominador comum na expressão “Teologia dialética” é o “não” de Deus ao
mundo e ao pecado, um “não” que contém seu “sim” redentor. Esse grupo pôde expressar
suas idéias na revista Zwischen den Zeiten (Entre os Tempos) (1923-1933).

Barth tornou-se professor de Teologia na Alemanha, até ser deportado por causa de sua
crítica ao nazismo, tornando-se então professor em Basiléia, Suíça. A postura de Barth foi
acompanhada por poucos. Em sua maioria, as igrejas evangélicas apoiaram os regimes
totalitários ocidentais, mesmo ali, onde se apresentavam sob a designação de
“democracia”. Apoiaram a perseguição a comunistas, social-democratas, liberais e judeus,
considerados os “pais” dos movimentos que destruíam o mundo. Por isso,
majoritariamente cristãos, também no Brasil, silenciaram. Aqui o caso mais evidente é o
da judia alemã Olga Benário, entregue pelo regime fascista de Vargas a Hitler. A
preferência pelo fascismo ainda se faria presente nas décadas de 1950 e 1960, quando o
macarthismo teve forte apoio no seio das igrejas evangélicas brasileiras, também
apoiadoras do regime instaurado 1º. de abril de 1964 e seguido da instalação de
comandos de caça a comunistas no seio das próprias denominações. Os poucos que
resistiram, entre os quais Martin Niemöller (1892-1986), Karl Barth e Dietrich Bonhoeffer
(1906-1945), executado por conspirar contra o regime de Hitler e, por isso, até hoje
condenado por muitos por se haver envolvido em política, ajudaram na formulação da
Declaração Teológica de Barmen (1934) que, principalmente após o final da Segunda
grande Guerra serviu de baliza para parte considerável do mundo protestante/evangélico:
“Jesus Cristo, assim como nos foi testemunhado na Sagrada Escritura, é a única Palavra
de Deus, a qual somos chamados a ouvir, na qual devemos confiar e obedecer na vida e
na morte. Rejeitamos o falso ensinamento, como a Igreja pode e deve, de que há outra
espécie de ensinamento seu fora e ao lado desta Palavra de Deus, nem reconhecemos
outros eventos, poderes, figuras e verdades como revelação de Deus.”

Na Declaração, fica evidente que com a proposta fascista a Igreja deixava de ser
Igreja. Era necessário escolher entre Jesus e os regimes totalitários. Dos que resistiram
viram as lideranças que dariam origem a novos movimentos, entre eles o Conselho
Mundial de Igrejas. A primeira assembléia do Conselho Mundial de Igrejas aconteceu em
Amsterdam, Holanda, no ano de 1948. Muito antes dela, porém, houve inúmeras
propostas que buscavam uma associação internacional de igrejas. Nessa busca refletiam-
se as atividades missionárias do final do século XIX e os reavivamentos religiosos
ocorridos na Europa e na América do Norte. Na década de 1890, o Movimento de
Estudantes Voluntários para as Missões no Estrangeiro fez apelo para a “evangelização
do mundo nesta geração”. Nos campos missionários, detectavam-se as tensões geradas
pelo transplante das divisões confessionais da Europa e da América do Norte para eles. A
problemática foi discutida na Conferência Missionária Mundial em Edimburgo, Escócia,
em 1910 e, na Conferência Mundial sobre Fé e Constituição (Faith and Order) em
Lausanne, Suíça, em 1927. Dois anos antes, a Conferência Universal Cristã sobre Vida e
Obra (Life and Work) em Estocolmo, Suécia, encorajara as igrejas a abraçarem questões
sociais conjuntamente. Nessa conferência, as pessoas presentes eram delegadas de
suas denominações, inclusive de igrejas ortodoxas. Figura central dessa Conferência foi
Nathan Söderblom (1866-1931), Arcebispo de Estocolmo e professor de Ciências da
Religião. Söderblom conseguiu reunir protestantes e ortodoxos. Por causa de suas
iniciativas no campo da atuação comum de cristãos, nas áreas da paz, da liberdade e da
justiça, foi agraciado com o Prêmio Nobel da Paz em 1930.

O reconhecimento de que Vida e Obra não podem existir sem Fé e Constituição e


que, em conjunto, devem se dedicar ao Reino de Deus levou à decisão de se conjugar as
duas organizações numa só: o Conselho Mundial de Igrejas teve sua primeira assembléia
em 1941. A Segunda Guerra Mundial, porém, impediu a concretização desse plano.
Indicou-se, porém, já em 1938, na cidade de Utrecht, Holanda, Willem A. Visser’t Hooft
(1900-1985) para o cargo de secretário-geral do Conselho em formação. Hooft ocupou o
cargo até sua aposentadoria em 1966. Oriundo do movimento cristão de estudantes,
Hooft fora líder da Associação Cristã de Moços (ACM), em Genebra, onde também
conheceu o trabalho de John R. Mott (1865-1955), leigo metodista de grande atuação
ecumênica. Hooft estava convicto de que Jesus não desejou que os cristãos
estabelecessem conversações entre si, mas que fossem “um”.

Desde sua primeira assembléia em Amsterdam, em 1948, com o tema As desordens


do ser humano e o desígnio de Deus, o Conselho Mundial de Igrejas (CMI) esteve
convicto de que os desastres da Segunda Guerra Mundial se deviam, em boa medida, ao
silêncio das igrejas em relação aos acontecimentos mundiais. Em Amsterdam, o delegado
presbiteriano norte-americano John Foster Dulles, mais tarde Secretário de Estado dos
Estados Unidos da América do Norte, e o teólogo checo Josef Hromadka discutiram a
respeito de comunismo e capitalismo. Como resultado dessa discussão, o Conselho
Mundial de Igrejas declarou que nem o capitalismo nem o comunismo podem querer ser
as únicas possibilidades entre as quais o ser humano deva escolher. Há outras
possibilidades; todas elas, porém, encontram-se sob o juízo de Deus. Desde Amsterdam,
por isso, o CMI viu-se envolvido nos conflitos da Guerra Fria. Os anos posteriores a 1949
foram anos nos quais o CMI se viu envolvido com as principais questões relacionadas ao
ser humano e ao planeta. Economia, segregação racial, colonialismo, destruição,
refugiados, apelos a governos lhe diziam respeito, pois diziam respeito à vida do cristão
na sociedade. Poucas semanas após a assembléia de Nova Delhi, Índia, João XXIII
anunciava a convocação do Concílio Vaticano II (1962-1965) e convidava o CMI a enviar
observadores para as sessões do concílio.

Na história do século 20, o ecumenismo tem um papel de destaque. Neste mesmo


século, porém, outro movimento de impressionante capacidade ecumênica tem que ser
destacado de igual modo. Esse só se evidencia no final do século, quando perpassa
todas as denominações. Trata-se do cristianismo carismático pentecostal.

O crescimento pentecostal está ligado às estruturas orais de seus primórdios. Sua


expansão extraordinária não vem de uma determinada doutrina. Nesse aspecto, o
pentecostalismo não é homogêneo. Há, por exemplo, pentecostais trinitários e não-
trinitários. Há aqueles que batizam adultos, e outros que batizam infantes.

As razões de seu crescimento estão nas raízes negras do movimento. Dessas raízes
emergiram a liturgia oral, a participação de todos na reflexão, na oração pública e nas
decisões. Daí brota uma espiritualidade de reconciliação. E ainda: uma compreensão
peculiar da relação entre corpo e alma, que encontra sua maior expressão na aplicação
dessa compreensão na oração pelos doentes e na dança litúrgica.

Na Europa e nos Estados Unidos, o movimento pentecostal está a caminho de se


transformar em igreja evangelical de classe média. Muitos elementos, ainda hoje
presentes na América Latina e na África, desaparecem. A Teologia passa a ser mais e
mais conceitual: há teologia evangelical tradicional, acrescida do batismo no Espírito
Santo. No entanto, a glossolalia não é mais considerada um elemento essencial desse
batismo. Aqui temos algo fundamentalmente distinto dos acontecimentos de Azuza-Street,
em Los Angeles, Estados Unidos, sob a direção do líder negro William Joseph Seymour.
Filho de ex-escravos, Seymour nasceu em Centerville, Louisiana. Autodidata no tocante a
ler e a escrever, frequentou, por certo tempo, a escola bíblica de Charles Fox Parham
(1873-1929), localizada em Topeka, no Kansas. Parham simpatizava com a Ku-Klux-Klan
e, por isso, excluiu Seymour de suas aulas. Seymour só pôde assistir às aulas da porta,
entreaberta. Apesar dessa exclusão, o negro aceitou os ensinamentos do branco que
falava do batismo com o Espírito Santo e passou a pregá-los numa igreja de santificação
em Los Angeles.

O sofrimento de Seymour e de seus irmãos negros era muito grande. 3.436 negros
foram linchados durante sua vida adulta. As brutalidades eram incontáveis. E é bom
lembrar que, em boa medida, eram cristãos os que matavam e violentavam cristãos.
Mesmo assim, Seymour pôde desenvolver uma espiritualidade que provocou
reavivamento na Los Angeles de 1906. Mais e mais, os historiadores situam nesse
reavivamento o berço do pentecostalismo. Por trás dele, porém, devemos perguntar pelas
raízes da espiritualidade de Seymour. Elas têm origem africana. Essas origens estão
documentadas no fato de ele introduzir música africana e negro spirituals em sua liturgia.
O fato merece destaque em uma época em que tal tipo de música era considerado
impróprio para o culto cristão. Em sua atuação, além disso, Seymour expôs sua
compreensão de pentecostes: amor em meio ao ódio. Sua pregação é uma opção
diferente da do American way of life.

Na Los Angeles de 1906, buscou-se a igualdade entre bispos brancos e operários


negros, entre professores brancos e lavadeiras negras, aos quais se acrescentam
asiáticos e mexicanos. A imprensa secular registrou o fato, mas não o compreendeu. Era
revolucionário, mas foi ridicularizado, pois era obra de um “profeta negro”. Depois, as
igrejas ditas históricas ridicularizaram o movimento por causa do status social de seus
integrantes. A pressão social levou a que, internamente, o reavivamento de Los Angeles
fosse travado. O resultado foi o desenvolvimento bipartite do pentecostalismo: igrejas
negras e brancas. Quem observar as igrejas pentecostais na América Latina deverá
perguntar pelas raízes brancas ou negras dos missionários.

Por causa das raízes negras e brancas, muitos historiadores pentecostais


resolveram citar Seymour e Parham como fundadores concomitantes do pentecostalismo.
James R. Goff produziu uma importante biografia de Charles Fox Parham. Segundo ele,
Parham estabeleceu e desenvolveu a doutrina da initial evidence, do sinal da glossolalia
para o batismo com o Espírito Santo. A glossolalia é a primeira comprovação para o
batismo com o Espírito Santo. Parham entendeu a glossolalia como xenolalia, isto é,
como capacidade de falar uma língua humana identificada, sem havê-la estudado. A
xenolalia passou a ser, no pentecostalismo, um sinal para a vocação de missionários. Sua
necessidade era convicção pessoal de Parham, que procurou fazer, então, que seus
alunos acompanhassem sua convicção. Ela não se deveu à revelação especial.
Parham tem outros aspectos interessantes em sua vida. Opôs-se à medicina e às
vacinas. Foi pacifista durante a Primeira Guerra Mundial e simpatizou com o socialismo.
Teologicamente, falava da imortalidade condicional, conditional immortality: No final dos
tempos, os maus não irão para o inferno, mas serão destruídos.

Parham também foi acusado de ser homossexual e processado por isso. No


processo apareceram rivalidades; o processo foi arquivado sem maiores argumentações.
Seus autos desapareceram. Mas a polêmica em torno da sexualidade de Parham deveria
levar muitos pentecostais a reverem sua condenação irrestrita da homossexualidade.
Mais importante, porém, na discussão em torno de Parham é sua ideologia racial, que não
deixou de ter consequências para o pentecostalismo. No seu entendimento, a divisão dos
povos feita pela Bíblia continua válida até os dias presentes. Todo poder espiritual neste
mundo pertence aos hebreus, aos judeus e aos diversos descendentes das dez tribos
(anglo-saxões, alemães, dinamarqueses, suecos, hindus, japoneses e hindo-japoneses
no Hawai). Os pagãos (franceses, espanhóis, italianos, gregos, turcos e russos) são
formalistas, e a maior parte deles continua a ser pagã: negros, malaios, mongóis e
indígenas. A hierarquia racial de Parham corresponde ao racismo do sul dos Estados
Unidos. Podemos imaginar o tamanho da concessão feita a Seymour quando Parham o
deixou assistir às aulas através da porta entreaberta.

Parham e Seymour são diferentes em muitos aspectos. Um viu o initial sign, a


glossolalia, como fundamental; para o outro, o mais importante era a concepção
ecumênica do pentecostes, que supera raças e classes. Interessante, porém, é que aquilo
que era o fundamento para ambos não permaneceu essencial para o pentecostalismo
posterior. Mais e mais se difunde entre pentecostais a convicção de que a glossolalia é
um fenômeno humano e não distintivo do pentecostalismo. Historicamente, essa
convicção é correta: a glossolalia já se encontra nos oráculos de Pythia, em Delfos.
Abandonada foi entre a maioria dos pentecostais a convicção ecumênica do pentecostes.
Pentecostais também abandonaram a teoria racista de Parham e sua simpatia pela Ku-
Klux-Klan.

Onde está o aspecto distintivo do pentecostalismo?

Na década de 1960, o evangelista pentecostal norte-americano Arthur Brazier


criticava abertamente o governo de seu país por tolerar a destruição, quando permitia a
opressão de 30 milhões de pessoas negras e latinas. Brazier procurou destruir o mito da
supremacia moral e intelectual dos brancos. Os Estados Unidos da América do Norte
foram construídos, assim afirmava ele, nas costas dos negros, que plantaram algodão,
construíram estradas-de-ferro e descobriram o plasma sanguíneo. Através de
organizações e de demonstrações pacíficas, Brazier apresentou reivindicações de
mudança. Ele falou abertamente no dom da demonstração, da organização e da
publicação – que nós denominaríamos de denúncia – entre os muitos carismas, devendo
ser arrolados ao lado da glossolalia, da profecia, da dança religiosa e da oração por
doentes.

Seguindo as pegadas de Brazier, muitos outros pentecostais negros passaram a


acentuar a peculiaridade da cultura negra. Buscou-se comprovar que muitos dos
personagens bíblicos, inclusive Jesus, eram negróides. A encarnação de Deus se dá em
meio à negritude. Por isso, rejeitam a pregação “espiritualizante” de um Billy Graham,
considerada ideologia branca, burguesa, sem significado para negros pobres. Rejeitam
uma escatologia fatalista, que aguarda passivamente pela vinda do milênio. A mera
referência à segunda vinda de Jesus não resolve os problemas dos pobres.

Alguns reacentuam as raízes africanas do reavivamento pentecostal. Assim como


Deus se valeu, no passado, de escravos hebreus para abençoar todo o mundo, hoje ele
se vale de escravos negros para abençoar seus senhores brancos. O pentecostalismo
ajuda a lembrar que as origens do cristianismo não estão na Europa.

Esse retorno dos pentecostais negros as suas origens é motivo de inquietação para
os pentecostais brancos. Estes não esqueceram que tudo começou em uma congregação
negra de Los Angeles (1906), no mesmo meio em que surgiram o spiritual, o jazz e os
blues. Mas, mesmo tendo aceito a música negra, esqueceram a influência negra. Esse
esquecimento tem consequências; sua redescoberta tem poder revolucionário. De fato, o
reavivamento pentecostal do início do século XX tem algo subversivo. Naqueles estados
em que a celebração inter-racial era proibida, ela era rompida pelos pentecostais, pois era
“lei humana”. Pentecostais reuniam negros e brancos empobrecidos. Negros ordenavam
brancos. Depois, a situação mudou radicalmente. Surgiram igrejas pentecostais brancas,
completamente adaptadas às leis raciais do sul dos Estados Unidos. As igrejas
pentecostais negras não foram sequer admitidas na Pentecostal Fellowship of North
America. Por isso, não puderam concordar com os apelos das Assembléias de Deus de
que tudo seja feito por conversão e não por coerção. Líderes pentecostais negros afirmam
que o pentecostes só é possível como fim da separação racial. Esse foi o milagre que
permitiu o surgimento da Igreja em Jerusalém. Não se pode acentuar e experimentar a
plenitude do Espírito Santo continuando racista.

As raízes negras do pentecostalismo nos levam a lembrar a hinologia pentecostal.


Essa tem sua origem no negro spiritual, que influenciou os diversos estilos do jazz e dos
blues. Muitos brancos adotaram o spiritual e o adaptaram a seus ouvidos. Do spiritual
surgiu a música gospel, na qual se expressam, espontaneamente, as necessidades e as
dores do presente. Em sua origem, o spiritual é um importante elemento da cultura oral
negra; receptor e transmissor da história negra. Foi através do spiritual que aconteceu a
cristianização de comunidades negras nos Estados Unidos da América do Norte, e não
através de pregações e de livros. Esse aspecto da espiritualidade negra foi assumido pelo
reavivamento pentecostal em todo o mundo. Em sociedades pré ou pós-literárias, suas
formas de comunicação não são de caráter lógico-sistemático, mas de associação,
parábola e hino. Não definem, mas descrevem. O meio de comunicação não é a tese,
mas a dança; não é a doutrina, mas a canção. Sua Teologia é expressa em provérbios,
coro, anedotas, testemunho e relatos de milagre, em programas de rádio e de televisão.
Ela não é declarada, mas celebrada em festas.

Há quem diga que os hinos de origem negra são apocalípticos e orientados pela
transcendência. Ora, os spirituals não comprovam que os negros tenham se contentado
com a escravidão! São cânticos de libertação, que confessam ser a libertação dos
escravos um elemento integrante da revelação divina. Não há indícios de que os escravos
negros tenham aceito sua escravidão como vontade divina: os spirituals dizem que Deus
liberta os negros. Sua vontade é a eliminação da escravidão negra. Deus se coloca do
lado dos oprimidos. A libertação dos oprimidos de seu cativeiro é o tema central dos
spirituals.

O fato de que o pentecostalismo surgiu em uma igreja negra de periferia, assumindo


a tradição oral da cultura negra, preparou o caminho desse reavivamento. Os países nos
quais o pentecostalismo mais se difundiu não têm forte tradição literária, mas oral. Daí ser
importante ressaltar que o movimento pentecostal representa uma alternativa para uma
Teologia livresca, congelada em formas escritas. Ele dá ao ser humano “oral” a mesma
oportunidade dada ao acadêmico. Possibilita a democratização da linguagem, eliminando
os privilégios da sistemática conceitual abstrata e racional. Rompe-se a ditadura de
determinado tipo de linguagem, considerado ortodoxo ou científico. Rompe-se o
“sacerdócio geral de todos os crentes”, fixado no papel, para tornar-se realidade na
oralidade.

A grande discussão cristã do século 21 não vai ser a da relação entre protestantes e
católicos, mas entre Teologia oral e Teologia escrita, entre a lógica do instinto e a lógica
da razão, entre negro e branco.

Desde a década de 1970 começaram a se manifestar com força as tradições da


religião pós-moderna. Ela se adapta ao mundo pós-moderno, no qual religião e Estado já
não são mais base da sociedade, como o foram em épocas anteriores. Base da
sociedade é, agora, o Mercado e, sempre mais, a religião a ele se adapta. Além disso,
defrontamo-nos sempre mais com o ser humano pós-moderno que afirma viver e ter
religião sem comunidade. Ele busca Deus na interioridade, busca a religião em si, dentro
de si mesmo. A religião já não busca lhe propiciar comunidade e não lhe dá mais nada de
graça, pois o mercado nada de graça dá. Nesse contexto, estruturaram-se nas últimas
décadas igrejas de necessidades, de mercado, assemelhando-se em muitos sentidos ao
supermercado e ao shopping Center, característicos das últimas décadas. As novas
igrejas já não têm estrutura congregacional, mas centralizada em torno de bispos
autocráticos e vitalícios. Lideranças locais já não prestam conta a uma comunidade local,
mas à administração central, como nas redes de supermercado. São também igrejas de
necessidades com a capacidade de interpretar e de responder às múltiplas necessidades
do indivíduo (não da comunidade!), que tanto podem ser religiosas, emocionais ou
sociais. Muitas vezes, tais problemas são agudos, necessitando de uma resposta
imediata. As respostas são dadas nos cultos e em conversas com pastores e obreiros nos
templos, abertos durante todo o dia. Além disso, os cultos são espaços que oferecem a
oportunidade de expressar todo o tipo de emoções nas orações, cantos e gestos. Assim,
os cultos conseguem transmitir uma experiência de dignidade e de respeito a pessoas
que normalmente são maltratadas por vida dura. Muitas vezes, são auxiliadas por curas
divinas ou por exorcismos, outras recebem motivação suficiente para romper com drogas
e outros vícios.

Por outro lado, são igrejas de mercado, em razão das transações comerciais nelas
realizadas. Isso se evidencia já em sua localização geográfica. Mercados são instalados
em áreas estratégicas, pelas quais passam muitas pessoas. As transações comerciais
são regidas pelo que é típico de todo o comércio; a troca do “dou para que dês”. Os
templos são uma entre muitas lojas a oferecer produtos que também podem ser
encomendados através da mídia. Ao invés da comunhão (communio) propiciada pelas
igrejas tradicionais, as igrejas pós-modernas privilegiam o encontro breve, típico do
Shopping Center, com clientela flutuante e móvel, convidada a comparecer por meio de
propaganda da televisão. O estilo desse supermercado é, via de regra, festivo, com muita
música e diversão, tendo a finalidade de estimular e de aumentar o comércio. As
semelhanças com o supermercado não param por aí. Elas se mostram também no
tocante ao sistema econômico. Oferece-se um produto apetitoso por um preço adaptado à
economia do momento. Simplifica-se a filosofia mercantil, que é a de vender mais, e
adapta-se a mesma a uma cosmovisão: a criação de Deus, no princípio muito boa, foi
danificada por Lúcifer e pelos demônios; estes invadiram o mundo e provocam todo tipo
de males entre os seres humanos. Deus, porém, estabeleceu uma solução através de seu
filho Jesus Cristo e através do Espírito Santo para vencer os demônios: o exorcismo e as
curas divinas. Para que o exorcismo e a cura divina sejam realizados com êxito, deve
existir aquela relação entre Deus e o ser humano estabelecida em Malaquias 3.10: “Trazei
todos os dízimos à casa do tesouro, para que haja mantimento na minha casa, e provai-
me nisto, diz o Senhor dos Exércitos, se eu não vos abrir as janelas do céu, e não
derramar sobre vós bênção sem medida.” Deus estabeleceu o pagamento do dízimo para
o novo tipo de Igreja. Estabelecido esse tipo de convênio, há reciprocidade de deveres e
obrigações entre as partes de cumprir e de exigir cada um o que lhe interessa.

Mesmo assim, a relação deve ser caracterizada não apenas por um cumprimento
formal, mas por ofertas voluntárias por amor, cujo valor é fixado segundo a vontade de
cada um. O fiel pode, então, esperar uma vida em abundância: paz, saúde, êxito
econômico e prosperidade. Nessa teologia, não há lugar para aquilo que é fundamental
para o cristianismo: a graça.

Temos, pois, nesse novo tipo “evangélicos/protestantes”, na realidade grupos pós-


cristãos, igrejas episcopais, de necessidades, tipo mercado, supermercado. Esse último
aspecto é, sem dúvida, o que mais chama a atenção. Nele, saltam aos olhos o
sincretismo, o uso em larga escala dos meios de comunicação, as transações
econômicas, o tipo de comunidade.

Mesmo apresentando em sua teologia elementos típicos do pentecostalismo


(batismo pelo Espírito Santo, glossolalia e, até certo ponto, santificação cura divina,
exagerando, porém, na prática do exorcismo), essas novas igrejas divergem do
pentecostalismo na importância dada ao significado da obra de Jesus. Anunciando o
nome de Jesus, não cansam de afirmar que é em seu nome e mediante o poder do
Espírito Santo que os demônios são expulsos. A relação de Jesus com o ser humano,
porém, não é de redentor e de redimido, mas de libertador e de libertado. Essa libertação
não significa, como apresenta o protestantismo tradicional, salvação, libertação de pesada
carga de culpa, mas libertação de males espirituais, libertação de diversos tipos de
demônios que provocam sofrimentos. A graça perde seu significado, não há dádiva
gratuita. Mesmo quando usa o conceito “graça”, ela não tem o caráter de gratuidade, de
algo que o ser humano não pode obter, merecer, ganhar por força própria.

Outra questão fundamental em que há divergência no tocante ao discurso


protestante/evangélico e pentecostal tradicional em relação a Jesus é o sofrimento. Nele
há a consciência de que o sofrimento de Jesus tem consequências para a vida do cristão.
Por isso, parte integrante da catequese é a preparação do cristão para enfrentar o
sofrimento. Preparam-se pessoas para tempos de provação. Ao acentuarem: “Pare de
sofrer!”, trazem um discurso estranho aos ouvidos pentecostais e protestantes.

Outra diferença existe no termo “comunhão”, fundamental para o protestantismo e


pentecostalismo, que lhes possibilita um acento mais decidido no sacerdócio greal de
todos os crentes.O centralismo dessas igrejas volta-se contra esse aspecto; seu estilo
supermercado não lhes permite o acento na “comunhão”.

O mundo da religião é mundo em constante mudança, o que pode ser observado no


caso brasileiro. O protestantismo chega o Brasil como dissidência religiosa tolerada,
trazendo consigo raízes da Reforma do século 16. Em sua vertente calvinista, essa
reforma penetra décadas mais tarde, filtrada, porém, pela experiência dos dissenters
ingleses e pelo Reavivamento, surgido nos Estados Unidos após a Ilustração.
Recebemos, contudo, um Reavivamento que, em nível mundial, já perdia seu vigor e que
tenderia para o fundamentalismo. Seria uma religião de baixa classe média, exceção feita
aos batistas, como religião de humildes. Distinto das duas vertentes iniciais seria o
pentecostalismo, aqui chegado em 1910, a grande explosão religiosa do final do segundo
milênio cristão. Religião de migrantes, o pentecostalismo tornou-se o mais importante
promotor de mudanças de mentalidade na sociedade brasileira contemporânea,
principalmente, nas camadas mais pobres. Atualmente, emerge com vigor o chamado
neopentecostalismo, no qual se manifestam, também, elementos dos cultos afro-
brasileiros em impressionante sincretismo. O historiador aprende no estudo da História
que existe uma concomitância de tempos. Assim, coexistem em nossa sociedade
elementos da religião pré-moderna, moderna e pós-moderna.
Referências bibliográficas

DREHER, Martin N. A Crise e a Renovação da Igreja no Período da Reforma. 5ª. Ed. São
Leopoldo: Sinodal, 2010.

DREHER, Martin N. A Igreja Latino-Americana no Contexto Mundial. 2ª. Ed. São


Leopoldo: Sinodal, 2005

DREHER, Martin N. A Igreja no Mundo Medieval. 6ª. Ed. São Leopoldo: Sinodal, 2007.

Você também pode gostar