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FÉ E DOGMA: AS CONTROVÉRSIAS CRISTOLÓGICAS DA IGREJA ANTIGA

Alderi Souza de Matos

Introdução
 
                A palavra "teologia" desperta reações contraditórias nas pessoas. Para alguns,
trata-se de uma atividade não só legítima como indispensável para a Igreja e para os
cristãos. Para outros, é algo artificial e condenável, uma produção humana que distorce a
revelação de Deus. Tudo de que o crente necessita, dizem eles, é a Palavra de Deus, sem as
especulações e os devaneios dos teólogos. Todavia, o fato é que, mesmo sem o saber, todo
cristão faz teologia. Essa teologia pode ser boa ou ruim, equilibrada ou tendenciosa, mas
todos a fazem. Quando um humilde pregador pentecostal abre a sua Bíblia e começa a
interpretá-la, explicá-la e aplicá-la aos seus ouvintes, está fazendo teologia, por mais que
desconheça ou deteste essa palavra.
 
 
                A teologia não é nada mais, nada menos, que a reflexão acerca das Escrituras e
da fé cristã. Uma definição acadêmica diz que ela é "a exposição raciocinada da fé". Como
tal, é uma tarefa inevitável da igreja. Uma das razões para isso é a própria riqueza e
complexidade das Escrituras e a possibilidade de diferentes entendimentos de muitos de
seus textos e ensinos. A Igreja Antiga, ainda nos seus primeiros tempos, defrontou-se com
esse desafio. Diante das dissidências internas, ou seja, indivíduos e grupos que faziam
interpretações divergentes da mensagem cristã, e dos desafios externos, representados
pelos críticos pagãos, os cristãos sentiram a necessidade premente de explicitar e articular
de maneira clara e convincente as suas convicções, à luz das Escrituras.
 
 
1. Problemas iniciais
 
 
                Obviamente, a questão mais central da fé cristã é aquela que diz respeito ao
próprio Jesus Cristo. Desde cedo, os cristãos se puseram a refletir intensamente sobre a
pessoa e a identidade do Salvador, motivados, inclusive, por considerações apologéticas e
missionárias. Era crucial que eles tivessem bastante clareza sobre aquele que havia se
tornado o principal ponto de referência de suas vidas. Partindo dos dados bíblicos,
especialmente a descrição joanina de Cristo como o Logos ou Verbo (Jo 1.1, 14; 1 Jo 1.1; Ap
19.13), houve o florescimento de uma grande diversidade de concepções, muitas das quais
foram consideradas pela Igreja como insatisfatórias ou simplesmente errôneas.
 
 
                Entre essas concepções, estavam as que foram englobadas pelo termo
"monarquianismo", um grande esforço feito nos séculos segundo e terceiro para preservar,
nas discussões sobre o Pai, o Filho e o Espírito Santo, uma importante herança recebida pela
Igreja do judaísmo - o monoteísmo, ou seja, a afirmação radical da existência de um só
Deus. Parecia a muitos cristãos do período que afirmar a divindade do Pai, do Filho e do
Espírito era defender o triteísmo, isto é, a existência de três deuses. As diferentes correntes
monarquianistas foram classificadas pelos estudiosos em dois grandes grupos.
 
 
                O "monarquianismo dinâmico" ou adocionismo negava pura e simplesmente
a divindade de Cristo, declarando que Jesus era um mero homem que foi adotado por Deus
como filho por ocasião do seu batismo (Mt 3.16-17), sendo revestido pelo poder do Espírito
Santo (em grego, "poder" = dynamis, daí dinâmico). Já o "monarquianismo modalista"
entendia que Pai, Filho e Espírito Santo eram apenas três "modos" ou manifestações
sucessivas do único Deus. Isto é, Deus revelou-se inicialmente como Pai, depois como Filho e
finalmente como Espírito Santo. Uma variação dessa corrente, o "patripassianismo", dizia
que o próprio Pai sofreu e morreu na cruz. O monarquianismo procurava salvaguardar a
unidade de Deus pela negação seja da divindade, seja da personalidade distinta do Filho e do
Espírito Santo. Foi rejeitado pela Igreja Antiga devido à convicção de que as suas posições
não faziam justiça ao testemunho das Escrituras.
 
 
2. A controvérsia ariana
 
 
                A realidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo era fundamental para a identidade
dos primeiros cristãos desde o dia em que abraçavam a nova fé. No próprio momento do seu
batismo, de sua iniciação na vida cristã, essa tríplice realidade era invocada e confessada
pelo oficiante e pelo batizando. Vários escritores cristãos dos primeiros séculos fizeram
reflexões extremamente penetrantes acerca desse tema, como foi o caso de Irineu de Lião e
Tertuliano de Cartago. Mas, foi somente nos séculos quarto e quinto que as discussões
teológicas a respeito da "tríade divina" produziram seus frutos mais ricos e duradouros.
 
 
                O início do século quarto marcou um dos momentos mais decisivos da história do
cristianismo. A adesão do imperador Constantino à fé cristã e o conseqüente Edito de Milão
(ano 313) puseram fim a uma longa história de perseguições e deram início a uma história
ainda mais longa de ligações entre a Igreja e o Estado. Poucos anos após a ascensão de
Constantino, um presbítero de Alexandria, no Egito, chamado Ário, começou a divulgar as
suas idéias a respeito de Cristo. Segundo ele, Cristo era muito superior aos seres humanos,
mas inferior ao Pai, tendo sido criado por ele antes da existência do mundo. A acirrada
controvérsia que se seguiu foi interpretada pelo imperador como um perigo tanto para a
unidade da Igreja quanto para a integridade do império. A fim de resolver o problema, ele
convocou os bispos cristãos para se reunirem na cidade de Nicéia, perto da capital imperial,
Constantinopla, no ano 325.
 
 
3. Nicéia e Constantinopla
 
 
                O Concílio de Nicéia, o primeiro dos chamados concílios ecumênicos da Igreja
Antiga, reuniu cerca de 250 bispos, quase todos da parte oriental ou grega do Império
Romano, e representou uma mistura preocupante de agendas políticas e teológicas. Depois
de intensos debates, aos quais não faltaram as interferências do monarca, o "arianismo" foi
condenado como herético, sendo declarada vitoriosa a posição que defendia a personalidade
distinta e a plena divindade de Cristo. O Concílio produziu um famoso Credo cujo ponto
culminante foi a declaração de que o Filho era homoousios ou "consubstancial" com o Pai.
Todavia, por muitos anos houve fortes resistências contra a "doutrina da trindade" articulada
pelos bispos reunidos em Nicéia.
 
 
                Foi somente através dos esforços de alguns hábeis teólogos que essa doutrina
finalmente veio a encontrar ampla aceitação na região oriental do Império Romano. Quatro
deles destacaram-se em especial: Atanásio de Alexandria, Basílio de Cesaréia, Gregório de
Nissa e Gregório de Nazianzo, sendo estes últimos conhecidos como "os três capadócios". Em
sua argumentação, eles apelaram tanto às Escrituras como à experiência da Igreja. Somente
um Cristo que fosse ao mesmo tempo divino e humano poderia ser o verdadeiro e eficaz
mediador entre Deus e os homens. Por outro lado, os cristãos desde o princípio aprenderam
a exaltar a Cristo, adorá-lo no culto e dirigir orações a ele. Somente um ser divino merecia
ser tratado desse modo.
 
                 O triunfo da ortodoxia de Nicéia foi sacramentado no Concílio de Constantinopla
(ano 381), novamente no contexto de um importante evento político-religioso - a
oficialização do cristianismo católico como a religião do império, no ano 380, pelo imperador
Teodósio I. Os bispos reunidos na capital imperial reafirmaram as declarações de Nicéia,
esclarecendo melhor alguns pontos obscuros e fazendo uma afirmação explícita da
personalidade e divindade do Espírito Santo. O novo credo assim produzido ficou conhecido
como Credo "Niceno" ou Niceno-Constantinopolitano.
 
 
4. Discutindo as duas naturezas
 
 
                Finalmente, na primeira metade do século quinto, uma nova controvérsia abalou
a cristandade, dessa vez a respeito da relação entre as duas naturezas de Cristo, a divina e a
humana. Duas posições básicas se manifestaram desde o início, representadas
essencialmente pelas célebres escolas de interpretação bíblica de Alexandria e Antioquia. Os
alexandrinos entendiam que o Verbo divino uniu-se à carne, sendo o Cristo encarnado uma
pessoa plenamente integrada. Acentuavam, pois, a unidade da pessoa de Cristo, dando mais
ênfase à sua divindade do que à sua humanidade. Desse raciocínio resultaram duas posições
que foram eventualmente rejeitadas: o "apolinarismo", segundo o qual Jesus era uma
combinação de alma racional divina (o Verbo) e corpo humano, e o "monofisismo", que
afirmava que as duas naturezas fundiram-se em uma só, a divina.
 
 
                Já os antioquianos entendiam que Cristo tinha tanto uma plena natureza divina
quanto uma plena natureza humana. Seu problema estava na tendência de dividir em duas a
pessoa de Cristo. O grande defensor dessa posição foi Nestório, o Patriarca de
Constantinopla. Ele afirmava com tanta ênfase a distinção das naturezas que parecia ensinar
que havia duas pessoas em Cristo, uma divina e outra humana. Essas questões foram
tratadas em outros dois concílios ecumênicos. O Concílio de Éfeso (ano 431) condenou o
"nestorianismo" e o Concílio de Calcedônia (451) condenou também o apolinarismo e o
monofisismo. Este último concílio formulou as suas conclusões na célebre Definição de
Calcedônia: "Fiéis aos santos pais, todos nós, perfeitamente unânimes, ensinamos que se
deve confessar um só e o mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, perfeito quanto à
divindade e perfeito quanto à humanidade, verdadeiramente Deus e verdadeiramente
homem, constando de alma racional e corpo; consubstancial ao Pai, segundo a divindade, e
consubstancial a nós, segundo a humanidade... Um só e o mesmo Cristo, Filho, Senhor,
Unigênito, que se deve confessar em duas naturezas, sem confusão, sem mudança, sem
divisão, sem separação..."
 
 
5. Desdobramentos posteriores
 
 
                Desde então, esse entendimento da pessoa de Cristo foi amplamente aceito pelos
católicos romanos, pelos ortodoxos gregos, e mais tarde pela maior parte dos protestantes.
É parte daquilo que se denomina a Fé Cristã Histórica. Todavia, desde aquela época até os
nossos dias, têm surgido críticas contra essas formulações doutrinárias da Igreja Antiga,
alegando-se desde o uso de terminologia extrabíblica e influências do pensamento grego até
as interferências políticas na vida da Igreja. Nos últimos séculos, muitos indivíduos e grupos
têm simplesmente negado essas formulações históricas, retrocedendo a antigas posições que
foram condenadas pelas mesmas.
 
 
                O fato é que, mesmo reconhecendo-se esses problemas e a consideração
adicional de que as declarações doutrinárias não são infalíveis, as doutrinas ou dogmas
cristológicos da Igreja Antiga, são aceitos pela maioria dos cristãos como uma expressão
autêntica da fé bíblica, refletindo de maneira fiel as convicções básicas de incontáveis
gerações de seguidores de Cristo. Por limitadas que sejam essas formulações, pois que
vazadas em linguagem e categorias de pensamento humanas e condicionadas, elas
continuam insuperadas na beleza de seus termos, na profundidade e equilíbrio das suas
declarações e no esforço de fazer justiça à totalidade do ensino das Escrituras a respeito de
Cristo, sua pessoa e sua obra. Elas reafirmam, em linguagem teológica, a grandiosa
mensagem de que "o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e
vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai" (Jo 1.14).
 

Perguntas para reflexão:

1. A doutrina cristã de Deus deve ser inteligível, racional, ou simplesmente procurar


ater-se ao testemunho das Escrituras? 

2. A pessoa de Cristo foi motivo de controvérsia e escândalo no período antigo e


continua a sê-lo hoje. Isso deve preocupar os cristãos? 

3. Que aplicações valiosas e encorajadoras podem ser tiradas da triunidade de Deus? 


4. Se a doutrina do Pai, do Filho e do Espírito Santo precisasse ser repensada hoje, em
que direção isso deveria ocorrer? 

5. Quais as conseqüências práticas de se acreditar ou não na divindade de Cristo?


Sugestões bibliográficas:

 BAILLIE, D. M. Deus estava em Cristo: ensaio sobre a encarnação e a expiação. 2ª ed.


Rio de Janeiro: JUERP/ASTE, 1983. 

 BERKOWER, G. C. A pessoa de Cristo. São Paulo: JUERP, 1983. 

 CAMPOS, Heber Carlos de. A pessoa de Cristo: as duas naturezas do Redentor. São
Paulo: Cultura Cristã, 2004. 

 McLEOD, Donald. A pessoa de Cristo. Série Teologia Cristã. São Paulo: Cultura Cristã,
2005. 

 WALLACE, R.S. Cristologia. Em ELWELL, Walter A. (Ed.). Enciclopédia histórico-


teológica da igreja cristã. São Paulo: Vida Nova, 1988-1990. Vol. I, p. 381-389.

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