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A encarnação do verbo segundo Santo Atanásio

Nelson Antonio Henrique1

Introdução

Atanásio nasceu em 296 d.C, no Egito, e por ser baixinho e de pele


morena recebeu o apelido de “Anão Negro” por seus inimigos. Esse bispo e
doutor da Igreja cresceu dentro de uma sociedade imperial, onde experimentou
severa perseguição aos cristãos quando tinha apenas cinco anos no governo do
Imperador Diocleciano. Isso durou até 311, com Máximo, o novo imperador. Tal
peleja fortaleceu sua fé. A igreja passa a experimentar a liberdade somente com
Constantino, no ano 313, quando este imperador assinou o Edito de Milão, dando
à Igreja o status de oficial.

Atanásio foi um dos mais ilustres doutores da igreja, como apologista e


polemista, diante das distorções arianas. Ainda jovem meditava em todos os
livros do Antigo e Novo Testamento. O contato com Antão, eremita que vivia no
deserto, o ajudou a desenvolver a vida de oração e meditação. A controvérsia
surgiu na cidade de Alexandria, quando Licínio ainda governava no Leste e
Constantino no Oeste. “Tudo começou com uma série de desacordos teológicos
entre Alexandre, bispo de Alexandria, e Ário, um dos presbíteros de mais
prestígio e popularidade na cidade.” (GONZALEZ, 1995, p. 90).

Atanásio, percebendo o engodo dos deuses estranhos, carregados de


sentimentos idólatras que dominavam o pensamento na época, precisa
posicionar-se quanto à invenção de ídolos. As epopeias, no berço da filosofia,
eram análogas às vaidades dos escultores que, de uma pedra bruta criavam
seus deuses.

Ário foi um presbítero de destaque na igreja de Alexandria. Tendo


caminhado nos ensinos de Orígenes, os quais, por síntese, podemos

1Licenciado em Filosofia pelo Centro Universitário Newton Paiva, Belo Horizontes/ MG. Formado
em Teologia por Instituto Teológico Quadrangular, Joinville / SC. Pós-graduado em
Aconselhamento Cristão por REFIDIM, Joinville / SC. Pós-graduando em História da Igreja por
Centro Universitário Católica de Santa Catarina, Joinville / SC. Pastor (Ministro), na Igreja do
Evangelho Quadrangular em Joinville / SC. Prontuário 36000. Membro da diretoria do Conselho
de Pastores de Joinville / SC. Registro 47. Professor de teologia nas matérias de Introdução a
Teologia e História da Igreja. Casado com Mariane Pereira Henrique e pai de Iago Nathanael
Henrique. Email: nelson.henrique07@gmail.com
compreender nestas três frases: “O Verbo não é eterno nem tem a mesma
natureza do Pai. Foi criado no tempo por Deus Pai. Só por metáfora é que lhe
chamamos Filhos de Deus”. (ATANASIO, 2010, p.11) Ário e seus discípulos
tomaram essa ideia e separaram o Filho do Pai, tornando Jesus um tipo de
segundo deus (déutero theós). Essa controvérsia coloca a cristandade em um
mesmo patamar religioso dos panteões greco-romanos.

Por detrás dos ensinos de Ário, encontramos Orígines, que influenciou


Paulo de Samosata, o qual não somente especulou sobre o adocismo de Cristo
como o fundamentou hereticamente. Para Orígines, o Logos era inferior ao Pai,
mas não deu muitas explicações sobre isso. Ário, por sua vez, comunicava que
o verbo tinha sido criado por Deus, colocando como a primeira das criaturas.
Diferente disso, o Bispo Alexandre afirmava que o verbo não era criatura e sim
coeterno com o Pai. Tal conflito veio a público, levantando protestos populares
em Alexandria a favor das ideias de Ário. O problema poderia agravar-se,
podendo dividir a Igreja Católica Oriental.

A teologia da consubstancialidade do Pai e do Filho, em Atanásio, é


compreendida como base para o Concílio de Niceia em 325 d.C, quando a
heresia ariana foi refutada e condenada. Atanásio escreve sua obra quando
ainda era um jovem diácono da igreja. Seu tratado sobre a refutação do
paganismo e encarnação do verbo explana as razões basilares na tratativa da
redenção. No aspecto filosófico, o Logos é a razão como primeira substância
proposto pelo pré-socrático Heráclito de Éfeso, considerado o pai da Dialética,
que assim se expressa: “Os homens são obtusos com relação ao ser do Logos,
tanto antes quanto depois que ouviram falar dele; e não parecem conhecê-lo,
ainda que tudo aconteça segundo o Logos”. (ABBAGNANO, 2007, p. 728)

Os antecedentes da encarnação do verbo. Criação e queda do homem.

Os antecedentes do Verbo, da compreensão, do significado que se dá à


pessoa de Cristo são fundamentais para entendimento da história da Igreja que
se constrói a partir dos evangelhos como São João escreveu no prefácio do livro
que leva seu nome: “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o
Verbo era Deus. No princípio, ele estava com Deus. Tudo foi feito por meio dele
e sem ele nada foi feito.” (Jo 1, 1-3)

O início do século IV começa com sangrenta perseguição até que


Constantino, o imperador, assina, em 13 de junho de 313 d.C, o Édito de Milão,
colocando fim à perseguição à igreja cristã. Ao mesmo tempo, insurge no seio
da Igreja heresias que precisavam ser combatidas, tais quais as ideias de grupos
judaizantes que como nos dias dos apóstolos colocavam a fé em cheque. As
controvérsias cristológicas aparecem e precisam ser depuradas ao seu real
significado; caso contrário, a Igreja estaria desintegrando do cerne que a
mantém, o próprio Cristo, o Verbo encarnado. Como escreve Santo Atanásio.

Convém, portanto, ao enunciar essas questões, falar primeiro da


criação do universo e de Deus Criador, para em seguida poder
contemplar devidamente a renovação operada pelo Verbo que tudo
criara no princípio. (ATANÁSIO, 2012, p.124).

Santo Atanásio, até então um diácono da igreja em Alexandria, apresenta-


se como um dos grandes apologistas na história da Igreja, diante dos confrontos
teológicos que brotavam por toda a cristandade da época; não muito tempo
depois do édito de Milão, no qual foi promulgado pelo imperador Constantino em
313. Surge uma corrente de pensamento sobre a humanidade de Cristo, exposta
pelo Bispo Ário. Isso levou Constantino a convocar o primeiro Concílio em Niceia
(325). Atanásio mesmo sendo um diácono, se mostrou habilidoso intérprete das
escrituras para refutar as investidas quanto à encarnação de Cristo.

Como pano de fundo para entendimento, observa-se que, para os gregos,


de quem a palavra (Logos – verbo) é tomada tinha-se tal compreensão: Era a
própria lei cósmica; como uma “mente do universo”.

Atanásio observa as várias formas e explicações e também as opiniões a


partir de matéria preexistente discutida na filosofia, em referência à criação do
mundo, que apontava para um tipo de fraqueza de Deus. No entanto, nesta
tensão, o diácono de Alexandria coloca a teologia cristã acima da filosofia grega
como a mais elevada sabedoria. Atanásio foi: “o Mais zeloso defensor da fé, no
conflito da igreja contra o arianismo e o poder imperial que apoiava os heréticos.”
Hägglund (2003, p.67). Nessa ideia, Atanásio tem a clareza de não misturar
cristianismo e filosofia, destacando a fé que vem das escrituras e a supera.
Assim ele observa:
Os hereges imaginam um demiurgo diferente do Pai de nosso Senhor
Jesus Cristo, dando provas de extrema cegueira em suas asserções.
Pois quando o Senhor disse aos judeus: “Não lestes que desde o
princípio o Criador os fez homem e mulher? e que disse: Por isso o
homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher e os dois serão uma
só carne?” (Mt 19,4a). Em seguida assinala o Criador, nesses termos:
“Portanto, que o homem não separe o que Deus uniu” (Mt 19,4s). Como
supor uma criação alheia ao Pai? São João resume tudo numa só
palavra: “Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito” (Jo 1,3).
Como haveria outro demiurgo além do Pai de Cristo? (ATANÁSIO,
2010, p.126)

Com efeito, os hereges estavam dispostos a crer nos seus mitos, porém
rejeitavam a fé e costuravam as ideias pagãs. O autor do livro de Hebreus dirá:
“É pela fé que compreendemos que os mundos foram organizados por uma
palavra de Deus. Por isso é que o mundo visível não tem sua origem em coisas
manifestas.” (Hb 11, 3)

A bondade de Deus é expressão no verbo. Aquele que criou todas as


coisas e manifestou-se por meio do filho, revelando misericórdia, fez se homem,
participando de sua humanidade para resgatar o gênero humano. Aqueles que
transgrediram a lei, a instrução de Javé e declinaram da presença do eterno em
direção à morte física e espiritual, foram criados à imagem e à semelhança, e
por desobedecerem recebem a sentença:

A Sagrada Escritura o assinala previamente, referindo a palavra de


Deus: “Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas da árvore do
conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que
dela comeres terás de morrer” (Gn 2,16.17). “Terás de morrer” não
significa apenas: Morrereis, mas permanecereis sujeitos à corrupção e
à morte. (ATANÁSIO, 2010, p.128).

Os antecedentes da encarnação do Verbo apresentam-se desde a criação


do homem, sendo este o motivo pelo qual se manifestou no corpo. O homem ao
abandonar a contemplação de Deus, passou a trilhar o caminho da transgressão
do mandamento sendo sujeito à corrupção, passando a se privar do contato com
o criador, é que a humanidade contra a sabedoria, deu ouvidos ao diabo,
colhendo o fruto amargo da rebelião; a morte. A partir dessas considerações,
entende-se que:

“O homem – diz Teófilo – deve ter a alma pura como límpido espelho.
Se a ferrugem corrói o espelho, não é mais possível ver nele refletido
o rosto humano: analogamente, se há culpa no homem, não lhe é
possível ver Deus.” (REALE, ANTISERI, 2017, p.420)
A fraqueza humana, no descuido da obediência, levou o gênero humano
ao fracasso espiritual. Tão somente o Verbo de Deus poderia, como diz Atanásio:
“Ele, o Verbo de Deus, acima de tudo, era o único, portanto, capaz de refazer
todas as coisas, de sofrer por todos, de ser em favor de todos digno embaixador
junto do Pai:” (ATANÁSIO, 2010, p. 133). Neste sentido, o Cristo encarnado
esvazia se de si mesmo para tomar a forma humana, a kenosis2 como diria
Paulo.

Em meio ao caos da desobediência humana, o Senhor mostrou - se


misericordioso, enviando seu Filho na obediência do homem perfeito, salvar o
imperfeito, restaurar todas as coisas e dar destino àqueles que um dia foram
feitos para a Glória a Deus.

A encarnação do verbo e a vitória sobre a morte e o dom da


incorruptibilidade.

Nas escrituras, encontramos a expressão Logos (grego) e no Latim


(verbum), de onde temos a tradução: Palavra ou verbo. A Cristologia de Atanásio
aponta para o verbo divino em três âmbitos: a união ao Pai, seu governo mundial
e o Deus que une, que nasce como homem. A natureza de Cristo assume a alma
humana ao encarnar, assumindo a fraqueza humana. O Logos, que é Deus de
natureza divina e humana e indivisível; é expresso no corpo por substância e
essência. Nessa época, questão central era: Como é possível compreender a
afirmação sobre Jesus Cristo, tanto humano quanto divino? Duas conhecidas
escolas do pensamento cristológicas surgiram entre os pais da Igreja,
(Alexandria e Antioquia).

“Frequentemente rotulada cristologia Logos-carne versus cristologia


Logos-homem, ou cristologia Alexandrina versus cristologia
Antioquena; essas escolas concorrentes talvez sejam mais bem
defendidas como a luta entre a cristologia da natureza única (cristologia
monofisista) versus a cristologia de duas naturezas (cristologia
diofisista).” (MORELAND; GRAIG, 2005, p. 722)

2Kenosis – Termo grego para esvazio. O apóstolo Paulo usou tal expressão quando escreveu
aos Filipenses (Fp 2,7) Foi utilizado ao longo dos séculos pelos padres da igreja e por teólogos
pós reforma.
Convém também explicitar que uma teologia herética, chamada
adocionismo, pensada Paulo de Samosata, colocava o Verbo tão somente como
homem em um primeiro momento, tornando-se divino por conta desta “adoção”
para uma missão especial. Essa doutrina foi “declarada herética pelo Sínodo de
Antioquia em 268.” (OLSON, 2001, p. 146).

A fé cristã havia saído dos “domínios judaicos” e adentrado ao mundo


pagão, exigindo uma leitura no campo da compreensão racional. Isso tudo levou
a teologia do Logos a inúmeras discussões. A cristologia estava sendo escrita,
saindo do campo da fé e peregrinando no terreno perigoso da razão. Portanto,
precisava de respostas à altura. É nesse ponto que entra a figura tão importante
de Atanásio, que, mesmo sendo diácono, decide enfrentar as insolências de Ário.
No entendimento do historiador Daniel Hops:

‘O homem que origino toda esta tragédia e que deu nome à heresia –
Ário - tinha em si uma mistura de inextrincável de qualidades e defeitos,
fundidos no cadinho desse orgulho que encontramos sempre nos
grandes hereges. Nada nele era insignificante: nem a inteligência, nem
o caráter, nem a violência, nem a ambição [...] Por volta de 321, quando
rebentou a crise, era já um velho; devia ter perto de sessenta anos.’
Dizia ele: “Uma mulher pode ter um filho antes de tê-lo dado à luz?, e
disso tiravam conclusões estranhas.” (ROPS, 1988, p. 446,447)

A encarnação do verbo é a vitória antecipada sobre a morte, pois aquele


que é não precisa provar nada a ninguém. Mesmo assim, entregou-se triunfando
sobre a morte, e aquilo que era aparente derrota torna-se o grande brado de
vitória, como escreveu o apóstolo Paulo aos Colossenses:

apagou, em detrimento das ordens legais, o título de dívida que existia


contra nós; e o suprimiu, pregando na cruz, na qual despojou os
Principados e as Autoridades, expondo-os em espetáculo em face do
mundo, levando-os em cortejo triunfal. (Cl 2,14-15).

O corpo tem papel importantantíssimo na fé cristã. O Deus transcendente,


que está para além das convenções humanas, e que decide expressar-se de
forma corpórea, habitando um corpo, faz-se um “com ele”, encarnando com
tamanha singularidade. Para tanto, o nascimento, morte e ressurreição de Cristo
são pilares da fé cristã. Sem isso não há evangelho, não há boas novas, não há
salvação. Ele decidiu na eternidade fazer-se carne, habitar entre nós, como disse
João em seu evangelho: “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós; e nós
vimos a sua glória, glória que ele tem junto ao Pai como Filho único, cheio de
graça e de verdade.” (Jo 1,14)
A fé que se expressa pelo corpo, dentro de um dualismo metafisico, não
é limitado à carne, isto é, em sua natureza humana. Nesse paradoxo encontra-
se na expressão de Cristo homem, um Deus que; decidiu manifestar-se,
tomando a forma humana, caminhando com os homens. A propósito disso,
vejamos o fragmento a seguir:

Do ponto de vista da fé cristã é portanto por meio do corpo de Jesus


de Nazaré, e só por meio dele, com sua opacidade, seus desejos, seus
gestos e suas palavras, que o Deus único e verdadeiro quis revelar-se,
tal como é verdadeiramente, e desceu até o homem, e o homem, por
sua vez, pode ir até ele, acorrer ao seu encontro e descoberta [...] Não
só Jesus, a Palavra encarnada é que é para os cristãos o lugar
teológico por excelência: é somente nele e por ele que podemos
conhecer a Deus na verdade (não existe revelação de Deus mais
expressiva do que a revelação corpórea) (GESCHÉ; SCOLA, 2009, p.
25)

Para Rops (2001), as lutas teológicas, no decorrer do século IV, foram


cheias de contradições e incertezas. Ao mesmo tempo que Constantino dava um
lugar ao sol à fé cristã, suprimindo as perseguições, encontramos dentro da
Igreja as heresias, as interpretações errôneas que colocavam em xeque os
dogmas. Foi um momento decisivo da cristandade. Cada tempo, cada época
reserva suas lutas e batalhas. Os fanáticos, em suas práticas misturadas às
especulações apocalípticas, proliferavam-se. Isso envolvia a concepção sobre o
Logos.

O Credo Niceno sintetizou a fé no Cristo encarnado, verbo de Deus, e isso


foi fundamental para a cristandade. Sem uma base sólida, a Igreja correria o
grande perigo de uma derrocada. “O Concílio se reuniu no dia 20 de maio de
325, no palácio imperial de Niceia (Sócrates, HE I 13), onde Constantino presidiu
a sessão inaugural.” (ALBERIGO, 2015, p. 26.)

O Credo, expressão de fé da Igreja foi os “números” finais do Concilio de


Niceia. Essa importância dá-se por apontar teologicamente aquilo que estava
sendo posto em dúvida. Segue o credo Niceno:

“Cremos em um só Deus onipotente (pantokrátor = Omnipotens)


criador (poiet´s = fator) de todas as coisas visíveis e invisíveis. Em num
só Senhor, Jesus Cristo, Filho unigênito de Deus, gerado (genethéis =
natus) do Pai, ou seja, da substância (Ousía = Substantia) do Pai, Deus
de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro: gerado (
ghenetós = genitus) não criado (poiethés = Factus), consubstancial
(homooúsios = consubstantialis) ao Pai, pelo qual todas as coisas
foram criadas (eghéneto = facta sunt), as que estão no céu e as que
estão na terra; por nós e para a nossa salvação Ele desceu, se
encarnou por obra do Espirito Santo [...] e no terceiro dia ressuscitou,
subiu ao céu e virá para julgar os vivos e os mortos [...]. Creio no
Espírito Santo.” (REALE E ANTISERI, 2017, 432)

Caso a Igreja não houvesse se posicionado, as consequências seriam


nefastas, e é aí que entra a figura de Atanásio, que, mesmo sendo um diácono,
tornou possível a vitória, embora tenha perdurado a heresia ariana por longos
anos. Mas, no que diz respeito às bases de uma doutrina sólida sobre a
encarnação do Verbo, isso não era apenas um embate de ideias, pois colocava
em risco toda a história do cristianismo, onde o evangelho seria rebaixado ao
nível de qualquer outra religião pagã.

A coragem de Atanásio, como secretário do Bispo de Alexandria, mostrou


ao mundo a solidez da verdade divina. O Concílio de Niceia marcou um novo
tempo para a história da Igreja, não somente no Ocidente, mas em termos
universais, como é a compreensão sobre o verbo de Deus.

Aquele que assume a humanidade e experimenta a morte pode conduzir


o homem à incorruptibilidade, vivificando e tirando-o da morte. Cristo, o verbo de
Deus, torna-se partícipe nos sofrimentos humanos para que, por meio de sua
graça pudesse reconduzir o homem ao encontro de seu sacrifício na cruz do
calvário. Por tudo isso, Paulo, o apóstolo escreveu que:

Se temos esperança em Cristo somente para esta vida, somos os mais


dignos de compaixão de todos os homens. Mas não! Cristo ressuscitou
dos mortos, primícias dos que adormeceram. Com efeito, visto que a
morte veio por um homem, também por um homem vem a ressureição
dos mortos. Pois, assim como todos morrem em Adão, em Cristo todos
receberão a vida. (Co 15, 19-21)

Cristo inaugura um novo tempo, de esperança e fé. A Igreja, que se forma


a partir de sua obra, carrega o significado da vida expresso na memória e
comunhão daqueles que se reúnem em seu nome. Nessa experiência, está o
âmago da vida em koinonia3, que se dá no amor Ágape4.

A encarnação do verbo, restauração humana conforme a imagem de Deus.

3 Koinonia é uma expressão grega para comunhão.


4 Ágape é outra expressão grega para amor divino.
A encarnação do verbo não só propôs a restauração humana como o fez
por meio da morte na cruz do calvário e deu a oportunidade ao homem de salvar-
se por fé naquele que dentre os mortos ressuscitou. Para Atanásio, Deus é
compassivo com a humanidade, dando-lhe, a capacidade de conhecer o criador
e não ter por inútil a existência. Nisto o fez participe de sua imagem e
semelhança, mesmo tendo a humanidade se afastado por desobediência,
transferindo a glória que era devida tão somente a Deus às criaturas, fazendo
valer ídolos e adorando demônios, trilhando o caminho da maldade, da
impiedade e iniquidade. Para Walker:

A união da alma de Jesus com um corpo concretiza a encarnação do


Filho/logos divino. Esta existência carnal do Filho de Deus capacita os
seres humanos a se elevarem através da fé ao conhecimento da
verdade eterna a qual o Cristo encarna – uma verdade que é sempre
a mesma, contudo sempre adaptada às variáveis capacidades e
necessidades de seus recipientes. (WALKER, 2015, p. 112)

A encarnação, a morte e ressurreição fazem parte do plano salvífico.


Jesus é as primícias em tudo, o homem do céu, expresso nos evangelhos como
Filho do homem, perfeito, sem pecado. Cristo penetra todas as coisas, ao
mesmo tempo que se revela aos homens, faz-se mistério, pois transcende a
humanidade. Temos nesses termos um tratado teológico, principalmente nos
escritos Paulinos: “Ora, Deus, que ressuscitou o Senhor, ressuscitará também a
nós pelo seu poder.” (1 Co 6, 14). Warfildl (1950 apud MACLEOD, 2007,p.182)
escreveu que: “é da esfera da verdadeira humanidade de nosso Senhor que ele
fosse sujeito a todas as emoções humanas que eram sem pecado.”

Com efeito, fazia-se necessária a autorrevelação do Verbo, cuja doação


dá-se por inteiro, completo. Ele despoja-se para que a humanidade possa ter
acesso à vida eterna, a realidade verdadeira. É nesse ponto que (ATANÁSIO,
2010, p.141) observa que: “A sedução demoníaca que a tudo envolve, ocultando
o conhecimento do verdadeiro Deus.” Unindo-se a esse pensamento
Campenhausen diz:

A encarnação foi o evento decisivo no processo da salvação. Um


semideus teria sido inútil ao homem. Para Atanásio, a salvação da
morte e a fraternidade doadora da vida com Deus são seus temas
centrais. (CAMPENHAUSEN, 2005, p.69)
O filho (Jesus) que expressa a imagem do Pai (Deus) vem a terra com o
propósito de renovar, resgatar da morte aqueles que estavam perdidos, sem
esperança, como declara nos evangelhos: “Com efeito, o filho do homem veio
procurar e salvar o que estava perdido” ( Lc 19, 10). Paulo escrevendo aos
Efésios faz coro:

Vós estáveis mortos em vossos delitos e pecados. Neles vivíeis


outrora, conforme a índole deste mundo, conforme o Príncipe do poder
do ar, o espírito que agora opera nos filhos da desobediência. Com
eles, nós também andávamos outrora nos desejos de nossa carne,
satisfazendo as vontades da carne e os seus impulsos, e erámos por
natureza como os demais, filhos da ira. Mas Deus, que é rico em
misericórdia, pelo seu grande amor como que nos amou, quando
estávamos mortos em nossos delitos, nos vivificou juntamente com
Cristo – pela graça fostes salvos – e com ele nos ressuscitou e nos fez
assentar nos céus, em Cristo Jesus, a fim de mostrar nos tempos
vindouros a extraordinária riqueza da sua graça, pela sua bondade
conosco, em Cristo Jesus. (Ef 2, 1-7)

Considerando o afastamento do homem, mergulhado nas trevas de si


mesmo e do panteão de ídolos, forjado pelo coração errante, foi necessário que
o Verbo de Deus se manifestasse na carne, mergulhando no sofrimento humano
e entregando seu corpo à morte. Na sua existência concreta com propósito claro
de resgatar o homem a sua antiga posição. Imagem e semelhança do criador. O
catecismo da igreja católica explicita que:

Na condescendência de sua bondade, Deus, para revelar-se aos


homens, fala-lhes palavras humanas: “Com efeito, as palavras de
Deus, expressas por línguas humanas, fizeram-se semelhantes à
linguagem humana, tal como outrora o Verbo do Pai Eterno, havendo
assumido a carne da fraqueza humana, se fez semelhante aos
homens.” (CATECISMO, 1997. p. 38 e 39)

Foi necessário, segundo a justiça de Deus, esmagar o próprio filho, para


resgatar a humanidade de seus pecados, e ele o fez em forma humana, trazendo
o homem novamente para um relacionamento como o Pai. Em Paulo temos:

Digo-vos, irmãos: A carne e o sangue não podem herdar o Reino de


Deus, nem a corrupção herdar a incorruptibilidade. Eis que vos dou a
conhecer um mistério: nem todos morreremos, mas todos seremos
transformados, num instante, num abrir e fechar dos olhos, ao som da
trombeta final; sim, a trombeta tocará, e os mortos ressurgirão
incorruptíveis, e nós seremos transformados. Como efeito, é
necessário que este ser corruptível revista a incorruptibilidade e que
este ser mortal revista a imortalidade. (1 Co 15, 50-53)
A imortalidade só é possível por meio de Cristo, o Verbo que encarnou,
morreu e ressuscitou como primícias dentre os mortos, para nos dar a conhecer
das grandezas da eternidade em Jesus, o filho de Deus. Sobre isso diz Atanásio:

“Ora, Deus é bom, ou antes, é a fonte de toda bondade, e quem é bom


a ninguém pode odiar. Por conseguinte, a ninguém recusaria
invejosamente a existência. Criou do nada todas as coisas por meio de
seu próprio Verbo, nosso Senhor Jesus Cristo. Apiedou-se mais do
gênero humano do que dos demais seres existentes na terra, e vendo
que ele era incapaz, pela lei de sua própria natureza, de subsistir para
sempre, concedeu-lhe algo mais; não se contentou com criar os
homens, conforme fizera a todos os animais irracionais da terra, mas
criou-os à sua imagem, fazendo-os partícipes do poder de seu próprio
Verbo. Assim, possuindo uma espécie de sombra do Verbo, e sendo
racionais, os homens poderiam permanecer na bem-aventurança,
vivendo no paraíso a verdadeira vida, que realmente possuem os
santos.” (ATANASIO, 2012, p.127).

Para tanto o Verbo fez-se homem e resgatou aqueles que estavam


perdidos, dando-lhes o status de filhos, redimidos, perdoados, Os quais
aguardam com expectativa a promessa de vida eterna com o Pai (Deus) nos
céus.
REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins


Fontes, 2007.
ALBERIGO, Giuseppe, História dos concílios ecumênicos. São Paulo:
Paulus, 1995.
ATANÁSIO, Santo. Contra os pagãos - A encarnação do Verbo - Apologia
ao imperador Constâncio - Apologia de sua fuga - Vida e conduta de S.
Antão. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2010.
BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém - Nova edição, revista e ampliada. imp.
São Paulo: Paulus, 2012.
CAMPENHAUSEN, Hans VON. Os pais da igreja: A vida e a doutrina dos
primeiros teólogos cristãos. Rio de Janeiro: CPAD, 2005.
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. 9. ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes,
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GESCHÉ, Adolphe, SCOLA, Paul. O corpo, caminho de Deus. São Paulo:
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GONZALES, Justo L. Uma história ilustrada do cristianismo vol 2: A era dos
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HÄGGLUND, Bengt. História da Teologia. 7. ed. Porto Alegre: Concórdia
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HENRY, Michel. Encarnação, uma filosofia da carne. São Paulo: É
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MORELAND, J. P; GRAIG, Wiliam Lane. Filosofia e cosmovisão cristã. São
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ROPS, Daniel. A Igreja dos apóstolos e dos mártires. São Paulo: Quadrantes,
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