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Atanásio e os arianos
Giuseppe Murro, Papa Liberio, S. Atanasio e gli ariani, in
«Sodalitium», nº 51, Jul.2000, pag. 48
Tradução: PZA
O arianismo
Mas o arianismo foi apenas rejeitado, não vencido. Dividiu-se em várias seitas
e Ario, depois do seu exílio, aderiu à dos eusebianos, os quais declaravam não
ser contrários ao Concílio de Nicéia, mas recusavam o termo
«consubstancial»: como se fosse possível fazer uma selecção no Magistério da
Igreja. O ponto comum de todas estas seitas era a aversão ao termo
«consubstancial» e a luta contra Atanásio, paladino da fé católica. Mas se os
arianos estavam unidos na oposição ao consubstancial, como explicavam a
relação entre o Pai e o Filho? “Se o Verbo não é igual ao Pai na substância
(homoousios), será ao menos semelhante a Ele (homoios) ou dissemelhante
(anomoios)? O bizantinismo não podia perder esta ocasião para trabalhar com
sofismas e conotações”1. Por este motivo as posições daqueles que negavam
que a substância do Verbo fosse semelhante à do Pai dividiam-se em três
facções.
1
U. Benigni, Storia Sociale della Chiesa, vol. II Da Costantino alla caduta dell’Impero romano Tomo I,
Vallardi Milano 1912, pag. 239-40.
2
Rohrbacher, Storia Universale della Chiesa Cattolica, vol. 3°, libro 33°, Torino 1859, pag. 734.
Por fim, havia os similistas, ditos comummente semi-arianos: defendiam o
homoiousios, isto é, que o Verbo é semelhante na substância ao Pai.
Recusavam a fórmula «consubstancial», temendo que levasse à supressão da
distinção das três Pessoas divinas. “No fundo era um erro de fórmula e não de
fé”, afirma Benigni3. Certamente entre estes houve também alguns que
tiveram um conceito inexacto desta semelhança, e não tinham portanto a fé
católica; “mas outros eram católicos e foram reconhecidos pelo mesmo
intransigente Atanásio (De synodis, XII) como católicos enganados por um
equívoco de fórmula e por um equívoco de oportunismo”4. Proclamavam o
homoiousios, mas não ousavam afirmar o homoousios; e assim por causa de
um «iota» não afirmavam integralmente a fé. Como veremos, os bispos
católicos esforçaram-se por fazer reentrar estes últimos na comunhão da Igreja
Católica.
Mas o inimigo de sempre era Atanásio: era preciso tirá-lo da sua diocese.
Morto Júlio I, no ano 352, os arianos fizeram pressões junto do novo Papa,
3
U. Benigni, idem.
4
U. Benigni, idem.
5
U. Benigni, idem.
Libério, a fim de que excomungasse Atanásio. Libério examinadas as provas,
não só refutou, mas declarou Atanásio inocente de toda a culpa; pede por isso
ao imperador que se reúna um concílio geral em Aquileia. Mas Constâncio faz
com que o concílio se fizesse no ano 353 na cidade onde ele residia naquele
momento, Arles, com a evidente intenção de dirigi-lo com a sua influência.
Foram convocados também os bispos da Gália, mas o sínodo era guiado
praticamente por bispos arianos: não foi apresentada nenhuma das questões
teológicas então discutidas, mas só um decreto já preparado que continha a
condenação de Atanásio. Os legados papais procuraram opor-se, mas
inutilmente: Valente, um dos dois bispos arianos conselheiros do imperador,
conseguiu apresentar com destreza o documento, e o imperador ameaçou
destituir e exilar os bispos ocidentais se não assinassem as decisões do sínodo.
Assim todos os bispos, um depois de outro, assinaram, incluindo o legado
pontifício, Vicente de Cápua, engando e maltratado; recusou-se, no entanto
Paulino de Tréveris, que é exilado na Frígia onde a seguir morre. O Papa
Libério fica desgostado pela defecção dos bispos e do seu legado6. Por isso
enviou ao imperador uma carta, na qual defendia com firmeza a inocência de
Atanásio, os direitos da Igreja, a excomunhão dos arianos e a necessidade de
reunir um concílio. Entretanto Constâncio manda matar o seu primo Gallo,
que governava o Oriente, por temor que quisesse tornar-se independente dele.
Quando surge a notícia da morte de Gallo, a corte festejou como se se tratasse
de uma vitória, adulou a omnipotência do imperador e o próprio Constâncio se
apresentava com os títulos de ‘senhor do mundo’ e ‘eterno’. “Os bispos
arianos, que negavam esta qualidade ao Filho de Deus, não se envergonhavam
de dá-la ao vão e ridículo Constâncio”7.
O Concílio de Milão
6
Libério lamentou esta defecção em vários bispos, entre os quais o ancião Ósio, bispo de Córdoba, que
tinha participado no Concílio de Nicéia.
7
Rohrbacher, op. cit., pag. 738.
8
Karl Baus, Eugen Ewig, Storia della chiesa, L’epoca dei Concili, diretta da H. Jedin, Jaca Book 1980, pag.
45.
presentes. Surgiu uma grande agitação: o povo, ouvindo o tumulto, acorreu e,
escandalizado, começou a deplorar a falta de fé dos bispos arianos. Estes
últimos, temendo o pior, refugiaram-se no palácio do imperador. Constâncio
decide então transferir as seguintes sessões para seu palácio, em vez da igreja
onde ele havia começado, e com ameaças ele obteve o mesmo resultado que
em Arles. Os arianos leram um édito de Constâncio cheio das suas heresias.
Não conseguindo fazê-lo aceitar, Constâncio fez vir à sua presença os três
opositores: Lucífero, Eusébio e Dinis, e pede-lhes em nome da sua autoridade
de imperador que assinem a condenação de Atanásio. Mas os três bispos
recusam-se firmemente, embora ameaçados de morte. Constâncio então
mandou-os para o exílio, enquanto Ursácio e Valente fizeram espancar o
diácono Hilário que acompanhava Lucífero. Assim a maior parte dos bispos
assinou, por debilidade ou por coacção, a condenação de Atanásio. Quem não
assinou foi caluniado, destituído da sua sede logo, ou pouco tempo depois9.
Eusébio foi mandado para a Palestina, Lucífero para a Síria, Dinis para a
Capadócia. O Papa Libério escreveu-lhes uma carta: “Que conforto posso dar-
vos, dividido como estou entre a dor da vossa ausência e a alegria da vossa
glória? A melhor consolação que posso oferecer-vos é a de me considerardes
exilado convosco. Oh quanto teria desejado, dilectíssimos irmãos, ser imolado
em vosso lugar! (…) Suplico, pois, à vossa caridade que me considereis
presente ao vosso lado e que penseis que a minha maior dor é ver-me separado
da vossa companhia”10. Este desejo de Libério realizar-se-á pouco tempo
depois. Os arianos, com efeito, sabiam que para ter um sucesso definitivo, era
preciso alcançar o seu consentimento.
Libério e Constâncio
9
Rohrbacher, op. cit., pag. 739-740.
10
Liberius, Epist. VII, Patrologia, Migne t. VIII, p. 1356. Rohrbacher, op. cit., pag. 741.
11
Karl Baus, Eugen Ewig, op. cit., pag. 46.
presentes. Quando Libério o soube, indignou-se com o guardião que os tinha
aceitado e mandou deitar fora aquela oferenda profana.
A perseguição
Logo que o Papa partiu, Constâncio fez colocar no seu lugar, como bispo de
Roma, Félix II, antipapa. Não obstante este tivesse aceitado o Concílio de
12
U. Benigni, op. cit., pag. 241-3.
13
Rohrbacher, op. cit., pag. 744-745.
Nicéia, pelo simples facto de que ele estava em comunhão com os arianos, o
povo romano não queria entrar na igreja da qual tinha tomado posse.
14
Ósio, bispo de Córdoba, que tinha participado no Concílio de Niceia.
Em Abril de 357, Constâncio, que nunca tinha visto Roma, fez aí a sua
entrada solene. As matronas romanas das nobres e ricas famílias suplicaram
insistentemente ao imperador que restituísse a Roma o seu pastor: disseram-
lhe que Félix estava em comunhão com os arianos e nenhum romano entrava
na igreja onde ele se encontrava. Mas Constâncio “adoptou um procedimento
muito bizantino”: depois de ter prometido que iria atendê-los, deu depois
ordens para que em Roma estivessem ao mesmo tempo Libério e Félix. Mas o
povo, “que não era bizantino e não queria bizanterias”, ao saber isso, quando
estava no circo a assistir aos jogos, gritou: “Um só Deus, um só Cristo, um só
bispo”15. Quando, em seguida, Libério pôde regressar a Roma, o povo
acolheu-o triunfalmente e, pouco depois, caiu Félix.
A “queda” de Ósio
Não se pode afirmar com certeza que Ósio tenha cedido: é preciso ter presente
que o facto da sua queda foi divulgado pelos arianos que o tinham prisioneiro
e depois foi retomado pelos discípulos de Lucífero de Cagliari e Gregório de
Elvira, de tendência rigorista, que o contaram depois das lendas contra Ósio 18.
15
U. Benigni, op. cit., pag. 244-5, que cita: Sócrates, l. 2 c. 37. Teodoreto, H. E., II, 17; Sulp. Sev. II, XLIX.
Vee também: Rohrbacher, op. cit., pag. 789.
16
S. Ilario, De syn. 11, 43, 8. Sozom. Hist. Eccl. 4, 12. Citati da Llorca, Villoslada, Laboa, Historia de la
Iglesa Catolica, I Edad Antigua, B.A.C. 1990, pag. 414.
17
Bibl. Patrum, t. 4. Citado por Rohrbacher, op. cit., pag. 790.
18
Llorca, Villoslada, Laboa, op. cit., pag. 414.
Contudo, se ele assinou verdadeiramente a segunda fórmula de Sírmio, fê-lo
num momento em que a sua vontade não era livre, tratando-se de um homem
quase centenário, maltratado e exilado.
O epílogo
Fim da perseguição
19
Os autores não estão de acordo sobre se o cisma foi iniciado por Lucífero ou pelos seus sequazes,
depois da sua morte.
20
Llorca, Villoslada, Laboa, op. cit., pag. 411.
outro lado, deve, tanto quanto possível, dar uma resposta a todas as questões e
dúvidas; onde não for possível, deve honestamente dizer que, no momento
actual, não está em condições de saber mais. Vejamos antes de tudo os factos,
como são ilustrados pela Enciclopédia Católica. “Santo Atanásio na Apologia
contra os Arianos, escrita no ano 350 e ampliada no ano 360, menciona
Libério entre os bispos a si favoráveis; porém, acrescenta que não aguentou
até ao fim as privações do exílio (cap. 8); na Historia arianorum ad
monachos, escrita no ano 357, diz-se que Libério, depois de dois anos de
exílio, vencido pelas ameaças de morte, vacilou e subscreveu (cap. 41).
Ambas as passagens parecem indicar, no seu contexto, que a culpa consistiu
no abandono de Atanásio. Santo Hilário, na invectiva lançada, no ano 360,
contra Constâncio, escreveu que não sabia se o Imperador cometeu maior
impiedade ao exilar Libério ou em reenviá-lo para Roma (Contra
Constantium, cap. 2). São Jerónimo, quer no Chronicon (Ad an. Abr., 2365 =
352), quer no De viribus illustribus (cap. 97), fala da subscrição de uma
fórmula herética. O primeiro documento da Collectio Avellana, ao reportar a
resposta de Constâncio aos pedidos dos Romanos, diz: “tereis um Libério
melhor do que aquele que partiu”, comenta: “Isto indicava o consenso em que
tinha cedido à perfídia”. Rufino, por fim, refere, sem fazer sua uma ou outra,
as duas versões correntes: que o regresso foi comprado por Libério pela
concordância com a vontade imperial, ou que foi devido à condescendência de
Constâncio para com os pedidos do povo romano (Hist. Eccles. I, 27).
21
Tratar-se-ia na terceira fórmula de Sírmio. Sozomeno, HE 4, 14-15. Citado por Karl Baus, Eugen Ewig,
op. cit., pag. 49-50.
22
Fr. Di Capua, Il ritmo prosaico nelle lettere dei papi, Roma 1937, pag. 240.
23
Enc. Cattolica, voz “Liberio” col. 1270-1
Primeira hipótese: não foi uma queda
24
Epist. “Dat mihi”, D. S. 209.
afirmado por Sozomeno)25, ou qualquer coisa desse género, as
eventuais condenações – se são autênticas – por parte dos seus
contemporâneos Santo Hilário e Santo Atanásio deveríamos
reconhecer que foram exageradas e intempestivas. Com efeito, o
primeiro louvou, como vimos, Basílio de Ancira26, por causa dessa
fórmula, e o segundo aceitou seguir fórmulas semelhantes a esta,
com palavras menos explícitas do que «consubstancial», para
reconduzir à fé os semi-arianos. É justo o comentário de P. Battiffol,
que até era modernista: “Libério e Hilário tinham estendida a mão a
Basílio de Ancira; ninguém reprovou Hilário; deveríamos tratar
menos bem Libério?”.
Os textos
Existem sérias dúvidas sobre as quatro cartas reportadas por Santo Hilário
(Opus historicum, Livro II, fragmentos IV e VI): nelas Libério se excluiria da
comunhão com Santo Atanásio, daria fim ao exílio, dirigiria uma petição a
Valente e Ursácio e ainda avisaria um bispo da sua mudança de atitude. Como
já se viu, nelas a falta do cursus velox mostra a não autenticidade do Opus.
Por outro lado, do Opus historicum existem apenas alguns fragmentos
dispersos em desordem: “Todos estes fragmentos foram extraídos do Opus
historicum, antes do fim do século IV, e muitos puderam ter sofrido uma
interpolação, especialmente a carta de Libério (Livro II), cuja autenticidade
está longe de estar provada”27. Mas o texto também é inverosímil: se Libério
tinha mudado assim verdadeiramente, como é que os romanos puderam
aceitá-lo, eles que recusavam Félix, porque estava em comunhão com os
arianos? Como é que ele não foi convidado para o Concílio de Rímini? Se a
prisão tivesse sido capaz de dobrá-lo uma vez, porque é que os arianos não
usaram novamente da mesma estratégia para voltarem a convencê-lo”? Com
que coragem é que Libério podia depois escrever aos bispos de Itália, tratando
com firmeza os que tinham cedido a Rímini?
25
Sozomeno, HE 4, 14-15. Citado por Karl Baus, Eugen Ewig, op. cit., pag. 49-50.
26
Hilário, no tratado De Synodis, chama os semi-arianos de “irmãos” e “homens santíssimos”.
27
F. Cayré, A. A., Patrologie et Histoire de la Théologie, Tomo I, Desclée 1953, pag. 412.
segunda foi escrita ainda antes da suposta queda de Libério! A falsidade foi
descoberta por um detalhe: fala-se, com efeito, do ariano Leôncio como ainda
vivo. Mas sabe-se que já há tempo, quando Constâncio tinha passado por
Roma, a notícia da sua morte tinha chegado ao Imperador, isto é, muito tempo
antes que fosse dada ordem para libertar o Papa28. Quanto a São Jerónimo,
que viveu também depois, pode ter sido vítima de erro, quer no reportar o que
os arianos tinham difundido, quer em considerar verdadeiros os juízos
apressados de Santo Hilário e Santo Atanásio. De facto, afirma que Libério
assinou uma fórmula herética: mas a ausência de uma reacção da parte ariana
e católica exclui esta possibilidade. Isto é admitido pelos historiadores mais
recentes. Quanto ao testemunho de Filostórgio, esse não tem valor: era, com
efeito, um ariano furioso que contou muitas histórias inventadas,
especialmente contra Atanásio, dizendo que teria comprado o favor de
Constâncio com presentes, teria causado a rebelião de Magnésio contra ele e
teria instigado o assassínio de Jorge de Alexandria…29.
28
Rohrbacher, op. cit., pag. 788 e 790.
29
U. Benigni op. cit., pag. 234-241. Filostórgio é autor de uma história eclesiástica, da qual temos
fragmentos escolhidos por Fócio.
30
Rohrbacher, op. cit., pag. 789.
31
Rufino, Hist. Eccl. I, 127. Citado por P. Albers s. j., Manuel d’histoire ecclésiastique, Paris 1919, T. I,
pag. 189.
de apenas quarenta anos, não encontra nenhuma prova para esclarecer a sua
dúvida.
32
Rohrbacher, op. cit., pag. 745; vol. 4°, libro 35°, pag. 27.
33
Karl Baus, Eugen Ewig, op. cit., pag. 49.
34
Llorca, Villoslada, Laboa, op. cit., pag. 412-3.
Terceira hipótese: caiu em heresia
Solução do caso
35
Para um católico, o ensinamento do Papa significa certeza absoluta, pelo que todo o fiel é obrigado a
abraçar também no foro interno a doutrina ensinada.
Se Libério caiu enquanto homem, é difícil dizê-lo, em face das discordâncias
dos textos. Mas certamente Libério em quanto Papa não caiu: antes do exílio
ele afirmou claramente a fé (como no colóquio com Constâncio), a tal ponto
que acabou prisioneiro, e depois do exílio igualmente reafirmou a fé,
condenando o erro de quem não aceitava a fórmula “semelhante na substância
e em tudo ao Pai”. Isto é suficiente para resolver a questão. Como se passaram
as coisas em Bereia, na Trácia, isso diz respeito à pessoa e à consciência de
Libério. Também naqueles anos terríveis de heresias e de perseguições a
Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo permaneceu pura e sem mancha, e o
Soberano Pontífice conservou a infalibilidade para confirmar os seus irmãos
na fé.