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Papa Libério, S.

Atanásio e os arianos
Giuseppe Murro, Papa Liberio, S. Atanasio e gli ariani, in
«Sodalitium», nº 51, Jul.2000, pag. 48
Tradução: PZA

Muitas pessoas afirmam que o Sumo Pontífice pode enganar-se. Como


sustentação desta ideia é chamado à colação o Papa Libério que, segundo eles,
teria errado na fé. Antes de estudarmos o facto histórico, recordemos que o
caso de Libério é citado, para negar a jurisdição suprema e a infalibilidade do
Sumo Pontífice, por parte de protestantes, consiliaristas, galicanos e anti-
infabilistas. Encontra-se por isso em boa companhia quem hoje quer repropor
este exemplo para sustentar a tese segundo a qual o Papa pode enganar-se. O
Édito de Constantino no ano 313 tinha fechado o período das grandes
perseguições para os cristãos, mas se estes estavam já livres para professar a
sua fé, sobrevieram outras dificuldades a obstaculizar a Igreja. Entre estas, foi
o surgir das heresias e a ingerência do poder temporal nas coisas espirituais.

O arianismo

Um dos dogmas da fé cristã é a doutrina da Trindade, um só Deus em três


pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo. Já no séc. III a Igreja tinha de combater
contra as heresias trinitárias: alguns afirmavam que Nosso Senhor era um
simples homem, investido do poder de Deus com uma intensidade
excepcional; outros afirmavam que na realidade Jesus é o próprio Pai, para
quem não havia já distinção pessoal entre o Filho e o Pai. Ao condenar tais
heresias, a Igreja tinha ensinado que Jesus é uma pessoa divina, distinta do
Pai. A relação precisa entre a divindade do Filho e a do Pai não foi
determinada pelo Magistério. Nós sabemos que são iguais, têm a mesma
substância, têm os mesmos atributos (omnipotência, omnisciência, eternos…),
embora as pessoas sejam distintas.

Em seguida, difundiu-se a tendência de subordinar de certo modo o Filho ao


Pai, embora sem negar a divindade. O conhecido presbítero de Alexandria do
Egipto, Ario, não se limitou só a afirmar a dependência de natureza do Filho
em relação ao Pai, mas vai ao ponto de negar ao Filho a natureza divina e os
atributos divinos, como a eternidade e o ser ex Deo. Assim se exprimiam duas
fórmulas principais da doutrina ariana a propósito do Filho: “Houve um tempo
em que Ele não existia” e “Ele é de não ser”. Para Ario o Verbo (Logos) é
uma criação do Pai (que o criou do nada), criatura primeira ou mais eminente
destinada a ser instrumento para a criação dos outros seres, mas não é Deus.
Ario começou por difundir a suas doutrinas no ano 315 em Alexandria do
Egipto; o bispo da cidade, reúne um grande sínodo no ano 318, expulsa-o da
comunhão eclesiástica e comunicou ao Papa Silvestre tal decisão. Ario devia
deixar a cidade.

A controvérsia assume proporções sempre maiores; nela intervém também


Constantino o Grande, mas de maneira indevida e infeliz. É celebrado, por
fim, o Concílio de Nicéia, na Bitínia, no ano 325, onde foi redigido o famoso
Símbolo (ou Credo) que é proclamado durante a Santa Missa, no qual se
afirma que o Verbo é da mesma natureza que o Pai (consubstancial): “Deus de
Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado,
consubstancial aos Pai, por quem todas as coisas foram feitas no céu e na
terra”. Foram feridas de anátema as principais teses de Ario e os bispos seus
partidários foram excomungados e mandados para o exílio.

Mas o arianismo foi apenas rejeitado, não vencido. Dividiu-se em várias seitas
e Ario, depois do seu exílio, aderiu à dos eusebianos, os quais declaravam não
ser contrários ao Concílio de Nicéia, mas recusavam o termo
«consubstancial»: como se fosse possível fazer uma selecção no Magistério da
Igreja. O ponto comum de todas estas seitas era a aversão ao termo
«consubstancial» e a luta contra Atanásio, paladino da fé católica. Mas se os
arianos estavam unidos na oposição ao consubstancial, como explicavam a
relação entre o Pai e o Filho? “Se o Verbo não é igual ao Pai na substância
(homoousios), será ao menos semelhante a Ele (homoios) ou dissemelhante
(anomoios)? O bizantinismo não podia perder esta ocasião para trabalhar com
sofismas e conotações”1. Por este motivo as posições daqueles que negavam
que a substância do Verbo fosse semelhante à do Pai dividiam-se em três
facções.

Os que negavam totalmente toda a semelhança entre as duas substâncias


(divina, a do Pai, humana e criada, a do Verbo): eram estes os anomeos
dissimilistas, ou anomeos abertos, representados por Écio, Eudócio e Acácio.
Aqueles que aceitavam a fórmula homoios (semelhante), mas não
homoiousios (semelhante na substância): o Verbo era semelhante ao Pai só em
sentido relativo e acomodado, como a imagem reflectida no espelho é
semelhante a quem se espelha. “Evidentemente jogavam com as palavras,
especialmente depois que o anomeismo aberto foi condenado também pelo
imperador”2; a estes aderiram os eusebianos e os acacianos: eram estes
chamados anomeos dissimulados ou pseudo-similistas ou omeitas.

1
U. Benigni, Storia Sociale della Chiesa, vol. II Da Costantino alla caduta dell’Impero romano Tomo I,
Vallardi Milano 1912, pag. 239-40.
2
Rohrbacher, Storia Universale della Chiesa Cattolica, vol. 3°, libro 33°, Torino 1859, pag. 734.
Por fim, havia os similistas, ditos comummente semi-arianos: defendiam o
homoiousios, isto é, que o Verbo é semelhante na substância ao Pai.
Recusavam a fórmula «consubstancial», temendo que levasse à supressão da
distinção das três Pessoas divinas. “No fundo era um erro de fórmula e não de
fé”, afirma Benigni3. Certamente entre estes houve também alguns que
tiveram um conceito inexacto desta semelhança, e não tinham portanto a fé
católica; “mas outros eram católicos e foram reconhecidos pelo mesmo
intransigente Atanásio (De synodis, XII) como católicos enganados por um
equívoco de fórmula e por um equívoco de oportunismo”4. Proclamavam o
homoiousios, mas não ousavam afirmar o homoousios; e assim por causa de
um «iota» não afirmavam integralmente a fé. Como veremos, os bispos
católicos esforçaram-se por fazer reentrar estes últimos na comunhão da Igreja
Católica.

Na corte de Constantino trabalharam com sucesso os arianos, apoiados


sobretudo pela irmã do imperador, Constança. No ano 328, os exilados
puderam reentrar na pátria e alguns foram reintegrados por Constantino nas
suas sedes episcopais, donde tinham sido afastados por causa da sua heresia; e
assim em pouco tempo os arianos conseguiram afastar das sedes episcopais os
chefes do partido niceno, isto é, os bispos católicos, entre os quais Atanásio,
tornado bispo de Alexandria, mandado para o exílio em Tréveris.
Inclusivamente Constantino tinha já projectada a solene readmissão de Ario,
mas faleceu inesperadamente.

Depois da morte de Constantino, houve fases alternadas na luta contra a


heresia: o Império é dividido entre os filhos de Constantino, Constante que
regia o Ocidente e Constâncio II que regia o Oriente, e por alguns anos houve
paz. Mas, quando Constâncio, que tinha os arianos em grande simpatia, se
torna único imperador, a seguir à morte do irmão, a luta reacende-se e
começaram as perseguições. “À medida que os perigos do estado diminuíam,
em Constâncio retomava força a inquietação dos Concílios e das controvérsias
teológicas”5. No ano 351, celebra-se um sínodo em Sírmio (a actual
Mitrovicza), na Panónia, onde residia então o imperador, e é estabelecido um
símbolo de fé (primeira fórmula de Sírmio) no qual se omitia que o Pai e o
Filho são da mesma substância. Ursácio e Valente, os dois bispos arianos mais
facciosos, tornaram-se os conselheiros teológicos do imperador: os bispos
fiéis à fé de Nicéia foram privados das suas sedes, São Paulo de
Constantinopla é exilado e morto.

Mas o inimigo de sempre era Atanásio: era preciso tirá-lo da sua diocese.
Morto Júlio I, no ano 352, os arianos fizeram pressões junto do novo Papa,

3
U. Benigni, idem.
4
U. Benigni, idem.
5
U. Benigni, idem.
Libério, a fim de que excomungasse Atanásio. Libério examinadas as provas,
não só refutou, mas declarou Atanásio inocente de toda a culpa; pede por isso
ao imperador que se reúna um concílio geral em Aquileia. Mas Constâncio faz
com que o concílio se fizesse no ano 353 na cidade onde ele residia naquele
momento, Arles, com a evidente intenção de dirigi-lo com a sua influência.
Foram convocados também os bispos da Gália, mas o sínodo era guiado
praticamente por bispos arianos: não foi apresentada nenhuma das questões
teológicas então discutidas, mas só um decreto já preparado que continha a
condenação de Atanásio. Os legados papais procuraram opor-se, mas
inutilmente: Valente, um dos dois bispos arianos conselheiros do imperador,
conseguiu apresentar com destreza o documento, e o imperador ameaçou
destituir e exilar os bispos ocidentais se não assinassem as decisões do sínodo.
Assim todos os bispos, um depois de outro, assinaram, incluindo o legado
pontifício, Vicente de Cápua, engando e maltratado; recusou-se, no entanto
Paulino de Tréveris, que é exilado na Frígia onde a seguir morre. O Papa
Libério fica desgostado pela defecção dos bispos e do seu legado6. Por isso
enviou ao imperador uma carta, na qual defendia com firmeza a inocência de
Atanásio, os direitos da Igreja, a excomunhão dos arianos e a necessidade de
reunir um concílio. Entretanto Constâncio manda matar o seu primo Gallo,
que governava o Oriente, por temor que quisesse tornar-se independente dele.
Quando surge a notícia da morte de Gallo, a corte festejou como se se tratasse
de uma vitória, adulou a omnipotência do imperador e o próprio Constâncio se
apresentava com os títulos de ‘senhor do mundo’ e ‘eterno’. “Os bispos
arianos, que negavam esta qualidade ao Filho de Deus, não se envergonhavam
de dá-la ao vão e ridículo Constâncio”7.

O Concílio de Milão

No ano 355, Constâncio quer reunir um Concílio em Milão, estando presentes


mais de trezentos bispos do Ocidente. “Com este sínodo teve início uma
humilhante tragédia que manchou muito gravemente o imperador, que não
tolerou a mínima oposição à sua vontade e se deixou tomar por medidas
sempre mais duras”8. Libério convence Santo Eusébio de Vercelli a participar
nele, com a esperança de fazer triunfar a fé católica. Mas em Milão os arianos
fizeram com que Eusébio e os legados pontifícios esperassem dez dias, sem
iniciar o concílio, para organizarem melhor as suas maquinações. De facto, na
abertura do Concílio, eles quiseram que se começasse com a condenação de
Atanásio; os católicos guiados pelo bispos Santo Eusébio, Lucífero de
Cagliari e São Dinis de Milão, responderam que era preciso primeiro
subscrever o símbolo de Nicéia, para assegurar-se da catolicidade dos

6
Libério lamentou esta defecção em vários bispos, entre os quais o ancião Ósio, bispo de Córdoba, que
tinha participado no Concílio de Nicéia.
7
Rohrbacher, op. cit., pag. 738.
8
Karl Baus, Eugen Ewig, Storia della chiesa, L’epoca dei Concili, diretta da H. Jedin, Jaca Book 1980, pag.
45.
presentes. Surgiu uma grande agitação: o povo, ouvindo o tumulto, acorreu e,
escandalizado, começou a deplorar a falta de fé dos bispos arianos. Estes
últimos, temendo o pior, refugiaram-se no palácio do imperador. Constâncio
decide então transferir as seguintes sessões para seu palácio, em vez da igreja
onde ele havia começado, e com ameaças ele obteve o mesmo resultado que
em Arles. Os arianos leram um édito de Constâncio cheio das suas heresias.
Não conseguindo fazê-lo aceitar, Constâncio fez vir à sua presença os três
opositores: Lucífero, Eusébio e Dinis, e pede-lhes em nome da sua autoridade
de imperador que assinem a condenação de Atanásio. Mas os três bispos
recusam-se firmemente, embora ameaçados de morte. Constâncio então
mandou-os para o exílio, enquanto Ursácio e Valente fizeram espancar o
diácono Hilário que acompanhava Lucífero. Assim a maior parte dos bispos
assinou, por debilidade ou por coacção, a condenação de Atanásio. Quem não
assinou foi caluniado, destituído da sua sede logo, ou pouco tempo depois9.
Eusébio foi mandado para a Palestina, Lucífero para a Síria, Dinis para a
Capadócia. O Papa Libério escreveu-lhes uma carta: “Que conforto posso dar-
vos, dividido como estou entre a dor da vossa ausência e a alegria da vossa
glória? A melhor consolação que posso oferecer-vos é a de me considerardes
exilado convosco. Oh quanto teria desejado, dilectíssimos irmãos, ser imolado
em vosso lugar! (…) Suplico, pois, à vossa caridade que me considereis
presente ao vosso lado e que penseis que a minha maior dor é ver-me separado
da vossa companhia”10. Este desejo de Libério realizar-se-á pouco tempo
depois. Os arianos, com efeito, sabiam que para ter um sucesso definitivo, era
preciso alcançar o seu consentimento.

Enquanto isso, os mensageiros imperiais foram enviados aos bispos ausentes


para obter sua assinatura de qualquer maneira: mas na Gália encontraram uma
forte oposição à frente da qual estava Santo Hilário de Poitiers. Para contornar
isso, é reunido um sínodo em Béziers, no ano 356, e Santo Hilário foi coagido
a participar nele: a assinatura para a condenação de Atanásio foi tomada à
maioria dos bispos com violência e ameaças. Recusaram-se apenas Santo
Hilário e Rodânio de Tolosa, que foram exilados para a Frígia11.

Libério e Constâncio

O imperador pensou, portanto, enviar a Libério um seu mensageiro, o eunuco


Eusébio, com presentes, para obter o seu favor e ao mesmo tempo para lhe
pedir a sua adesão à condenação de Atanásio e a sua comunhão com os
arianos. Diante da recusa dos presentes, Eusébio ficou irritado e ameaçou
Libério asperamente; dali dirigiu-se à igreja de São Pedro e ali deixou os seus

9
Rohrbacher, op. cit., pag. 739-740.
10
Liberius, Epist. VII, Patrologia, Migne t. VIII, p. 1356. Rohrbacher, op. cit., pag. 741.
11
Karl Baus, Eugen Ewig, op. cit., pag. 46.
presentes. Quando Libério o soube, indignou-se com o guardião que os tinha
aceitado e mandou deitar fora aquela oferenda profana.

Regressado Eusébio a Milão, Constâncio escreveu ao governador de Roma,


Leôncio, para que conduzisse Libério a Milão às boas ou às más. Um grande
terror se espalha então por toda a Roma: muitas famílias foram ameaçadas,
vários fugiram, as portas da cidade foram postas sob vigilância, em suma,
queria isolar-se o Pontífice. Também Roma conheceu bem a violência dos
arianos, de quem até agora somente tinha ouvido falar. Por fim Libério foi
arrebatado de noite, por temor do povo que o amava.

Junto a Milão, Constâncio concede-lhe audiência, ou antes o interrogou,


diante do seu consistório e na presença de estenógrafos que registavam as suas
palavras. «O imperador queria que Libério sancionasse cegamente a
condenação de Atanásio. Mas Libério mantém firme aquele princípio romano
de que a Sede Apostólica só condena os processados e julgados por ela… No
seu colóquio com César, o Papa requer um processo eclesiástico a Atanásio,
“visto que não pode acontecer que nós condenemos alguém de quem não se
fez julgamento”. Constâncio replicou com uma verdade oficial: que “todo o
mundo o condenou”. Libério responde: “Aqueles que subscreveram a sua
condenação, não tiveram em conta os factos, mas somente quiseram
conquistar o teu favor ou fugir da tua ira e da tua má fama” (…). Então o
tirano insistia: “Só te é pedido isto (condenar Atanásio); por isso pensa na paz
e subscreve-a, para que possas voltar a Roma”. Heróica foi a resposta de
Libério: “Em Roma eu já disse adeus aos irmãos; é pois mais importante para
mim observar as leis da Igreja do que morar em Roma”»12. Constâncio deu-
lhe três dias para reflectir, mas dois dias depois, visto que o Pontífice não
mudava de parecer, mandou-o para o exílio em Bereia, na Trácia. Era o ano de
356. Logo que Libério saiu, Constâncio fez-lhe chegar 500 soldos de ouro
para as suas despesas, mas Libério respondeu a quem lhos levava: “Devolve-
os ao imperador, que tem necessidade deles para os seus soldados”. O mesmo
fez a imperatriz e Libério, ao dar a mesma resposta ao portador, acrescentou
que se o imperador não tinha necessidade do dinheiro, o desse aos bispos
arianos que o rodeavam, os quais certamente precisavam dele. Até o eunuco
Eusébio lhe ofereceu dinheiro, mas Libério disse-lhe: “Tu tornaste desertas
todas as igrejas do mundo e ofereces-me uma esmola como a um condenado!
Vai, e começa a fazer-te cristão”13.

A perseguição

Logo que o Papa partiu, Constâncio fez colocar no seu lugar, como bispo de
Roma, Félix II, antipapa. Não obstante este tivesse aceitado o Concílio de

12
U. Benigni, op. cit., pag. 241-3.
13
Rohrbacher, op. cit., pag. 744-745.
Nicéia, pelo simples facto de que ele estava em comunhão com os arianos, o
povo romano não queria entrar na igreja da qual tinha tomado posse.

A perseguição começou em todo o império. Os arianos convenceram


Constâncio que era conveniente que o velho Ósio14 assinasse também ele a
condenação de Atanásio. Depois de uma troca de cartas, onde Ósio afirmou a
fé nicena e recordou como Atanásio foi sempre reconhecido inocente de todas
as falsas acusações feitas pelos arianos, o imperador mandou-o para o exílio
em Sírmio. Então foram enviados por toda a parte ministros de Constâncio
com ordens ameaçadoras: aos bispos, para que assinassem a condenação de
Atanásio e entrassem em comunhão com os arianos, sob pena de banimento,
prisão, castigo corporal e confisco dos próprios bens; aos juízes, para que
fizessem cumprir tais ordens aos bispos. Além do mais, os ministros de
Constâncio foram acompanhados de clérigos de Valente e Ursácio, que
denunciavam os juízes mais negligentes. Assim aconteceu que muitos bispos
foram conduzidos à presença dos juízes para assinar a condenação de
Atanásio. Quem se recusava a assinar, depois de algum tempo era acusado de
um qualquer delito (calúnia, blasfémia…) e então mandado para o exílio,
enquanto o seu lugar era tomado por um ariano.

Entretanto, Constâncio enviou tropas para Alexandria com a ordem de prender


Atanásio: estas entraram à meia-noite na igreja onde Atanásio celebrava um
ofício nocturno da vigília de uma festa. O bispo não quis mover-se até que
todos os fiéis não estivessem a salvo, e então – quando a maioria já estava
protegida – alguns dos seus clérigos o tomaram à força e o fizeram fugir.
Atanásio escondeu-se por um longo tempo, primeiro em Alexandria, e depois
no deserto. Para o seu lugar foi nomeado Jorge da Capadócia, enquanto em
todo o Egipto começava a perseguição dos bispos católicos. Jorge, o novo
bispo de Alexandria, comportava-se com tal crueldade, que até os pagãos se
queixavam dele ao imperador. Os católicos de Alexandria reuniam-se agora
fora da cidade: aconteceu uma ocasião em que, enquanto estavam reunidos
num cemitério, aparece um capitão, Sebastião, com três mil homens armados,
a mando dos arianos, e fez acender uma fogueira enorme, ameaçando queimar
quem não quisesse seguir a fé dos arianos. Uma vez que as ameaças não
aterrorizavam os católicos, Sebastião mandou que fossem açoitados com
vergastas entrelaçadas, pelo que muitos morreram com as dores e os seus
corpos foram deitados aos cães; os fiéis honraram estes confessores da fé
como mártires. Jorge, por causa da sua crueldade, teve de sair de Alexandria
uma primeira vez; em seguida, voltando, foi morto durante uma sublevação
dos pagãos.

Constâncio em Roma: libertação de Libério

14
Ósio, bispo de Córdoba, que tinha participado no Concílio de Niceia.
Em Abril de 357, Constâncio, que nunca tinha visto Roma, fez aí a sua
entrada solene. As matronas romanas das nobres e ricas famílias suplicaram
insistentemente ao imperador que restituísse a Roma o seu pastor: disseram-
lhe que Félix estava em comunhão com os arianos e nenhum romano entrava
na igreja onde ele se encontrava. Mas Constâncio “adoptou um procedimento
muito bizantino”: depois de ter prometido que iria atendê-los, deu depois
ordens para que em Roma estivessem ao mesmo tempo Libério e Félix. Mas o
povo, “que não era bizantino e não queria bizanterias”, ao saber isso, quando
estava no circo a assistir aos jogos, gritou: “Um só Deus, um só Cristo, um só
bispo”15. Quando, em seguida, Libério pôde regressar a Roma, o povo
acolheu-o triunfalmente e, pouco depois, caiu Félix.

O Papa Libério proclamou excluídos da comunhão eclesiástica aqueles que


não admitiam uma total semelhança, na substância e em tudo o resto, do Filho
com o Pai, reafirmando assim a fé católica integralmente.

A “queda” de Ósio

O velho Ósio, já quase centenário, encontrando-se no exílio em Sírmio,


maltratado e ferido, e novamente rodeado pelo arianos no ano 357. Diz-se que
foi convencido a assinar a fórmula de fé (segunda fórmula de Sírmio), na qual
não só se omitia o consubstancial, mas também o «semelhante»; todavia ele
recusou subscrever a condenação de Atanásio. Atanásio afirma acerca de
Ósio: “Cedeu aos arianos por um instante, não porque acreditava que eu era
culpado, mas apenas porque não suportou os maus-tratos, em virtude da
debilidade da sua velhice”16. São Febádio, bispo de Agen, relativisou o facto,
para mostrar aos católicos que não se impressionassem com esta queda tão
propalada pelos arianos: “… atiram-nos com o nome de Ósio, o mais antigo
de todos os bispos, aquele cuja fé foi sempre tão segura; mas eu respondo que
não se pode usar a autoridade de um homem que agora se engana ou que se
enganou sempre… Se agora defende o que sempre condenou no passado, a
sua autoridade de nada vale; com efeito, se ele acreditou mal durante noventa
anos, eu não considero que creia bem depois dos noventa anos… A autoridade
do justo não o salvará se ele cai uma vez no erro”17.

Não se pode afirmar com certeza que Ósio tenha cedido: é preciso ter presente
que o facto da sua queda foi divulgado pelos arianos que o tinham prisioneiro
e depois foi retomado pelos discípulos de Lucífero de Cagliari e Gregório de
Elvira, de tendência rigorista, que o contaram depois das lendas contra Ósio 18.

15
U. Benigni, op. cit., pag. 244-5, que cita: Sócrates, l. 2 c. 37. Teodoreto, H. E., II, 17; Sulp. Sev. II, XLIX.
Vee também: Rohrbacher, op. cit., pag. 789.
16
S. Ilario, De syn. 11, 43, 8. Sozom. Hist. Eccl. 4, 12. Citati da Llorca, Villoslada, Laboa, Historia de la
Iglesa Catolica, I Edad Antigua, B.A.C. 1990, pag. 414.
17
Bibl. Patrum, t. 4. Citado por Rohrbacher, op. cit., pag. 790.
18
Llorca, Villoslada, Laboa, op. cit., pag. 414.
Contudo, se ele assinou verdadeiramente a segunda fórmula de Sírmio, fê-lo
num momento em que a sua vontade não era livre, tratando-se de um homem
quase centenário, maltratado e exilado.

Divisão entre os arianos

A ala extrema da facção ariana, os dissimilistas, fez um concílio onde foi


condenada a expressão de semelhante na substância (sustentada por sua vez
pelos similistas), com o pretexto de que assim se tinha afirmado na segunda
fórmula de Sírmio. Contra eles, os similistas (ou semi-arianos) fizeram um
concílio em Ancira, no qual excomungaram quem negava que o Filho é
semelhante ao Pai na substância, mas condenaram o termo «consubstancial».
Enviaram depois uma delegação comandada por Basílio de Ancira e outros a
Sírmio, onde estava o imperador, para apresentar-lhe esta profissão de fé,
privada porém do artigo que condenava o consubstancial. O imperador, que
tinha apenas aprovado os dissimilistas, retratou-se, deu novas ordens e
ameaçou com graves penas os que não acreditassem como ele. Isto demonstra
a frivolidade e a ligeireza com que Constâncio tratava os assuntos
gravíssimos. Por outro lado, convocou um outro concílio em Sírmio, no ano
358, no qual prevaleceram os semi-arianos: o concílio teve um carácter anti-
ariano, foi condenada a segunda fórmula de Sírmio, foi excluído o termo
«semelhante na substância», tal como também o termo «consubstancial»
(terceira fórmula de Sírmio). Neste concílio, portanto, deu-se um passo em
frente na condenação do arianismo, embora a doutrina católica não fosse
exposta plenamente.

Santo Hilário, que se encontrava no exílio, escreveu neste período o De


Synodis, no qual louvava os participantes no Concílio de Ancira, chamando-
lhes ‘dilectíssimos irmãos’, por terem condenado a segunda fórmula de
Sírmio. Explicava-lhes que não deviam ter medo do termo «consubstancial»,
visto que ele não suprimia a distinção entre as pessoas divinas e que o
Concílio de Nicéia o tinha utilizado. Santo Hilário esperava chegar a um
consenso com os semi-arianos.

O epílogo

Neste ponto, Constâncio quis reunir um novo concílio, mas os arianos


dissimilistas convencem-no a fazer dois, separando os bispos ocidentais dos
orientais. Tratava-se de concílios convocados pelo imperador (que nem sequer
era baptizado, mas catecúmeno), e para o qual o Papa não foi interpelado. No
ano 359, reuniram-se pois em Rímini quase quinhentos bispos representantes
do ocidente e em Selêucia cerca de cento e oitenta para o oriente. Os arianos
já se tinham reunido em Sírmio para preparar os documentos: lá havia sido
elaborada a quarta fórmula de Sírmio, na qual se bania o termo «substância» e
se dizia que o Filho é semelhante ao Pai em tudo. Aberto em Rímini o
concílio, depois de várias disputas, os bispos rejeitaram esta fórmula e
reconfirmaram os decretos de Nicéia; Ursácio e Valente, que não queriam
assinar os decretos, foram condenados e depostos. O concílio enviou dez
legados ao imperador, mas este, rodeado como estava de apenas arianos,
hesitou até que conseguiu fazer assinar aos mesmos legados uma outra
fórmula (em Nice, na Trácia, cidade escolhida expressamente para fazê-la
confundir com Nicéia da Bitínia), que recalcava a quarta fórmula de Sírmio
(suprimindo a expressão «em tudo») e fê-la chegar a Rímini para ser aceite.
Os bispos já fartos de estar ali há vários meses, aceitaram-na na sua grande
maioria, alguns acrescentando notas à sua assinatura. Mas o povo sublevou-se,
devido à prevaricação ocorrida, e então, na igreja onde os bispos estavam
reunidos, foi feita uma profissão de fé geral em voz alta, mas só oral: nela o
erro ariano era condenado, no entanto a fé católica não fora afirmada de
maneira tal que o erro fosse completamente debelado. Valente e Ursácio,
perjuros, não tiveram dificuldade em unir-se a esta profissão de fé oral,
facilitados ainda pela fórmula ambígua: na realidade a sua profissão fora feita
só com os lábios. O Papa Libério condenou o concílio de Rímini. O concílio
de Selêucia fora dominado pelos semi-arianos; mas os homeistas separaram-se
dele e recorreram ao imperador que lhes impôs a mesma fórmula de Rímini. O
protesto dos semi-arianos foi vão, e muitos deles acabaram no exílio.

Constâncio estava determinado a restaurar a paz religiosa a qualquer custo no


ano de 360; por isso enviou a ordem aos bispos de assinarem a fórmula de
Rímini, sobretudo no oriente. Esta fórmula devia a partir de então substituir a
de Nicéia, a fé ariana era a única confissão cristã admitida. Também as tribos
germânicas começaram a converter-se ao arianismo homeísta. Foi então que
São Jerónimo exclamou: «O mundo, gemendo, admirou-se de ser ariano».

Fim da perseguição

Depois de ter condenado o Concílio de Rímini, o Papa Libério ofereceu aos


bispos, que tinham assinado a fórmula de Rímini, a possibilidade de retornar à
comunhão eclesiástica com a condição de retratar-se: muitos deles foram
vítimas de enganos; mas o Papa não fez tal oferta aos autores do texto, ao
saber da sua má-fé. O ocidente foi mais poupado à perseguição que o oriente,
dado que no ano 360 Santo Hilário pôde reunir um sínodo dos bispos da Gália
em Paris, onde foi condenada a fórmula de Rímini, e em Espanha Gregório de
Elvira não tinha aderido à fórmula de Rímini.

Foram os acontecimentos políticos a parar o triunfo do arianismo. Constâncio


morreu no ano 361, depois de ter recebido o baptismo por um bispo ariano; o
seu primo Juliano, o apóstata, tinha tomado o poder e, para lançar maior
confusão (esperava que novas lutas entre arianos e não-arianos favorecessem
o paganismo) tinha feito reentrar na sua sede todos os bispos exilados.
Também Santo Atanásio voltou a Alexandria, onde no ano 362 faz um sínodo
que aprovou o credo de Nicéia, condenou os arianos, mas usou de clemência
para com os semi-arianos (coisa que provocou a desaprovação de Lucífero de
Cagliari, o qual a seguir parece que fez um cisma)19.

Morto Juliano, Valentiniano I torna-se imperador do ocidente (364-375), e o


seu irmão Valente, que favoreceu os arianos dissimilistas, foi imperador no
oriente (364-378): novamente foram mandados para o exílio os católicos,
entre os quais Atanásio, e também os semi-arianos; uma delegação destes
últimos foi a Roma, onde foi recebida pelo Papa Libério. Ele pede-lhes e
obtêm deles o repúdio da fórmula de Rímini, a profissão da fé de Nicéia e, por
isso, os aceitou na comunhão. Muitos bispos semi-arianos retornaram assim à
unidade com Roma. Libério morreu em Setembro de 366, Atanásio no ano
373. Depois da morte de Valente, a fé de Nicéia triunfou também no oriente,
defendida pelos três grandes Capadócios: São Basílio, São Gregório de
Nanzianzeno e São Gregório de Nissa. Durante o império de Teodósio, o
Grande (379-395), sob o pontificado de São Dâmaso, realiza-se, no ano 381,
em Constantinopla, o Concílio Geral do Oriente, que em seguida foi
reconhecido como segundo Concílio Ecuménico. A fé de Nicéia foi
reconfirmada, o arianismo e as heresias afins foram definitivamente
condenadas. O arianismo sobreviveu ainda algum tempo nas tribos
germânicas, como religião nacional, combatida por Santo Ambrósio, até que
acabou, quando a tribo germânica dos Francos aderiu ao catolicismo.

A «queda» do Papa Libério: o que contam os textos

No meio das controvérsias entre católicos, semi-arianos e arianos, coloca-se o


problema da «queda» do Papa Libério: se fosse verdadeira, provaria que um
Papa não é infalível, dando razão aos anti-infabilistas. Muitos autores afirmam
que o papa teria sido libertado do exílio, por causa de uma sua concessão:
teria assinado uma fórmula de fé ou claramente ariana ou ambígua, ou teria
aceitado estar em comunhão com os arianos, ou teria condenado Santo
Atanásio.

O episódio da queda de Libério é discutido pelos historiadores: vimos que os


arianos e Constâncio tinham todo o interesse em fazê-lo ceder e, por isso, o
mandaram para o exílio. Será verdade que ele capitulou para obter a sua
liberdade? “Muitas e muito diversas foram as respostas dadas a esta pergunta,
nas quais, é justo dizê-lo, aparece muitas vezes a tendência dos respectivos
historiadores”20. Todo o historiador deve objectivamente procurar os factos e
os documentos, comprovar a sua autenticidade e, depois, fazer uma crítica que
não force o que é conforme à sua opinião, nem oculte o que a contradiz. Por

19
Os autores não estão de acordo sobre se o cisma foi iniciado por Lucífero ou pelos seus sequazes,
depois da sua morte.
20
Llorca, Villoslada, Laboa, op. cit., pag. 411.
outro lado, deve, tanto quanto possível, dar uma resposta a todas as questões e
dúvidas; onde não for possível, deve honestamente dizer que, no momento
actual, não está em condições de saber mais. Vejamos antes de tudo os factos,
como são ilustrados pela Enciclopédia Católica. “Santo Atanásio na Apologia
contra os Arianos, escrita no ano 350 e ampliada no ano 360, menciona
Libério entre os bispos a si favoráveis; porém, acrescenta que não aguentou
até ao fim as privações do exílio (cap. 8); na Historia arianorum ad
monachos, escrita no ano 357, diz-se que Libério, depois de dois anos de
exílio, vencido pelas ameaças de morte, vacilou e subscreveu (cap. 41).
Ambas as passagens parecem indicar, no seu contexto, que a culpa consistiu
no abandono de Atanásio. Santo Hilário, na invectiva lançada, no ano 360,
contra Constâncio, escreveu que não sabia se o Imperador cometeu maior
impiedade ao exilar Libério ou em reenviá-lo para Roma (Contra
Constantium, cap. 2). São Jerónimo, quer no Chronicon (Ad an. Abr., 2365 =
352), quer no De viribus illustribus (cap. 97), fala da subscrição de uma
fórmula herética. O primeiro documento da Collectio Avellana, ao reportar a
resposta de Constâncio aos pedidos dos Romanos, diz: “tereis um Libério
melhor do que aquele que partiu”, comenta: “Isto indicava o consenso em que
tinha cedido à perfídia”. Rufino, por fim, refere, sem fazer sua uma ou outra,
as duas versões correntes: que o regresso foi comprado por Libério pela
concordância com a vontade imperial, ou que foi devido à condescendência de
Constâncio para com os pedidos do povo romano (Hist. Eccles. I, 27).

É evidente que no momento do regresso de Libério a Roma corria o boato de


que Libério tinha cedido em qualquer coisa a Constâncio. O historiador grego
Sozomeno, que escreve com boas informações no século V, diz que Libério
teria tido acesso a uma fórmula de Sírmio, concordando com Basílio de
Ancira, para trazer a paz ao Oriente e poder voltar para Roma21. Existem,
porém, quatro cartas que Libério teria escrito do exílio e se conservaram nos
fragmentos de Santo Hilário de Poitiers; nelas Libério mostra-se preocupado
por separar a sua responsabilidade da de Santo Atanásio e por obter a qualquer
custo o regresso a Roma. A disputa sobre a sua autenticidade está longe de
estar encerrada e, recentemente, foi notado que “a falta do cursus velox e de
outras características próprias da fraseologia de Libério tornam muito
improvável a opinião dos que sustentam que as quatro cartas arrítmicas foram
ditadas pelo Papa”22… Merece ser recordada a observação de P. Battiffol:
“Libério e Hilário tinham estendido a mão a Basílio de Ancira; ninguém
reprovou Hilário; deveremos tratar menos bem a Libério?”23.

Vejamos as hipóteses verificadas pelos autores eclesiásticos.

21
Tratar-se-ia na terceira fórmula de Sírmio. Sozomeno, HE 4, 14-15. Citado por Karl Baus, Eugen Ewig,
op. cit., pag. 49-50.
22
Fr. Di Capua, Il ritmo prosaico nelle lettere dei papi, Roma 1937, pag. 240.
23
Enc. Cattolica, voz “Liberio” col. 1270-1
Primeira hipótese: não foi uma queda

Os historiadores que defendem Libério, afirmando que não se tratou de


nenhuma queda, aduzem os seguintes argumentos:
1) A queda de Libério pode ter sido inventada pelos arianos: a calúnia,
de facto, era o seu modus operandi preferido para eliminar os
adversários. Mais vezes a utilizaram contra Atanásio e contra os
bispos que não assinaram as suas fórmulas de fé ou a condenação de
Atanásio (esconderam num convento o bispo Arsénio, e depois
acusaram Santo Atanásio de o ter matado; fugindo do convento, o
bispos mostrou-se publicamente, para grande confusão dos arianos).
Para fortalecer esta hipótese, existe ainda o facto de que, se Libério
tivesse verdadeiramente cedido, os arianos ter-se-iam ufanado,
teriam divulgado a notícia aos quatro ventos: porque se teriam
comportado de maneira diferente do que lhes era habitual? Até da
parte católica teria havido condenações, lamentos e pesares, como
fez São Fabiano a propósito da queda de Ósio. Não encontramos
praticamente nada disto.
Por outro lado, se se admite que a queda de Ósio foi uma invenção
tão bem feita pelos arianos, que Santo Atanásio acreditou nela, é
possível que o santo tenha acreditado erroneamente também na
queda de Libério.
2) A «queda» de Libério narrada por Santo Hilário, Santo Atanásio,
São Jerónimo e Filostórgio pode ter sido ou qualquer coisa de
contrário á fé ou qualquer coisa de ambíguo.
Cerca do ano 401, o Papa Santo Atanásio I escreveu a Venério,
bispo de Milão, e afirmou que a Itália vencedora conservara íntegra
a fé transmitida desde os Apóstolos, enquanto Constâncio vencedor
obtinha o domínio do mundo. Foi conservada imaculada a fé de
Nicéia, diz ele, pelos bispos que suportaram o exílio, entre os quais
Dinis, Libério de Roma, Eusébio de Vercelli, Hilário da Gália e
muitos outros, que se prontificaram para ser crucificados em vez de
afirmar que Nosso Senhor Jesus Cristo é uma criatura24.
A afirmação de Atanásio é confirmada pelos factos. Se Libério
tivesse aceitado alguma coisa de contrário à fé, por exemplo a
primeira ou a segunda fórmula de Sírmio, os outros bispos católicos
teriam protestado, teriam lamentado, ou tê-lo-iam advertido: não
temos a mínima notícia de qualquer coisa deste género, nem sequer
da parte dos mais «duros», como Lucífero de Cagliari ou Gregório
de Elvira.
Quanto às hipóteses de que Libério tinha aceitado um texto
ambíguo, como por exemplo a terceira fórmula de Sírmio (isto é

24
Epist. “Dat mihi”, D. S. 209.
afirmado por Sozomeno)25, ou qualquer coisa desse género, as
eventuais condenações – se são autênticas – por parte dos seus
contemporâneos Santo Hilário e Santo Atanásio deveríamos
reconhecer que foram exageradas e intempestivas. Com efeito, o
primeiro louvou, como vimos, Basílio de Ancira26, por causa dessa
fórmula, e o segundo aceitou seguir fórmulas semelhantes a esta,
com palavras menos explícitas do que «consubstancial», para
reconduzir à fé os semi-arianos. É justo o comentário de P. Battiffol,
que até era modernista: “Libério e Hilário tinham estendida a mão a
Basílio de Ancira; ninguém reprovou Hilário; deveríamos tratar
menos bem Libério?”.

Os textos

Os defensores do Papa Libério acrescentam ainda outros argumentos. Não se


tem a certeza da veracidade e autenticidade de muitos textos que falam da
queda de Libério.

Existem sérias dúvidas sobre as quatro cartas reportadas por Santo Hilário
(Opus historicum, Livro II, fragmentos IV e VI): nelas Libério se excluiria da
comunhão com Santo Atanásio, daria fim ao exílio, dirigiria uma petição a
Valente e Ursácio e ainda avisaria um bispo da sua mudança de atitude. Como
já se viu, nelas a falta do cursus velox mostra a não autenticidade do Opus.
Por outro lado, do Opus historicum existem apenas alguns fragmentos
dispersos em desordem: “Todos estes fragmentos foram extraídos do Opus
historicum, antes do fim do século IV, e muitos puderam ter sofrido uma
interpolação, especialmente a carta de Libério (Livro II), cuja autenticidade
está longe de estar provada”27. Mas o texto também é inverosímil: se Libério
tinha mudado assim verdadeiramente, como é que os romanos puderam
aceitá-lo, eles que recusavam Félix, porque estava em comunhão com os
arianos? Como é que ele não foi convidado para o Concílio de Rímini? Se a
prisão tivesse sido capaz de dobrá-lo uma vez, porque é que os arianos não
usaram novamente da mesma estratégia para voltarem a convencê-lo”? Com
que coragem é que Libério podia depois escrever aos bispos de Itália, tratando
com firmeza os que tinham cedido a Rímini?

Santo Atanásio fala da queda de Libério em duas obras, na Apologia contra


arianos, escrito no ano 348 e na Historia araniorum ad monachos, escrita por
volta do ano 357. A primeira foi, portanto, escrita cerca de dez anos antes do
exílio de Libério. Afirma-se que houve uma ampliação da obra por parte do
autor; mas pode também pensar-se numa interpolação da parte ariana. A

25
Sozomeno, HE 4, 14-15. Citado por Karl Baus, Eugen Ewig, op. cit., pag. 49-50.
26
Hilário, no tratado De Synodis, chama os semi-arianos de “irmãos” e “homens santíssimos”.
27
F. Cayré, A. A., Patrologie et Histoire de la Théologie, Tomo I, Desclée 1953, pag. 412.
segunda foi escrita ainda antes da suposta queda de Libério! A falsidade foi
descoberta por um detalhe: fala-se, com efeito, do ariano Leôncio como ainda
vivo. Mas sabe-se que já há tempo, quando Constâncio tinha passado por
Roma, a notícia da sua morte tinha chegado ao Imperador, isto é, muito tempo
antes que fosse dada ordem para libertar o Papa28. Quanto a São Jerónimo,
que viveu também depois, pode ter sido vítima de erro, quer no reportar o que
os arianos tinham difundido, quer em considerar verdadeiros os juízos
apressados de Santo Hilário e Santo Atanásio. De facto, afirma que Libério
assinou uma fórmula herética: mas a ausência de uma reacção da parte ariana
e católica exclui esta possibilidade. Isto é admitido pelos historiadores mais
recentes. Quanto ao testemunho de Filostórgio, esse não tem valor: era, com
efeito, um ariano furioso que contou muitas histórias inventadas,
especialmente contra Atanásio, dizendo que teria comprado o favor de
Constâncio com presentes, teria causado a rebelião de Magnésio contra ele e
teria instigado o assassínio de Jorge de Alexandria…29.

Outras provas da inocência de Libério

A queda de Libério é sustentada pelos adversários do Papado, tal como


Bossuet na Defesa da declaração galicana, na qual se negava o privilégio da
jurisdição universal e da infalibilidade do Sumo Pontífice. Mas Bossuet, na
última revisão daquela obra, retira tudo o que referia do Papa Libério, porque
não tinha provas30.

Sócrates e Teodoreto atribuem o fim do exílio de Libério às insistências dos


romanos, os quais acolheram depois triunfalmente Libério em Roma, o que
seria um contra-senso, se tivesse havido uma queda por parte de Libério.

O historiador Rufino, discípulo de Orígenes, escreveu no fim do século IV:


“Libério, bispo da cidade de Roma, voltou para a pátria, quando Constâncio
era ainda vivo; mas não sei com certeza se Constâncio lho consentiu pelo
facto de ele ter subscrito, ou se foi para agradar ao povo romano que lho tinha
suplicado”31. Ora Rufino era de Aquileia e certamente tinha conhecido o bispo
daquela cidade, Fortunanziano, a quem se atribui a queda de Libério. Não
obstante isto, Rufino não tem notícias certas e admite dever conservar ele
mesmo a dúvida. Se Libério tivesse caído, teria havido testemunhos de
arianos; se tivesse depois feito uma retractação, não seria remetida ao silêncio.
Rufino não teria tido dificuldade em encontrar provas: pelo contrário, depois

28
Rohrbacher, op. cit., pag. 788 e 790.
29
U. Benigni op. cit., pag. 234-241. Filostórgio é autor de uma história eclesiástica, da qual temos
fragmentos escolhidos por Fócio.
30
Rohrbacher, op. cit., pag. 789.
31
Rufino, Hist. Eccl. I, 127. Citado por P. Albers s. j., Manuel d’histoire ecclésiastique, Paris 1919, T. I,
pag. 189.
de apenas quarenta anos, não encontra nenhuma prova para esclarecer a sua
dúvida.

Os orientais consideram Libério como aquele que tinha sempre conservado


pura a fé: assim o sentiram São Basílio, Santo Epifânio, São Sirício. Santo
Ambrósio chama-o pontífice de feliz e santa memória. Foi honrado como
santo pelos antigos martirológios latinos, que fixaram a sua festa no dia 23 ou
24 de Setembro; os gregos, os coptas e os etíopes fixaram-na a 27 de agosto32.

Segunda hipótese: Libério aceitou um compromisso

Os defensores desta posição afirmam que, considerados os testemunhos


concordes de Santo Hilário, Santo Atanásio e São Jerónimo, aos quais se junta
a Collectio Avellana, não se pode negar a queda de Libério: vencido pelo
sofrimento do exílio, acabou por ceder. Provavelmente foi uma breve queda
porque, regressado a Roma, afirmou novamente a fé católica. Porém, a sua
reputação foi tão diminuída que, enquanto Constâncio viveu, ele não se vê
mais – dizem estes – no centro da polémica ariana33.

Para a maior parte dos autores, afirma Llorca-Villoslada-Laboa, ele assinou a


terceira fórmula de Sírmio, como Sozomeno tinha levantado a hipótese:
“Libério cedeu aos seus adversários, admitindo a fórmula que lhe
apresentaram. Isto supunha que não abandonava de maneira nenhuma a causa
defendida com tanto ardor; porém foi uma debilidade na fé… O próprio
Atanásio, um pouco mais tarde, usou o mesmo sistema com o fim de atrair os
semi-arianos e ter com eles um acordo”34. Mas estas palavras parecem dar
razão a P. Battifol: nunca ninguém reprovou Santo Hilário nem Santo
Atanásio, campeão da fé, por um semelhante acordo: porque é que para
Libério isto constituiria uma queda? Quanto à opinião de que Libério foi posto
de parte, depois do regresso a Roma, e que não fez mais nada de relevante na
luta contra o arianismo, ela é pelo menos discutível. De facto, regressado a
Roma, excomungou quem não reconhecia a semelhança em tudo entre o Pai e
o Filho; em seguida, condenou o Concílio de Rímini e aceitou depois os
Bispos na comunhão. E ainda, a propósito deste Concílio, inicialmente os
bispos, até serem libertados, na sua grande maioria (quatrocentos contra
oitenta), confessaram a fé de Nicéia e condenaram Ario. Se Libério tivesse
cedido, como poderia o episcopado resistir com fé firme, precisamente aquele
episcopado que antes, em Arles e em Milão, tinha cedido? Enfim, não
devemos esquecer que naquele momento a perseguição estava enfurecida,
todos os católicos eram obstaculizados e a liberdade de acção de Libério era
sem dúvida limitada.

32
Rohrbacher, op. cit., pag. 745; vol. 4°, libro 35°, pag. 27.
33
Karl Baus, Eugen Ewig, op. cit., pag. 49.
34
Llorca, Villoslada, Laboa, op. cit., pag. 412-3.
Terceira hipótese: caiu em heresia

As palavras do papa Santo Atanásio que reportamos, dão-nos a certeza de que


Libério conservou sempre a fé35. Todavia, poderia ter assinado uma fórmula
herética, enganado e de boa fé, ou coagido pela violência, sem advertir
interiormente: tratar-se-ia por isso de uma heresia material, ou uma falha no
testemunho da fé por parte de Libério. Já se viu que são os anticatólicos,
seguindo o testemunho de São Jerónimo, a defender que Libério teria
subscrito a primeira ou a segunda fórmula de Sírmio. Por outro lado, vimos
que o silêncio dos arianos, os poucos testemunhos católicos e tudo quanto foi
dito nas duas hipóteses precedentes parece, com muito mais forte razão,
excluir também esta última.

Solução do caso

A sã filosofia ensina que todo o acto humano tem valor se é executado


livremente, isto é, se é escolhido pela vontade do sujeito. Podem existir às
vezes obstáculos que impedem o livre exercício da vontade, pelo que a
responsabilidade do acto é diminuída ou completamente suprimida: quanto
mais importante e grave um acto é, tanto mais requer ampla liberdade para a
sua validade. Um contrato assinado sob ameaça de morte não tem nenhum
valor. Um acto do Magistério da Igreja, para ser tal, requer o máximo da
liberdade do sujeito que o promulga, dado que é um acto de extrema
importância. De facto, ensina quais são as verdades a crer, para alcançar a
salvação, questão de gravíssima importância para a vida dos homens sobre a
terra. Um documento pontifício extorquido à força não tem nenhum valor. O
Papa Libério encontrava-se no exílio no ano 358, quando obtém a liberdade.
Sem querer entrar no detalhe das hipóteses vistas acima, o que quer que ele
terá feito ou dito, ou sob a pressão dos perseguidores, ou de qualquer outra
forma em estado de prisão, não tem nenhum valor para a Igreja, não é um
“acto do Sumo Pontífice”. Neste ponto a questão da queda aparece como de
secundária importância. O Papa, com efeito, não usou do seu Magistério.
Verdadeira ou não verdadeira a queda, se assinou ou não coisas heréticas ou
ambíguas, pouco importa: o Papa não era livre e tudo o que podia dizer ou
fazer, só se empenhava a si mesmo, a sua consciência, a sua pessoa, não a
Igreja universal. O Papa, de facto, não tem o privilégio da impecabilidade, e
pode cometer actos contrários à lei de Deus: mas isto pode acontecer quando
age enquanto pessoa privada como homem, não quando ensina por meio do
Magistério revestido da autoridade do Soberano Pontífice.

35
Para um católico, o ensinamento do Papa significa certeza absoluta, pelo que todo o fiel é obrigado a
abraçar também no foro interno a doutrina ensinada.
Se Libério caiu enquanto homem, é difícil dizê-lo, em face das discordâncias
dos textos. Mas certamente Libério em quanto Papa não caiu: antes do exílio
ele afirmou claramente a fé (como no colóquio com Constâncio), a tal ponto
que acabou prisioneiro, e depois do exílio igualmente reafirmou a fé,
condenando o erro de quem não aceitava a fórmula “semelhante na substância
e em tudo ao Pai”. Isto é suficiente para resolver a questão. Como se passaram
as coisas em Bereia, na Trácia, isso diz respeito à pessoa e à consciência de
Libério. Também naqueles anos terríveis de heresias e de perseguições a
Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo permaneceu pura e sem mancha, e o
Soberano Pontífice conservou a infalibilidade para confirmar os seus irmãos
na fé.

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