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Nicéia, um credo não crido

Disse-lhe Jesus: Mulher, crê-me que a hora vem, em que nem neste monte nem em
Jerusalém adorareis o Pai. – Jo 4.21

Ao observarmos o comportamento do clero no quarto século, é impossível não sentir


desconforto em ver a guerra declarada entre oriente e ocidente, bispos de diferentes sés
denunciando – e muitas vezes até caluniando – uns aos outros para fazer prevalecer sua
interpretação doutrinária. Zelo ou orgulho? Vaidade descontrolada ou visão privilegiada quanto
ao futuro da sã doutrina em um mundo que seguiria por milênios até o retorno do Rei? Jamais
saberemos. O que é indiscutível é que o clero do século III estava pronto para a guerra política,
e a união entre Igreja e Estado após Constantino trouxe a oportunidade que os bispos
repreensíveis precisavam para deixar de lutar pelo Reino, e passassem a lutar pela glória
desse mundo.

Assim como salientamos anteriormente, não podemos ler “a História da Igreja” como se
estivéssemos lendo “a História do Rebanho”, não estamos. Essa está perdida, e só podemos
fazer dela uma imagem, desprendida de fatos ou relacionada aos fatos dispostos a nós pelos
historiadores que registraram o desenvolvimento do Império Romano, o que inclui o poder civil
e o poder religioso. Cientes de estarmos olhando para apenas um aspecto do Corpo, o
eclesiástico, vejamos como se desenvolveu a doutrina cristã depois de declarado o símbolo
niceno.

Em busca da unidade da fé
Constâncio II, o filho de Constantino que reuniu o Império do oriente e do ocidente após a
morte de seus irmãos, buscou também a unificação da Igreja que, mesmo após o Concílio de
Nicéia, não alcançou a paz doutrinária. O problema maior para o Império era o de que uma
guerra teológica não envolvia apenas debates e encíclicas, mas revoltas populares,
perseguições entre bispos e diáconos de diferentes regiões e até mesmo assassinatos e
exílios. Dessa forma, apaziguar o clero não se tratava de questão religiosa, mas civil, era
questão de Estado.

Com esse objetivo primordial para qualquer imperador, o jovem que subiu ao trono aos 20 anos
de idade via-se diante de duas opções: proibir o cristianismo e perseguir a Igreja, voltando aos
tempos de Décio, ou tentar o diálogo entre Roma, Alexandria e Antioquia para colocar fim às
intrigas. Foi por essa última via que o governante caminhou, e ao se atualizar quanto ao ponto
em que estava o cisma na Igreja, entendeu que todo o caos advinha de uma única fonte: o
arianismo.

O que começou em Alexandria como uma pequena proposta teológica por parte de um diácono
que buscava entender a essência (ousia) de Deus, terminou como a maior compreensão de
todo o mundo cristão a respeito da resposta para a pergunta da mulher samaritana quando
disse “Porventura não é este o Cristo?”1

1
Jo 4.29

1
Figura 1 – A divisão do Império Romano nos tempos do Imperador Constantino e as respectivas dioceses da Igreja

Ário apresentou a seu bispo, Pedro I2, uma proposta teológica que buscava entender a
cristologia de Orígenes, teólogo que postulava ser Deus compreendido hipostaticamente, ou
seja, o Deus Triuno consistia em três hypostásis. Conforme já vimos, esse conceito deu base
para que os teólogos entendessem o que futuramente a Igreja anunciaria com o termo latino
persona, a saber, o Deus de Israel compunha-se de três pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo. O
problema com a teologia de Orígenes é que o termo hypostásis dava margem para que a
mente grega o visse como três deuses distintos, o que claramente configurava-se como
politeísmo. Assim, os teólogos pós-origenianos não puderam descansar em sua obra, mas
encontraram nelas o combustível para continuar perseguindo a intelecção da essência de
Deus, e na avalição do jovem diácono alexandrino a resposta havia sido encontrada.

A biografia de Ário compartilhada na maioria dos livros que descrevem a história do Império
Romano dão conta de um “herege”, “fundador do arianismo”, termos que para qualquer amante
de literatura histórica não significa mais que “não sabemos muito sobre Fulano, além de que...”.
A observação que não é feita em livros de História da Igreja – que em língua portuguesa
simplesmente não existem, sendo a obra de Daniel-Rops a única conhecida do grande público
– é a de que não apenas Ário, mas todos os teólogos dos séculos II e III andavam à procura da
tradução da linguagem teológica da Escritura e dos padres apostólicos para a linguagem
filosófica, e isso configurasse simplesmente como o ponto mais importante da teologia cristã
até o Primeiro Concílio de Constantinopla (381).

De Policarpo a Ário, passando por Justino e Eusébio, todos os bispos acreditavam nos pontos
vitais para a fé cristã. Deus Criador; Jesus, o Cristo; o Espírito de Deus; Apóstolos convocados
por Deus; Santa Igreja; Sacramentos; Escritura Sagrada... nada disso estava sendo discutido
como “verdade x mentira”, a busca estava em entender o “como”. Se Deus criou todas as
coisas, o que havia antes da criação da eternidade? Tendo Jesus nascido de Maria, era ele
Deus enquanto encarnado ou havia deixado a divindade nos céus e vivido única e plenamente
como homem? O Espírito de Deus é uma pessoa única ou uma expressão do agir do Criador?
A era dos apóstolos havia terminado com a morte de João? A Igreja material poderia ser

2
Venerado tanto pela Igreja Ortodoxa quanto pela Igreja Romana, Pedro I foi o patriarca de Alexandria entre 300 e 311
d.C.

2
encontrada, ou seria eternamente imaterial fazendo-se presente “onde houver dois ou três”?
Os sacramentos, quais são? A Escritura é Sagrada, mas qual livro a compõe?

Veja que nenhum desses questionamentos são heréticos, afinal são questionamentos e não
afirmações. A heresia não pode ser encontrada na pergunta e sim na resposta, e mais do que
na resposta, na afirmação da resposta pois o teólogo pode encontrar uma resposta errada, e
sendo corrigido, rever seu ponto e alinhá-lo à ortodoxia. O que vemos na maioria dos livros que
se propõem a contar a história é a anatematização prévia, erro que nem mesmo a Igreja pré-
Nicéia fez. O que proponho aqui não é uma tentativa de retirar de Ário o anátema, até mesmo
porque dentre todas as condenações dessa época a de Ário é certamente a menos
questionável, o meu ponto é com relação às intenções dos primeiros apologistas e a liberdade
forçosamente necessária que todo teólogo deve ter para desenvolver a ciência da fé3.

Ao citar a pobreza argumentativa do material disponível em língua portuguesa, sou obrigado a


trazer a consideração inteligente feita por Ivor J. Davidson4, quando diz “[...]é claro que Ário se
via como um conservador, mantendo as tradições doutrinárias que herdara e procurando
ancorá-las em textos bíblicos em vez de metafísica especulativa.” O que o teólogo britânico
está afirmando no capítulo “A política do arianismo”5 é que não apenas Ário se via como um
ortodoxo, como sua visão seguia o caminho intelectual da Igreja de seu tempo, qual seja o de
partir do texto sagrado rumo à argumentação filosófica, e assim provar intelectualmente (e não
por credo) que o Evangelho era a verdade. Esse caminho, o diácono alexandrino perseguiu
partindo da Escritura em textos como Cl 1.15 (“Ele [Jesus] é a imagem do Deus invisível, o
primogênito sobre toda a criação), em que na visão do futuro herege estava patente um início
existencial do Cristo (primogênito) e sua função formal de YHWH para com o homem
(imagem). Saindo do texto bíblico para o filosófico, Ário se utiliza da hypostásis de Orígenes
para dizer que Deus (Pai) é único em essência, e Cristo não pode compartilhar de sua
essência pois dessa forma seria Jesus igual (o mesmo) que o Pai. Na visão ariana, a divindade
de Cristo está contida em sua existência criada, limitada à eternidade do universo e não à
eternidade do Deus Altíssimo.

Grande parte das acusações lançadas sobre Ário pertencem na verdade ao arianismo6, ou
seja, a culpa dos alunos é lançada com o passar dos tempos sobre o mestre. A teologia de
Ário, independente do que chamo aqui de “intenções do teólogo”, foi culpada sim pela maior
escola de teologia herética de todos os tempos – encontrando páreo apenas no século XIX
com a Teologia Liberal, da qual falaremos bem mais à frente –, portanto, é indiscutível a
condenação que sofreu, sendo inclusive impressionante constatar o quanto a Igreja estava
despreparada para fazer frente ao arianismo, de forma que até a primeira metade do quarto
século, mais da metade de todos os bispados compartilhava da visão ariana, como veremos a
seguir.

3
Ao falar sobre as intenções dos apologistas não me refiro ao que se passava na mente de Fulano quando escreveu
tal tese, e sim sobre o desejo atemporal do teólogo, que em busca da defesa da ortodoxia remexe os escritos cristãos
visando alcançar a compreensão correta e a melhor defesa argumentativa do ponto original. Imaginar que existem
teólogos ortodoxos Per se, e teólogos heterodoxos é aplicar à ciência um juízo de valor que simplesmente implode a
própria possibilidade do questionamento pois o “teólogo ortodoxo por natureza” é, na verdade, um simples pregador,
alguém que ora sobre o pressuposto. Como já vimos anteriormente, a heresia precede a ortodoxia, e tal constatação
inquestionável é suficiente para mostrar que não é possível ser ortodoxo sem primeiro considerar o heterodoxo.
4
DAVIDSON. I. J. A Public Faith – From Constantine to the Medieval World. Baker Books. USA, 2005.
5
The politics of arianism. In., Op. Cit., p. 47.
6
Esse anacronismo se repete em praticamente todas as escolas de pensamento ao longo da História, do aristotelismo
ao marxismo, todos os ismos agregam ao seu “pai” inevitáveis erros infindáveis.

3
Rumo a Constantinopla
Quase 20 anos depois de Nicéia, vendo que o clero não gozava de unidade o imperador
convocou uma reunião que deveria ser universal, reunindo bispos de todo o mundo romano. O
local escolhido para o encontro foi a cidade de Serdica (atual Bulgária), situada na fronteira
entre a parte oriental e ocidental. O encontro que provavelmente se deu no ano de 343 contou
com presença majoritária de bispos ocidentais, uma vez que os orientais se negavam a discutir
em uma mesma mesa com os bispos latinos que haviam deposto Atanásio de Alexandria e
Marcelo de Ancira.

Esses dois personagens se tornaram vitais para a defesa da ortodoxia ao longo do quarto
século, uma vez que após o término do Concílio de Nicéia, apesar de o arianismo ter sido
declarado herético, não apenas não desapareceu como passou a conquistar cada vez mais
bispos. A visão ariana fazia sentido em um mundo dominado pelo paganismo, e com a
cristandade significado nos melhores cenários entre 10 e 12% da população de cada cidade. É
nesse cenário que surge Atanásio, nascido em 299 e ordenado diácono assim que completou
30 anos de idade (a idade mínima para o ordenamento diaconal naquele tempo). Conhecido
tanto por seu domínio das Escrituras como pelo temperamento violento, Atanásio passou a ser
temido pelos partidários de Ário, uma vez que o jovem diácono vindo de Alexandria lançou uma
perseguição violenta aos arianos assim como aos que seguiam Melito, no Egito, cuja doutrina
assemelhava-se à de Ário com variações que não passavam de detalhes de heresia sobre
heresia. Em uma das inúmeras tentativas do imperador em reconciliar os bispos de todo o
mundo católico, foi realizado em Tiro no ano de 335, um sínodo no qual não apenas não houve
conciliação, como o líder da reunião, Eusébio (de Nicomédia, agora porém com a sé transferida
para Constantinopla), amigo próximo de Constantino, defendeu os arianos e conseguiu cavar a
condenação de Atanásio com base nas acusações de que a ordenação do jovem diácono
havia sido ilegal, e assim não apenas o afastou do diaconato como conseguiu aprovar sua
excomunhão. Logo após o concílio, Eusébio aproveitou o embalo e afastou do bispado Marcelo
de Ancira, outro bispo anti-ariano que trabalhava na mesma linha de Atanásio.

O mundo católico estava divido agora não apenas entre oriente e ocidente, afinal essa divisão
era mais geográfica e política, a mais relevante divisão se dava doutrinariamente pois de leste
a oeste havia bispos confortáveis com a ideia de que Jesus havia sido “o primeiro a ser criado”,
e que sua figura era icônica para o cristianismo, à semelhança de campeões divinos como
Héracles e Teseu, mas absolutamente ele não era Deus. Essa heresia era de tal forma
inegociável que homens como Justino, Tertuliano, Orígenes e Atanásio não admitiam viver em
comunhão com a congregação cristã enquanto não fosse purgado do seio da igreja essa ideia
diabólica. É então que o Sínodo de Serdica falha em tentar reunir os bispos de todo o mundo, e
os orientais se dirigem para a Trácia e iniciam um sínodo oriental.

O resultado de ambas as reuniões, ocidentais em Serdica e orientais em Tiro, não poderia ser
outro que não uma saraivada de anátemas para ambos os lados. Do lado ocidental, a reunião
avançou rumo à reclamação de que Roma passaria a ser um tribunal de apelação para os
orientais que buscassem revisão de sentenças; do lado oriental a reunião terminou com a

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anatematização do termo homoousia (mesma substância, consubstanciação), dando origem a
um novo partido semi-ariano. A conclusão do Concílio de Serdica é bem descrita por Alberigo7:

A partir daí as duas teologias trinitárias tradicionais se confrontam e se opõem


através dos "símbolos sinodais". A partir da metade do séc. IV far-se-a sentir cada
vez mais a influência da minoria com tendências arianas. De fato, a situação evolui
em sentido francamente favorável aos semi-arianos, tão logo Constâncio II estende o
seu domínio também ao Ocidente. Sínodos realizados em Arles (353), Milão (355) e
Béziers (356) quebraram as resistências dos ocidentais, que foram obrigados a
subscrever a deposição de Atanásio.

Veja que nem mesmo Atanásio, que saindo de Alexandria para Roma se tornara rapidamente
um campeão da fé na igreja latina, conseguiu ser poupado. Mais que nunca a Igreja Católica
era universal apenas denominacionalmente, pois política e doutrinariamente não conseguia
concordar sequer quanto aos aspectos principais da doutrina de Cristo.

Após mais de doze profissões de fé diferentes que se seguiram ao Primeiro Concílio


Ecumênico, estavam instalados na Igreja cinco partidos doutrinários, todos diferenciando-se
com relação à pessoa de Cristo diante do Pai8:

Homoousios: Mesma substância ou consubstancial.

Homoiousios: Semelhante em essência.

Homoios: Semelhante, mas sem relação com


substância.

Heteroousia: Diferentes substâncias.

Anomoios: Diferente em essência.

A pluralidade de leituras acerca do credo niceno só veria


luz quando Atanásio, já um dos primeiro entre a igreja
latina, ressalta que Nicéia admite tanto o termo ousia
quanto hypostásis, sendo o primeiro termo referente àquilo
que é comum (entre as pessoas do Pai e do Filho) e o
segundo termo referente às características particulares de
cada persona. A pacificação vinda de Atanásio não resolve
em absoluto o problema, mas traz indiscutivelmente um
clima que possibilita a Igreja e o Imperador trabalharem
para chegar a um novo Concílio Ecumênico, o que viria a
acontecer em 381.

Figura 2 – Ilustração de Sto. Atanásio, por Francesco Bartolozzi (1728 – 1815)

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A partir daí as duas teologias trinitárias tradicionais se confrontam e se opõem através dos "símbolos sinodais". A
partir da metade do séc. IV far-se á sentir cada vez mais a influência da minoria com tendências arianas. De fato, a
situação evolui em sentido francamente favorável aos semi-arianos, tão logo Constâncio II estende o seu domínio
também ao Ocidente. Sínodos realizados em Arles (353), Milão (355) e Béziers (356) quebraram as resistên cias dos
ocidentais, que foram obrigados a subscrever a deposição de Ataná sio. Os ALBERIGO. G. História dos Concílios
Ecumênicos. Editora Paulus. São Paulo, 1995.
8
Ver The Early Church In. The Arian Controversy after the Council on Nicaea, Henry Chadwick, p. 141.

5
Entendendo o Espírito Santo
Na segunda metade do quarto século nasceu, no Egito, uma discussão resultante da leitura
dos textos de Atanásio. Se Pai e Filho eram personas, ou seja, eram pessoas dotadas de
individualidade e identidade, isso abrangia também o Espírito Santo? Caso sim, seria o Espírito
Santo uma pessoa criada? É quando no ano de 374, Basílio de Cesareia escreve sua obra
Sobre o Espírito Santo, tornando manifesto seu reconhecimento quanto à divindade do
Espírito.

Em março de 364 sobe ao trono do Império Romano do Oriente, Flávio Júlio Valente, partidário
da visão de Ário. Recomeça então uma perseguição aos veteronicenos, dentre os quais
Atanásio era o de maior destaque nesse período. É então que, mais uma vez, Atanásio é
afastado de seu ofício sacerdotal, assim como todos os demais líderes da igreja que
confessavam o credo niceno que dizia ser Cristo “...da substância do Pai”.

Posta a discussão acerca da Terceira Pessoa da Trindade (?), não havia mais como adiar um
Concílio Ecumênico para solidificar o que Nicéia não havido conseguido.

Conclusões sobre o quarto século

A paz para a Igreja significou a transformação da relação entre o governo e o


cristianismo. Se antes o imperador era inimigo da Igreja, agora era seu patrono e
protetor, de modo que doravante a história da Igreja não é algo à parte, mas
inextricavelmente ligada à sociedade e à política imperial.9

A IGREJA E O ESTADO – A entrada de Constantino para a Igreja foi indiscutivelmente benéfica


para a instituição, mas se olharmos não para a Igreja Católica e sim para o corpo de Cristo,
diversos questionamentos podem ser feitos, todos na ordem da leitura espiritual da História.
Sendo a Igreja o Corpo de Cristo, deveria ter se aliado ao Estado e permitido uma liderança
política se assentar entre os padres e não apenas dar orientações doutrinárias como até
mesmo tomar decisões administrativas e conciliares? Não foi a Igreja ao longo da era medieval
transtornada em grande parte por seu exercício político, para o qual definitivamente não foi
chamada? Como os cristãos saíram de “orar pelos governantes” de I Tm 2 para sentar à mesa
com os governantes, como aconteceu com o Concílio de Nicéia (e tantos outros) que foram
abertos pelo próprio imperador que sustentava o blasfemo título de Supremum Pontifex? Essas
perguntas obviamente não podem ser respondidas, a história é única e não se submete a
alternativas além do fato, e o fato é que a Igreja ao longo dos séculos governou em conjunto
com o poder secular.

TEOLOGIA – Quanto mais se lê sobre o cristianismo entre os séculos II e IV, mais se vê a


necessidade vital da apologética para a fé cristã. Ignorar a filosofia e o desenvolvimento
científico nunca foi benéfico para o cristianismo. Quando surgiu o arianismo, a Igreja estava
claramente desarmada para defender a natureza divina e a natureza humana de Cristo, e isso
mesmo após a era apostólica quando essa questão estava indiscutivelmente sanada (bastando
a leitura do Evangelho de João para ver como a cristologia era o tema principal da pregação
apostólica). Não é preciso investigação profunda para entender que entre o conhecimento
revelado por Deus aos apóstolos e a compreensão teológica no terceiro e quarto século, havia

9
DAVIES. J. G. From Nicea to Constantinople. In: ______ The Early Christian Church. Barnes and Noble, Inc., USA,
1965. p. 163 (tradução nossa).

6
um abismo qualitativo. Essa dificuldade de compreender a doutrina do Cristo permitiu que
heresias provocassem atrasos colossais para a propagação da verdadeira fé cristã, aquela que
gera boas obras.

É chocante olhar para a obra de Irineu de Lyon e encontrar:

Portanto, não era um aquele que era conhecido e outro aquele que dizia: Ninguém
conhece o Pai, mas um só e o mesmo. O Pai lhe sujeitou tudo e de todos recebeu o
testemunho de que é verdadeiro homem e verdadeiro Deus, do Pai, do Espírito, dos
anjos, da criação, dos homens, dos espíritos apóstatas, dos demônios, do inimigo e,
finalmente, até da própria morte.10

Esse escrito é do século II, e quão longe está das desavenças insolúveis do quarto século.

Da mesma forma, Tertuliano no início do século III defendeu vigorosamente a natureza


humana e a natureza divina de Cristo, o que era questionado por Marcion (e viria a ser
questionado novamente no quarto século). As palavras do santo eram de tal modo veementes
que após sua extensa defesa11, arrematou com o coração cheio de fé e intrepidez:

O Filho de Deus morreu; o que tem tudo para ser acreditado, justamente porque é
absurdo. E Ele foi sepultado e ressuscitou; o que é fato certo, porque é impossível.

Esse cenário de um certo vazio qualitativo de produção teológica sofrerá impacto profundo com
a chegada de Agostinho de Hipona, na segunda metade do quarto século. Mas primeiro,
precisamos analisar o fechamento do Concílio de Nicéia em sua continuação, o Concílio de
Constantinopla.

Fernando Melo
Brasília, 15 de junho de 2022

10
Contra as Heresias. Livro IV, 6.7.
11
Na carne de Cristo, V.

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