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Kardec e Renan

Daniel Salomão Silva

O século XIX, no Ocidente, foi marcado por um grande e construtivo conflito no campo das
ideias. Particularmente quanto à religião, entre as filosofias materialistas e espiritualistas.
De um lado, frutificavam as ideias materialistas, impulsionadas pelos avanços nas ciências naturais
e humanas, pelo estabelecimento da teoria evolucionista e das propostas psicológicas e sociológicas de
análise do ser humano: a explicação religiosa não seria mais necessária. Do lado espiritualista,
agonizavam as confissões católica e protestante, apegadas às bandeiras dogmáticas que as sustentavam,
incompatíveis com os novos degraus alcançados pelo intelecto e pelo sentimento humano. Herculano
Pires aponta a crise enfrentada pelas instituições religiosas, já no século XX, como consequência de um
caminho hipócrita, decorrente do egoísmo que deturpa o verdadeiro sentido da religião1.
Por mais que pareça paradoxal, esse foi o momento exato para a vinda do Consolador que Jesus
prometera. Em primeiro lugar, o progresso intelectual, erroneamente entendido como o vilão da história,
não é a causa das ideias materialistas. Segundo Kardec, o homem é que do avanço dos estudos “tira uma
consequência falsa, pela razão de lhe ser dado abusar de tudo, mesmo das melhores coisas” 2. O
Codificador ainda afirma que “se o Espiritismo tivesse vindo antes das descobertas científicas, teria
abortado, como tudo quanto surge antes do tempo” 3. Em segundo lugar, são nos momentos mais escuros
que a luz se faz urgente. Se a proposta materialista destruía qualquer possibilidade de sentido, e se a
religião não mais correspondia aos anseios de seus adeptos, era necessária a vinda de algo que unisse os
avanços da razão humana à mensagem do Cristo, tão encoberta pelo egoísmo, mas viva nas expectativas
de todos os corações.
O campo da pesquisa histórica sobre a vida de Jesus efervescia. Retirando a figura do Mestre das
amarras da Igreja, muitos teólogos e linguistas buscavam extrair o que realmente poderia ser verdadeiro
nas narrativas dos evangelistas. Deixando o dogma religioso para abraçar o dogma materialista,
encaravam os fatos aparentemente sobrenaturais como invenções ou interpretações equívocas de um povo
místico. Para muitos deles, não teriam ocorrido os ditos milagres nem os demais fenômenos mediúnicos
ou anímicos relatados. Além disso, muitos dos fatos “não-sobrenaturais” da vida do Cristo seriam
improváveis por diversos motivos.
Nesta linha de pensamento, destacou-se na França, à época de Kardec, a figura de Ernest Renan 4.
Ex-seminarista e professor de línguas semíticas 5, publicou em 1863 a obra Vida de Jesus, que causou
enorme incômodo aos círculos religiosos do mundo latino. O excelso Codificador, profundo estudioso
que sempre foi, leu esta obra, questionando os Espíritos Superiores sobre seu efeito 6. Segundo eles, Renan
“reduziu o Cristo à proporção do mais vulgar dos homens, negando-lhe todas as faculdades que
constituem atributos do Espírito livre e independente da matéria”. O efeito desta visão seria imenso, pois
abalaria os pilares milenares do Cristianismo institucionalizado.
Todavia, ainda segundo o Espíritos,

(...) ao lado de erros capitais, sobretudo no que se refere à espiritualidade, o livro contém
observações muito justas, que até aqui haviam escapado aos comentadores e que, de certo ponto de vista,
lhe dão alto alcance. Seu autor pertence a essa legião de Espíritos encarnados que se podem classificar
como demolidores do velho mundo, tendo por missão nivelar o terreno sobre o qual se edificará um
mundo novo mais racional. Quis Deus que um escritor, justamente conceituado entre os homens, do
ponto de vista do talento, viesse projetar luz sobre algumas questões obscuras e eivadas de preconceitos
seculares, a fim de predispor os Espíritos às novas crenças. Sem o suspeitar, Renan aplainou o caminho
para o Espiritismo6.

Renan, entre outros, abriu os olhos dos que buscavam Jesus apenas dentro das molduras quase
míticas dos religiosos. Evitando preconceitos teológicos, ousou questionar fatos paradoxais ou mesmo
incoerentes das narrativas bíblicas. Em visão até mesmo semelhante à apresentada por Kardec no décimo
quinto capítulo de A Gênese, nem tudo deve ser interpretado exatamente como está escrito nos
evangelhos. Problemas de redação, tradução ou mesmo de entendimento dos que presenciaram o fato,
deveriam ser considerados. O Codificador, por exemplo, apresenta explicação racional para as
“ressurreições”; declara como hipótese a condição de parábola para os acontecimentos nas Bodas de Caná
e para a tentação no deserto sofrida por Jesus; e propõe o entendimento da “multiplicação dos pães” como
alegoria e ação do poder moral do Mestre sobre a multidão faminta 7. Em O Evangelho segundo o
Espiritismo, também Kardec questiona traduções 8 e até mesmo reconhece dificuldades na redação por
parte dos evangelistas9. E ainda, ao comentar a famosa passagem em que Jesus “amaldiçoa” uma figueira
que não produzia frutos, ato absurdo para um Espírito de tamanho amor, deixa clara sua interpretação
apenas simbólica do ocorrido 10. Diferentemente de Renan, porém, admite como plenamente possíveis
muitos dos eventos aparentemente sobrenaturais, deixando clara sua compatibilidade com as leis da
Natureza.
Era necessário demolir para construir. Em diversos campos do conhecimento, da Filosofia aos
estudos bíblicos, romper com os paradigmas era fundamental. Renan foi um desses demolidores. Todavia,
apesar de não ser materialista, não deu o devido valor à questão espiritual por trás dos acontecimentos.
Removendo os obstáculos a uma crença mais madura, preparou terreno para a vinda de novas
ideias, como a Doutrina Espírita. Preocupados mais com as questões morais que com detalhes teológicos
de difícil ou impossível comprovação, os Guias da Humanidade permitiram uma leitura mais ampla e
tolerante das Escrituras. Entendendo que cada degrau é subido no tempo devido, respeitaram, como ainda
respeitam, o amadurecimento intelectual e moral dos homens para a compreensão mais plena das Leis
Divinas, morais e físicas.
Retirar Jesus de enquadramentos já incompatíveis com a razão é essencial para a verdadeira
apreensão da mensagem cristã. Libertar o espírito vivo da letra morta, conforme a recomendação de Paulo
de Tarso (2Co, 3:6), é também libertar o homem de concepções fundamentalistas e radicais. Herculano
Pires esclarece que, se a Reforma Protestante libertou “a letra”, permitindo acesso geral à Escritura, a
Doutrina Espírita, indo além, liberta-nos “da letra” 11. Se “o Espiritismo é o mais terrível antagonista do
materialismo”, deve combatê-lo com as armas da razão e do sentimento. Sem jamais esquecer a ação
espiritual em todos os aspectos da vida, “o Espiritismo se apoia menos no maravilhoso e no sobrenatural
do que a própria religião”12, com “religião” referindo-se as instituições religiosas tradicionais. Propondo
uma visão racional adequada aos anseios humanos, a Doutrina Espírita, ilustre representante da corrente
espiritualista, vencerá a frieza materialista e contribuirá imensamente para o progresso da Terra,
ensinando “aos homens a grande solidariedade que os há de unir como irmãos”13.

1. PIRES, José Herculano. Agonia das Religiões. 5a ed., Paideia, introdução.


2. KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de Guillon Ribeiro, 76a ed., FEB, q. 148.
3. KARDEC, Allan. A Gênese. Tradução de Guillon Ribeiro, 36a ed., FEB, c. 1, i. 16.
4. SCHWEITZER, Albert. A busca do Jesus histórico. 3a ed., Fonte Editorial, c. 13.
5. Entre as línguas semíticas estão o hebraico e o aramaico, fundamentais para o estudioso da Bíblia.
6. KARDEC, Allan. Obras póstumas. Tradução de Evandro N. Bezerra, 1a ed., FEB, pp. 403 e 404.
7. KARDEC, Allan. A Gênese. Tradução de Guillon Ribeiro, 36a ed., FEB, c. 15, i. 39, 40, 47, 48.
8. KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Tradução de Guillon Ribeiro, 112 a ed., FEB, c. 4,
i. 7 e seguintes.
9. ______________, c. 23, i. 3.
10. ______________, c. 19, i. 9.
11. PIRES, José Herculano. O Espírito e o Tempo. 11a ed., Paideia, 2a p., c. 2, i. 3
12. KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de Guillon Ribeiro, 76a ed., FEB, conclusão, i. II.
13. ______________, q. 799.

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